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ARTIGO ORIGINAL / RESEARCH REPORT / ARTÍCULO

Novas perspectivas em cuidados paliativos:


ética, geriatria, gerontologia, comunicação e espiritualidade
New perspectives in palliative care:
ethics, geriatrics, gerontology, communication and spirituality
Nuevas perspectivas en cuidados paliativos:
ética, geriatria, gerontologia, comunicación y espiritualidad
Leo Pessini*
Luciana Bertachini**

RESUMO: Este artigo objetiva realçar a importância e a necessidade de compreendermos melhor as dimensões da vida humana, destacando
a dimensão no cuidado da dor e do sofrimento humanos. Destacamos os cuidados paliativos sob diferentes aspectos: conceituais, princípios,
trajetória nos cenários mundial e brasileiro, pontuando as informações atualizadas em cuidados paliativos para proporcionar ao idoso e sua
família uma melhor qualidade de vida. Em nível mundial existem programas institucionais, associações publicações e eventos sobre esta
temática; destacando-se duas mulheres luminares Cicely Saunders e Elizabeth Kübbler Ross, como referências expressivas no processo da
conscientização crescente da relação entre os estados físicos e mentais, trazendo para o campo geriátrico um conceito mais compreensivo
do sofrimento e da arte de cuidar no final da vida. Nos perguntamos quais devem ser as abordagens em cuidados de saúde nos contextos
geriátrico e gerontológico, bem como, suas valiosas contribuições na manutenção das capacidades funcionais do idoso e no resgate de suas
competências. Reafirmamos a importância da reflexão sobre as questões de natureza ética, científica, humana, espiritual e sócio-cultural a
cerca dos programas dirigidos ao cuidado do idoso na sua multidimensionalidade. Neste contexto valorizamos a comunicação que persona-
liza o encontro e a leitura afetiva entre o idoso, seus familiares, e á equipe de saúde. Finalizamos apontando alguns desafios em termos de
resgatar a sabedoria de viver, com dignidade e qualidade de vida, bem como a elegância no adeus á vida.
DESCRITORES: Cuidados Paliativos, Bioética, Comunicação
ABSTRACT: This article aims to emphasize the importance and the necessity of a better understanding of the dimensions of human life,
focusing on the dimension of care of human pain and suffering. We bring palliative care to the fore under different aspects: conceptual ones,
their principles, the trajectory in Brazilian and world levels, examining up-to-date information on palliative care to provide old people and their
families a better quality of life. In the world level there are institutional programs, associations, publications and events on this theme; being
distinguished two sage women, Elizabeth Kübbler-Ross and Cicely Saunders as expressive references on the process of increasing awareness on
the relation between the physical and the mental states, bringing for the geriatric field a more comprehensive concept of suffering and the art
to take care of people in the end of life. We ask ourselves which must be the approaches on health cares in the geriatric and gerontological
contexts, as well as their valuable contributions in the maintenance of the functional capacities of old people and in the rescue of their abilities.
We reaffirm the importance of the reflection on questions of ethical, scientific, human, socio-cultural and spiritual nature and about the
programs directed to the care of the elderly in its multidimensionality. In this context we put a great value on the communication that
personalizes the meeting of persons and the affective reading between the elderly, her family and the health team. We finish pointing to some
challenges directed to rescue the wisdom of living, with dignity and quality of life, as well as the elegance in the good-bye to life.
KEYWORDS: Palliative Care, Bioethics, Communication
RESUMEN: Este artículo tiene el objetivo de realzar la importancia y la necesidad de un mejor entendimiento de las dimensiones de la vida
humano, acentuando la dimensión del cuidado del dolor y del sufrimiento humanos. Realzamos los cuidados paliativos bajo diversos
aspectos: conceptual, principios, trayectoria en las escenas mundiales y brasileñas, recogiendo la información actualizada acerca de los
cuidados paliativos para proporcionar al envejecido y su familia una mejor calidad de vida. Existen en el nivel mundial programas, asociaci-
ones, publicaciones y eventos con este tema; siendo distinguidas dos mujeres luminares, Cicely Saunders y Elizabeth Kübbler-Ross, como
referencias expresivas en el proceso del conocimiento creciente acerca de la relación entre los estados físicos y mentales, trayendo para el
campo geriátrico un concepto más comprensivo del sufrimiento y el arte de ofrecer cuidados en el final de la vida. Nosotros nos interroga-
mos sobre cuáles deben ser los abordajes de los cuidados de salud en los contextos geriátricos y gerontológicos, así como sus contribuciones
valiosas en el mantenimiento de las capacidades funcionales de los viejos y en el rescate de sus competencias. Reafirmamos la importancia
de la reflexión sobre las cuestiones de naturaleza ética, científica, humana, espiritual y socio-cultural respecto los programas dirigidos al
cuidado del envejecido en su multidimensionalidad. En este contexto valoramos la comunicación que personaliza el encuentro y la lectura
afectiva entre el envejecido, sus familiares e el equipo de salud. Señalamos igualmente algunos desafíos en términos del rescate de la
sabiduría de vivir, con dignidad y calidad de vida, así como la elegancia en el adiós a la vida.
PALABRAS-LLAVE: Cuidados Paliativos, Bioética, Comunicación

* Teólogo. Doutor em Teologia Moral — Bioética. Superintendente da União Social Camiliana.


Vice-reitor do Centro Universitário São Camilo. Membro da Diretoria da Associação Internacional de Bioética.
** Fonoaudióloga. Mestre em Distúrbios da Comunicação Humana pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo).
Docente do curso de Fonoaudiologia do Centro Universitário São Camilo. Coordenadora da área de Fonoaudiologia do curso de Especialização em Gerontologia
da Unifesp-EPM. Fonoaudióloga do Ambulatório de Neuropsiquiatria e Gerontologia do Instituto de Geriatria e Gerontologia da Universidade Federal
de São Paulo. Especialista em Voz e em Motricidade Oral pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia. Estagiou na Marquette University,
na área de Speech and Hearing Clinic, em Milwaukee (WI/EUA). Consultora na área de fonoaudiologia empresarial.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

Introduzindo milhões de novos casos/ano. É dian- piritualidade (VIII) e finaliza com


te dessa realidade dificílima que os algumas provocações em termos de
Hoje são muitas as iniciativas em cuidados paliativos e hospices se sabedoria de viver e morrer.
nível mundial de desenvolvimento apresentam como uma forma ino- Essas reflexões situam-se na li-
dos cuidados paliativos e Hospice. No vadora de cuidado na área da saúde. nha de atualização, seguimento e
Brasil, também já temos algumas A Organização Mundial da Saú- incorporação de sugestões críticas
iniciativas pioneiras, em termos de de também salienta o aumento da de leitores da obra por nós organi-
cuidado, programas institucionais, expectativa de vida em diversas re- zada, Humanização e cuidados palia-
publicações e eventos sobre essa giões do mundo como uma das con- tivos (Pessini, Bestachini, 2004).
temática. Uma das últimas novida- quistas da humanidade. Reconhece
des em âmbito internacional é a que o mundo está experimentando Algumas balizas
comemoração do Dia Mundial dos uma transformação demográfica
Cuidados Paliativos em 8 de outubro,
histórico-conceituais
sem precedentes e que em 2050 a
a partir de 2005. população maior que 60 anos pas- Desde os tempos mais remotos,
Uma das mais interessantes ini- sará de 600 milhões para quase 2 as sociedades oferecem apoio e con-
ciativas da atualidade vem da Co- bilhões, prevendo-se um aumento forto a seus membros doentes e aos
munidade Européia. O Conselho da de 10% para 21% do total da popu- que estão morrendo. Normalmen-
Europa, por meio da sua Comissão lação. O aumento será maior e mais te, uma profunda reverência e mís-
de Ministros, aprovou em 12 de no- rápido nos países em desenvolvi- tica envolvem esses acontecimen-
vembro de 2003 a Recomendação 24 mento, onde se espera que a popu- tos. O período que sucede à morte
sobre a organização dos cuidados lação idosa seja quadruplicada du- de um ente querido é via de regra
paliativos no contexto dos estados rante os próximos 50 anos. Na De- marcado pelo seguimento de rituais
membros da União Européia. Entre claração Política da II Assembléia religiosos culturais bem definidos.
outras razões apresentadas para ela- Mundial da ONU sobre Envelheci- A necessidade de chorar a perda de
boração desse documento para os mento (Madri, 2002), foram reitera- um ente querido é reconhecida por
governos dos Estados membros da dos os princípios e recomendações muitas sociedades, embora as ma-
Comunidade Européia, destacam- do Plano Internacional para o Enve- nifestações pela perda e o período
se as necessidades de: a) adoção de lhecimento 2002, apontados pela formal de luto variem de uma cul-
políticas e legislações e outras me- Assembléia Geral da ONU 1982, e tura para outra.
didas necessárias para a elaboração os Princípios das Nações Unidas em Num rápido relance em busca
de uma política nacional coerente favor das pessoas Idosas, adotados das raízes históricas do atual mo-
em cuidados paliativos; b) promo- pela Assembléia Geral de 1991, que vimento de Hospices, percebemos
ção de redes internacionais entre as definiram diretrizes nas áreas de in- que nos tempos medievais o ter-
organizações, instituições de pes- dependência, participação, cuidado, mo hospice era usado para descre-
quisa e outras entidades ativas no dignidade e auto-realização. ver o lugar de acolhida para pere-
campo dos cuidados paliativos. So- O roteiro do presente texto ini- grinos e viajantes, uma hospeda-
mente no Reino Unido existem 253 cia-se com alguns aspectos históri- ria. Mais próximos de nós, cons-
hospices que disponibilizam 3.411 cos relacionados com o surgimento tatamos que desde o início do sé-
leitos para a população. Destes, 33 dos hospices e cuidados paliativos (I), culo XIX ocorreram numerosos
serviços são para crianças com a dis- a seguir apresenta a definição da Or- desenvolvimentos no cuidado dos
ponibilidade de 255 leitos. ganização Mundial da Saúde sobre doentes em fase final, liderados
Dados da Organização Mundial cuidados paliativos (II) e comenta por mulheres entre as quais me-
de Saúde estimam que mais de 50 alguns princípios fundamentais des- recem destaque Jeanne Garnier na
milhões de pessoas morrem por sa filosofia de cuidados da vida hu- França, Mary Aikenhead na Irlan-
ano; em 2004, 4,9 milhões de pes- mana (III). Apresenta então alguns da e Rose Hawthorne nos Estados
soas foram infectadas com o vírus traços biográficos dos dois maiores Unidos. Vejamos objetivamente a
HIV; 3,1 milhões de pessoas morre- luminares na arte de cuidar da vida ação inovadora dessas pioneiras.
ram de aids; e 39,4 milhões de pes- humana em seu final, Cicely Saun- Jeanne Garnier, uma jovem
soas são portadores do vírus HIV/ ders e Elizabeth Kübbler Ross (IV), viúva e mãe enlutada, fundou em
aids; a cada ano o câncer causa 6 introduz algumas questões éticas 1841 a L’Association dês Dames du
milhões de mortes, e tem-se mais (V), alguns aspectos relacionados Calvaire em Lyon, que abriu uma
de 10 milhões de novos casos. Esti- com geriatria (VI), destaca a impor- casa para os que estavam na fase
ma-se que para 2020 teremos 15 tância da comunicação (VII), da es- final de vida em 1843. Sua lide-

