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EVOLUÇÃO E CRÍTICA
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Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
Centro de Ciências Rurais
Departamento de Educação Agrícola e Extensão Rural
CEP: 97105-900 Santa Maria/RS Brasil
Resumo
Introdução
privilegiado neste paradigma sociológico, assim como este mesmo paradigma é extremamente
influente nas teorias organizacionais propriamente ditas.
Neste artigo apresenta-se uma tese básica. Em parte, se reconhece o funcionalismo
como uma abordagem útil e ainda promissora nas ciências sociais. Por outro lado, se têm uma
visão crítica em relação a alguns métodos do funcionalismo, sobretudo a partir da Teoria Geral
dos Sistemas, pela excessiva utilização de analogias entre os sistemas sociais e os sistemas
naturais. Invariavelmente, todos os conceitos novos que são propostos para as teorias sociais
inspirados nas teorias dos sistemas e no ‘paradigma da complexidade’ (homeostase, retroação,
entropia, auto-produção, organização, autopoiesis, caos, etc.) são oriundos de descobertas na
física, na química, na biologia e na termodinâmica. Considera-se, assim, que a crescente
utilização de conceitos e leis dos sistemas naturais para explicar fenômenos sociais empobrece o
próprio funcionalismo, e desvia a atenção dos fenômenos sociais como tais para tentar adequá-los
a estes conceitos e leis. De certa forma, portanto, o funcionalismo estaria regredindo no
reconhecimento da singularidade dos sistemas sociais e das forças que determinam a sua
dinâmica, para refugiar-se em conceitos alheios à realidade do mundo social, e que pouco lhe
acrescentam em conhecimento.
de todo As Regras do Método Sociológico, provém quase que exclusivamente de analogias feitas
com os sistemas orgânicos, com a relação dos órgãos em um organismo, e com os conceitos de
saúde e doença de tal organismo. A distinção de Durkheim acerca do normal e do patológico
permite identificar nele os elementos do positivismo e do funcionalismo sistêmico. Embora
durante toda a exposição de seu método Durkheim relute em caracterizar como estado ‘normal’
aquilo que é útil ou funcional, ele acaba caindo em uma armadilha em que não consegue
estabelecer o caráter de normalidade fora dos conceitos de funcionalidade e utilidade.
Contrariando alguns pré-funcionalistas como Spencer, para Durkheim “mostrar em que um fato é
útil não é explicar como ele surgiu nem é explicar como ele é o que é” (idem, p.92); porém, mais
adiante ele completa, “entretanto, se a utilidade do fato não é aquilo que o faz existir, em geral é
preciso que ele seja útil para poder se manter” (idem, p.99).
Durkhein, então, opta por considerar como normal tudo aquilo que está adaptado ao
meio, e que se encontra com certa generalidade, da mesma forma que considera como patológico
aquilo que perturba a adaptação ao meio e prejudica a estabilidade do sistema. Interessante,
porém, é observar que esta adaptação ou não ao meio é exatamente o que Robert Merton mais
adiante chamou de ‘funcional’ ou ‘disfuncional’, o que demonstra ser essencialmente
funcionalista o conceito de ‘normal’ e ‘patológico’ de Durkheim, mesmo que ele não o quisesse.
Assim, como foi dito acima, apesar de não atribuir diretamente à função ou à utilidade o estado
normal, Durkheim não consegue se livrar das armadilhas do funcionalismo sistêmico que as
analogias com os sistemas naturais, recorrentes em seu trabalho, tendem a armar para ele.
Após Durkheim, o funcionalismo sistêmico despontou explicitamente como uma
abordagem dominante nas teorias sociais, e vários autores encarregaram-se de colocar cada pedra
na sua construção. Dois dos principais fundadores da antropologia contemporânea, Bronisllaw
Malinowski e Radcliffe-Brow, trabalharam e desenvolveram os pressupostos funcionalistas.
Malinowski é quem primeiramente põe a prova o funcionalismo. A sua mais importante
contribuição funcionalista foi definir a ‘função’ a partir da satisfação de uma necessidade.
Segundo ele, “a função significa sempre a satisfação de uma necessidade, desde a simples ação
de comer até a execução sacramental, em que o fato de receber a comunhão se inscreve em todo
um sistema de crenças, determinadas pela necessidade cultural...” (Malinowski, 1977, p.155).
Assim, a função da família seria a de alimentar a comunidade de cidadãos, a função da família
ampliada seria de permitir a melhor exploração dos recursos, o aumento da influência política, e
assim por diante.
Radcliffe-Brow, por sua vez, em seu livro intitulado Uma Ciência Natural da
Sociedade , adiciona o conceito de coe rência funcional, que designaria a interdependência das
partes e as ligações recíprocas em um sistema social. Assim, o autor introduz na idéia de função
um conceito essencialmente sistêmico, que salienta a inter-relação entre os diferentes elementos,
e o fato das funções operarem em consonância umas com as outras. (Radcliffe-Brow, 1977).
Mas, a medida em que nos aproximamos de Parsons, sem dúvida alguma o centro do
desenvolvimento teórico funcionalista na sociologia, o paradigma sistêmico funcionalista passa a
receber adições mais significativas e a conformar uma teoria de alcance mais geral. Robert
Merton, um dos mais importantes funcionalistas depois de Parsons, tenta formular, na verdade, o
esboço de tal paradigma. Segundo Birnbaum e Chazel (1977), Merton não apresenta
propriamente uma teoria, mas um método interpretativo a seguir, um método de como e o que
observar. Para estes autores, o trabalho apresentado por Merton é um paradigma formal, ou seja,
um contexto vazio que deve ser essencialmente apreciado, dentre outras coisas, em função de seu
poder eurístico.
