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DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL: GLAUBER ROCHA, LEITOR DE

GUIMARÃES ROSA.
LUIZ ROBERTO ZANOTTI
Doutorando no PPG em Letras: Estudos Literários (UFPR)

Introdução
O objetivo deste trabalho é apresentar como a idéia da coexistência de elementos
mutuamente excludentes, da forma como nos é apresentada através das palestras de
Wolfgang Iser por ocasião do VII Colóquio UERJ1, se encontra presente, tanto em
Grande sertão: veredas (1956) 2 de João Guimarães Rosa, como também é utilizada por
Glauber Rocha em seu longa metragem Deus e o diabo na terra do sol (1964)3.
Para isto, inicialmente traçamos uma ligeira revisão da teoria iseriana desde o
aparecimento da teoria dos efeitos (reader-response criticism), que enfoca a assimetria
entre texto e leitor, até o conceito de antropologia literária, que trata da interação entre o
fictício e o imaginário.
É importante notar, que mais do que trabalhar na interpretação destas duas obras
de arte, procuramos aplicar a teoria de Iser como uma explicação para o fenômeno da
coexistência de elementos mutuamente exclusivos, pois como o próprio Iser afirma: “É
importante notar que tanto as teorias do efeito estético e a antropologia literária são
basicamente constructos, ora, constructos não são necessariamente descrições de
ocorrências empíricas”. (ISER in ROCHA, 1999, p. 47)
Iser mostra, no percurso da sua obra, toda a sua orientação teórica heurística,
mantendo um certo afastamento de instrumentos interpretativos, através dos quais
diferentes estruturas de constituição de sentido são examinadas e, logo, decodificadas,
ou seja, com o analista se obrigando a fornecer uma interpretação para um determinado
texto.Dessa forma, a teoria de Iser está muito mais voltada para pressupostos heurísticos
capazes de descrever qualquer gênero de produção de sentido, ou seja, para investigar as
condições mais gerais ( e portanto mais abstratas) que possibilitam o próprio ato
interpretativo. (SCHOLLHAMMER in ROCHA, 1999, p. 119)
Seguindo um raciocínio semelhante, João César Rocha lembra que Iser tem
elaborado uma reflexão que, a exemplo do objeto investigado, se modifica, incorpora
novos conceitos, retoma preocupações, aprofundando seu alcance e redefinindo suas
prioridades numa rara lição de precisão teórica que continuamente se adapta a
“indecibilidade” do objeto (ROCHA, 1999, p.14).
Enfim, a teoria de Iser se limita através de um esforço heurístico a constituir
esquemas com a finalidade de mapear a realidade e, portanto, a abordagem iseriana não
pretende interpretar realizações determinadas, mas, pelo contrário, almeja fornecer um
sistema de referências no âmbito no qual aquelas realizações adquirem especificidade,
ou seja, não se trata de elaborar métodos particulares de interpretação, mas de mapear as
disposições mais básicas no interior das quais o ato interpretativo se torna concebível, e
até mesmo necessário.