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rança levou à fundação de outros do de desenvolvimento após a II ensivo do sofrimento, que desa-
estabelecimentos para o cuidado Guerra Mundial. fiou os fundamentos sobre os
dos que estavam enfrentando a Em meados do século XX, im- quais a prática médica até então
fase final de vida (Paris em 1874 portantes mudanças ocorreram na se sustentava.
e Nova York em 1899). Medicina ocidental e no âmbito da Foi o trabalho de Cicely Saun-
Mary Aikenhead foi importan- saúde, como o crescimento de es- ders, inicialmente desenvolvido
te fundadora das Irmãs Irlandesas pecializações, o surgimento de no St. Joseph´s Hospice, em
da Caridade e direta colaborado- novos tratamentos e uma ênfase Hackney, Londres, que introduziu
ra para a abertura do St. Vincent crescente em cura e reabilitação. uma nova filosofia de cuidados
Hospital, em Dublin em 1834. A cena da despedida da vida, que diante da terminalidade da vida.
Após muitos anos de doença crô- antes ocorria predominantemen- Por meio da atenção sistemática
nica, Mary morreu em 1958. O te no ambiente familiar, deslocou- das narrativas dos pacientes, ou-
convento onde ela passou seus se de lugar, passando a acontecer vindo cuidadosamente as histórias
últimos dias de vida tornou-se o no hospital. Os pacientes em fase da doença e sofrimento, ela de-
Our lady´s Hospice para os pacien- final ou os casos sem esperança senvolveu o conceito de “dor to-
tes em fase final de vida, em 1879. eram freqüentemente vistos como tal”. Essa visão da dor moveu-se
As Irmãs da Caridade posterior- falhas da prática médica. O cres- para além da dimensão física, en-
mente abriram outros hospices na cente interesse pela eutanásia no globando a dimensão social, emo-
Austrália, na Escócia e, em 1907, Reino Unido e Estados Unidos cional e espiritual do sofrimento.
o famoso St. Joseph´s Hospice na deve-se em muito à falta de co- Quando Cicely Saunders fundou
Inglaterra. nhecimento aprofundado de o St. Christopher´s Hospice, em Lon-
Rose Hawthorne, nos Estados questões relacionadas aos cuida- dres, em 1967, ele imediatamen-
Unidos, experimentou a dor da dos do final da vida. te se tornou uma fonte de inspi-
perda de uma criança e acompa- No início dos anos 50 no Rei- ração para outras iniciativas des-
nhou sua amiga, a poetisa Emma no Unido, a atenção se voltou às sa natureza; e, ao combinar três
Lazarus, falecer de câncer. No fi- pessoas que estavam na fase final princípios-chave (cuidados clíni-
nal dos anos 1890 organizou um de vida e praticamente “negligen- cos de qualidade, educação e pes-
grupo de mulheres conhecidas ciadas” pela medicina; já nos Es- quisa), tornou-se uma instituição
como Servas do Alívio do Câncer tados Unidos a reação à medicali- de referência mundial em termos
Incurável (Servants of Relief of zação da morte começou a ganhar de cuidado, pesquisa sobre dor e
Incurable Câncer) e após o faleci- força (Metzger, Kaplan, 2001). educação para profissionais da
mento de seu marido optou por Quatro inovações podem ser saúde de todo o mundo.
tornar-se religiosa. Em 1900, já apontadas: a) a inserção sistemá- Em muitas instituições que
como Madre Afonsa fundou as Ir- tica de questões vinculadas aos cuidavam de pacientes com doen-
mãs Dominicanas de Hawthorne, cuidados paliativos na literatura ças avançadas e incuráveis, esfor-
que abriram o St. Rose´s Hospice em profissional; b) uma nova visão ços para controlar a dor e outros
Manhattan e hospices em outras dos pacientes em fase terminal de- sintomas não foram adiante em
localidades dos Estados Unidos. sencadeou estudos mais aprofun- virtude da falta de compreensão
Como marco referencial na con- dados sobre o processo do mor- da natureza desses sintomas e
temporaneidade, o primeiro rer, incluindo a discussão sobre até também pela não-eficácia da me-
hospice norte-americano foi esta- que ponto os pacientes devem sa- dicação. Por volta dos anos 50 é
belecido em New Haven, Connec- ber de sua condição terminal; c) a que surgiu uma gama importante
ticut, em 1974. adoção de uma abordagem ativa de drogas, incluindo psicotrópicos,
Embora essas três mulheres de cuidados, contrariando a tra- fenoliasinas, antidepressivos, an-
pioneiras não se conhecessem dicional postura passiva. Nesse tiinflamatórios, entre outros. A
pessoalmente, tiveram como obje- contexto emergiu uma determi- partir de então, teve-se uma com-
tivo comum cuidar das pessoas nação de encontrar caminhos no- preensão mais aprofundada da
que estavam morrendo, e em par- vos e imaginativos de “cuidado” natureza da dor e do papel dos
ticular dos pobres. Enraizadas em no final da vida e, além dele, o opióides no controle da dor on-
valores filantrópicos e religiosos, cuidado dos enlutados; d) uma cológica. A disponibilidade dessa
essas primeiras casas de acolhida consciência crescente da relação nova medicação criou a possibili-
para pacientes em fase final repre- entre os estados físicos e mentais dade do “cuidado e da adminis-
sentam o prólogo para um perío- trouxe um conceito mais compre- tração da dor”.

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Temos claras evidências de que o vírus HIV/aids e estão vivendo ou em fase terminala,na institui-
programas de hospices e cuidados com a doença. Também existe um ção de saúde onde está internada
paliativos estão em franca expan- número crescente de pessoas com ou no hospice, uma unidade espe-
são em termos mundiais. Apresen- outras doenças crônicas e em con- cífica dentro da instituição de saú-
tam-se associações nacionais ati- dições ameaçadoras de vida. Todas de destinada exclusivamente a
vas, realizam-se eventos mundiais essas pessoas necessitarão de cui- essa finalidade.
e regionais, bem como foram cria- dados paliativos e hospice num de- Segundo Cicely Saunders, pio-
das redes de apoio internacionais terminado momento. É impera- neira da concepção do moderno
para divulgação e educação ao pú- tivo que todos os governos apói- hospice, os “cuidados paliativos se
blico, além de assessoria científica em e desenvolvam planos de ação iniciam a partir do entendimento
na implantação de novos progra- que sejam de apoio, prevenção, de que cada paciente tem sua pró-
mas de cuidados paliativos. Vale tratamento e cuidados paliativos. pria história, relacionamentos, cul-
lembrar que já foram realizadas Setenta por cento dos pacientes tura e que merece respeito como
duas cúpulas globais de associações com câncer sentem dor, e entre um ser único e original. Esse res-
nacionais de hospice e cuidados pa- 70 e 90% dos que estão em está- peito inclui proporcionar o melhor
liativos, e a terceira está programa- gio avançado de aids têm a dor cuidado médico disponível e dis-
da para 2007, na África, em país não-controlada. ponibilizar a ele as conquistas das
ainda a ser definido. A primeira cú- Em termos de ação, estabele- últimas décadas, de forma que to-
pula global ocorreu em Hague (Ho- ceu-se o Dia Mundial de Cuidados dos tenham a melhor chance de
landa), de 30 de março a 1 de abril Paliativos, a ser celebrado anual- viver bem o seu tempo (Saunders,
de 2003, em conexão com a Asso- mente sempre no dia 8 de outubro. 199-).
ciação Européia de Cuidados Palia- O conceito de “cuidados palia-
tivos. Nesse evento se reuniram O conceito de cuidados tivos” evoluiu ao longo do tempo
trinta organizações de cuidados pa- paliativos à medida que essa filosofia de cui-
liativos de todo o mundo, incluin- dados de saúde foi se desenvol-
do organizações nacionais e regio- O termo “paliativo” deriva do la- vendo em diferentes regiões do
nais, órgãos intergovernamentais, tim pallium, que significa manto, ca- mundo. Os cuidados paliativos
organizações não-governamentais, pote. Aponta-se para a essência dos foram definidos tendo como refe-
bem como pioneiros e fundadores cuidados paliativos: aliviar os sinto- rência não um órgão, idade, tipo
de programas de cuidados paliati- mas, a dor e sofrimento em pacien- de doença ou patologia, mas an-
vos no contexto internacional. A tes portadores de doenças crônico- tes de tudo a avaliação de um pro-
segunda cúpula global de associa- degenerativas ou em fase final, vável diagnóstico e possíveis ne-
ções nacionais de hospice e cuidados objetivando o paciente em sua glo- cessidades especiais da pessoa
paliativos ocorreu na Coréia, em balidade de ser e aprimorar sua qua- doente e sua família.
Seul, em 15-16 de março de 2005. lidade de vida. Etimologicamente, Tradicionalmente, os cuidados
Vale registrar alguns pontos da significa prover um manto para paliativos eram vistos como apli-
Declaração da Coréia, documento aquecer “aqueles que passam frio”, cáveis exclusivamente no momen-
fruto desse evento internacional uma vez que não podem mais ser to em que a morte era iminente.
(cf. www.hpc-association.net). O ajudados pela medicina curativa. Hoje eles são oferecidos no estágio
grande desafio que existe: em ter- Os cuidados paliativos não di- inicial do curso de uma determi-
mos mundiais, mais de 52 milhões zem respeito primordialmente a nada doença progressiva, avança-
de pessoas morrem anualmente, cuidados institucionais, mas cons- da e incurável (Sepulveda, 2005).
incluindo adultos, crianças e jo- tituem-se fundamentalmente de Em 1987, a medicina paliativa
vens. Aproximadamente uma em uma filosofia de cuidados que foi reconhecida como uma especia-
cada dez mortes é causada pelo pode ser utilizada em diferentes lidade médica, sendo definida co-
câncer. Mais de 40 milhões de pes- contextos e instituições, ou seja, mo “o estudo e gestão dos pacien-
soas, das quais mais de 29 milhões no domicílio da pessoa portadora tes com doença ativa, progressiva
são africanas, estão infectadas com de doença crônico-degenerativa e ultra-avançada, para os quais o

a. Muito se discute hoje a respeito da definição de paciente terminal, ou então sobre qual é o conceito de enfermidade terminal. A Associação Espanhola de
Cuidados Paliativos (Secpal), em seu Guia de cuidados paliativos, aponta para uma série de características importantes não somente para definir o que seja enfermi-
dade terminal, mas também para estabelecer adequadamente a terapêutica. Os elementos fundamentais são os seguintes: “1) Presença de uma enfermidade
avançada, progressiva e incurável; 2) Falta de possibilidades razoáveis de respostas ao tratamento específico; 3) Presença de inúmeros problemas ou sintomas
intensos, múltiplos, multifatoriais e cambiantes; 4) Grande impacto emocional no paciente, família e equipe de cuidados, estreitamente relacionado com a presen-
ça, explícita ou não, da morte; 5) Prognóstico de vida inferior a seis meses” (cf. http://secpal.com/guacp/index).