Do ponto de vista do recorte que se propôs neste trabalho, duas questões colocadas
por Mertom chamam a atenção: a necessidade de explicitar a unidade servida pela função, e a
distinção entre função manifesta e função latente. Com relação à primeira questão, ele observou
que a sociedade global não é a única escala possível para uma aproximação funcional, razão pela
qual se deve definir qual é a unidade servida pela função. Em razão disto, é necessário examinar
uma gama de unidades afetadas por um elemento dado, quais sejam, indivíduos que ocupam
diversos status, grupos, sociedades globais, sistemas culturais, etc. Enfim, Merton reconhecia as
dificuldades e as limitações que a análise das funções em uma sociedade continha, dado que
elementos poderiam ser funcionais para certos indivíduos e para certos agrupamentos, e
disfuncionais para outros. Na verdade, ele entendia que o funcionalismo até então incorria em
dois problemas principais, de um lado tendia a limitar as análises apenas às contribuições
positivas (funcionais) dos elementos para o sistema social ou cultural a que pertencia, e de outro
tendia a confundir a categoria ‘motivo’ com a categoria ‘função’.
Em razão disto, Merton procurou deter-se ma is no conceito de função e nas suas
peculiaridades. Para ele as funções são as conseqüências observadas que contribuem para a
Parsons implica também uma noção de estabilidade, algo que tende a manter-se (manter a
estrutura e os processos); isto não implica que Parsons não tenha sido sensível à mudança no
sistema, porém, esta não era considerada mais importante que a estabilidade.
Desta forma, a noção de sistema de Parsons implica basicamente em duas condições
fundamentais: a primeira delas é a existência de uma estrutura, qual seja, aquelas modalidades de
organização do sistema e de seus elementos que constituem componentes relativamente estáveis e
que podem ser utilizadas como referências de análise do sistema; a segunda é a existência de
funções, que significa que para que o sistema seja estável e tenda a se manter, determinadas
necessidades elementares devem ser supridas. Por fim, um sistema é também constituído de
processos internos do sistema, que representam as suas atividades, mudanças e evolução que não
são produzidas ao acaso mas que obedecem a regras estruturais e funcionais.
A estrutura seria composta de quatro elementos básicos: o papel (unidade conceitual
do sistema social, o papel é um complexo de condutas de um indivíduo regulado de maneira
normativa); os valores (modelos compartilhados de cultura normativa); a norma (diferentemente
do valor, que representa componentes normativos compartilhados, a norma representa o
componente específico de um determinado papel); e a coletividade (sistema formado pela
interação dos participantes, na medida em que ele compartilha uma cultura normativa comum e
se distingue de outros sistemas pela participação específica dos atores).
De outro lado, o sistema teria uma série de necessidades a serem atendidas para que
se mantivesse estável, que representariam as funções. Parsons descreveu basicamente quatro
imperativos funcionais de um sistema social: a) função de manutenção dos modelos (refere-se à
manutenção da estabilidade dos modelos de cultura institucionalizada definidores da estrutura do
sistema); b) função de realização dos fins (diz respeito à realização do sistema de finalidades de
um sistema social, e relaciona-se com o sistema de personalidade dos indivíduos); c) função de
adaptação (diz respeito à contribuição dos recursos necessários à realização dos fins); e d) função
de integração (diz respeito ao ajustamento mútuo das unidades ou subsistemas, do ponto de vista
das suas contribuições para o efetivo funcionamento do sistema como um todo).
Assim, com a descrição dos sistemas que formam o sistema de ação social, com
descrição da sua estrutura e de suas funções, Parsons adota uma postura claramente funcionalista,
ao mesmo tempo em que leva ao limite a abordagem sistêmica ao nível de uma teoria sociológica
geral. Por esta razão, ele é figura central no funcionalismo e seminal na teorização sistêmica da
sociologia 1 , assim como é considerado um dos precursores da Teoria Geral dos Sistemas.
A Teoria Geral dos Sistemas (TGS) foi desenvolvida pelo biólogo alemão Ludwig
Von Bertalanffy, e sintetizada em 1968 em uma influente obra sua, de mesmo nome (apesar de
várias publicações do autor sobre a teoria serem encontradas desde 1950). A TGS implicou em
um ponto de inflexão no funcionalismo sociológico, e a partir dela pensadores contemporâneos,
como Niklas Luhmann, desenvolveram abordagens sociais que se inserem neste arcabouço
teórico, preocupando-se menos com as funções e mais com o sistema em si. A TGS, como o
próprio nome diz, é uma teoria geral, que pretende ser aplicável a qualquer sistema, seja ele
composto de pessoas, órgãos, pensamentos, ou qualquer outro elemento. Face a isto, a TGS passa
a ter uma influência crescente em diferentes campos da ciência, passando pela administração,
pela economia com as abordagens evolucionárias, pela teoria do desenvolvimento rural com a
teoria dos sistemas agrários, pela psicologia com a Gestalthterapia, e assim por diante em todas as
ciências.
Um exemplo claro da teoria sociológica sistêmica que surge juntamente com a TGS,
é o livro de Pitirin Sorokin intitulado Sociological Theories of Today (a tradução em português
chama-se Novas Teorias Sociológicas), de 1967 (quase simultâneo à TGS de Bertalanffy). O livro
é um minucioso trabalho de apologia da sociologia sistêmica contra o que ele chama de correntes
atomistas-singularistas que haviam se hegemonizado no decorrer deste século nas ciências sociais
(referindo-se especialmente ao empirismo americano na sociologia). Recorrendo a uma série de
exemplos das mais diferentes disciplinas para defender as abordagens sistêmicas que passavam a
assumir vulto nas décadas de 50 e 60, no capítulo VI Sorokin afirma que “a concepção sistêmica
dos fenômenos sócio -culturais tem sido, desde o mais remoto passado até a época presente, uma
das principais correntes de pensamento na filosofia, no direito, nas humanidades e nas ciências
psicossociais” (Sorokin, 1969, p. 147). Sorokin adverte, entretanto, que embora o termo ‘sistema’
sempre tenha sido utilizado nas diferentes ciências - e mesmo em todo o funcionalismo clássico
como já se mostrou anteriormente - como um conceito que expressava um complexo de
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Na verdade, como já demonstrou-se, a noção de sistema social acompanha a sociologia desde a sua aurora, mas
apenas em Parsons ela ganha os contornos teóricos abrangentes de uma teoria geral.