1. A teoria dos efeitos (A interação entre o leitor e o texto)

1
Estas palestras se encontram transcritas em Teoria da ficção: Indagações à obra
de Wolfgang Iser (1999), conforme referências bibliográficas.
2
Que será referido no decorrer deste trabalho como Grande sertão
3
Que será referido neste trabalho como Deus e o Diabo
Pode-se dizer que tanto a teoria dos efeitos de Iser, como a estética da recepção,
que tem como o seu principal artífice Hans Robert Jauss, são em grande parte,
inspiradas em Hans-Georg Gadamer; mas enquanto a estética da recepção se articula a
partir da reconstrução histórica de juízos de leitores particulares, objetivando verificar o
modo como se processa a interação das expectativas tradicionais do leitor frente a um
texto específico, ou seja, através da análise da fusão dos horizontes de expectativa com
o ato de leitura; a estética do efeito é trabalhada a partir do texto, uma vez que ela
pretende elaborar uma descrição da interação fenomenológica que ocorre entre texto e
leitor.
Iser elabora o constructo da existência de uma assimetria inicial entre texto e
leitor, sendo que a estética do efeito almeja compreender o ato de leitura como uma
forma particular de negociação daquela assimetria. Para tanto, investiga a estrutura
própria dos textos literários, valorizando a interação específica que tal estrutura
provoca.
Em suma, enquanto a estética da recepção trabalha com atos de leitura
historicamente verificáveis, a teoria do efeito estético busca o estabelecimento de um
modelo genérico que dê conta do próprio ato de leitura de textos literários,
independentemente de seus contextos particulares de atualização. A teoria de Iser
analisa o efeito estético como relação dialética entre texto e leitor, uma interação que
ocorre entre ambos, ou seja, ainda que se trate de um fenômeno desencadeado pelo
texto, a imaginação do leitor é acionada, para dar vida ao que o texto apresenta e reagir
aos estímulos recebidos.
Do ponto de vista epistemológico, essa metáfora da interação designa uma
instância textual que guia a recepção do texto e um leitor que "processa" ativamente o
texto. Para Iser, quando produtiva, essa interação entre duas instâncias (agencies) se
apóia na negatividade e na indeterminação enquanto modos de contato. Da mesma
maneira que um texto bem-sucedido ultrapassa as fronteiras das determinações
históricas e culturais, uma leitura produtiva processa e, com isso, muda ativamente o
que é "manifesto" num texto. Gabriele Schwab lembra que para Iser: a determinação
nos decepciona num texto tanto quanto numa leitura. (SCHWAB in ROCHA, 1999,
p.37)
Ao se reportar à decepção com os textos “determinados” que oferecem uma
simples busca da mensagem e do sentido, e propor o constructo da interação texto-
leitor, Iser deixa claro a importância que credita à indeterminação de um texto, o que
como veremos adiante possibilita a idéia da coexistência de elementos mutuamente
excludentes. Iser, no primeiro capítulo “Arte parcial- A interpretação universalista” do
livro O ato de leitura (1996) apresenta a inadequação do gesto da interpretação teórica
da literatura que busca as significações aparentemente ocultas nos textos literários,
tomando como exemplo o conto The figure in the carpet (1896), de Henry James, onde
o autor problematiza a procura por significações ocultas nos textos − o que
provavelmente desempenhou um papel importante na crítica literária de sua época −,
mostrando a sua inadequação (ISER, 1996b, p. 23).
Assim, uma vez perdido o solo firme do “essencialismo” e com o texto deixando
de ser o foco principal da análise, esta passa para o leitor em sua interação com o texto;
e ciente que nenhuma história pode ser contada na íntegra, Iser vai trabalhar com o
constructo de um texto que é pontuado por hiatos, lacunas e negatividades que têm de
ser negociados no ato da leitura. A lacuna (vazio) no texto ficcional induz e guia a
atividade do leitor com a suspensão da conectibilidade entre segmentos de perspectivas,
possibilitando a participação do leitor no texto; enquanto a negatividade significa a não
realização de um procedimento (que é esperado pelo leitor), isto é, a sua realização
negativa com a intenção de empurrar o leitor para fora do texto.
Toda esta estrutura, segundo Schwab traz um aspecto fundamental na obra
iseriana que mostra a sua tentativa de evitar as armadilhas da manifestação concreta e,
em última instância, solapar qualquer forma de determinação, e cita: "o que a linguagem
diz é transcendido por aquilo que ela revela, e aquilo que é revelado representa o seu
verdadeiro sentido" (SCHWAB in ROCHA, 1999, p. 35).