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prognóstico é limitado e o enfoque mo. Sendo assim, o uso do termo dos cuidados de saúde. Muitos
do cuidado é a qualidade de vida” “curativo” não se justifica, uma vez aspectos cruciais dos cuidados pa-
(Dolyle et al, 2005). Inicialmente, que muitas condições crônicas não liativos aplicam-se perfeitamente
esse conceito surgiu atrelado à prá- podem ser curadas, mas podem ser à medicina curativa, bem como,
tica médica. No entanto, quando compatíveis com uma expectativa por outro lado, o desenvolvimen-
outros profissionais, como enfer- de vida por várias décadas. to dos cuidados paliativos pode
meiras, terapeutas ocupacionais, fi- A OMS em 1998 definiu cui- influenciar positivamente outras
sioterapeutas, fonoaudiólogos ou dados paliativos para crianças e formas de cuidados de saúde, ao
capelães, são envolvidos, refere-se suas famílias, cujos princípios apli- valorizar aspectos que ficaram em
como sendo cuidados paliativos cam-se também a outras desordens segundo plano a partir do domí-
antes que medicina paliativa, por- pediátricas crônicas, como “o cui- nio da medicina chamada cientí-
que tal cuidado é quase sempre dado ativo total para o corpo, men- fico tecnológica, tais como as di-
multiprofissional ou interdiscipli- te e espírito, assim como o apoio mensões humanas e ético-espiri-
nar. O Manual de medicina paliativa para a família; tem início quando tuais da pessoa humana.
de Oxford (2005), em sua terceira a doença é diagnosticada, e conti- Sob essa perspectiva concei-
edição, embora faça essa distinção nua independentemente de a tual, segue-se abordando a filoso-
conceitual, utiliza os dois concei- doença da criança estar ou não sen- fia dos cuidados paliativos, nos
tos como sinônimos. do tratada. Os profissionais da saú- seus princípios fundamentais.
Hospice, antes de ser um lugar de devem avaliar e aliviar o estresse
físico, é um conceito. Trata-se de físico, psíquico e social da criança; Alguns princípios
uma filosofia e modelo de cuida- para serem efetivos, exigem uma fundamentais dos
do, bem como uma forma orga- abordagem multidisciplinar que
cuidados paliativos
nizada de proporcionar cuidados inclui a família e a utilização dos
de saúde. As duas expressões são recursos disponíveis na comunida- A partir da definição de cuida-
freqüentemente consideradas si- de; os cuidados paliativos podem dos paliativos da OMS de 2002, te-
nônimos, visto que a filosofia do ser implementados mesmo se os mos os seguintes princípios funda-
hospice expandiu seu âmbito de recursos forem limitados, e reali- mentais (Council of Europe, 2005):
atuação no decorrer do tempo, ao zados em centros comunitários de
incluir pessoas que estão morren- saúde, até mesmo nas casas das Os cuidados paliativos:
do não somente de câncer mas de crianças” (WHO, 2005). a) valorizam atingir e manter
muitas outras doenças com prog- Essa mesma organização inter- um nível ótimo de dor e administra-
nósticos de menos de seis meses nacional em 2002 redefiniu o con- ção dos sintomas. Isso exige uma
de vida, além daquelas que passam ceito de cuidados paliativos, enfa- cuidadosa avaliação de cada doen-
pelo processo do morrer longo, tizando a prevenção do sofrimen- te, levando em conta sua história
crônico e imprevisível. to. Eis o novo conceito: “Cuidados detalhada, exame físico e pesqui-
A Organização Mundial da paliativos é uma abordagem que sas. Os doentes devem ter acesso
Saúde (OMS) em 1990 definiu aprimora a qualidade de vida dos imediato a toda medicação neces-
cuidados paliativos como “o cui- pacientes e famílias que enfrentam sária, incluindo uma gama de
dado ativo total de pacientes cuja problemas associados com doen- opióides e de formulações.
doença não responde mais ao tra- ças ameaçadoras de vida, através b) afirmam a vida e encaram o
tamento curativo. Controle da dor da prevenção e alívio do sofrimen- morrer como um processo normal. O
e de outros sintomas e problemas to, por meios de identificação pre- que todos partilhamos em comum
de ordem psicológica, social e es- coce, avaliação correta e tratamen- é a realidade inexorável de nossa
piritual são prioritários. O objeti- to da dor e outros problemas de morte. Os pacientes que solicitam
vo dos cuidados paliativos é pro- ordem física, psicossocial e espiri- cuidados paliativos não devem ser
porcionar a melhor qualidade de tual” (WHO, 2002). vistos como resultantes de falhas
vida para os pacientes e seus fa- É importante notar que os cui- médicas. Os cuidados paliativos vi-
miliares” (WHO, 1990). dados paliativos não devem ser sam assegurar aos doentes condi-
Essa definição é louvável ao vistos hoje como essencialmente ções que os capacitem e encorajem
centrar-se no paciente para enfati- diferentes de outras formas ou a viver sua vida de uma forma útil,
zar a natureza multifacial da condi- áreas de cuidados de saúde. Isso produtiva e plena, até o momento
ção humana e identificar a qualida- tornaria difícil, se não impossível, de sua morte. A importância da rea-
de de vida como seu objetivo últi- a sua integração no curso regular bilitação, em termos de bem-estar

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

físico, psíquico e espiritual, não unidade de cuidados; para tanto, as progressão Dessa forma, exige-se
pode ser negligenciada. questões e dificuldades dos mem- que os serviços de cuidados palia-
c) não apressam nem adiam a mor- bros da família devem ser identifi- tivos estejam intimamente inte-
te. Intervenções de cuidados palia- cadas e trabalhadas. O cuidado com grados aos demais serviços de saú-
tivos não devem ser para abreviar o luto se inicia bem antes do mo- de, seja no hospital ou em insti-
a vida “prematuramente”. Da mes- mento da morte do doente. tuições comunitárias.
ma maneira que as tecnologias dis- g) exigem uma abordagem em A partir dos princípios acima
poníveis na moderna prática mé- equipe. Fica evidente que nenhu- descritos, constata-se que os cui-
dica não são aplicadas para prolon- ma pessoa ou especialidade por si dados paliativos não são definidos
gar a vida de forma não-natural. Os só prepara adequadamente profis- somente a partir de um determi-
médicos não são obrigados a conti- sionais para lidar com a complexi- nado tipo de doença; potencial-
nuar tratamentos considerados fú- dade das questões pertinentes ao mente, aplicam-se a pacientes de
teis e excessivamente onerosos para período dos cuidados paliativos. todas as idades, com base em uma
os pacientes, da mesma forma que Embora a equipe central consista avaliação de seus prováveis diag-
os pacientes podem recusar trata- em um médico, enfermeira, assis- nósticos e necessidades específi-
mentos médicos. Em cuidados pa- tente social com o fim de prover o cas. Além do mais, os serviços de
liativos, o objetivo é assegurar a cuidado necessário, faz-se neces- cuidados paliativos têm como foco
melhor qualidade de vida possível; sário contar com a colaboração de central atingir a melhor qualida-
logo, o processo da doença conduz uma equipe ainda maior de pro- de de vida possível para cada pa-
a vida a um final natural, por meio fissionais da área médica, enferma- ciente e sua família, o que envol-
do qual os doentes devem receber gem, fisioterapeutas, terapeutas ve: atenção específica em relação
conforto físico, emocional e espiri- ocupacionais, entre outros. Para ao controle dos sintomas e a ado-
tual. Especificamente, presta-se que esse grupo trabalhe de forma ção de abordagem holística que
atenção ao fato de que a eutanásia coesa, é crucial estabelecer e parti- leve em conta as experiências de
e o suicídio assistido não estão in- lhar metas e objetivos comuns, vida da pessoa e a situação atual.
cluídos em nenhuma definição de bem como utilizar meios rápidos e Trata-se de um cuidado que abar-
cuidados paliativos. efetivos de comunicação. ca tanto a pessoa que está mor-
d) integram aspectos psicológicos h) buscam aprimorar a qualidade rendo como as que lhe são próxi-
e espirituais dos cuidados do paciente. de vida. A questão da qualidade de mas, familiares e amigos, exigin-
Um nível elevado de cuidado físi- vida tem atraído grande interesse do uma especial atenção na práti-
co é certamente de vital importân- de pesquisa nos últimos anos, uma ca de uma comunicação aberta e
cia, mas não suficiente em si mes- vez que é importante reconhecer sensível junto aos pacientes, fami-
mo. A pessoa humana não deve que tal fato não é simplesmente liares e cuidadores.
ser reduzida a uma mera entida- uma medida de conforto físico ou
de biológica. de capacidade funcional. Trata-se,
e) oferecem um sistema de apoio
Duas grandes mulheres,
antes, de algo que somente pode
para ajudar os pacientes a viver tão ser definido pela pessoa doente, e luminares na
ativamente quanto possível, até o mo- que pode ser alterado significati- arte de cuidados no final
mento da sua morte. É importante vamente ao longo do tempo. de vida: Cicely Saunders
ressaltar que o paciente estabele- i) são aplicáveis no estágio inicial e Elizabeth Kübler-Ross
ce os objetivos e prioridades. Nes- da doença, concomitantemente com as
se sentido, o papel do profissional modificações da doença e terapias que Não podemos deixar de regis-
da saúde é capacitar e assistir o prolongam a vida. Ao longo da his- trar algumas anotações, ainda que
paciente em atingir seu objetivo tória, os cuidados paliativos foram introdutórias, a respeito das duas
identificado. É evidente que as associados aos cuidados oferecidos maiores personalidades da con-
prioridades de um paciente po- aos doentes de câncer adiante da temporaneidade que “revolucio-
dem mudar dramaticamente com morte iminente. Reconhece-se naram” a arte de cuidar dos pacien-
o tempo. O profissional deve es- que os cuidados paliativos têm tes que estão na fase final de vida:
tar consciente dessas mudanças e, muito a oferecer aos pacientes e Cicely Saunders, que introduziu
conseqüentemente, respondê-las. familiares no estágio inicial do no contexto dos cuidados de saú-
f) ajudam a família a lidar com a curso da doença, tendo em vista de uma filosofia de cuidados pa-
doença do paciente e no luto. Em cui- a possibilidade do avanço da liativos institucionais, e Elizabeth
dados paliativos a família é uma doença e da não-contenção de sua Kubler-Ross, que inovou ao des-