2
A psicologia da Gestalt foi desenvolvida desde o final do século XIX na Austria e Alemanha, como protesto contra
a tentativa de compreender a experiência através de uma análise atomística, e teve seu maior expoente na psicologia
com Frederick Perls (1893-1970), fundador da Gestalt-Terapia (ver Fadiman, J. & Frager, 1986).
Assim, é desta mesma forma que se vê, neste artigo, a TGS quando aplicada à análise
social: como um ‘novo funcionalismo’, que trabalha sobre os mesmos elementos que o
funcionalismo clássico já trabalhava, mas detém-se mais no conceito de sistema e trata mais a
fundo das homologias que teriam todos os demais sistemas com os sistemas naturais e suas leis.
De outro lado, aprofunda as implicações da noção de complexidade sistêmica para rejeitar o
reducionismo e o mecaniscismo que muitas vezes encontravam-se no próprio funcionalismo
clássico.
Não se pode deixar de falar, por fim, da nova fronteira da abordagem sistêmica e do
funcionalismo, que atende pelo nome de ‘paradigma da complexidade’. Este novo paradigma
respalda -se fundamentalmente nas novas descobertas feitas nos campos da física, da química e da
biologia, sobretudo com a passagem da física newtoniana para a física quântica, das descobertas
da ‘teoria do caos’, da termodinâmica do não equilíbrio e dos novos sistemas ‘autopoiéticos’ na
biologia celular.
As raízes históricas do chamado paradigma da complexidade remontam às pesquisas
desenvolvidas no Biological Computer Laboratory da Universidade de Illinois, em 1956. Neste
laboratório, em companhia de grandes nomes da ciência, Heinz von Foerster aprofundou estudos
sobre temas como causalidade circular, auto-referência e o papel organizador do acaso,
mesclando conhecimentos da biologia e da cibernética. Nos anos 60, com a de scoberta do
‘programa genético’, desvenda-se a célula como uma ‘máquina viva’, uma máquina que constrói
a si mesma (Serva, 1992). Mais tarde, a introdução do conceito de ‘autopoiesis’ nos sistemas
biológicos pelos neurocientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela, como a
“característica de sistemas vivos de renovarem-se continuamente e regularem este processo de
tal modo que a integridade de sua estrutura seja mantida” (Jantsch, citado por Coats 1992, p.
357), adiciona elementos novos à teoria dos sistemas complexos, sobretudo no que diz respeito à
organização e à auto-produção. Soma-se a estes trabalhos a publicação de O Acaso e a
Necessidade, de Jaques Monod, como um grande momento na construção deste paradigma.
Pesquisando juntamente com outros pesquisadores no campo da bioquímica celular e recorrendo
a uma espécie de ‘cibernética microscópica’ no estudo da reprodução das células, Monod recebeu
o Nobel de Fisiologia e Medicina em 1965.
Após estas incursões da biologia, um segundo movimento na constelação de temas
que convergem para o paradigma da complexidade provém, a partir da década de 70, de campos
como a física, a química e a termodinâmica, que descobrem que os movimentos espontâneos da
matéria conduzem-na à auto-organização. Os avanços da física quântica, da termodinâmica do
desequilíbrio e, especialmente, o trabalho do Nobel de química Ilya Prigogine, em 1977, pela
teoria das estruturas dissipativas são significativos desta fase.
Na verdade, os resultados das pesquisas que fizeram emergir o ‘paradigma da
complexidade’ não previam, a princípio, exceder os limites temáticos que os envolviam, quais
sejam, a bioquímica celular, a biologia molecular, a física, a termodinâmica e a química. Porém,
mais recentemente, provavelmente por conta da abertura metodológica pós -moderna e da eterna e
irresistível atração que o homem sente em transpor as leis dos sistemas naturais para as ciências
humanas, estes resultados se fizeram influenciar nas ciências sociais. Para citar apenas alguns
exemplos, pode -se visualizar a influência da teoria dos sistemas dinâmicos na psicologia social
em Watters, Ball & Carr (1996), a influência da teoria dos sistemas autopoiéticos na economia
evolucionária em Coats (1992) e na teoria dos sistemas sociais de Niklas Luhmann (que será
tratado a seguir), e a influência do paradigma da complexidade na análise organizacional em
Serva (1992) e na filosofia não linear em Provost Jr. (2000).
Estes e outros exemplos são uma pequena mostra da penetrante influência que os
resultados trazidos pela biologia, física e química modernas trouxeram para as ciências sociais e
humanas. Subjacente tanto à teoria dos sistemas quanto ao paradigma da complexidade, encontra-
se a regra considerada tácita por seus teóricos (que não precisa nem pode ser justificada
logicamente) de que, ‘se assim ocorre no mundo físico, então também deve ocorrer no mundo
social’. Em alguns casos, a utilização destes resultados das ciências naturais pelas ciências sociais
são postos com uma naturalidade espantosa, que beira a ingenuidade. Por exemplo, no texto de
Coats (1992) o autor afirma que “uma das características dos sistemas de autopoiesis e das
estruturas dissipativas é o fato de que eles são encontrados nos mundos físico e biológico tanto
quanto na esfera social, transcendendo assim a infindável discussão acerca das semelhanças e
diferenças entre as chamadas ciências naturais (ou físicas) e as sociais (ou humanas)” (p.355).