2. A interação entre o fictício e o imaginário

A interação do fictício com o imaginário, assim como a interação leitor-texto,


também abre vários espaços para a indeterminação, e a origem deste novo constructo
“interação fictício-imaginário” se encontra no fato da teoria do efeito estético não
conseguir explicar a aparente necessidade dos seres humanos por um meio de
"fingimento" (ficção), uma característica que aparece nas investigações de Iser sobre o
que de fato acontece quando lemos.
A partir desse pressuposto, Iser amplia o horizonte da teoria do efeito estético, a
fim de transformar o estudo da estrutura dos textos literários e, sobretudo, da interação
entre texto e leitor, numa investigação dos modos de operação que caracterizam o
desenvolvimento de disposições propriamente humanas, apresentada em O fictício e o
imaginário: perspectivas de uma antropologia literária (1996).
Neste ensaio, Iser apresenta a idéia de que a narração se encontra na fronteira
que delimita o ficcional, o imaginário e a realidade, tornando possível a caracterização
do referencial reportado, mas sem a possibilidade de ser por ele determinado, afirmando
assim a proximidade entre os textos ficcionais e não-ficcionais, uma vez que eles são
apenas materiais para a intenção do autor quando seleciona estes elementos que vão
aparecer na narração, pois, não há representação puramente concebida, re-presentada.
O processo de elaboração do texto ficcional é bastante complexo, podendo ser
caracterizado como uma travessia de fronteiras entre dois mundos, que sempre inclui, o
mundo que foi ultrapassado e o mundo alvo a que se visa, que tanto pode se relacionar a
uma mentira que busca exceder a verdade, como uma ultrapassagem do mundo real.
Para se perceber as implicações destas duplicações é importante notar que os atos de
fingir, componente básico dos textos literários, oferecem diferentes áreas para o jogo.
O fictício para realizar o que tem em mira, depende do imaginário − que não é
auto-ativável −, pois o que tem em mira só aponta para alguma coisa que não se
configura em decorrência de se estar apontando para ela: é preciso imaginá-la. O
horizonte de possibilidades prefigurado pela transgressão de fronteiras inevitavelmente
modifica as realidades que foram ultrapassadas, sendo que o imaginário só pode ser
apreendido por meio de seus efeitos que uma vez ativados, faz com que o que era não
possa permanecer o mesmo.
Sendo assim, a ativação desse potencial precisa ser moldada, e disso se
encarregam os “atos de fingir”, ao forçarem a fantasia a assumir uma forma, para que as
possibilidades abertas por eles possam ser concebidas, já que o próprio ato de fingir não
pode conceber aquilo para o que ele apontou. A imposição de forma tem um duplo
efeito: torna concretas as várias transgressões de fronteira, ao mesmo tempo, que
converte o fictício num meio para que o imaginário se manifeste. (ISER in ROCHA,
1999, p. 71)
Vista sob esta perspectiva a literatura não reproduz ou espelha nada fora dela,
mas antes apresenta algumas ilimitadas possibilidades que existem além das
manifestações históricas concretas, sejam relativas aos sujeitos individuais, sejam
referentes às culturas, e daí abre-se a possibilidade do aparecimento da coexistência de
elementos opostos, que a princípio, dentro de uma filosofia cartesiana e dicotômica
