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ENTRE O ORAL E O ESCRITO:

CONSTRUÇÃO DA MEMÓRIA DOS “CIGANOS” ENQUANTO POVO RESISTENTE

Doutoramento em Antropologia ISCTE-IUL


Antropologia Contemporânea
Prof. Micol Brazzabeni
20 Janeiro 2010
Pedro Neto

 
 
O melhor sítio para esconder uma árvore é na floresta.
- ditado popular

Um cigano é um cigano.
(Asséo 1989:127)

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Introdução

Os ciganos terão chegado à Europa Central no séc.XV,1 e esses seriam tão ciganos quanto
os de hoje.2 Desde a sua chegada que um misto de curiosidade e rejeição envolveu este povo vindo das
terras do Indo. Muito se construiu em torno destas comunidades, entre mitos e estereótipos - numa
concepção etnocêntrica da história e da memória cultural, e que nem sempre correspondeu à verdade
“total”. Porém, foi sempre nesse limbo que os ciganos definiram a sua possibilidade de existência,
adaptando-se criativamente à cultura local, na qual a cada momento se inseriam. A existência de um
povo com as características sócio-culturais dos ciganos dentro de uma “sociedade maior que eles”, só
foi possível através de mecanismos de adaptação e negociação permanente entre duas realidades: face à
dominante - gagé, e àquela própria - cigana.
Procurar-se-à clarificar aspectos da sobrevivência de um grupo tão específico como o dos
cigano, estando há mais de quinhentos anos em contacto com uma cultura de carácter hegemónico e
dominador - uma cultura e respectivos Estados, que desde o seu aparecimento levaram a cabo políticas
de expulsão, perseguição, etnocídio e assimilação. Todavia, os ciganos resistem, existindo.
Serão então abordadas certas estratégias usadas pelos ciganos para resistir à assimilação
cultural: questões ligadas com o sistema comunicativo entre os ciganos - prevalentemente oral e na sua
relação com o dos gagé - predominantemente escrito; com as formas de transmissão e preservação da
memória – a oralidade e o registo escrito; a ligação entre a memória étnica e o modo pela qual os
ciganos concebem e vivem a sua identidade no interior da relação com os não-ciganos.
Importa esclarecer que não existe um povo cigano, existem sim comunidades que
partilham determinadas características culturais e em que algumas são transversais a vários grupos -
ciganos - como sejam aqueles que são apresentados na bibliografia consultada (Rom/Kalderash,
Sinti/Manuš). Usar-se-à o termo “ciganos” para os distinguir dos não-ciganos ou gagés, sem com isso
pretender uniformizá-los: cada grupo apresenta as suas especificidades e quando pertinente serão
indicados os grupos respectivos. O uso do termo “ciganos” será usado quando possível estabelecer
pontos de convergência entre as várias comunidades.

                                                                                                               
1 cf. (Asséo 1989:125)
2 em relação aos Manuš cf. (Williams [1993]1997:51)
3
Entre o oral e o escrito:
construção da memória dos “ciganos” enquanto povo-resistente

A resistência dos ciganos enquanto povo está ligada ao seu habitus3, mantido durante toda a
sua existência em contexto europeu, e “(...) foi este habitus que lhes permitiu evitar o domínio e a
subordinação(...)”4 A reprodução das práticas culturais ciganas ao longo do tempo, ajudou-os a resistir à
aculturação e ao hipotético desaparecimento. Há que referir que no largo período de presença cigana,
várias foram as políticas e posturas adoptadas pelos vários Estados de “acolhimento” face aos mesmos:
a perseguição étnica e respectiva expulsão - sendo empurrados de lugar para lugar, para a margem da
margem; o etnocídio - sendo o Holocausto o mais claro exemplo; a outras políticas mais recentes com
vista à assimilação. Os ciganos continuam ciganos.
No seu longo percurso de sobrevivência, várias e necessárias foram as estratégias postas em
prática, destacando-se a “marginalização,” a qual desempenhou um papel fundamental.
Paradoxalmente, a marginalização, sendo uma condição atribuída pela sociedade dominante - na sua
postura de exclusão e rejeição, atirando os ciganos continuamente para a margem, - foi ao mesmo
tempo a condição base que lhes permitiu e permite uma existência étnica. A marginalização, propiciada
pelo comportamento gagé, foi o espaço de manobra ideal para a existência cigana - profissional dessa
mesma condição. “Os ciganos são um povo marginal, marginais a outros povos marginais” e foi a
“profissionalização da marginalização” que lhes permitiu permanecer “ciganos” até hoje. Como Tauber
continua: “Os ciganos fizeram da marginalidade um hábito, tentando por um lado escapar à
proletarização e por outro, em manter, do seu ponto de vista, o domínio do mundo.” (2008:171) De
referir que a ideia de “domínio do mundo” limita-se à possibilidade de perpetuar as suas práticas
culturais e modos de vida, resistindo assim às vicissitudes do contacto com determinada sociedade –
dominante - em que se inserem. Na conjuntura do domínio e do poder, Asséo aponta que “(...) os
ciganos são um povo que não tem tendência à hegemonia, e portanto [não se trata sequer de um] grupo
subalterno.” É Asséo que cunha o termo povo-resistência (peuple-résistance) afirmando dos povos que
não procuram dominar, “(...) procuram [apenas] um processo de existência em si mesmos, pela sua
perenidade.” Ao contrário da sociedade dominante, um povo-resistência é produtor de uma hegemonia