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

crever todo o processo pelo qual ao redor do mundo, bem como Frankl, ao afirmar que “o homem
passa a pessoa na fase final de vida. gerou novas atitudes em relação à não é destruído pelo sofrimento,
Apresentamos sucintamente al- morte, ao morrer e diante da dor mas pelo sofrimento sem sentido”.
guns dados biográficos, bem como da perda de um ente querido, isto Difícil não emocionar ao ouvir-
sua contribuição original. é, o período do luto. mos Saunders dizer: “Como o
Mais de 50 mil estudantes esti- hospice moderno começou ouvin-
a) Dame Cicely Saunders veram em treinamento no St. do os pacientes, deixemos que um
Aos 87 anos, no dia 14 de ju- Christopher’s Hospice ao longo paciente tenha a última palavra:
lho de 2005, Cicely Saunders desses anos para se tornarem líde- ´Solidão não é tanto uma questão
(1918-2005) despediu-se da vida, res em cuidados paliativos, como de estar sozinho, como de não
no St. Christopher´s Hospice, por médicos, enfermeiras e outros pro- pertencer’” (Saunders, 2005).
ela fundado em 1967. No dizer de fissionais, com o estabelecimento Sempre nos lembraremos de
Barbara Monroe, Diretora Admi- de programas em cuidados palia- Cicely Saunders, do seu humanis-
nistrativa dessa instituição: “A vi- tivos em mais de 120 países. mo profissional ao anunciar que,
são e o trabalho de Cicely Saun- Cicely Saundersb, como já su- “ao cuidar de você no momento
ders transformaram o cuidado dos blinhamos no início deste traba- final da vida, quero que você sin-
que estão morrendo e a prática da lho, cunhou o conceito de “dor ta que me importo pelo fato de
medicina no Reino Unido e ao re- total”, uma combinação de ele- você ser você, que me importo até
dor do mundo. Ela é uma inspira- mentos das dimensões física, psí- o último momento de sua vida, e
ção para todos nós. Nós cuidamos quica, social e espiritual da pes- faremos tudo o que estiver ao nos-
de Cicely no St. Christopher´s soa humana. Assim relata como so alcance não somente para aju-
Hospice como uma paciente por chegou a esse conceito: “Logo fi- dá-lo a morrer em paz, mas tam-
algum tempo. Sentiremos sua fal- cou claro que cada morte era tão bém para você viver até o dia de
ta. Sua influência continuará no única como a vida que a prece- sua morte” (Saunders, 1976).
mundo à medida que trabalhar- deu e que toda experiência daque-
mos juntos em cuidados paliativos la vida estava refletida no mo- b) Elizabeth Kübler-Ross
e hospice ao apoiarmos as pessoas mento do morrer. Isso levou-nos Elizabeth Kübler-Ross (1926-
que estão morrendo e seus entes ao conceito de ‘dor total’, que foi 2004), psiquiatra suíça radicada
queridos” (St. Christopher’s Hos- apresentado como um complexo nos Estados Unidos, ficou mun-
pice, 2005). de elementos físicos, emocionais, dialmente conhecida por seus es-
Cicely Saunders começou sua sociais e espirituais. Toda essa ex- critos e trabalho com pacientes na
carreira profissional primeiro como periência para o paciente inclui fase final de vida. Faleceu aos 78
enfermeira e assistente social. De- ansiedade, depressão e medo; anos de idade em Scottsdale, Ari-
pois estudou medicina, para se- preocupações com a família que zona. Em 1969, escreveu seu li-
gundo ela mesma “cuidar bem dos passará pelo luto e freqüentemen- vro mais importante, que a pro-
pacientes terminais, esquecidos te a necessidade de encontrar al- jetou internacionalmente, cau-
pelos médicos tradicionais”. Ela é gum sentido na situação, uma rea- sando grande impacto na área dos
reconhecida como a fundadora do lidade mais profunda em que con- cuidados de saúde: On death and
movimento moderno de hospice. O fiar. Isso tornou-se a tônica de dying (Sobre a morte e o morrer),
St.Christopher’s Hospice por ela ensino e escritos sobre assuntos no qual descreve os estágios pe-
fundado foi o primeiro hospice que, tais como a natureza, o cuidado los quais as pessoas passam quan-
numa visão holística da pessoa da dor terminal e a família como do estão na fase final de vida: ne-
humana e cuidados integrados, li- uma unidade de cuidados” (Saun- gação, raiva, barganha, depressão
gou o alívio da dor e controle de ders, 1996). e aceitação. Kübler-Ross introdu-
sintomas com o cuidado humani- Diante da mentalidade utilita- ziu o estudo da tanatologia na área
zado, o ensino e a pesquisa clíni- rista de eliminar o sofredor por médica e também impulsionou os
ca. Essa nova filosofia de cuidados causa do sofrimento, Saunders hospices nos Estados Unidos. Au-
direcionada aos pacientes fora de propõe que “o sofrimento somen- tora de mais de 20 livros, traduzi-
possibilidades terapêuticas influen- te é intolerável se ninguém cui- dos em 26 idiomas, foi escolhida
ciou muito os cuidados em saúde da”. Podemos lembrar Victor em Time Magazine em 1999 como

b. Para conhecer mais profundamente o trabalho de Cicely Saunders, confira em: Clark, D. Cicely Saunders — Founder of the Hospice Movement. Selected Letters 1959-
1999. New York: Oxford University Press; 2002.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

“um dos 100 mais importantes tona a pessoa que realmente so- o filho. “Seu único problema ao
pensadores do século XX”. mos. Estamos na Terra para curar enfrentar a morte era a paciência”.
Em um de seus últimos livros, uns aos outros e a nós mesmos. Numa entrevista a Reuters em
em co-autoria com Kessler, Life Quando falo em aprender nos- 1997, ao falar a respeito de sua
Lessons (2000)c, registramos um de sas lições, eu me refiro a resolver própria visão sobre a vida e o vi-
seus depoimentos mais contun- as questões inacabadas. Essas ques- ver, Elisabeth disse: “Eu sempre
dentes, que nos permite refletir tões dizem respeito à vida e às nos- fiz o que senti que fosse o certo,
sobre a dimensão de finitude de sas indagações mais essenciais, não o que as outras pessoas espe-
nossas vidas: como: ‘Será que de fato investi ravam de mim. Nunca ouvi a opi-
“... Durante este período cha- meu tempo para viver o mais ple- nião das outras pessoas”. E, per-
mado Vida todos temos lições a namente possível? Será que colo- guntada se tinha algo de que se
aprender. Esse fato fica muito cla- quei minha realização em ganhar lamentar em sua vida: “Sinto não
ro quando trabalhamos com os dinheiro e prestígio? Muitas pes- tocar um instrumento. Amaria
que estão à beira da morte. Essas soas existiram, mas na verdade tocar e cantar. Quando eu morrer
pessoas aprendem muito no final nunca viveram’. E gastaram uma vou dançar primeiramente em
da vida, geralmente quando já é tremenda quantidade de energia todas as galáxias... Vou tocar, dan-
muito tarde para que apliquem para não tomar conhecimento de çar e cantar” (Schwaartz, Kübler-
esses conhecimentos. seus assuntos inacabados. Ross, 199-).
Depois que me mudei para o Como as questões inacabadas “Sem sombra de dúvida, sei que
deserto do Arizona, em 1995, so- são o maior problema da vida, é não existe morte da forma como a
fri um derrame no dia das mães também com elas que lidamos compreendemos, o corpo morre,
que me deixou paralítica. Passei quando enfrentamos a morte. A mas não a alma”, dizia ela. Nunca
os anos seguintes à beira da mor- maioria de nós morre com uma temendo a morte, ela simplesmen-
te. Às vezes eu achava que iria grande quantidade de questões te seguiu aquilo em que acreditou,
viver poucas semanas. Freqüen- inacabadas. Há tantas lições a se- ou seja, “a vida não termina quan-
temente fiquei desapontada por- rem aprendidas na vida que é im- do você morre, mas começa”. Da-
que isso não aconteceu, pois eu possível dominá-las em uma úni- vid diz que sua amiga “morreu com
me sentia pronta. Mas não morri ca existência. Mas quanto mais li- aceitação em sua face” (Noble,
porque ainda estou aprendendo as ções aprendemos, mais assuntos Kübler-Ross, 2004).
lições da vida, minhas últimas li- concluímos e mais plenamente
ções. Elas contêm verdades essen- viveremos. Então, quando chegar Algumas questões éticas
ciais a respeito da nossa vida, são nossa hora, poderemos exclamar
em cuidados paliativos
os próprios segredos da vida. Por felizes: ‘Meu Deus, eu vivi’”
isso quis escrever mais um livro, (Kübler-Ross, Kessler, 2004). As questões éticas envolvidas
não sobre a morte e o morrer, mas No dia 25 de agosto de 2004, em cuidados paliativos baseiam-se
sobre a vida e o viver. jornais noticiavam a morte de Eli- no reconhecimento do fato de que
Cada um de nós tem dentro de zabeth Kubler-Ross, comentando o paciente incurável ou em fase
si um Gandhi e um Hitler. O Gan- seus últimos momentos de vida, terminal não é um resíduo bioló-
dhi corresponde ao que há de me- testemunhados por seu dileto gico por quem nada mais pode ser
lhor em nós, nosso lado capaz da amigo David Kessler e familiares. feito, um ser necessitado de anes-
maior compaixão, enquanto o Seu filho mais velho disse que sua tesia, cuja vida não deve ser pro-
Hitler corresponde ao que há de mãe, nos últimos meses de vida, longada desnecessariamente. Esta-
pior, nossos aspectos negativos e estava colhendo os frutos do mo- mos sempre diante de uma pessoa
mesquinhos. Nosso crescimento vimento que ela ajudou a fundar, e, como tal, capaz — até o momen-
consiste em trabalhar os aspectos encontrando conforto de amigos to final — de relacionamento, de
negativos, livrando-nos de suas e familiares provenientes de todas tornar a vida uma experiência de
manifestações, descobrir e desen- as partes do mundo, em e-mails, crescimento e de plenitude.
volver o que há de melhor em nós cartas e telegramas e que cente- Os profissionais devem, porém,
e nos outros. Aprender as lições de nas vieram para visitá-la. reconhecer os limites da medicina
vida capazes de curar nosso espíri- “... Esperar pela morte não era e evitar o excesso de tratamento, a
to — nossa alma — e de trazer à um grande desafio para ela”, disse chamada distanásia, ou o tratamen-

c. Kubler-Ross, E., Kessler, D. Life lessons (2000) recebeu na versão em português o título Os segredos da vida. São Paulo: Sextante; 2004.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

to fútil e inútil. É importante desa- dos de saúde. Uma ética do cui- bem como conversar sobre as op-
fiar a ilusão de que existe somente dado e das virtudes apresenta-se ções de tratamento. Conjuntamen-
uma forma de lidar com a dor e o como apropriada e necessária em te formular o plano de cuidados,
sofrimento: eliminando-os. É ne- cuidados paliativos. A ética do cui- sem nunca esconder a informação
cessário enfatizar que a chamada dado enfatiza essencialmente a que o paciente deseja receber,
“dor total”, conceito cunhado por natureza vulnerável e dependen- atendendo as suas necessidades de
Cicely Saunders, que se expressa no te dos seres humanos. Portanto, informação sobre qualquer trata-
medo da morte, na ansiedade da enfatiza que a ética não somente mento e respeitando a opção do
separação, na solidão, no lidar com diz respeito ao processo de deci- paciente, se este optar por aban-
difíceis questões existenciais, o sen- dir, mas também envolve a quali- donar o tratamento proposto.
tir-se um peso para os outros como dade das relações, tais como con- 2. A equipe de cuidados deve
um dependente inútil, não pode ser tinuidade, abertura e confiança. A avaliar os benefícios e riscos do
tratada ou cuidada somente por ética das virtudes critica o enfo- tratamento (beneficência), avaliar
meio do instrumental técnico-cien- que ético baseado nas decisões a os riscos em relação aos benefícios
tífico. No caso da “dor total”, a efi- partir do caráter, enfatizando a de cada decisão clínica (não-ma-
cácia dos analgésicos está relacio- importância de ações virtuosas leficência), compreender que o
nada com a possibilidade de incluir (Pessini, 2004). paciente tem o direito ao mais alto
o tratamento médico, no contexto Os pacientes com doenças nível de padrão de cuidado no
de relacionamentos humanos sig- avançadas ou em estado terminal contexto dos recursos disponíveis
nificativos, afetivos. têm fundamentalmente os mes- e entender as decisões em contex-
Seguindo os quatro princípios mos direitos que os outros pacien- to de alocação e uso de recursos.
definidos por Beauchamp e Chil- tes, tais como o direito de receber 3. Os direitos fundamentais dos
dress (2002) , ou seja, o respeito cuidados médicos apropriados, pacientes que estão no final da vida
pela autonomia, beneficência, apoio pessoal, direito de ser infor- são os de: receber cuidados médi-
não-maleficência e justiça, bem mados, mas também o direito de cos necessários, ser respeitados em
como em todas as outras áreas dos recusar procedimentos diagnósti- sua dignidade, ser apoiados e cui-
cuidados médicos, os médicos e cos e/ou tratamentos quando estes dados em suas necessidades. Além
outros profissionais do cuidado simplesmente nada acrescentam do mais, os pacientes têm direito
devem respeitar a autonomia do diante da morte prevista. A recusa ao alívio da dor e do sofrimento, a
paciente, ao concordar com as de tratamento não deve influenciar ser informados, à autodetermina-
prioridades e objetivos do cuida- a qualidade dos cuidados paliati- ção e recusa de tratamentos.
do com os pacientes e cuidadores, vos. O mais importante é que os 4. O paciente tem o direito de
não esconder a informação dese- pacientes em cuidados paliativos receber informações detalhadas a
jada pelo paciente e respeitar os têm o direito ao grau máximo de respeito de seu estado de saúde.
desejos do paciente de não ser tra- respeito por sua dignidade, ao Inclui-se aqui qualquer avaliação
tado, quando o tratamento sim- melhor analgésico de dor disponí- médica, exames e intervenções
plesmente nada mais faz que pro- vel e ao alívio do sofrimento. propostas para considerar vanta-
longar o processo do morrer. Embora a realidade de cada gens potenciais e riscos, bem como
Os cuidadores devem cuidado- país tenha sempre suas peculiari- decisão sobre tais exames e inter-
samente medir os benefícios e o dades sociopolíticas e culturais venções. Além disso, o paciente
ônus do tratamento (beneficên- únicas, é enriquecedor considerar tam direito de receber informa-
cia) e avaliar os riscos e benefí- como fonte de inspiração o que ções a respeito de qualquer pro-
cios de cada decisão clínica (não- acontece e se faz em outros paí- cedimento e método alternativo,
maleficência), para evitar o trata- ses. É nesse sentido que olhamos bem como o processo de trata-
mento fútil e inútil, a distanásia para o que a Associação Húngara mento e os resultados esperados.
(Pessini, 2001), que não se coa- de Hospices e Cuidados Paliativos 5. Os pacientes têm o direito
duna com os objetivos de preven- preconiza em termos de princípios de participar nas decisões relacio-
ção, cura, cuidado, reabilitação e éticos em cuidados paliativos nadas aos seus cuidados de saú-
alívio da dor. (Council of Europe, 2003): de, isto é, exame e tratamento
Deve-se observar que essa 1. Os membros da equipe de proposto. A obtenção do consen-
perspectiva da bioética principia- cuidados devem respeitar a auto- timento informado do paciente é
lista norte-americana pode ser nomia dos pacientes, ao concordar uma exigência anterior a qualquer
insuficiente nesta área de cuida- com suas prioridades e objetivos, intervenção médica.