deveriam ser mutuamente excludentes.
Dessa forma, numa primeira abordagem pode-se dizer que enquanto o fictício se
manifesta de uma maneira intencional, o imaginário trabalha de uma forma espontânea,
com ambos fazendo parte de uma interação que se expande continuamente através de
um jogo que tem o papel de uma estrutura reguladora da interação. Este jogo possui
regras e os jogadores têm de obedecê-las na tentativa de saber que questão é essa. “Não
existem respostas definitivas. Ao invés de um discurso vitimador, uma consciência
crescente que num mundo aberto as soluções são, na melhor das hipóteses, provisórias,
inexistindo respostas conclusivas” (ISER in ROCHA, 1999, p. 217).
Iser desenvolve a interação do fictício com o imaginário, apesar da dificuldade
de qualquer afirmação de suas naturezas ontológicas, pois só podemos apreendê-los
mediante uma descrição operacional das suas manifestações, através do jogo (play),
uma estrutura capaz de propiciar diferentes tipos de interação, quer entre o texto e o
leitor, quer entre o fictício e o imaginário. Isso significa que a “ficcionalização” sempre
está sujeita a mudanças, em decorrência de sua inabilidade para controlar o alvo a que
visava. O jogo emerge da coexistência do fictício e do imaginário que se fundem, visto
que cada um é em si mesmo incapaz de cumprir qualquer função específica, sendo
necessária a sua interação para desencadear aquele movimento de jogo.
Assim, num universo ficcional indeterminado, dentro de uma ilimitada
perspectiva de interpretação apoiada pela dinâmica semântica fornecida pelo jogo
interpretativo, e pelas mudanças constantes de realizações imaginárias, aparece a
condição de existência para a “coexistência de elementos mutuamente excludentes”, um
conceito, que segundo Jean Paul Riquelme não pode ser previsto por Aristóteles, pois ao
contrário da mimesis; Iser mostra, desenleaando a trama aristotélica, que a leitura da
literatura é múltipla, podendo chegar-se ao final dela, sem nunca esteja terminada, à
semelhança das histórias que contava Sherazade (RIQUELME in ROCHA, 1999, p.
215).
Dentro, deste panorama, que Riquelme chama a “Antropologia literária” de um
“espaço não-euclidiano” , pois Iser apresenta a noção da possibilidade da coexistência
de termos excludentes como uma importante propriedade da obra literária, e porque não
dizer da obra de arte em geral: A ficcionalidade como coexistência ou simultaneidade
de elementos mutuamente excludentes, tradução de alguma coisa para outro registro,
escapa a fundamentação ontológica (coisificação) e estimula a necessidade de
compreendê-lo (ato de tradução correspondente a ausência de qualquer totalidade).
(ISER in ROCHA, 1999, p. 221), ou como Oscar Wilde indicou: “uma verdade na arte é
uma afirmação cujo oposto também é verdadeiro” (WILDE citado em ROCHA, 1999,
p. 216).
Assim sendo, Iser se libertando das muletas literárias, vai trabalhar nas suas
obsessões de dissolver as fronteiras, limites, e teorias levadas ao limite que estão
relacionadas a resistência a movimentos essencialistas, totalizantes e ontológicos; vai
trabalhar a literatura como uma obra em movimento; e assumir a importância da
indeterminação e da coexistência de termos mutuamente excludentes, [...]. (SCHWAB
in ROCHA, 1999, p. 227)