                                                                                                               
3 Sendo o habitus um conjunto de aspectos da cultura que estão ancorados no corpo ou nas práticas quotidianas de indivíduos, grupos,
sociedades e nações. Inclui a totalidade de hábitos adquiridos, técnicas corporais, estilos, gostos, e “conhecimento não-discursivo”, e que
existem sem que esse grupo os refira. Como Bordieu aponta, o habitus está em larga escala dependente da história e da memória de
determinado grupo, cf. Bourdieu, Pierre (1977) Outline of a Theory of Practice. Cambridge University Press; e Mauss, Marcel (1934) Les
Techniques du Corp, Journal de Psychologie 32 (3-4) Paris: PUF.
4 Piasere, L. (2000) Antropologia sociale e storica della mendicità zingara. Polis, XIV(3):245) desde (Tauber 2008:171)

4
ao interno de si mesmo - “uma hegemonia do interior.” (1989:123) É esta a condição base, que
enquanto minoria, lhes o confere o carácter de povo-resistência.

A condição de subalterno e/ou de minoria surge com o Estado moderno, “um estado
reduzido aos seus aparelhos e instituições,” à sua materialidade portanto. (Asséo 1989:122) A noção de
subalterno e minoria pressupõe um grupo dominante, grupo esse que regula de acordo com a
correspondente parafernália histórica, política, social, económica, cultural, etc. - elementos que estão nos
princípios do estado-nação. O processo normal de construção do estado-nação faz com que os grupos
subalternos e/ou minoritários tendam a ser assimilados, e onde a história desempenha um papel crucial.
“A história das minorias, parte integrante da história contemporânea, não assegurou a promoção dos
grupos marginais, das minorias, dos grupos subalternos dentro de um quadro de história total. A
história dos marginais contenta-se em lamentar a perda de substância que os aparelhos de repressão em
formas progressivamente mais subtis as fazem subir ao posto de culturas do povo, e concluindo assim
uma uniformização dos seus modos de vida.” (Asséo 1989:122) Tal uniformização, acontece em parte
devido a políticas de “integração individual e exclusão colectiva.” Esta ideia explica porque os ciganos
possam ter sido “(...)tolerados sem ser amados, perseguidos sem ser detestados, mas nunca puderam ter
o seu espaço entre o homem.” (1989:122) As características ocidentais em relação às “etnias são muito
rígidas para poder acomodar as características migrantes e transnacionais da diversidade Roma.”
(Toninato 2006:245)
O modo como o estado(-nação) actua, seja através da “repressão e coerção”, seja pela
“assistência”, demonstra a sua procura em “colonizar minorias e marginais”. Assim, a história dos
marginalizados “(...) define-se entre políticas maliciosas e benevolentes”. (Asséo 1989:123) Asséo
descreve as duas situações: a “maliciosa” em que “(...) implica que os homens estejam em contacto uns
com os outros, por justaposição, vizinhança, proximidade, solidariedade mecânica, e não por um
processo unificador da história, (...) de subir à história mas não de a fazer”; e a atitude “benevolente”
em que “(...) o historiador declara uma cultura subalterna, num estado de menos resistência. Restituindo
dentro da sua pureza original a palavra povo, a sua língua, a sua maneira de comer, de se reproduzir, os
seus males, a sua morte.” É deste modo que o estado consegue “penetrar nas culturas minoritárias.”
(1989:123)
A pergunta que surge então é a de “como conciliar a ideia que as minorias se [tenham
reduzido] no desenvolvimento do Estado moderno e a permanência histórica dos ciganos?” (1989:123)