O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 4 out./dez. 2005 499

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

6. Caso o paciente sofra de tigos específicos, a saber: a) confiden- mudam muito rapidamente, so-
uma doença considerada incurá- cialidade na pesquisa e no exercício bretudo nos estágios finais. O tem-
vel e terminal, que segundo o co- profissional (MacDonald, N.); b) a po de sobrevivência é limitado, e
nhecimento médico atual prova- questão da verdade e o consentimento: o uso de múltipla medicação é fre-
velmente levará à morte num cur- quanto de verdade?, dizer a verda- qüente. A pesquisa em pacientes
to período de tempo, intervenções de e habilidades de comunicação, em fase terminal tem sido questi-
de suporte de vida ou de salva- consentimento e competência, re- onada eticamente, especialmente
mento de vida podem ser etica- ceber e compreender a informação por causa da vulnerabilidade desse
mente recusadas, deixando a (Downie, R. e Randall, F.); c) edu- grupo de pacientes e sua inabili-
doença seguir seu caminho natu- car para a competência profissional em dade de tomar parte no processo de
ral. O que se deseja evitar é a dis- medicina paliativa (Buckley, G. e decisão, pois existe alta incidência
tanásia. O paciente pode nomear Smyth, A.); d) a medicina paliativa e de desordens cognitivas e dificul-
outra pessoa para o exercício des- crianças: questões éticas e legais dades em se conceder seu consen-
se direito, em caso de vir a se tor- (Doyal, L., Goldman, A., Larcher, timento livre e informado, uma vez
nar incapaz. Essa declaração pode V. e Chantler, C.); e) questões éticas que existe dependência da insti-
ser anulada a qualquer momen- de pesquisa em cuidados paliativos tuição em que são cuidados, sen-
to, se o paciente assim o desejar. (Mac Donald, N. e Weijer, C.) e, fi- timentos de gratidão, entre outros
Não se deve esquecer que, quan- nalmente, f) eutanásia e a não-imple- elementos intervenientes.
do os pacientes optam por inter- mentação de tratamento (Roy, D. J.) Tais desafios não são específi-
romper o tratamento, sua dor e (Doyle et al, 2005). cos da área de cuidados paliativos,
sofrimento devem continuar sen- Um destaque especial faz-se mas também se encontram em
do aliviados. necessário em relação à pesquisa outras áreas da medicina, como na
7. Cada ato e decisão devem ser em cuidados paliativos, já que des- Geriatria e Medicina Intensiva. Por
documentados de forma escrita. de seu início a pesquisa é parte in- decorrência, não existe razão para
Uma das obras clássicas mais tegrante do desenvolvimento de inserir os cuidados paliativos numa
completas e respeitadas em Medi- cuidados paliativos. Graças às des- categoria especial. A pesquisa nes-
cina e/ou cuidados paliativos, o fa- cobertas em pesquisas, tivemos im- sa área deve atender aos princípios
moso Oxford textbook of palliative portante progresso no campo da dor éticos consagrados internacional-
medicine (2005)d, em sua terceira e da gestão dos sintomas. Muitas mente que governam toda e qual-
edição, dedica inteiramente a tercei- práticas paliativas baseiam-se em quer pesquisa clínica. Contudo,
ra parte às questões éticas. Embora evidências históricas, e em muitos deve-se prestar atenção ao proces-
tenhamos como objetivo do presen- casos sem a necessária fundamen- so de avaliação dos riscos e benefí-
te texto somente introduzir de for- tação em métodos científicos. cios de um determinado projeto de
ma sintética as questões éticas, não É claro que o recrutamento de pesquisa, cuja interpretação pode
deixa de ser importante e até ne- pacientes para um determinado diferir muito, segundo o estágio da
cessário encaminhar ao leitor inte- estudo é difícil e exige muito tem- progressão da doença. Os objetivos
ressado em aprofundar ulterior- po em virtude da própria nature- de cuidado freqüentemente mu-
mente as questões específicas de za dos cuidados paliativos. Além dam nos estágios finais, com a qua-
ética em cuidados paliativos a rela- disso, existem determinadas ca- lidade de vida se tornando a prio-
ção dos temas abordados bem como racterísticas clínicas que compli- ridade maior a ser honrada (Coun-
de seus autores. Uma introdução cam a pesquisa nesse campo. Os cil of Europe, 2003).
justifica a importância de uma vi- pacientes freqüentemente são
são ética em cuidados paliativos, pessoas idosas sofrendo de algu- Cuidados Paliativos em
apresentando os conceitos-chave de ma condição que afeta muitos sis- Geriatria/Gerontologia
ética, sobre os quais discorremos temas no corpo, e não somente
anteriormente, o processo de lidar um órgão, que é comumente se- O relatório Europeu da Orga-
e decidir perante situações confli- vera e acompanhada de muitos nização Mundial da Saúde sobre
tivas (Calman, K.). As seguintes sintomas simultâneos. A doença Cuidados Paliativos enfaticamen-
questões são aprofundadas em ar- é progressiva, e seus sintomas te afirma que “existe considerável

d. Ver especialmente a terceira parte da obra: Doyle, D., Hanks, G., Ghemy, N., Calman, K. Oxford Textbook of palliative medicine; 2005, que apresenta o seguinte roteiro
de conteúdo: 3. Ethical issues. 3.1. Introduction (Kenneth Calman), p. 55-57; 3.2. Confidentiality (Neil MacDonald), p. 58-61; 3.3. Truth-telling and
consent (Robin Downie and Fiona Randall), p. 61-65; 3.4. Educating for professional competence in pallitive medicine (Grahm Buckley and Ann Smyth),
p. 65-70; 3.5. Palliative medicine and children: ethical and legal issues (Len Doyal, Ann Goldman, Vic Larcher, and Cyril Chantler), p. 70-76; 3.6. Ethical
issues in palliative care research (Neil MacDonald and Charles Weijer), p. 76-83; 3.7. Euthanasia and withholding treatment (David J. Roy), p. 84-97.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

evidência de que as pessoas idosas cialista destaca que a convergência cedimento cirúrgico ou de uma
sofrem desnecessariamente, por de dois conceitos radicais, histori- intervenção de reabilitação. A ge-
causa de uma falta de avaliação camente distantes — de um lado, riatria diz mais respeito à sobrevi-
generalizada e tratamento de seus cuidados paliativos; de outro, me- vência e ao processo de convencer
problemas e falta de acesso a pro- dicina geriátrica — “convergem, os clínicos a não serem fatalistas
gramas de cuidados paliativos” cada um ampliando o objetivo e quando estão diante de pacientes
(Bertachini, 2005). revigorando o outro, e passam a ter idosos, mas em buscar de forma
Alguns questionamentos le- grande potencial no aprimoramen- assertiva por meio dos problemas
vantados pelo médico geriatra ca- to da qualidade dos cuidados (Mor- tratáveis o aprimoramento da qua-
nadense, Dr. S. Lawrence Librach, rison, Meier, 2003). lidade de vida e seu funcionamen-
no último Congresso Mundial de A medicina geriátrica emergiu to, enfatizando que o fundamento
Gerontologia, no Rio de Janeiro a partir do extraordinário aumen- de tudo é o paciente, em sua hu-
(junho de 2005), nos fazem refle- to da expectativa de vida da popu- manidade e dignidade.
tir. Parte de uma afirmação: O lação e continua a crescer na atua- Os cuidados paliativos ironica-
papel da geriatria/gerontologia lidade. Esse significativo aumento mente também são uma “nova”
como especialidade tem se preo- do tempo de vida é uma grande especialidade que surge do reco-
cupado com a pobre avaliação e conquista, atribuída em parte aos nhecimento das conquistas da
falta de tratamento das doenças avanços da civilização, padrão de moderna tecnologia médica. Esta,
nos idosos, bem como com restau- vida, saúde pública e à crescente embora tenha salvado muitas vi-
ração das funções e qualidade de intervenção de cuidados médicos. das, não pode simplesmente des-
cuidado e vida para os idosos. Per- A medicina geriátrica reconhe- considerar a dimensão mortalida-
gunto: “Os que cuidam dos ido- ceu os processos fisiológicos fun- de e finitude humanas. Os pionei-
sos podem reconhecer que a mor- damentais do envelhecimento; ros em cuidados paliativos reco-
te é o resultado mais comum para porém, os médicos especialistas no nhecem a importância das raízes
todos os seus pacientes? A geron- acompanhamento e cuidados de históricas da medicina e enferma-
tologia pode aceitar cuidados pa- pessoas idosas necessitavam ir gem no cuidado dos que estão
liativos de qualidade como uma além do sistema de doença e ór- morrendo, aliviando a dor e o so-
necessidade básica e essencial para gão único, ou seja, superar a abor- frimento, procurando na aborda-
os pacientes?” No Canadá, somen- dagem sob a ótica de uma única gem responder às questões e in-
te 15% dos pacientes podem ter especialidade, para considerar a cluindo a família como uma uni-
acesso a cuidados paliativos e na intervenção a partir de múltiplas dade única de cuidados junto aos
maioria pacientes de câncer. No doenças crônicas e medicações, pacientes em final de vida. Esse
Reino Unido, 50% de todos os além de um status fisiológico alta- objetivo é atualíssimo e tão impor-
pacientes recebem algum tipo de mente variável. Há um quarto de tante hoje quanto o foi no início
cuidados paliativos durante o cur- século, os geriatras freqüente- do século passado.
so de sua doença, mas o números mente afastavam os especialistas, Em suas origens, os cuidados
dos que recebem cuidados palia- argumentando que as tecnologias paliativos enfocavam principal-
tivos em doenças que não sejam invasivas não beneficiariam os mente o objetivo de aprimorar a
o câncer é muito menore. idosos e que os pacientes e fami- qualidade de vida dos pacientes no
E no Brasil? Sabemos que a liares preferiam uma abordagem final de seus dias. Seu foco era a
população brasileira está envelhe- mais conformista de aceitação da qualidade de vida para os poucos
cimento, mas não temos informa- mortalidade. dias ou semanas remanescentes
ções registradas em relação a pro- Esse cenário mudou muito na de vida que um paciente poderia
gramas de cuidados paliativos e contemporaneidade, de tal forma ter, respeitando a dignidade indi-
idosos especificamente. que o papel mais freqüente dos vidual e a humanidade. Na últi-
Para a abordagem dessa ques- geriatras tem sido conversar com ma década, superou-se a perspec-
tão, baseamo-nos nas reflexões de especialistas relutantes ou inter- tiva de que os cuidados paliativos
Cassel, ao introduzir a obra pionei- vencionistas, afirmando que uma somente são moralmente relevan-
ra Cuidados paliativos em geriatria mulher aos 95 anos tem uma boa tes quando “nada mais pode ser
(Geriatric palliative care). Essa espe- chance de se beneficiar de um pro- feito para prolongar a vida”.