Esta pretensa naturalidade com que os autores transitam as leis de sistemas naturais para os
A utilização da analogia biológica e das novas teorias dos sistemas naturais para
caracterizar os sistemas sociais encontrou sua máxima expressão com o sociólogo Niklas
Luhmann. Em 1981, Luhmann publicou o seu principal trabalho, Social Sistem, em que pretendia
fundar uma ciência verdadeiramente geral sobre a sociedade. Ele sugeriu utilizar a análise
sistêmica para revelar a estrutura e os processos que caracterizam o sistema social.
Na verdade, a apreciação de Luhmann sobre a sociedade deriva diretamente da Teoria
Geral dos Sistemas. Diferentemente de outros autores, porém, ele produz uma teoria social
baseada em uma conc epção de sistemas auto-referenciados, o que se havia chamado
anteriormente de ‘sistema autopoietic’. Esta denominação deve -se à utilização de uma versão
nova da TGS, a chamada ‘teoria dos sistemas autopoietics’, cujo desenvolvimento deveu-se
principalmente aos neurocientistas chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela 3 e, como já
se tratou acima, representou um marco no ‘paradigma da complexidade’. Diferentemente da TGS
tradicional, que centra-se na descrição das estruturas e relações entre os elementos do sistema e
destes com o ambiente, a teoria dos sistemas de ‘autopoiésis’ centra sua análise nos mecanismos
de auto-produção e auto-organização do sistema. O conceito de Maturana e Varela toma o
sistema como uma entidade unificada em si mesma, e dispensa toda a especulação sobre o
‘motivo’ ou ‘função’, para a qual a teoria tradicional funcionalista emprega o ponto de vista do
observador, e que segundo os autores não corresponderia necessariamente à fenomenologia do
sistema. Quando se trata de sistemas vivos (aqueles que tem capacidade de produzir a si mesmos
por reproduzir seus elementos enquanto mantém uma organização daqueles elementos que são
característicos da sua auto-produção) o modo de se obter o verdadeiro conhecimento de tais
sistemas é focar sobre os muitos processos de auto-produção e auto-organização (Maturana e
Varela, 1980).
Luhmann deu o primeiro passo na adoção da análise sistêmica de Maturana em seu
trabalho de 1968, intitulado Society or Social Tecnology: What is the Mecanism That Mantains a
Sistem?, quando introduziu o conceito de significado. Dois tipos de sistemas, na teoria de
Luhmann, operariam através da mediação do significado: o sistema psíquico (ligado à mente) e o
sistema social. O significado seria um modo para experimentar e lidar seletivamente com o
mundo. O segundo passo foi dado quando Luhmann assumiu que o sistema psíquico produz a si
mesmo por produzir pensamentos e idéias, da mesma forma que o sistema social é capaz de
produzir comunicações; ambos, pensamento e comunicação, possuem o significado exatamente
do mesmo modo (Viskavotoff, 1999).
3
Ver tal teoria em Maturana & Varela (1980).
opção política. Concebendo o sistema social como o mais abrangente dos sistemas vivos, e uma
vez que este é auto-referenciado e capaz de produzir a si próprio, Luhmann considera ser
impossível planejar a sociedade. Segundo ele, nenhuma sociedade esteve apta para organizar a si
mesma, ou seja, para escolher a sua própria estrutura e para utilizá-la para admitir ou dispensar
membros. Desta forma, nenhuma sociedade pode ser planejada, de modo que o planejamento não
pode fazê-la atingir suas metas; ele (o planejamento) têm conseqüências não antecipadas e seus
custos excederiam os seus benefícios. Impor um plano à sociedade é inviável porque isto criaria
um estado em que o planejado e outras formas de comportamento conviveriam lado a lado e
certamente reagiriam entre si (Luhmann, citado por Provost Jr. 2000).
Esta sua visão em relação ao planejamento da sociedade revela-se, na verdade, uma
investida contra as pretensões do planejamento central socialista da época. Isto significa,
portanto, que Luhmann nã o quer dizer que não se usa ou não se deve usar o planejamento em um
sistema social; na verdade, em qualquer sistema social ou político vê-se cidades sendo
planejadas, políticas educacionais, sistemas de tráfego, e muitas outras coisas. Isto não implica,
porém, que a sociedade desenvolve-se de um modo planejado. Ao contrário, para Luhmann os
sistemas sociais somente poderiam mudar a sua estrutura por meio da evolução. Evolução
pressuporia reprodução auto-referenciada e mudanças nas condições estruturais de reprodução
por diferentes mecanismos de variação, seleção e estabilização. Assim, o planejamento não
poderia substituir a evolução, o que nos faria mais dependentes de um desenvolvimento
evolucionário não planejado. (Provost Jr. 2000).
Na verdade, há duas formas de se interpretar a concepção de Luhmann sobre a
evolução social e a sua contrariedade em relação ao planejamento: a primeira é dizer que ela
deve-se, diretamente, à opção sua pelo modelo sistêmico de ‘autopoiésis’ (auto-organização), e é
decorrência, então, das leis de evolução dos sistemas biológicos (ou seja, sua posição normativa é
decorrência de sua opção teórica); a segunda, é dizer que ela é uma opção política e que a sua
opção pelo modelo sistêmico de ‘autopoiésis’ é decorrência desta opção política, por ser mais
adequada a ela. Confesso que sou mais inclinado a aceitar a segunda hipótese, por pensar que, em
geral, primeiro as pessoas têm uma visão de mundo e fazem uma opção política, depois elas
escolhem o referencial teórico que harmoniza esta opção com o mundo do conhecimento. Em
Luhmann isso parece bastante claro.
Cabe destacar aqui o trabalho de Stafford Beer publicado na década de 70, cujo nome
em português é Cibernética na Administração (o título original em inglês era The Brain of the
Firm - O Cérebro da Firma ). O título original deste livro permite compreender melhor toda a sua
concepção metodológica, baseada em uma minuciosa analogia do sistema organizacional com o
sistema cerebral. A tomada de decisão e controle nas organizações foi considerada por ele como
análoga à funcionalidade do cérebro humano. Segundo ele, “tanto o neurônio quanto o
administrador tem que executar uma tarefa realmente básica: decidir. No neurônio, é preciso
disparar ou não um pulso descendente ao longo da fibra do nervo de entrada, o axônio. Quanto
ao administrador, sua função principal é também dizer sim ou não” (Beer, 1979, p. 85).