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A verdade é que os ciganos usaram as políticas, os mitos, os estereótipos, criados por não-
ciganos, como instrumentos da própria sobrevivência. Quando os ciganos aparecem pela primeira vez
na Europa, surge o mito de que se tratava de um povo peregrino, e foi tal facto que tornou a sua
itinerância (momentaneamente) tolerável. “É o mito fundador, no limite do religioso e do grotesco que
determina as duas formações discursivas contidas na existência cigana.” (1989:125) Na linha ténue que
distingue o ser cigano da sua assimilação, escreve-se a sobrevivência.
“Os povos-resistentes são aqueles que a consciência histórica de ser reside na capacidade
em reformular permanentemente todos os elementos de contacto entre eles e os outros de forma a
elaborar uma política de sobrevivência.” (1989:124) No seu “mundo de mundos” com a mescla de
tradições, de influências culturais diversas, constrói-se a sua identidade, entre a realidade que se “deixa
ver e que muda, e a que não se vê e permanece imutável.” (Williams [1993]1997:64) Assim, em cada
período histórico, o grupo cigano conseguiu resistir constituindo certas formas de aculturação parcial
numa política de sobrevivência. “A aculturação sempre foi um modo privilegiado na edificação da
cultura dos vários grupos, os quais, através da sua autogestão, souberam de tempos em tempos adaptar-
se às novas condições ambientais criando identidades diversificadas.” (Piasere 1991:157)

Para compreender e caracterizar a identidade dos ciganos e não-ciganos (e o confronto


entre ambas), é essencial debruçar-se sobre a ideia de história e memória. A história, intrinsecamente
ligada à memória colectiva é um ponto essencial para caracterizar a identidade de cada grupo,
comunidade, nação.
Os gagé tendem a associar a noção de memória à de história, identificando a História com a
memória escrita. A memória histórica está portanto relacionada com o código escrito, considerando-o
“o meio mais fidedigno de registar fielmente eventos e ocorrências”, de preservar os factos do passado.
Os gagé “tentam fixar a memória, preservá-la, torná-la intemporal, eterna, salvando-a do esquecimento,”
e é desse modo também que concebem a sua identidade “precavendo a sua memória passada a
alterações”. Não só a escrita ocupa um lugar de destaque como a oralidade, por oposição, é encarada
como “pouco fiável, fugaz”, numa “posição marginal” e considerada exclusiva das “sociedades sem
escrita (primitivas ou selvagens)” que se devem fiar na “memória étnica para transmitir os
conhecimentos de geração em geração.” (Toninato 2005)
Os ciganos, por estereótipo e oposição aos não-ciganos, são encarados como um “povo
sem escrita”, privados de componentes que estão na base da “civilização” ocidental: “um património
histórico e cultural comum, uma língua unificada e escrita, uma pátria de confins territoriais fixos.”
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Estando há mais de quinhentos anos na Europa - uma sociedade altamente alfabetizada - os ciganos
preservaram um “sistema comunicativo prevalentemente oral”. No entanto, tal não significa que esses
não tenham conhecimento do “papel fundamental da escrita na sociedade em que se inserem” e que a
possam utilizar (ainda que com um carácter de utensílio, de ferramenta)5. A verdade é que o sistema
oral é perfeitamente “funcional no seu sistema social” adquirindo a escrita um papel secundário.
(Toninato 2005) “O facto de que os ciganos se desempreguem do mundo da escrita não significa que
esses a neguem.” (Piasere 1999:166) O acto de se alhearem da escrita (de um ponto de vista gagé) leva a
que o mito de “povo fora da história”, ou “povo sem história” permaneça. Ao longo do tempo, vários
foram os mitos criados e difundidos (sobretudo através da literatura gagé) em torno da existência cigana
e dos seus modos de comunicação: dos quais os “sinais secretos”,6 ou o “mito do analfabetismo
intrínseco [que ainda prevalece]” são exemplos. (Toninato 2005) Outras representações dos ciganos
enquanto “povo sem interesse pelo passado” e pela história em geral, são frequentes e derivadas da
primazia atribuída por esses ao meio oral.
“Como e que coisa poderiam recordar os Roma, perguntam-se os gagé, se não são dotados
dos instrumentos essenciais para conservar a memória e transmiti-la de um modo eficaz?” (2005:20)
À diferença dos gagé, a história dos ciganos não é filtrada pela escrita, não é sistematizada e
organizada segundo um critério exclusivamente linear, além disso a sua “memória assume formas
diversas” - a memória cultural dos ciganos é essencialmente uma memória “viva”. Os factos do passado
não são objectivados através da escrita, mas permanecem intrinsecamente ligados ao seu “referente
humano”. (Toninato 2005) “Uma memória que não faz discursos, uma memória que não olha à
exploração do passado e da acumulação de conhecimentos; a comemoração, assim como é organizada
(entre os Roma), provoca a conservação de recordações sempre mais íntimas e não suscita de facto a
edificação de uma memória comunitária, memória-saga, memória epopeia, memória do grupo enquanto
tal.” (Williams 1997:80) Curiosamente, num sistema de comunicação “prevalentemente oral”, em que a
palavra verbalizada é o veículo de transmissão da memória por excelência, é também na ausência dessa
que a memória das comunidades ciganas se constrói. O silêncio foi a forma que os ciganos elegeram
para homenagear e respeitar a sua memória, mas também de reforçar a sua invisibilidade.