e. S. Lawrence Librach, The quest to die with dignity: issues and challenges in end of life care for the elderly. Conferência apresentada no XVIII Congresso Mundial de
Gerontologia, Rio de Janeiro, junho de 2005. Apresentação em PowerPoint.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

A filosofia de cuidados paliati- com a colaboração de uma sele- de envelhecimento avança para os
vos hoje reconhece que existe uma ção de mais de vinte especialistas temas ligados ao cuidado, huma-
transição gradual e a necessidade na área e é estruturada em cinco nização e ética. Assim é que se
de equilíbrio entre as tentativas partes, que enumeraremos a se- abre espaço para questões como:
legítimas de prolongar a vida quan- guir. Também elencamos as ques- O doente idoso terminal: considerações
do se têm chances reais de recu- tões mais relevantes em relação a gerais e cuidados paliativos; Proble-
peração e a gestão paliativa dos sin- essa temática: mas éticos em geriatria; O idoso e a
tomas e aceitação de um processo – O contexto social e cultural do dignidade no processo de morrer (Car-
que não tem mais cura. Isso é envelhecimento e fragilidade (avalian- valho Filho, Papaléo Netto, 2005).
muito verdadeiro no cuidado de do a qualidade de vida e do mor- No XVIII Congresso Mundial de
pacientes em estágios avançados rer nos idosos; O lugar do amor no Gerontologia, realizado no Rio de
de doenças, tais como Alzeimer, cuidado de pessoas com demência Janeiro (26-30/6/2005), pratica-
Parkinson, e assim por diante. avançada; Hidratação e alimenta- mente houve um silêncio total em
Atualmente, mais de 80% dos ção artificial; Idade, custos e cui- relação a essas questões ligadas ao
norte-americanos morrem com dados paliativos, aspectos éticos em final da vida, cuidados paliativos e
mais de 65 anos, e aumenta signifi- cuidados paliativos em geriatria, dor. Somente um workshop sobre
cativamente o número dos que vi- respeitando diversidade); cuidados no final da vida, do qual
vem bem mais de 80 anos, chegan- – Doença e síndrome — aspectos participamosf, somente um semi-
do a um número expressivo de pes- específicos dos cuidados paliativos: A nário sobre dor — embora um dos
soas que celebram seu centenário fragilidade e suas implicações no sintomas mais comuns nos idosos
de vida. A maioria destas não mor- cuidar, doença cardíaca, câncer, seja a dor — e uma conferência
re de uma forma rápida, caracterís- demência e doenças neurode- sobre “a busca do morrer com dig-
tica de um câncer metastático, mas generativas, doença crônico-pul- nidade: questões e desafios no cui-
como conseqüência da acumulação monar e câncer pulmonar; está- dado de final da vida para os
de múltiplas doenças degenerativas, gio final de doença renal e inter- idosos”g. Pergunta-se S. Lawrence
além da crescente fragilidade ine- rupção da diálise; Librach, professor de Cuidados
vitável do processo biológico huma- — Sintomas de estresse em pacien- Paliativos e controle da dor da Uni-
no. Embora essa trajetória seja me- tes idosos: dor, dispnéia, sintomas versidade de Toronto e diretor do
nos previsível, o prognóstico últi- gastrointestinais, fadiga, delírio, Centro de Cuidados Paliativos do
mo permanece muito claro. ansiedade e depressão; Mount Sinai Hospital (Canadá), se
No centro de toda a questão do - Comunicação: planejando o a geriatria ou gerontologia não es-
aumento da “expectativa de vida” cuidado antecipadamente com os tariam tentando negar a morte.
estão o paciente, o clínico e o impe- idosos, comunicação médico-pa- Além desse sinal evidente no maior
rativo de estabelecer uma relação ciente, decidir para os cognitiva- evento mundial da área, que basi-
comunicativa que permita uma mente comprometidos; camente silencia em torno do
parceria significativa num dos mo- – Estruturas de cuidado para os tema, pesquisando artigos no
mentos mais profundos da vida. cronicamente doentes com necessida- Journal Geriatrics dos últimos doze
Cresce muito a responsabilidade do des de cuidados paliativos: Podemos anos, encontrou somente sete ar-
clínico em criar um relacionamen- fazer o sistema de saúde funcio- tigos sobre cuidados paliativos e
to com pacientes e familiares no nar?, cuidados paliativos em ca- cuidados de final de vida e sobre a
sentido da ajudar no enfrentamen- sas de repouso, cuidados em do- morte e o morrer. Na quase totali-
to desse complexo cenário, ouvir micílio para idosos e cuidados pa- dade, são relatórios de casos e edi-
e acolher as expressões de senti- liativos no hospital. toriais. Outra pesquisa realizada
mentos de sofrimento. Esse cui- No Brasil, começamos a ter com artigos do Journal Archives of
dador torna-se um fator-chave em publicações de referência na área, Geriatrics and Gerontology dos últi-
ajudar as pessoas a encontrar um com destaque para a obra Geria- mos dez anos encontrou somente
sentido no final da vida. tria — fundamentos, clínica e terapêu- sete artigos sobre cuidados de fi-
Cuidados paliativos em geriatria tica, em que para além de uma nal de vida, incluindo relatórios de
é uma obra pioneira, que conta abordagem biológica do processo casos, estimativas de sobrevivên-

f. Os temas e os apresentadores desse worshop sobre End of life care foram os seguintes: 1) Palliative care for dementia: making the case — Amitai S. Oberman, MD,
Departament of Geriatrics, Home Hospice in the Valleys, Nazareth — Israel; 2) The ten things everyone should know about pain management in the elderly palliative care
patient, S. Lawrence Librach MD, Professor of Palliative Care, University of Toronto, Canadá; 3) Dysthanasia (futile treatment): Key Ethical Questions, Leo Pessini, Ph.D,
Saint Camillus University Center — São Paulo (SP).
g. S. Lawrence Librach, The quest to die with dignity: issues and challenges in end of life care for the elderly. Apresentação em Powerpoirt.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

cia, mas nenhum artigo especifi- te dolorosas, além de lidar com o muitas dificuldades com o avan-
camente sobre cuidados paliativos estresse emocional associado a to- çar da doença. Más notícias são
ou hospice (Librach, 2005). das essas questões (Paes da Silva, sempre más notícias, mas a ma-
Numa perspectiva integradora, 2004). Exige tempo, compromis- neira como ela é comunicada, e
os cuidados paliativos e os valores so e desejo sincero de ouvir e com- quanto os pacientes se sentirão
fundamentais da geriatria coinci- preender as preocupações do ou- apoiados, aceitos e compreendi-
dem: o paciente está no centro dos tro. Trata-se de “prover resposta” dos, terá um impacto significati-
cuidados, a perspectiva é de uma quando não existem respostas e, vo em sua habilidade de viver
abordagem interdisciplinar, holísti- em grande parte, de “simplesmen- nesta nova realidade.
ca e compreensiva, além de pacien- te” estar com a pessoa onde está e Logo após o comunicado de
te e família serem vistos como uma ser uma presença empática com uma má notícia, informações adi-
única unidade de cuidados. Uma ela na sua dor. cionais em geral não são ouvidas;
prioridade é garantir na medida do A comunicação no âmbito dos portanto, espaçar a informação,
possível a independência funcional cuidados de saúde não é um mero dando aos pacientes e famílias o
e qualidade de vida, avaliação re- “opcional”, um “extra”, mas é um tempo necessário para digeri-la, é
gular e formal que assegure a iden- componente vital, inerente e ne- fundamental. Aos pacientes deve-
tificação e tratamento das intercor- cessário, razão pela qual no currí- se oferecer uma informação a res-
rências no momento certo. Ambas culo de formação dos profissionais peito de sua doença, tratamento,
as especialidades, Medicina Geriá- de saúde cada vez mais se inclui o opções e prognósticos, de uma
trica e Cuidados Paliativos, vão aprofundamento de questões re- maneira sensível, que comunique
muito além de proporcionar cuida- lacionadas à comunicação. A co- apoio, honestidade e calor huma-
dos somente num local específico. municação não envolve somente no. Em termos de autonomia e
O cuidado é prestado onde o pa- os cuidados dos profissionais da respeito pela escolha do paciente,
ciente se encontra, seja em sua casa, saúde e paciente, mas também a é importante que estes tenham a
no hospital ou na casa de repouso, relação entre os profissionais da informação necessária por meio
em qualquer estágio da doença e saúde e família, pacientes e sua da qual possam fazer uma esco-
qualquer que seja o diagnóstico. “O família, entre outros âmbitos lha informada. Diante de dificul-
objetivo é prestar cuidado certo, (Bertachini, Gonçalves, 2002)h. dades cognitivas é importante que
para o paciente certo no momento os profissionais da saúde avaliem
Comunicação entre pacientes e regularmente até que nível existe
certo” (p. 12).
profissionais da saúde compreensão do que é comunica-
Os pacientes encontrarão di- do e busquem quando da mani-
Comunicação entre versos profissionais da saúde du- festação de impedimentos alterna-
pacientes, familiares e rante o curso de uma doença típi- tivas viáveis (Kovács, 2004).
profissionais da saúde ca. Cada encontro provê uma
oportunidade de comunicação. Comunicação entre paciente
A habilidade para estabelecer Muito do que comunicamos é por e familiares
uma boa comunicação é parte es- meio da linguagem, mas muito Em cuidados paliativos, pa-
sencial em todas as áreas dos cui- também comunicamos pela lin- cientes e familiares com muita fre-
dados de saúde, não exclusiva- guagem não-verbal. Em geral, os qüência vivem sob intenso estres-
mente em cuidados paliativos pacientes exigirão honestidade, se, o que faz com que não raro
(Council of Europe, 2003). A co- precisão, acessibilidade e informa- exista pouca comunicação entre
municação envolve muito mais ção consistente em relação à sua as várias partes envolvidas, geran-
que o processo de simplesmente doença e suas implicações. Com do espaços para desentendimen-
dar uma informação. É um pro- muita freqüência, profissionais e to e ressentimento. As pessoas
cesso que envolve muitas pessoas, familiares sentirão a necessidade sentem que estão carregando in-
em que os objetivos incluem tro- de ocultar ao paciente a verdade justamente o peso de cuidar. Ve-
ca de informação, compreensão por causa do desejo de manter a lhas rivalidades e ciúmes podem
mútua e apoio, enfrentamento de esperança, estratégia que, embo- vir à tona, e o processo pode rapi-
questões difíceis e freqüentemen- ra bem-intencionada, pode trazer damente escapar do controle.

h. Ver especialmente a seção 4, exclusiva sobre comunicação, que apresenta o seguinte conteúdo: Section 4: Communication and palliative medicine. 4.1.
Communication with the patient and family in palliative medicine (Lesley Fallowfield), p. 101-107; 4.2. Communication with professionals (David Jeffrey), p.
107-112); 4.3. Communication with the public, politicians, and the media (Kenneth Caman), p. 112-115.