3. A coexistência de elementos mutuamente excludentes em Grande sertão

A seguir apresentamos alguns poucos exemplos da coexistência de elementos


mutuamente excludentes dentro de uma gama infinita, mostrando que a lógica
dicotômica não deve ser vista como a única alternativa para apreensão do real. Esta
coexistência que aproxima e afasta elementos contraditórios e aparentemente
incompatíveis já pode ser percebida no fragmento: “Família. Deveras? É, e não é. O
senhor ache e não ache. Tudo é e não é… Quase todo mais grave criminoso feroz,
sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom amigo-de-seus-amigos! Sei
desses.” (GUIMARÃES ROSA4, 1994, p. 201).
Em Grande Sertão, o leitor é convidado a rever alguns aspectos e reelaborar
idéias, tais como o rompimento com visões dicotômicas como bom x ruim, feio x belo,
uma vez que apresenta os tais atributos numa mesma pessoa, ou seja, o sertão de
Guimarães tanto pode ser local físico em Minas Gerais como a imagem de um ser (tão)
existencial.
Marta Costa (1997) apresenta esta coexistência através do elemento água, que ao
mesmo tempo é passivo e feminino; a água também está ligada à formação da vida,
devido a seu incessante movimento de fluir, mas aqui também aparece a sua dupla
função, pois durante a imersão se liga ao aniquilamento, na perda de forma e
conseqüentemente a morte.