O “silêncio ritual dos ciganos” é o seu modo de proteger a memória, de não a alterar, e daí
a sua “memória não [ser] objectivada, não se [expressar] em termos linguísticos.” (Toninato 2005) De

                                                                                                               
5 cf. (Williams 1997:62)
6 cf. (Piasere 1999:165-182)
7
referir que se por um lado o silêncio é o meio pelo qual os ciganos escolheram preservar a sua
memória, por outro, também existe um silêncio imposto pela sociedade dominante em relação ao
“povo sem história”. “Uma sociedade dominante que [pretende] esconder os horrores do passado do
etnocídio e da perseguição.”7 As memórias ciganas nutrem-se sobretudo do silêncio, da “respeitosa
abstenção de recordação,” pois são “memórias profundas” que causam enorme “dor e sofrimento” e
daí, hipoteticamente “esquecidas”. (2005:21) O silêncio porque quem já não está não se pode defender
ou apresentar-se de modo diferente. Se depois da morte, o silêncio é a única coisa que resta, esse
encerra ao mesmo tempo uma componente física. Os objectos de quem morreu, são queimados ou
destruídos, e a recordação é conservada através do esvaziamento - um esvaziamento material e
linguístico, tendo a abstinência como forma maior de posse. “O esquecimento constitui a forma mais
realizada do respeito, da fidelidade aos mortos, isto é, da memória.” (Williams [1993]1997:30) O
silêncio dos ciganos em relação aos mortos é transversal à sua estratégia de sobrevivência, pois nesse
reside “(...) a forma suprema de posse e de definição da própria identidade étnica.” (Toninato 2005:24)
No caso dos ciganos este silêncio não tem uma “conotação negativa”, serve sim para “reforçar a sua
identidade cultural e distinguir-se do grupo maioritário.” (2005) Williams continua acerca da questão
cultural da memória, dos mortos, e outras ligadas à resistência do povo cigano no seio dos gagé:
“Não dizer nada de si, domar os próprios apetites, destruir os objectos de modo a que não
deixem rasto, “esquecer” a história daqueles que estão mortos e não referir o seu nome, não entrar nas
actividades que são propostas ou impostas pelos gagé (ou só de modo provisório e com as suas
condições), ausentar-se das instâncias públicas que se é convidado... aqui sempre o mesmo gesto. A
integridade sempre. Para que os vivos tenham assegurada a perenidade da sua existência, é necessário
que os mortos estejam em paz.” ([1993]1997:51)

“Ao gagio importa a glória, a fama, deixar a sua recordação à posteriori. O rom vinga-se com
o meio que o gagé mais teme: a ameaça do esquecimento.” (Piasere 1999:127) Como já referido, existe
um afastamento da escrita, e prevalecendo um sistema oral, paradoxalmente, esse nutre-se a partir da
sua essência ausente, isto é, do esvaziamento da palavra proferida - o silêncio. A “ameaça do
esquecimento” é a estratégia que os ciganos encontraram para terem o seu espaço num mundo
mediado pelos gagé. “(...) As relações Roma-Gagé foram e serão as em vigor ainda hoje; mas são os rom
que não querem heróis a recordar, pois é o único modo que têm para manter a hegemonia do interno e
                                                                                                               