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

Os profissionais de saúde têm tem diferenças de opiniões em re- dido sentido — embora em tem-
o dever de cuidar, identificar es- lação às estratégias apropriadas de pos de crise as energias espirituais
sas dinâmicas e responder a essa tratamento. Em tais circunstâncias, necessitem ser redirecionadas para
realidade. Ao menos podem “mo- um estudo de caso pode proporcio- a vida. “Espiritualidade” é um ter-
delar” o fato de modo que a in- nar a oportunidade para mútuo mo muito mais amplo que “reli-
formação seja partilhada e que as entendimento, com a expectativa gião”. Este deriva da palavra lati-
pessoas manifestem “sincerida- de se chegar a um consenso e coe- na religare, significando “religar”,
de” com elas próprias e com os rência de ações para com o pacien- e diz respeito a determinadas tra-
outros, a despeito de seus senti- te. É aconselhável criar uma opor- dições espirituais, enquanto ga-
mentos e emoções. tunidade para troca aberta de opi- nham expressão concreta em ritos
Nesse sentido, merecem aten- niões, preferencialmente com um e celebrações codificadas, cultural
ção especial as necessidades das facilitador externo, ou seja, não e historicamentei.
crianças e adolescentes. Em situa- pertencente à instituição local. Existem muitas definições de
ções familiares muito tensas, crian- Sendo assim, os profissionais espiritualidade, mas nenhuma de-
ças são por vezes excluídas do pro- da saúde necessitam cada vez mais las esgota a riqueza de um con-
cesso numa tentativa bem-inten- de uma formação educativa em ceito tão abrangente e profundo,
cionada de “protegê-las”. Do mes- relação aos dilemas éticos vincu- principalmente no âmbito da saú-
mo modo que os adultos, as crian- lados aos cuidados dos pacientes de, quando na atualidade come-
ças necessitam também de uma na fase final de suas vidas, que çam a surgir muitos escritos so-
oportunidade para serem ouvidas lhes possibilite uma visão alargada bre a incidência da fé, da religião,
e compreendidas e integradas no dessas questões para discuti-las da espiritualidade no processo de
coração da família, o quanto for adequadamente com os pacientes cura, recuperação da saúde e
possível. Enquanto necessitadas de e familiares, quando necessário. bem-estar humano e no final da
apoio e explicação, elas podem ser Com muita freqüência, dile- vida (Dunne, 2001). Bryson, a
também fonte de muito conforto mas éticos surgem no tratamento partir de estudo sobre espirituali-
e apoio a seus pais e outras pes- paliativo, quando por exemplo o dade na perspectiva da enferma-
soas adultas (Kovács, 2004). tratamento da dor com altas do- gem, destaca cinco temas centrais
sagens de morfina pode ter como que permeiam a definição de es-
Comunicação entre os profissionais conseqüência a abreviação ou o piritualidade: 1) tendência inata
da saúde prolongamento da vida, como em direção a um sentido; 2) a di-
Profissionais de diferentes espe- efeito indesejado, ou quando um mensão espiritual expressa-se no
cialidades podem ser envolvidos no paciente insistentemente deseja âmbito temporal; 3) a espirituali-
cuidado de um único paciente; por morrer, mesmo no caso de ainda dade é uma dimensão transcen-
conseqüência, é absolutamente existirem opções paliativas. dente; 4) é um movimento para
necessário que o local de cuidados se conseguir unidade, verdade e
facilite o processo de troca de in- Espiritualidade em bondade (compaixão); e 5) a es-
formações de forma rápida, acura- Cuidados Paliativos piritualidade expressa-se em esfe-
da, destacando o que realmente é ras, ou seja, no nível pessoal, com
relevante. Além das questões liga- A palavra “espírito” deriva do outras pessoas, no meio ambien-
das às limitações de tempo, proce- hebraico ruah, que significa “so- te natural e na ordem não-visível.
dimentos comuns de comunicação pro”. Sopro está associado com Nesse sentido, espiritualidade é
colaboram também na definição de vida; assim, literalmente espiritua- definida como “uma tendência
papéis, limites e nas diferentes con- lidade é “o sopro de vida”. De um inata em direção a Deus ou a uma
cepções de cuidado. ponto de vista existencial, espíri- Força Superior”. Ela surge de nos-
Como em família, a questão não to é o que nos move para fora de sa relação entre nossa busca por
é simplesmente a mera troca de in- nós mesmos para encontrar sen- sentido e transcendência (Deus ou
formação; antes, é necessário com- tido de vida. Contudo, a dimen- uma Força Superior). A existên-
preender o ponto de vista do ou- são espírito continua a existir em cia de uma dimensão transcen-
tro, particularmente quando exis- nós quando a vida parece ter per- dente num relacionamento dá o

i. Cf. Wald, F. S. (ed.). In quest of the spiritual component of care for the terminally ill. Proceedings of a colloquium. May 3-4, 1996, Yale University School of Nursing. Trata-
se de textos de autores que apresentaram nesse simpósio. Destacamos, entre outros: In search of the spiritual component of hospice care (Florence S. Wald); The modern
hospice (Dame Cicely Saunders); The role of the interdisciplinary team in providing spiritual care: an attitudinal study of hospice workers (Patrice O´Connor and Morajorie P.
Kaplan); The arts as an avenue to the spirit (Sally Bailey); Spiritual help from judaic and psychiatric perspectives (Samuel C. Klagsbrun); Spirituality for whom (Inge B.
Corless); Hospice care and faith: a christian perspective (Carleton J. Sweetser); Social action as spiritual component: the relevance of Nicaragua (Morris A. Wessel).

504 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 4 out./dez. 2005

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

sentido de pertença a algo maior com essa força ou espírito que é ter realizado todo o potencial que
que o próprio ser humano. Per- componente essencial da expe- possuímos. Outros de seus concei-
mite-nos sair de nós mesmos em riência espiritual, vinculado com tos fundamentais são: o conceito
tempos de crise, o que justifica o sentido. de vida como um dom, a idéia de
na hierarquia das necessidades O sentido ou julgamento de que temos a responsabilidade de
de Maslow, como o ponto culmi- que a própria vida faz sentido en- viver da maneira mais plena pos-
nante, a busca de transcendência volve a convicção de que se está sível e a noção de que o sentido,
(Bryson, 2004). realizando um papel e um propó- o significado ocorre no contexto
A atenção às necessidades físi- sito inalienáveis na vida, que é um da pessoa, da família, do seu povo.
cas, psicológicas e espirituais dos dom. O componente “fé” da espi- Segundo John Hardwig, “espi-
pacientes no final da vida tem sido ritualidade é um conceito o mais ritual” diz respeito à preocupação
identificada como prioridade, tanto das vezes associado à religião e às sobre o significado fundamental e
por organizações profissionais mé- crenças religiosas, ao passo que o os valores que dão sentido à vida
dicas como pelos próprios pacien- componente “sentido” é um con- humana. Não implica necessaria-
tes que enfrentam uma determina- ceito mais universal, que existe mente a crença num ser superior
da doença crônico-degenerativa independentemente de as pessoas ou numa vida após a morte. Espi-
ou estão no final de sua jornada se identificarem com determina- ritual não significa religioso. Nes-
de vida. Seguimos aqui de perto o da religião. se sentido, os que se dizem ateus
pensamento de William Breitbart, Victor Frankl, psiquiatra que ou agnósticos têm preocupações
que trabalha no Memorial Sloan- sobreviveu ao campo de concen- espirituais como qualquer outra
Kettering Cancer Center, em Nova tração de Auschwitz, e seus con- pessoa. Na verdade, esse sentido
York (Breitbart, 2005). Num re- ceitos de logoterapia e psicotera- do conceito nos obriga a pergun-
cente relatório denominado: Mor- pia baseada no sentido da vida nos tar como efetivamente as religiões
te próxima: melhorar os cuidados no iluminam nessa questão de espi- organizadas lidam com as neces-
final da vida (1997), o Instituto de ritualidade e sentido da vida. Al- sidades espirituais de seus mem-
Medicina dos Estados Unidos iden- guns de seus conceitos básicos são: bros. Harding se posiciona de for-
tificou as seguintes dimensões de 1) sentido da vida — a vida tem ma provocativa diante de seu pró-
excelência dos cuidados de final de sentido e nunca cessa de ter; mes- prio fim de vida: “tenho absoluta
vida: qualidade geral de vida; o mo no último momento, ele pode certeza de que as questões funda-
bem-estar e o funcionamentos fí- sofrer alterações, mas nunca ces- mentais para mim não serão se
sicos; o bem-estar e o funciona- sa; 2) desejo de encontrar sentido estão me colocando um respirador
mento psicossociais; o bem-estar — o desejo de descobrir sentido artificial, tentando uma ressus-
espiritual; a percepção que o pa- na existência humana é um ins- citação cardiorrespiratória quan-
ciente tem dos cuidados que lhe tinto primário e uma motivação do meu coração pára ou se estou
são proporcionados; e o bem-estar básica do comportamento huma- recebendo alimentação artificial.
e o funcionamento dos familiares no; 3) liberdade de vontade — ter Embora cada uma dessas medidas
(Breitbart, 2004). liberdade de descobrir significado possa ser importante, tenho quase
Puchalsky e Romer (2000) de- na existência e tomar uma atitu- certeza de que cada uma elas será
finem “espiritualidade como aqui- de perante o sofrimento; 4) as três bastante periférica. Minha preo-
lo que permite que uma pessoa principais fontes de sentido da cupação fundamental será como
vivencie um sentido transcenden- vida são: a) criatividade (o traba- devo encarar a minha morte, co-
te na vida. Trata-se de uma cons- lho, as boas ações, dedicação às mo encerrar a minha vida e qual
trução que envolve “fé” e “senti- pessoas); b) experiência (a arte, a será a melhor forma de ajudar mi-
do” (Puchalski, Romer, 2000). Fé natureza, o humor, o amor, rela- nha família a prosseguir sem mim.
é crer numa força transcendental cionamentos, papéis que desem- Um respirador artificial não me
superior; não se identifica neces- penhamos na vida); c) atitude ajudará a fazer essas coisas, a me-
sariamente com Deus, nem se vin- (atitude que se tem diante do so- nos que tudo o que eu precise para
cula necessariamente com a par- frimento e dos problemas existen- isso, seja um pouco mais de tem-
ticipação em rituais ou crenças de ciais) (Breitbart, 2004). po para terminar minha tarefa”
determinada religião. Essa fé pode Frankl dizia que existem três (Hardwig, 2000).
identificar tal força como externa problemas existenciais inevitáveis: O Canadá recentemente criou
à psique humana ou internaliza- o sofrimento, a morte e a culpa, um Comitê Nacional com o objeti-
da. É o relacionamento e ligação isto é, a culpa existencial por não vo de “desenvolver um guia para