É o rio Urucuia, espaço aquático inicial, medial e final da trajetória de Riobaldo. À cor
de suas águas, a seu leito navegável, à região que banha, soma-se a presença de Otacília,
imagem idealizada da mulher amada, ninfa, dessas águas. Mas ele é também um rio
ambíguo. Se Otacília é a paz dos "remansos” do Urucuia, Diadorim é as suas sombras.
Neste espaço, quando criança e adolescente, Riobaldo adquiriu os elementos; que o
qualificariam para a vida adulta: a cultura, a destreza nas armas, o anseio de uma vida
calma. Às suas margens surgem valores opostos: o fazendeiro/o jagunço; o homem com
"status" social/ o marginal; o bem estar/a aventura, o ficar/ o ir e vir. (COSTA, 1997, p.
240)

Loyolla (2009) trabalha esta coexistência através do relacionamento entre


Riobaldo e Diadorim trazendo o aspecto da dualidade ativo-passivo, masculino-
feminino que permite a recorrência aos mitos primordiais, cujos heróis como
Vaishvanara, Shiva, P’an-ku e Lao-kiun, tinham o olho direito ligado ao Sol e o
esquerdo a Lua, sendo que a primeira correspondência aponta para o futuro, para o
princípio masculino, para a autoridade e a segunda para o passado, regendo atividades
associadas ao princípio feminino, à fecundação.

Assim sendo Diadorim mostra-se benevolente e terrível ao mesmo tempo. Ao lado de


sua forma ameaçadora, em sua vontade inflexível de guerrear, apresenta-se uma forma
graciosa. Ao mesmo tempo em que não mantém uma postura de piedade diante do
inimigo — conduta supostamente feminina — parecendo inumana, sustenta com
Riobaldo um relacionamento terno e de grande intimidade com a natureza, constituindo-
se uma tensão entre a dimensão mortífera e a vital. (LOYOLLA, 2009)

Assim, Diadorim, as vezes invoca a dor e o ódio e as vezes o júbilo e o amor,


mas essa oscilação de papéis não se restringe à personagem Diadorim; pois a própria
imagem do jagunço, assim como a do cangaceiro, é ambígua em sua função. Como
exemplo, podemos citar o cangaceiro Lampião, uma figura histórica que oscila entre um
personagem reconhecido como herói ou retratado como vilão.

4
Todas as referências ao romance Grande sertão: vereda é feita através da sigla R.,
acompanhada do número da pagina conforme edição apresentada nas referências
bibliográficas.
Renomados historiadores e antropólogos, tais como, Luitgarde Barros (2000),
Frederico Mello (2005) e Maria Christina Machado (1978), entre outros, possuem
diferentes visões sobre este assunto, sendo que os primeiros ressaltam o seu caráter
ligado ao banditismo5, enquanto Machado apresenta, dentro de uma perspectiva
marxista, Lampião não como um fato isolado, mas sim como o resultado de uma época
em que se processava a luta surda, empreendida pelo vaqueiro contra o senhor da terra.
(MACHADO, 1978, p. 6).
Antonio Candido também ressalta esta coexistência ao falar desta ambigüidade
da mulher-homem que é Diadorim; ambigüidade metafísica, que balança Riobaldo entre
deus e o diabo, entre a realidade e a dúvida do pacto, dando-lhe o caráter de iniciado no
mal para chegar ao bem, ambigüidade inicial e final do estilo, popular e erudito, arcaico
e moderno, claro e escuro, artificial e espontâneo. (CANDIDO citado em MARÇOLLA,
2009).
Leonardo Almeida (2009) vai se apoiar na tabula smaradigma6, para notar que
no fragmento “Ouro e prata que Diadorim aparecia ali” (R., p.405) configura a
coexistência do masculino com o feminino que se faz da seguinte forma: “masculino: o
sol, ouro, o fogo, o ar, o rei, o espírito de enxofre; feminino: a luz, a prata, a terra, a
água, a rainha, o espírito de mercúrio” (BRANDÃO citado em ALMEIDA, 2009). Ouro
associado ao princípio masculino e ao espírito de enxofre; a prata ao princípio feminino
e ao espírito de mercúrio.
Enfim, na tentativa de visualizar o processo pelo qual o real, o fictício joga com
o imaginário nessas diversas leituras, é interessante notar que Loyolla (2009) apresenta
a pedra ametista, como um elemento que ajuda a elucidar o comportamento ambíguo de
Diadorim, que às vezes é dócil e às vezes é seco, pronto para matar e vingar. Esta pedra
corresponde na astrologia ao planeta Vênus que faz duas aparições nas duas
extremidades do dia, sendo por isso conhecido como estrela da manhã e estrela da tarde,
o que faz dele um símbolo de morte e renascimento. “Como deusa da tarde, sob a
influência da lua, favorece o amor e a volúpia — uma divindade do prazer; como deusa
da manhã, em virtude de seu parentesco com o sol, preside os atos de guerra e massacre.
Assim em Diadorim, ora suas qualidades guerreiras se impõem, ora ela se permite ao
prazer” (LOYOLLA, 2009).
Essa dualidade estrela da manhã e estrela da tarde parece ser uma das grandes
coincidências entre esta interpretação proposta por Loyola e o comentário efetuado por
Schollhamer (ROCHA, 1999, p. 118), para quem, Gotlib Frege (1978) tem uma grande
influência na teoria de Iser:

[...] os significados são distinguíveis da referência, pois diferentes signos


podem se referir aos mesmos objetos, como é o caso das duas frases para se
referir ao planeta “Venus”. Para se explicar a diferença cognitiva entre as duas
frases, é necessário considerar o conteúdo dos signos e não eles próprios através
de uma explicação não metalinguística das sentenças. Sentido é um conteúdo
cognitivo suplementar ao objeto, assim, estrela da manhã e estrela da tarde falam

5
Barros, assim como Mello, procura desmistificar a imagem mitológica de Lampião como justiceiro e
ideologicamente voltado para a defesa dos fracos num combate ao coronelismo. Para Frederico o mito foi
formado, principalmente por três fatores, uma mídia jornalística da época que explorava o assunto, as
condições propícias do sertão (cenário decisivo não apenas no seu aspecto de ser uma cultura francamente
receptiva à violência) e o escudo ético utilizado pelos cangaceiros.
6
A Tábua de Esmeralda (ou Tábua Esmeraldina) foi o texto que deu origem à Alquimia islâmica e
ocidental.
do mesmo objeto e dividem o mesmo conteúdo semântico, portanto elas tem o
mesmo objeto (referente), por via sentidos diferentes.(FREGE, 1978).

4. Coexistência de elementos mutuamente excludentes em Deus e o diabo.

Glauber Rocha ao filmar Deus e o Diabo vai buscar uma situação em que,
segundo Avellar, a relação espectador/filme parte de um sentimento idêntico: o filme
como uma expressão incompleta, melaço de cana, para ser refinada pelo espectador. Um
provocador onírico, pois o filme é também um provocador crítico, e cita o próprio
Glauber: “Na medida em que se dá ao espectador um tipo acabado [...], um tipo
reduzido, um tipo estratificado, um tipo dentro dessa tradição, não se dá a menor
possibilidade de diálogo com o espectador, porque se coloca [...] (AVELLAR, 1995, p.
17)
Da mesma forma como observou certa vez Marcel Duchamp, "o artista não é o
único a realizar o ato de criação porque o espectador interpreta e decifra suas
significações profundas e acrescenta assim sua própria contribuição ao processo
criativo", Glauber vê a criação como uma série de esforços, de dores, de satisfações, de
negações, de decisões que não podem nem devem ser plenamente conscientes, pelo
menos no plano estético. A obra é a expressão em estado bruto, que deve ser refinada
pelo espectador pois: "Liberta pela imaginação o que é proibido pela razão"
(GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 59)
Mas esta liberdade oferecida pela imaginação não significa para Glauber, assim
como já vimos em Iser, que o filme altere a realidade, pois para ele sempre existe o
aproveitamento e desenvolvimento de elementos reais:
Não há uma só coisa no filme que não corresponda a um dado real e concreto,
inclusive o próprio fato do cangaceiro girar. Por que escolhi o Corisco? O Corisco tinha
todas aquelas características que me interessavam: era um sujeito rápido, ágil, místico,
histérico e verboso. Tinha tudo isso, se chamava Corisco porque ninguém acertava nele:
andava rodando mesmo. (GLAUBER citado em AVELLAR, 1995, p. 87).
Mas Corisco é a própria constatação da coexistência de elementos mutuamente
excludentes pois, no filme, o ator Othon Bastos que encena a personagem Corisco,
além de emprestar a sua voz a sua própria personagem, faz ainda uma outra voz, a do
Santo Sebastião - algo mais grave que a de Corisco, a idéia de usar a mesma voz para
deus e para o diabo, segundo Avellar (1995, p. 22) surgiu somente durante a montagem,
de modo a que o espectador pudesse identificar uma certa semelhança entre as propostas
e mais rapidamente concluir com o filme que a terra é do homem, nem de deus nem do
diabo.
Esta coexistência, segundo Claudio da Costa, também pode ser percebida em um
espelhamento de uma na outra, pois enquanto Sebastião tem parte com Deus e com o
Diabo, como diz Antônio das Mortes, Corisco é o diabo que foi possuído por São Jorge.
Esses espelhamentos dobram em ambigüidades a palavra do cego e de seus mitos. A
palavra mítica, afirma Luiz Costa Lima, é verdade e engano, simultaneamente. Com as
palavras de Marcel Detienne, Costa Lima nos diz que, "no pensamento mítico os
contrários são complementares" (COSTA LIMA citado em COSTA, 2000, p.68)
Deus e o diabo vai trabalhar com outras interações, além daquelas constatadas
por Iser, pois a escrita da imagem é uma forma de jogo que afirma a interação infinita
entre a palavra (som) e a imagem (fotografia), a conjugação em reversibilidade entre
duas dimensões do audiovisual. Tal reversibilidade infinita torna possível a coexistência
dos elementos contrários, pois como vimos, Glauber cria uma imagem onde o
espectador descobre que não está a ser imposta uma visão dirigida como um produto
concluído do autor, buscando eliminar a idéia do espectador como um ser que
contempla, de maneira semelhante com que Guimarães Rosa trabalha na
indeterminação. O artista quer expulsar e revelar no homem seu conflito e
inconformismo com o mundo e impulsioná-lo ao desconhecido.Neste sentido, a
coexistência dos excludentes trabalha no sentido de quebrar a resistência, a automação
da consciência, na desconstrução do caráter normativo das coisas, a fim de abrir espaço
para o novo: “Pela arte é possível "pensar a natureza e o absurdo" (GLAUBER citado
em VENTURA, p. 170).
A “desrazão” que possibilita a coexistência dos excludentes faz parte da estética
de Glauber que reivindica a libertação das variações ideológicas da razão e que
promova a fusão do humano ao cosmos. A revolução explicita que a pobreza é um
fenômeno da razão dominadora que recusa o desconhecido, classificando-o como
irracional. A revolução é a "desrazão" que liberta o homem da razão repressiva. Ela se
faz na imprevisibilidade (VENTURA, 2000, p. 284).