7 Um exemplo que ilustra o silêncio mútuo e pelas razões sugeridas, dos ciganos como dos não-ciganos, é o Holocausto. cf. (Toninato

2005:22-23); Piasere acrescenta acerca da relação história/memória entre ciganos e não-ciganos: “Como se dissessem: a vossa história
selectiva é uma máscara; nós sabemos bem, e a nossa permanência no meio das vossas perseguições demonstra-o, que vocês são sempre
os mesmos. Só nós, coerentemente fiéis a nós mesmos, conhecendo a vossa hipocrisia, sabemos dominá-la.” (1999:129)
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portanto a certeza da sua perenidade entre os gagé.” (Piasere 1999:129) Entre o silêncio resistente como
forma de assegurar a sobrevivência de um povo, encontra-se também a negação do registo (em que a
relação com os objectos dos mortos é disso um prévio exemplo). Quando se fala de registo, referem-se
os vários suportes: a pintura, a escultura, a arquitectura, a fotografia, qualquer outro rasto de existência,
tendo a escrita um lugar de destaque. “Se de um lado as sociedades ocidentais procuram registar,
conservar e patrimonializar os vestígios do seu passado de forma obsessiva, é porque é através desse
processo de fixação da memória que esses confirmam e reforçam a sua identidade; em oposição, os
Roma não confiam na palavra escrita para conservar a sua memória.” (Toninato 2005:23) A ausência de
registo é mais um passo na conquista da invisibilidade, da “hegemonia do interno”, na permanente luta
pela memória individual e étnica.
Platão argumentava que o “desenvolvimento da escrita era uma ameaça à memória
individual.”8 (Misztal 2003:23) Dentro dessa linha e em relação às políticas de escolarização é sugerido
por Sgorlon que: “o acto de ‘civilizar’ os ciganos através da escolarização - saber ler e escrever, é apenas
um meio instrumental não sendo em si o verdadeiro objectivo.”9 De referir que o afastamento da
escrita do lado dos ciganos encontra justificação quando relacionado com outras tentativas de
assimilação. Exemplo disso é o processo de evangelização pois “tanto a escrita como a bíblia são
fenómenos demasiado ligados aos gagé para que se possam assimilar facilmente, [e] a história da
alfabetização dos ciganos está muito ligada e é parecida à história da sua evangelização.” (Piasere
1991:145)
Será que como consequência da alfabetização, a assimilação total - o “objectivo” - por
parte da cultura dominante se tornaria uma realidade? Que consequências teria a mudança de uma
cultura oral para uma escrita no papel da memória? Numa sociedade “oral” - isto é, em que a
comunicação acontece em formas que não através de documentos escritos, a cultura depende da
memória, e por esse motivo a memória individual desempenha um papel fundamental. Então será que
o “aumento da literacia ameaça a memória”? (Misztal 2003:23) Não se pode afirmar com certeza que
pensam os ciganos acerca da escrita, pois cada grupo pode adoptar uma postura diferente em relação a
esta questão. De qualquer modo, dois pontos de discussão no que toca à sobrevivência dos ciganos e à
sua relação com a escrita e a possível assimilação emergem.
Um primeiro, relacionado com a transição de um sistema oral para um escrito e a sua
influência no carácter criativo da existência e memória cigana. “O impacte da escrita resulta do facto de
qualquer relato transmitido através das inscrições ficar inalteravelmente fixado e o processo da sua
composição definitivamente encerrado.” (Connerton 1989:91) Então, a natureza ubiquista dos ciganos
ficaria comprometida, a sua reinvenção enquanto povo ficaria algemada, estanque em si mesma. Como
previamente introduzido, parte do fenómeno de resistência reside na capacidade de adaptação dos