Na verdade, a tese fundamental de Stafford Beer é bastante interessante. Ao contrário
da grande maioria das analogias feitas pelo funcionalismo sistêmico, em que os autores não
oferecem nenhuma justificativa pela qual deveríamos aceitar as leis que regem os sistemas
naturais como válidas para os sistemas sociais (simplesmente as utilizam como se tal
transferência de conceitos fosse tão natural que dispensasse qualquer justificação), Stafford Beer
nos oferece uma. E é a seguinte: se existem leis naturais que governam os sistemas viáveis – no
caso, o cérebro humano -, então todos os sistemas viáveis a elas devem obedecer. É uma espécie
de ‘em time que está ganhando não se mexe’. Bastante lógico e, de certa forma, satisfatória para
os objetivos de Beer. Sistemas viáveis, para ele, são aqueles que sobrevivem, são coerentes,
integrais, que apresentam equilíbrio homeostático interno e externo, e oportunidades para crescer,
aprender, envolver-se e adaptar-se ao meio ambiente.
Na última parte de seu livro, Stafford Beer empenha -se em desenvolver um modelo
organizacional aplicável a qualquer organização, coerente com as regras do controle cibernético e
com os mecanismos de funcionamento cerebral. Ele seria composto dos seguintes subsistemas:
Diretoria Divisional, responsável por exercer o controle sobre uma divisão específica da
organização; Centros Reguladores Corporativos , responsável por monitorar e coordenar os
Centros Divisionais; Diretoria de Operações, com a função de controlar e fazer interagir as
divisões, proporcionando estabilidade interna à organização; Diretoria de Desenvolvimento da
organização, vinculada ao ambiente externo e ao universo das informações que auxiliam na
tomada de decisão; e Direção Superior , responsável por estabelecer os destinos da organização.
Embora esta abordagem apresente alguma semelhança com a estrutura piramidal fayolista, Beer
defende que o seu modelo caracteriza-se pela flexibilidade e deve prender -se mais aos fluxos de
informações decisionais. É, acima de tudo, uma tentativa de propor uma organização formal
baseada nos princípios sistêmicos de funcionamento neurocitológicos que, segundo o autor,
apresentaria maior probabilidade de ser viável. Neste sentido, é preciso ressaltar que a
justificativa oferecida por Beer e descrita acima sobre a pertinência da analogia entre a
organização e o sistema cerebral é válida apenas no contexto das suas proposições, uma vez que o
seu trabalho é essencialmente ‘normativo’ (as coisas como elas deveriam ser) e não ‘positivo’ (as
coisas como elas são). Em resumo, ele propõe que as organizações ‘deveriam funcionar’ como
cérebros, não que elas ‘funcionam’. Neste sentido, a analogia é válida.
Adicionalmente às concepções da cibernética na administração, a teoria sistêmica
produziu uma nova abordagem conceitual das organizações: a organização vista como um
sistema aberto. Nesta perspectiva, a organização seria composta de inúmeros elementos
constituintes (que poderiam ser considerados subsistemas), integrados entre si e que se
relacionam funcionalmente com vistas à realização de um ou mais propósitos organizacionais.
Este sistema-organização estaria em relação dinâmica com o seu ambiente circundante, buscando
adaptar-se a ele e manter -se em equilíbrio interno. A organização-sistema receberia, de um lado,
imputs do ambiente (energia, materiais, informações, etc.) e os transformaria em outputs
(produtos, materiais, informações, resíduos, etc.) que seriam novamente devolvidos ao ambiente.
Um dos modelos mais completos de aplicação da TGS para a análise organizacional
está contido no célebre livro de Daniel Katz e Robert L. Kahn, intitulado Psicologia Social das
Organizações. Neste livro, os autores propõe m que as teorias organizacionais se libertem das
restrições e limitações das abordagens anteriores, e passem a utilizar a TGS. Utilizar a TGS nas
teorias organizacionais implicaria, principalmente, em duas questões: considerar, por um lado, as
organizações como sistemas abertos, e por outro, como sistema social. Para os autores, as teorias
organizacionais tradicionais caracterizavam-se por considerar a organização como um sistema
fechado. O principal problema de assim considerá-las é a falha em reconhecer que a organização
depende continuamente de imputs do meio ambiente. Segundo Katz e Kahn (1976), “os modelos
típicos em teorização organizacional concentram-se em princípios de funcionamento interno,
como se estes problemas fossem independentes de mudanças no meio ambiente, e como se não
afetassem a manutenção de imputs de motivação e de moral” (p. 42). Outro problema de se
considerar as organizações como sistemas fechados seria o não reconhecimento da
eqüifinalidade, ou seja, de que um objetivo pode ser alcançado por diversos meios, dependendo
Após fazer esta apresentação dos caminhos do funcionalismo sistêmico, dos pré-
funcionalistas até o ‘paradigma da complexidade’, cabe fazer algumas considerações críticas a
respeito de tais fundamentações. Na verdade, as abordagens sistêmicas contemporâneas possuem
méritos e qualidades, apesar de possuírem também muitos defeitos. Como qualidade, pode -se
dizer que a abordagem sistêmica representa uma persuasiva visão sobre os limites do
conhecimento. Ao ressaltar a diversidade e a complexidade dos sistemas, a inter -relação e a
sinergia que existe entre os seus diferentes elementos e sua interação dinâmica com o ambiente, a
abordagem sistêmica adverte para a fragilidade das explicações reducionistas e mecaniscistas da
realidade; ao separar a parte do todo, estas explicações negligenciam as inúmeras inter-relações
que existem entre as diferentes partes, e delas com o ambiente. Por outro lado, para se chegar a
relações de causalidade simples (meca niscismo), normalmente se estabelece um conjunto tão
grande de pressupostos e axiomas (aquilo que só valida a explicação se for considerado
constante) que jamais poderão ser observados na realidade. Deste modo, a abordagem sistêmica e
também o ‘paradigma da complexidade’ correspondem a uma reorientação saudável da visão do
observador para a diversidade, a incerteza, a complexidade, as inter-relações e os mecanismos de
adaptação que ocorrem no sistema e entre ele e o ambiente. Assim, ela deveria conduzir (embora
isto quase nunca ocorra) a uma posição de maior humildade do homem perante o mundo.