5. Conclusão

Assim, a existência dos mutuamente excludentes que aparecem em Grande


Sertão, fazendo que em Diadorim seja tanto homem, como mulher, ou que Riobaldo,
seja tanto jagunço, como fazendeiro, também aparecem em Deus e o Diabo, não
somente na dualidade da voz de Othon Bastos, mas também no conflito entre Antônio
das Mortes e Manuel, o matador de cangaceiros e o vaqueiro são personagens
igualmente condicionados por deus e o diabo, um na forma de agir, outro no modo de
pensar.
Para Aguilar, são duas dimensões do mesmo personagem, projeções das duas
cabeças de Corisco, pois o que Manuel ouve de Sebastião: “Você foi enviado pra ser
minha força no sofrimento e na guerra. Você tem de lutar por mim!”, é quase o mesmo
que o que ouve de Corisco: “Parece que São Jorge tá me ajudando. Precisamos dum
cabra corajoso, um cabra da minha qualidade. Tou gostando da sua cara de macho”.
Ou ainda, o que Antônio diz ao cego Júlio: “Eu não queria mas precisava. Eu
não matei os beatos pelo dinheiro. Matei porque não posso viver descansado com essa
miséria” que também muito se aproxima do que grita Corisco: “Não deixo pobre morrer
de fome!” e do que prega Sebastião: “Quem é pobre vai ficar rico no lado de Deus”.
(AGUILAR, 1995, p. 109).
A esta coexistência promovida pelos discursos, Claudio Costa traz a observação
das tomadas da câmera de Glauber, que se fixa através de elementos móveis, meios de
transportes, que têm justamente a função de promover uma passagem, de fazer algo
circular. E toda essa circulação ocorre para que a imagem surja, para que uma
determinação se configure. A imagem-movimento tem por condição a passagem ou a
troca que produz na aproximação de dois elementos mutuamente excludentes tais como:
o vidente e o visível, o visível e o invisível, o homem e o mundo, a imagem e o som, a
figura e o fundo, e assim por diante.
Nessa aproximação, uma instância pode se prolongar em outra de maneira que
elas se tornem equivalentes e a circulação chegue a um fim ao se formalizar uma
unificação. Nesse caso, a imagem só alcança designar, manifestar, ou, no máximo,
significar o mundo, o real, o visível. Em outros casos, aproximados os domínios, uma
diferença íntima entre os afetos permanece, fissura que jamais cicatriza e através da qual
os domínios se comunicam e se revertem infinitamente. Nessa comunicação infinita as
instâncias se transformam e o real, transfigurado, torna-se transreal. (COSTA, 2000, p.
133)
Finalmente, podemos afirmar que tanto Glauber Rocha, como leitor de
Guimarães Rosa, agregou ao seu repertorio uma estética onde se privilegia a
indeterminação, mostrando a incrível aderência da teoria de Iser, ao romance rosiano,
pois, em literatura, a encenação torna concebível a extraordinária plasticidade dos seres
humanos, que por possuir uma natureza determinável, podem expandir-se no raio
praticamente ilimitado dos padrões culturais, ou seja, é da natureza humana e sua
multiplicidade de padrões culturais possibilitar formação ilimitada e contínua do ser
humano, e portanto da leitura ( e interpretação).

6. Referências bibliográficas

ALMEIDA, Leonardo Vieira de. “Diadorim: o pacto como emblema trágico do corpo”.
Disponível em: http://www.filologia.org.br/ixcnlf/7/01.htm em 5/07/2009
AVELLAR, José Carlos. Deus e o diabo na terra do sol: a linha reta, o melaço de cana
e o retrato do artista quando jovem. Rio de Janeiro: Rocco, 1995.
BARROS, Luitgarde O. C. Derradeira Gesta, Lampião e Nazareno: Guerreando no
Sertão. Rio de Janeiro: Mauad, 2000.
COSTA, Claudio da. Cinema brasileiro: dissimetria. Oscilação e simulacro. Rio de
Janeiro: 7 letras, 2000.
COSTA, Marta M. de. “(A) Claráguas ou A simbologia do elemento aquático em
Grande sertão: veredas”. In: Revista Estudos Brasileiros, Curitiba, volume 3, nº 4, p.
225-254, 1977
FREGE, G. Sobre sentido e a referência. São Paulo: Cultrix, 1978, p. 59-86.
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