                                                                                                               
8 Porém, o facto de uma sociedade “possuir a escrita não significa cessar de usar a oralidade.”
9 Sgorlon, C. (1988) Il Caldèras, Milano:Mondadori desde (Piasere 1999:134)
9
ciganos aos contextos que se lhes deparam, e portanto, a flexibilidade ao nível da história e da memória
é um factor essencial.
Um segundo, que em parte deriva do anterior, e que se encontra relacionado com o
carácter da escrita enquanto registo. Para melhor esclarecer este ponto é necessário invocar situações
paralelas. O fenómeno da “obsessão pela memória,” pelo registo, é relativamente recente, tendo sido
acentuado pelo crescer da tecnologia e pelo uniformizar cultural que se verificou sobretudo no
séc.XIX. Nessa altura, “(...) antropólogos, etnógrafos e turistas equiparam-se para documentar o
primitivo antes que esse desaparecesse.” (McQuire 1998:125) Entre a necessidade de criar identidades
nacionais através da preservação da memória estavam também as culturas extintas (ou em vias de
extinção). (Misztal 2003) Grande parte da “documentação” recolhida foi posta em museus (e/ou
bibliotecas) - criação ocidental para “preservar memórias”. De sublinhar que o acto de “preservar”
surge intimamente ligado ao iminente progresso e como anátema desse.10 O progresso ou o estado
civilizacional que os ciganos, de acordo com o estereótipo ocidental, ainda não atingiram (ou a tal
sucumbiram), e que provavelmente viria a oficializar o seu desaparecimento. Como McQuire sugere em
relação aos povos primitivos extintos durante o período colonial europeu: “A ida para o museu [tal
como para a ‘biblioteca’] é uma guilhotina com o passado, em que os povos primitivos vêem-se
excisados do presente. Museificar culturas indígenas fornece um meio efectivo, simbólico e político,
relocalizando-os da esfera dos vivos para a dos mortos: negando a sua contemporaneidade.” (McQuire
1998:124) Um novo e interessante paradoxo surge novamente: o acto de preservar/registar pode
constituir um leit motif para a extinção, para a aculturação total, para o romper da flexibilidade cultural
que os ciganos apresentam face ao meio em que se inserem a cada momento. Ao registar, a
continuidade da existência, e respectiva pertinência, é colocada em cheque.
“Escolhendo o silêncio e a invisibilidade social como estratégia para gerir a sua relação com
a história (escrita) e com a sociedade dominante, os Roma criaram uma distinção simbólica que os
distingue dos gagé, garantindo assim a sua sobrevivência como um grupo separado.” (Toninato 2005:24)
Por um lado, os ciganos “(...)necessitam de uma memória histórica diferente da dos gagé, mais flexível e
às vezes mais censurada, para melhor poderem adaptar-se entre esses,”11 por outro, a escrita, enquanto
registo, apresenta os seus possíveis perigos podendo “arrumar uma cultura na prateleira,”
institucionalizando o seu desaparecimento portanto. Como Kafka sugeriu, “fotografa-se para esquecer
e não para lembrar,”12 e encare-se a fotografia como a escrita - um “mero” suporte de registo.

                                                                                                               
10 “A possibilidade da perda – seja a perda de conhecimento, de espécies, de cultura, do passado em geral – permanece anátema da
ideologia do progresso.” cf. Hegel, The Philosophy of History, 1956, New York:Dover, p.79 desde (McQuire 1998:123)
11 “Sem escrita, os ciganos não estão de facto presos a alguma lei, a alguma regra, a algum ritual, a algum costume.” in Williams, P. (1981)
La Societé, in Les populations tsiganes en France, Paris: Centre de Recherches Tsiganes, p.41 desde (Piasere 1991:151)
12 cf. (McQuire 1998:126)

10
Conclusão

Vivendo numa realidade gagé - numa hegemonia sócio-económica, cultural e ideológica, os