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

cuidados de final de vida para ido- pacientes e seus familiares, tanto é rindo ao que dá um sentido trans-
sos”. O documento que resultou que a abordagem global fundamen- cendente e que pode ou não in-
desse trabalho coordenado por Ro- ta-se no entendimento de que a cluir Deus ou religião. A espiritua-
ry Fisher (Universidade de Toron- pessoa é uma entidade indivisível, lidade diz respeito a tudo que en-
to) e Margaret M. Ross (Universi- um ser físico e espiritual. A busca volve a existência da uma pessoa
dade de Ottawa) dedica à espiri- por sentido, por algo maior em que como pessoa, com tudo o que isso
tualidade uma seção inteira, o capí- confiar, tem sido expressa de mui- implica em termos de capacidade
tulo 7 (p. 135-150)j. Vale destacar tas maneiras, diretas e indiretas, em de nós como seres humanos de
o que é dito na conclusão desse ca- metáforas ou em silêncio, em ges- autotranscendência, relaciona-
pítulo: “No final, a busca por um tos ou símbolos ou, talvez mais que mentos, amor, desejo e criativida-
sentido diante de uma doença tudo, numa interação terapêutica de, altruísmo, auto-sacrifício, fé e
ameaçadora de vida e subseqüente e numa nova experiência de criati- crença. É a dinâmica de integra-
perda é algo crítico. Alguns idosos vidade. Quem trabalha em cuida- ção da pessoa em relação à sua
terão suas preocupações fortaleci- dos paliativos é também desafiado identidade única e original, e a
das e reafirmadas. Outros podem a enfrentar essa dimensão em re- partir dessa perspectiva segue-se
ser incapazes de encontrar sentido, lação a si próprio. Muitos vivem que todas as pessoas têm necessi-
levando para um duro sentimento numa sociedade secularizada e não dades espirituais. Tais necessida-
de desespero. Tal resultado nos têm uma linguagem religiosa; mes- des e preocupações adquirem
lembra que uma espiritualidade mo assim, é possível para um pro- uma importância muito maior
não-desenvolvida pode ser um fa- fissional da saúde colaborar junto quando as pessoas têm de enfren-
tor crítico quando lutamos com ao paciente nessa busca de senti- tar a própria morte (Association
uma doença ameaçadora de vida. do. “Contudo, se nos aproximamos of Hospice Palliative Care Cha-
O não ter refletido sobre os misté- para além de nossa capacidade pro- plaino, 200-).
rios da vida, pelo menos ainda que fissional, com nossa comum huma-
num nível bem básico, deixa a pes- nidade vulnerável, pode ser que À guisa de conclusão
soa despreparada para confrontar não vá haver necessidade de pala-
a morte. Mas para outras esse mo- vras de nossa parte, mas somente Os cuidados paliativos se cons-
mento é um evento transformador respeito profundo e um ouvir aten- tituem hoje numa importante
que lhes oferece um novo sentido to” (Saunders, 2005). questão de saúde pública. Lida-se
para compreender a vida, doenças A Associação de Capelães de com o sofrimento, a dignidade da
e morte. Essas redescobertas, ou Hospice e Cuidados Paliativos do pessoa, o cuidado das necessidades
reconstituição de sentidos, permi- Reino Unido diz sobre a natureza humanas e a qualidade de vida das
tem aos idosos, mesmo no meio de e o objetivo de cuidados espiri- pessoas portadoras de uma doen-
uma crise devastadora e perante tuais: Os cuidados espirituais sem- ça crônico-degenerativa, ou que
uma consciência alarmante da pró- pre estiveram no centro da filo- estão na fase final de vida. Preo-
pria mortalidade, experimentar sofia e prática dos cuidados palia- cupa-se também com o apoio às
novas descobertas, encontrar reno- tivos. Os cuidados paliativos pro- famílias e amigos como uma uni-
vadas forças e conquistar cresci- curam implementar uma aborda- dade de cuidados, diante do sofri-
mento pessoal” (A Guide to End- gem holística no cuidado de pes- mento potencial ou iminente de
of-life Care for Seniors, 199-). soas com doenças ameaçadoras de perda de entes queridos, bem
Oferecer cuidados paliativos vida e integrar as dimensões físi- como no período do luto. Nosso
com qualidade significa implemen- ca, social, psicossocial e espiritual, sistema de saúde é negligente em
tar ações inovadoras que evitem o de modo que os pacientes e cui- relação a essas necessidades huma-
sofrimento físico, espiritual, a des- dadores possam enfrentar a expe- nas. O próximo estágio será a in-
moralização e a perda de sentido, riência do morrer de forma mais trodução dos cuidados paliativos
tão comuns no final da vida. A de- amadurecida possível. No mundo no curso principal da medicina e
finição da OMS de cuidados palia- ocidental de hoje, a dimensão es- em programas de educação na área
tivos evidencia uma preocupação piritual do ser humano é ampla- da saúde, quer para os profissio-
com as necessidades espirituais dos mente interpretada como se refe- nais ou para o público em geral.

j. A guide to end-of-life care for seniors. Manual de cuidados para idosos no final da vida, trabalho coordenado por especialistas da Universidade de Toronto e da
Universidade de Ottawa (Canadá), publicado no ano 2000. No intuito de estimular que surja também no nosso país algo nesse sentido para educar e conscientizar
profissionais da saúde, familiares e população idosa, a título de inspiração destacamos as questões abordadas nesse manual de cuidados para idosos: Toward optimal
care (cap. I); Living and dying well in later life (cap. 2); Maintaining comfort (cap. 3); Ethical issues (cap. 4); Delivery of end-of-life care (cap. 5); Care for the cregiver
(cap. 6); Spirituality (cap. 7); The cultural context for pallitive and end-of-life for seniors (cap. 8); aboriginal issues (cap. 9); Continuing challenges (cap. 10).

506 O MUNDO DA SAÚDE — São Paulo, ano 29 v. 29 n. 4 out./dez. 2005

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

Cicely Saunders (199-) afirma Com relação ao valor da vida. João Paulo II, pouco antes de
que isso exige “mudanças de ati- À medida que as pessoas se apro- sua própria morte (2/4/2005), num
tudes e educação de todos os pro- ximam do final da vida, elas se discurso aos participantes da XIX
fissionais envolvidos com pacien- perguntam se suas vidas tiveram Conferência Internacional promo-
tes que têm uma doença crôni- algum valor para os outros, para vida e organizada pelo Pontifício
co-degenerativa. Isso exige com- a comunidade, e se elas ainda têm Conselho da Pastoral da Saúde so-
promisso humano antes que me- algum valor como pessoas, prin- bre Cuidados Paliativos (11-13/11/
dicações e intervenções caríssi- cipalmente quando estão inca- 2004) destacou: “... sobretudo na
mas e deve ser uma preocupação pacitadas por uma determinada fase da enfermidade em que já não
de todos os governos”. doença fatal, dependentes dos ou- é mais possível realizar terapias pro-
Os cuidados paliativos visam tros, e sendo despesa em termos porcionadas e eficazes, impõe-se a
aliviar, especialmente nos pacien- de cuidado. Pesquisas nos Estados obrigação de evitar toda forma de
tes portadores de doenças crônico- Unidos mostraram que a perda da obstinação ou terapêutica. Tornam-
degenerativas ou em fase terminal, independência e o medo de se tor- se necessários os ‘cuidados palia-
uma vasta gama de sintomas de nar um peso para os outros, antes tivos que, como afirma a Encíclica
sofrimento de ordem física, psíqui- que a dor física, freqüentemente Evangelium Vitae, destinam-se a tor-
ca, mental e espiritual. Por isso, são as motivações primeiras que nar mais suportável o sofrimento
exige-se a ação de uma equipe levam as pessoas a solicitar o sui- na fase final da enfermidade e, ao
multi e interdisciplinar de especia- cídio assistido ou eutanásia. Res- mesmo tempo, assegurar ao pacien-
listas com competências específicas peitando-se a própria avaliação do te um acompanhamento humano
em termos de cuidados, em sinto- paciente sobre o valor de sua vida, adequado’” (n. 65) (Doletium Ho-
nia entre si, para cuidar (Pessini, enquanto ainda conscientes dos minum, 2004).
2005). efeitos da depressão ou isolamen- O próprio papa no momento
À medida que os cuidados pa- to social, sem dúvida estamos final de sua vida recusou voltar
liativos se desenvolvem, cresce diante um dos mais profundos de- para o hospital, a Policlínica Ge-
um reconhecimento de que com safios clínicos e éticos em cuida- melli de Roma, optando por per-
as drogas e técnicas atualmente dos paliativos. manecer seus últimos momentos
disponíveis e com a crescente ha- A terceira preocupação é o sen- em seus próprios aposentos. Teste-
bilidade em utilizá-las é relativa- tido da vida. Somente quando seu munho claro de recusa da distaná-
mente fácil proporcionar confor- sofrimento físico foi aliviado e suas sia e aceitação sábia da finitude e
to físico ao paciente. No entanto, famílias cuidam delas, é que as mortalidade humana.
mesmo com isso, a pessoa pode pessoas em fase terminal começam O desafio ético no contexto de
estar sentindo medo, solidão ou a fazer perguntas existenciais. países em desenvolvimento, como
com baixa auto-estima. Os que Embora tenha diminuído no mun- o Brasil, é considerar a questão da
trabalham no campo percebem do ocidental secularizado o núme- dignidade no adeus à vida, para
agora que, para além da gestão dos ro de pessoas que têm uma fé reli- além da dimensão físico-biológi-
sintomas físicos, a filosofia dos cui- giosa profunda que dê significado ca e para além da perspectiva mé-
dados paliativos se preocupa fun- a suas vidas, setenta e cinco por dico-hospitalar, ampliando o hori-
damentalmente com a qualidade, cento das pessoas que estão na fase zonte e integrando a dimensão
valor e sentido de vida. final expressam o desejo de con- sócio-relacional. Existe muito que
Em termos de qualidade de vida, versar sobre o sentido da vida, so- fazer no sentido de levar a socie-
muitos são os instrumentos de ava- frimento e morte, e elas podem fi- dade a compreender que o morrer
liação específicos da área de cui- car desapontadas caso ninguém se com dignidade é uma decorrência
dados paliativos, que agora estão interesse em ajudá-las. Um servi- do viver dignamente, e não me-
disponíveis para todos os profissio- ço de pastoral atento a essas ne- ramente sobrevivência sofrida. Se
nais da saúde. Pesquisas confir- cessidades será de grande valia na não existem condições de vida
mam o que já de longe se suspei- ajuda que pode ser prestada para digna, no fim do processo garan-
tava, que os pacientes que não são resgatar o sentido da vida das pes- tiríamos uma morte digna? Antes
informados sentem mais sofrimen- soas. Não é à toa que o cuidado de existir um direito à morte hu-
to físico e psicossocial e falam de das necessidades psicossociais e mana, há que se ressaltar o direi-
um nível inferior de qualidade de espirituais está no centro da filo- to de que a vida já existente possa
vida, em relação aos que são infor- sofia dos cuidados paliativos ter condições de ser conservada,
mados segundo sua vontade. (Doyle, Bernard, 1971). preservada e que desabroche ple-

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NOVAS PERSPECTIVAS EM CUIDADOS PALIATIVOS:
ÉTICA, GERIATRIA, GERONTOLOGIA, COMUNICAÇÃO E ESPIRITUALIDADE

namente. Chamaríamos a isso di- peregrinos. Não podemos passiva- tos: de um lado, a convicção pro-
reito à saúde. É chocante e até irô- mente aceitar a morte como con- funda de não abreviar a vida; de
nico constatar situações em que a seqüência do descaso pela vida, outro, a visão de não prolongar a
mesma sociedade que negou o causado pela exclusão, violência, agonia, o sofrimento e a morte. Ao
pão para o ser humano viver ofe- acidentes e pobreza. Nasce uma não abreviar a vida e ao não pro-
rece-lhe a mais alta tecnologia pa- sabedoria a partir da reflexão, acei- longar, inutilmente, situa-se o ama-
ra “bem morrer!” tação e compromisso com o cui- rás... Como fomos ajudados para
Não somos doentes nem víti- dado da vida humana no adeus nascer, também precisamos ser aju-
mas da morte. É saudável sermos final. E isso entre dois limites opos- dados no momento do adeus.

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Recebido em 21 de março de 2005


Aprovado em 12 de abril de 2005

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