Não obstante a isto, muitas críticas podem ser feitas ao funcionalismo sistêmico de
uma maneira geral. A seqüência deste texto tratará de algumas delas.
Uma das principais críticas feitas às teorias funcionalistas sistêmicas diz respeito ao
fato de que, por enfatizarem tanto os aspectos de integração, organização, funcionalidade,
propósito, evolução e inter-relacionamento sistêmico, deixam de fora da análise toda e qualquer
noção de poder, conflito e dominação. Elas subtraem, sobretudo, a idéia de que uma organização
social não é um sistema simétrico, onde todos têm o mesmo papel na realização dos fins, mas sim
um sistema onde existem disputas de poder, onde alguns membros, mais do que outros, são os
responsáveis pela determinação dos propósitos, e alguns são cooptados e controlados pela
organização social. Por outro lado, cada elemento que participa da organização social é um
sujeito político, possui livre arbítrio e pode arcar com as conseqüências de suas decisões; ou seja,
em uma organização existem relações sociais e de poder que em nada podem se identificar com
relações orgânicas (de órgãos em um or ganismo).
As críticas feitas em relação à pouca (ou nenhuma) ênfase dada às relações de poder,
de dominação e de controle na configuração dos arranjos sociais e na própria evolução da
sociedade é normalmente oriunda de correntes da filosofia crítica. Há, portanto, muitos
intelectuais que acentuam em suas teorias mais o trinômio ‘poder-dominação-conflito’ como o
dominação são características exclusivas das sociedades e não têm nenhum similar nos sistemas
naturais, porque provém de relações intencionais, políticas e morais. Assim, além de inverter o
foco de prioridade de análise da sociedade do trinômio ‘norma -integração-ordem’ para ‘poder-
dominação-conflito’, esta posição também destitui qualquer possibilidade de analisar os sistemas
sociais com as regras dos sistemas naturais. Poder-se-ia, é claro, dizer que nos sistemas naturais
também existe conflito e contradição (como, aliás, o faz o ‘paradigma da complexidade’). Há
milhões de anos, por exemplo, um asteróide atingiu a terra e destruiu boa parte dos sistemas
vivos aqui existentes (e não é seguro de que isto não possa acontecer novamente); ou seja, os
sistemas naturais também não são apenas organização e harmonia. Porém, não se pode dizer que
este asteróide que atingiu a terra o fez intencionalmente, porque queria destruir a vida em nosso
planeta. Não, para os ateus foi apenas uma obra do acaso, e para os crentes, ele pode ter sido
jogado pela mão de Deus para fazer prevalecer aqui a vida humana, ou para puni-la como no
Dilúvio. Ou seja, a idéia de poder, dominação e conflito remete também para um tema que se irá
tratar mais adiante, de que as organizações socia is são formadas de homens, e, tanto para os ateus
quanto para os crentes, estes homens são entidades diferenciadas porque têm livre arbítrio,
vontade, intencionalidade, e agem política e moralmente. Isto deveria indicar que a organização e
a evolução da sociedade advém destas qualidades. Somente isso já comprometeria toda e
qualquer analogia com os sistemas naturais, que, como vimos, é corrente em todo o
funcionalismo sistêmico, sobretudo a partir da TGS.
Apesar de os teóricos da complexidade julgarem que devolveram aos sistemas sociais
as possibilidades de contradição e conflito (julgam mesmo ter proporcionado uma integração
entre os dois principais paradigmas das teorias sociais, o ‘crítico’ - de conflito – e o
‘funcionalista’ – de integração; ver a este respeito Segün & Chanlat, 1992), eles o fizeram dentro
das possibilidades das suas analogias com os sistemas naturais. Assim, na teoria da
complexidade, as contradições e os conflitos são como o asteróide que alcançou a Terra; são
categorias inanimadas, nã o humanas, não morais, não políticas e não intencionais em relação às
disputas de poder, tal como o são nos sistemas naturais. O conflito e a contradição são apenas
outras formas de expressão da ordem e da organização. Por isto mesmo, o paradigma da
complexidade não deixou de ser funcionalista; ao contrário, ele inaugura, junto com a TGS, um
funcionalismo renovado, mas empobrecido.
Uma das mais importantes crítica feitas ao funcionalismo e à aplicação das teorias
sistêmicas às ciências sociais provém do filósofo alemão Jürgem Habermas, a qual, por esta
importância, pretende-se analisar mais profundamente neste texto. Na construção da sua teoria da
ação comunicativa, Habermas polemizou com o funcionalismo e com a extrapolação para a
sociologia da noção de sistemas cibernéticos. Na construção sociológica de Habermas, o sistema
tinha um lugar muito definido. Era associado à crescente burocratização e autodeterminação que
se opunha à autonomia do mundo vivo. O sistema integraria diversas atividades, de acordo com
os objetivos de adaptação à sobrevivência econômica e política, mediante a regulação por
mecanismos de mercado que limitam o escopo das decisões voluntárias. O mundo vivo, por sua
vez, contribuiria para manter a identidade social e individual por meio de ações organizadas em
torno de valores compartilhados. O mundo vivo, portanto, estaria ligado aos mecanismos de ação
provenientes da argumentação racional no campo da comunicação e dos consensos dela
resultantes. Assim, o mundo vivo e o sistema seriam vistos por ele como pertencendo a reinos da
sociedade absolutamente separados: a família e as esferas públicas ao mundo vivo, e as empresas
e os órgãos do Estados ao sistema (o termo sistema, para ele, designa o sistema econômico e o
macro-sistema institucional que nos envolve, que envolve o mundo vivo).