ciganos ao longo do tempo sentiram a necessidade de criar estratégias com vista à sua sobrevivência
étnica. A “auto-remoção” do contexto social para se “auto-definirem” é disso exemplo. Uma remoção
traduzida pela invisibilidade, com o sentido máximo de perpetuar a sua “ciganidade.” “Para preservar a
sua especificidade cultural, os ciganos escolheram permanecer na margem do sistema social do grupo
dominante. Assim tornaram-se invisíveis aos olhos dos não-ciganos, minimizando os riscos de
assimilação cultural e ao mesmo tempo reafirmando a sua identidade e unicidade da própria visão do
mundo.” (Toninato 2005:24) O processo de marginalização encontrou na invisibilidade um fim,
situação que se compreende em várias vertentes da existência cigana (e em contraponto àquela dos
gagé): o uso de um sistema comunicativo “prevalentemente” oral, o silêncio adjacente, o afastamento da
escrita como depósito de memórias, a ausência de registo - sublimado na própria morte. Tal só é
compreensível quando se tem em conta a ideia da “hegemonia do interno” que habita no ser cigano -
no seu “mundo de mundos,” pautado pela condição de migrante e transnacional, negociando
permanentemente a sua identidade dentro da memória possível.
Na sua longa presença na Europa, os ciganos mantiveram-se deliberadamente à margem
do sistema de comunicação do grupo social dominante. “(...) Desenvolveram os seus próprios padrões
específicos de comunicação e depositaram maioritariamente no meio oral o modo de transmitir as suas
memórias, pela forma de histórias ou narrativas, para as novas gerações.”13 Como apontado, uma das
estratégias em busca da invisibilidade foi a preferência por uma tradição de narrativa oral, portanto não
recordando do mesmo modo que num meio escrito - dominante. O vínculo social encontra o seu
material bruto tanto no significado das narrativas, como no acto físico de as recitar. “A referência da
narrativa parece pertencer ao passado, mas a realidade é sempre contemporânea ao acto de recitação.”14
É o acto físico de recitar, só possível num sistema oral, que os coloca no presente – logo, implica
existir. Além disso, a flexibilidade do “momento” permite uma possível reformulação com vista à
adaptação, legando à “integridade da palavra” parte da sua existência. No que diz respeito às “memórias
profundas”, à “realidade imutável” dos ciganos: “o silêncio torna-se a garantia da incorruptibilidade da
identidade, da perenidade do grupo.” (Williams [1993]1997:52) E como Williams continua acerca do
silêncio dos Manuš e de forma magistral: “o silêncio é a única coisa que os separa dos homens (...) o

                                                                                                               
13 Dick-Zatta, Jane (1985) “The Metonymic Pole of Language and the Referential Function in Rom Sloveni Narration”, Lacio Drom 3-4,
pp.32-41 desde (Toninato 2006:235)
14 Lyotard, J.F. (1984) The postmodern condition, Manchester: Manchester University Press, 1984, p.22 desde (McQuire 1998:121)

11
silêncio é a única coisa que esses possuem (...) o silêncio porque é a linguagem que os separa das
coisas.” (1993:80)
A postura de “dar a ver, não explicar,” não registar, é fundamental na luta por uma
memória étnica viva. (Williams [1993]1997:77) O registo pode ser um passo para a catalogação e
consequente desaparecimento. Delegar-se noutro suporte (como a escrita), como se tentou explicar,
pode contribuir à oficialização/institucionalização da extinção. Todavia, sendo esta uma ideia fruto de
uma intelectualização pessoal, pela especificidade de cada grupo “(...) torna-se impossível dizer com
certeza qual é a visão dos ciganos acerca do mundo da escrita.” (Piasere 1991:145) De referir que a
relação da escrita-memória não é um assunto pacífico, a própria noção de memória é complexa e difícil
de definir. Para mais, tendo em conta o leque comunitário dito cigano, só faz sentido “(...) falar de
memórias ao plural.” (Toninato 2005:19)
“Se a memória e o respeito se baseiam no silêncio para a maioria dos ciganos, homenagear
a memória colectiva pode interessar a uma minoria rom”. (Toninato 2005:22) A verdade é que hoje em
dia assiste-se a uma crescente produção literária cigana. Uma produção que não se destina ao circuito
rom-rom, mas rom-gagé, e fruto de uma hibridização linguística (entre a língua de determinado grupo e a
língua dominante). Enquanto tal, a literatura romani pode ser “(...) definida como híbrida pela sua
natureza multinacional polinguística e policêntrica, e a sua ausência de unidade e dispersão de fontes. A
hibridização reflecte uma estratégia dos Rom de forma a revitalizar e renegociar a sua imagem.”15 A
emergência de uma literatura cigana significa a necessidade de falar por si mesmos, expressar a sua voz
em vez de alguém que o faça por eles. A escolha do uso de línguas dominantes em detrimento dos seus
dialectos e línguas, justifica-se, pois permite que “os ciganos sejam ouvidos pelo grupo dominante.”16
Este processo implica uma “auto-tradução” pois “(...) não é apenas uma questão de conteúdo de uma
língua para outra, mas de um modo de comunicação para outro.” (Williams 1997: 73) Do oral ao
escrito. A “auto-tradução” demonstra a vontade de se apresentarem como “sujeitos traduzíveis”:
“usando as línguas dominantes sem que por isso a persistência de uma identidade cigana separada possa
ser comprometida.” (Toninato 2006:247) Esta tomada de posição face à escrita, e na direcção rom-gagé,
vai de encontro à necessidade de aculturação parcial que sempre fez parte da existência cigana. Não será
inocente o facto de que “a produção escrita rom-rom continua ausente ou a nascer.” (Piasere 1999:166)
Outro dado que não deixa de ser curioso, é a de que grande parte dos textos produzidos por rom se
encaixem no âmbito da poesia. O carácter emocional e a presença física da palavra permanece entre os
ciganos: “A palavra da poesia (...) rompe o silêncio, quebra-o, corta-o até o tornar pó; e no devir social -
porque feito dono, essa faz-se mediante um elo, identidade de grupo, memória.” (Cambini 2004:175)