A crítica de Habermas à modernidade vai no sentido de que os mecanismos cada vez
mais autônomos do sistema nas sociedades mode rnas – a crescente burocratização e a
automatização dos mecanismos de mercado – teriam crescentemente suprimido os espaços do
mundo vivo responsáveis pela elaboração de ações voluntárias mediadas pela comunicação. Ou
seja, a evolução da autorregulação e autodeterminação dos mecanismos do sistema produzidos
pela modernização teriam confiscado os espaços da ação comunicativa que havia sido liberada
pela própria modernização. Esta é, portanto, a delimitação que o termo sistema assume na
filosofia de Habermas.
As suas críticas ao enfoque sistêmico na sociologia, presentes sobretudo na sua
Teoria da Ação Comunicativa , foram endereçadas aos funcionalistas sistêmicos de modo geral, e,
mais tarde (no Discurso Filosófico da Modernidade ), ao principal formulador da teoria dos
sistemas sociais no pós TGS: Niklas Luhmann.
patologia que ameaça o equilíbrio. Para Habermas, portanto, haveria a necessidade de uma teoria
da evolução social ex ante, pra determinar limites e ‘estados -meta’ dos sistemas, para determinar
as faixas de variação estrutural e para identificar as situações em que a ruptura da tradição e as
conseqüentes manifestações de patologia social indicam crises genuínas, que ameaçam a
identidade, ou indicam condições necessárias à evolução. Isto, no entanto, transcende as
pretensões empírico-analíticas de tal abordagem.
Na crítica da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, por sua vez, Habermas foi bem
mais áspero. Dedicou a este intento as últimas palavras do seu Discurso Filosófico da
Modernidade (capítulo XII do livro) 4 .
Parece que os principais problemas da teoria dos sistemas sociais de Luhmann, aos
olhos de Habermas, é a tendência a considerar os sistemas sociais como subsistemas auto-
referenciados e que elaboram o seu próprio sentido. A nada Habermas é mais avesso do que à
auto-referência. Idealizador de uma teoria da ação social baseada na comunicação, onde a relação
entre sujeito e o objeto auto-referenciada no sujeito cognoscente é substituída por uma relação
sujeito-sujeito mediada pela linguagem, ele propõe uma saída para a armadilha em que havia se
confinado a própria ‘filosofia do sujeito’. Para ele, é absurda, portanto, uma saída que propõe
substituir o sujeito auto-referenciado pelo sistema auto-referenciado. Ora, segundo Habermas,
“sistemas que funcionam na base da consciência e da comunicação não poderiam constituir
mundos circundantes uns para os outros” (Habermas, 1990, p. 345).
Para Habermas, o paradigma sistêmico representa uma revisão filosófica da tradição
ocidental que se fixa no ser, na verdade e no pensamento. No seu projeto de conhecimento, “a
teoria dos sistemas de Luhmann procede um movimento de pensamento que passa da metafísica
para a metabiologia ” (idem, p. 339). Segundo Habermas, uma vez que a teoria sistêmica tenha
buscado a auto-referência no próprio mundo da vida, ela acaba por renunciar a todo o tipo de
pretensão a razão. A crítica da razão, portanto, é uma característica marcante das teorias
4
Não é apenas de Habermas, porém, que a teoria dos sistemas sociais de Luhmann tem sofrido críticas. Segundo
Viskovatoff (1999), a natureza das críticas em relação à obra de Luhmann tem sido variada. Primeiro, existem
aqueles que rejeitam a teoria como sendo especulativa e não científica, insuficientemente conectada com a
verificação empírica. Ora, como se pode ver, esta é uma crítica provinda de teóricos empiristas e positivistas, que
desacreditam o arcabouço teórico de Luhmann por ser impossível testá-lo empiricamente. Segundo, há uma crítica da
teoria a partir da própria Teoria Geral dos Sistemas, com o argumento de que o constitutivo da sociedade não é a
comunicação, mas estruturas neurais ou outras entidades biológicas. E terceiro, pode-se ressaltar como a mais
importante crítica aquela provinda de teóricos críticos, dado que a teoria de Luhmann abstrai totalmente do sistema a
razão individual e os valores emancipatórios e humanísticos. Habermas é o principal representante desta crítica e
desenvolve, sem dúvida, a mais profunda oposição à teoria de sistemas sociais de Luhmann.
Por fim, um último problema do funcionalismo sistêmico e que talvez seja a raiz de
todos os outros, diz respeito às inapropriadas analogias feitas pelas ciências sociais com os modos
de funcionamento dos sistemas naturais. Como se viu anteriormente, esta recorrência aos
conceitos das ciências naturais acompanha o conceito de sistemas desde o funcionalismo clássico
até o ‘paradigma da complexidade’, intensificando-se a partir da TGS. Se por um lado no
funcionalismo clássico a analogia com os sistemas naturais era utilizada de forma geral para
indicar o caráter sistêmico e orgânico da sociedade, por outro, até pelo fato do conceito de
‘sistema’ não ter sido ainda precisado naquela época pelas ciências naturais, ele (o funcionalismo
clássico) não deixou de estabelecer uma teoria sociológica genuinamente social.