                                                                                                               
15 Bakhtin, Mikhail (1981) The Dialogic Imagination: Four Essays, (edited by Michael Holquist, trans. Caryl Emerson and Michael Holquist),

Austin & London: University of Texas Press. desde (Toninato 2006: 236)
16 Lacková, Ilona (2000) “A False Dawn: My Life as a Gypsy Woman” in Slovakia, (edited by Milena Hübschmannová, trans. Carleton
Bulkin), Hatfield: Centre de Recherces Tsiganes and University of Herfordshire Press. desde (Toninato 2006: 238)
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*

“A reprodução do grupo cigano no que toca à sua formação antropológica é assegurada


por uma combinação entre o facto repressivo, o mito e as estratégias das famílias. Não é o nomadismo
- existem ciganos sedentários, não é a língua - existem dezenas, nem as origens indianas - os ciganos
ignoram esse facto, que cimentam a identidade e garantem a sobrevivência do grupo. É de ser, a cada
momento histórico, apenas aquilo que é possível ser.” (Asséo 1989:127)

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Bibliografia

- Asséo, Henriette (1989) “Pour une Histoire des Peuples-Résistances” in Tsiganes:Indentité, Évolution -
Actes du Coloque pour le treintiéme anniversaire des Études Tsiganes (ed. Patrick Williams) pp.121-127

- Cambini, Sabrina Tosi (2004) Gente di Sentimento: per un’antropologia delle persone che vivono in strada, Roma:
Centro d’Informazione e Stampa Universitaria, pp.265-316

- Connerton, Paul (1989) How Societies Remember, Cambridge: Cambridge University Press

- Halbwachs, Maurice (1992 [1926]) On Collective Memory, London/Chicago: The University of Chicago
Press

- McQuire, Scott (1998) Visions of modernity: representation, memory, time and space in the age of the camera,
London: Sage

- Mistzal, Barbara A. (2003) Theories of Social Remembering, Maidenhead(U.K.): Open University Press-
McGraw-Hill

- Piasere, Leonardo (1991) Popoli delle Discariche, Roma: Centro d’Informazione e Stampa Universitaria,
pp.62-66; 137-158; 189-200

- Piasere, Leonardo (1999) Un Mondo di Mondi, Napoli:L’Ancora

- Tauber, Elisabeth (2008) “Do you remember the time we went begging and selling: The ethnography
of Transformations in female economic activities and its narratives in the context of memory and
respect among the Sinti in the north Italy” in Romani/Gypsy Cultures in New Perspectives (eds. Fabian
Jacobs and Johannes Ries), Leipzig University GmbH, pp.155-175

- Toninato, Paola (2005) “Il Silenzio e la Memoria: Riflessioni sulla memoria culturale fra i Roma” in
ACHAB - Rivista Antropologica, numero IV, pp.19-26

- Toninato, Paola (2006) “Translating Gypsies: Nomadic Writing and the Negotiation of Romani
Identity” in The Translator. Volume 12, Number 2, pp.233-251

- Williams, Patrick (1997[1993]) Noi, Non ne Parliamo: i vivi e i morti tra i Mānuš, Roma: Centro
d’Informazione e Stampa Universitaria

- Williams, Patrick (1997) “L’Écriture entre l’oral et l’écrit: six scènes de la vie tsigane en France” in Par
Écrit: Ethonologie des Écritures Quotidiennes (ed. Daniel Fabre) Paris: MSH - Maison des Sciences de
l’Homme (Ministière de la Culture), pp.59-78
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