A partir da TGS, porém, criou-se uma expectativa extremamente pretensiosa, e uma
ambição de que a teoria dos sistemas deveria constituir–se numa metanarrativa que, como a
ciência mãe de toda uma nova geração de ciências integradas, pretendia ser adequada à análise de
qualquer sistema, seja ele social ou natural, material ou abstrato, de um passado remoto ou então
atual, que abrangesse desde uma célula até o sistema solar, passando pelos sistemas sociais, pelas
economias nacionais, o cérebro ou qualquer outra estrutura organizada que contivesse elementos
constituintes interrelacionando-se para realizar um propósito, seja ele qual fosse. Esta é a
primeira implicação negativa que a TGS tem sobre o funcionalismo sistêmico. Ou seja, uma
ciência que entenda ser produtivo utilizar as mesmas categorias analíticas da ciências naturais
(função, homeostase, entropia, autopoiesis, retroação, adaptação, evolução, etc.) para estudar
realidades tão distintas como uma organização social, uma floresta, um molusco ou uma célula
por exemplo, não pode passar incólume pelo crivo crítico da razão. Assim, pela ambição de
querer que tudo caiba em seu escopo teórico, a teoria sistêmica passa a sensação de que nada é
capaz de explicar; ela oferece a estrutura, a linguagem, os conceitos, mas as explicações da
realidade continuam e continuarão sendo dadas por aquelas disciplinas e métodos que ela própria
pretendia combater.
Edgar Morin afirmou que “a idéia de sistema social permanece trivial: a sociologia,
que usa e abusa do termo sistema, nunca o elucida: explica a sociedade como sistema sem saber
explicar o que é um sistema ” (Morin, 1987, p. 98). Isto que Morin vê, a partir do ‘paradigma da
complexidade’, como um defeito do funcionalismo clássico, pode -se ver hoje como uma
qualidade daquele em relação às construções das teorias sociais e humanas a partir da TGS e do
próprio ‘paradigma da complexidade’. Na verdade, a teorização do conceito e das características
dos sistemas a partir de Bertalanffy e seus seguidores na cibernética e na TGS, bem como a
recolocação destes conceitos pelo próprio Edgar Morin e pelo ‘paradigma da complexidade’ mais
recentemente, apenas contribuiu para aprofundar a transposição das regras de funcionamento dos
sistemas naturais para as organizações sociais. A partir da TGS, estas regras foram
institucionalizadas e sistematizadas como as regras gerais de todos os sistemas. Estas analogias
produziram um empobrecimento da teorização social, fazendo com que muitos teóricos sociais
tentassem simplesmente enquadrar as categorias encontradas nas organizações sociais naquelas
de descrição dos sistemas naturais: Luhmann, por exemplo, comparava as funções e o fluxo das
comunicações nos sistemas sociais ao ‘fluxo de energia’ dos sistemas naturais, e extraiu do
conceito de ‘autopoiesis’ dos sistemas vivos biológicos a idéia de auto-organização dos sistemas
sociais; outros autores analisaram a tendência à desorganização e ao desvio em relação ao
planejado como uma ‘entropia’ (um conceito da termodinâmica) dos sistemas sociais; os papéis
Considerações finais
abordagens. Assim sendo, não há problemas em tratar os teóricos dos sistemas e da complexidade
como ‘novos funcionalistas’, mesmo que muitos assim não se considerem.
De outro lado, apesar das críticas aqui desenvolvidas em relação ao pensamento
funcionalista sistêmico, acredita-se que ele merece um espaço importante dentro das ciências
sociais. Este texto deteve -se mais nas críticas porque as qualidades falam por si. Na verdade, o
propósito do funcionalismo de estudar as razões da integração, da organização e da conservação
social representa um mérito teórico, afinal, as organizações sociais apresentam estas
características, ao menos por algum tempo. A ordem normativa de que nos fala Parsons, portanto,
é um elemento essencial desta conservação. Desta forma, não deveria haver uma dicotomização
teórica tão grande, com a perspectiva de ‘conflito-mudança’ de um lado e de ‘integração-
conservação’ de outro. Como afirmou Ramos (1989), “não existe fluxo indefinido do nada para o
nada” (p. 55); “a mera mudança sem conservação é uma passagem do nada para o nada. A mera
conservação sem mudança não pode conservar” (Whitehead, citado por Ramos, 1989, p. 55).
Neste sentido, são sábias as palavras de Lockwood (1977) quando diz que “de uma parte... não é
possível conceber a sociedade sem um certo grau de integração por meio de normas comuns; e,
portanto, que a teoria sociológica deve preocupar-se com processos que contribuem para a
manutenção dessa ordem. De outra parte... não se pode conceber a sociedade sem um certo grau
de conflito proveniente da distribuição de recursos raros, e a análise sociológica vê cometer-se-
lhe a tarefa de estudar os processos que estruturam e exprimem as divergências de interesse” (p.
212). Não se pode negar, porém, que esta dicotomização exagerada se alimenta de visões de
mundo e de interesses políticos e morais diversos, muitas vezes irreconcilháveis, que se
escondem por detrás de concepções teóricas aparentemente neutras.
Não obstante estes interesses e visões de mundo, ambos os binômios ‘integração-
conservação’ e ‘conflito-mudança’ fazem parte de uma organização social, razão pela qual o
funcionalismo é útil para a análise destas organizações. O grande problema do funcionalismo
sistêmico, porém, reside exatamente no conceito de sistema e nas transposições de conceitos dos
sistemas naturais para as organizações sociais. É bem verdade que a idéia de sistema nos trouxe
uma visão realmente nova e importante para a metodologia das ciências, ao mostrar as
fragilidades do mecaniscismo, do reducionismo e do atomismo que imperavam (e ainda
imperam) em todos os campos do conhecimento, e ao mostrar que o saber que se pretende
universal mas que perde a noção do contexto, da complexidade e das inter-relações que ocorrem
em cada sistema, não pode dar conta da realidade. Este mérito não se pode tirar da abordagem
sistêmica e realmente transformou a ciência. Aqui, portanto, é necessário separar ‘abordagem
sistêmica’ de ‘teoria de sistemas’. Se por um lado a ‘abordagem sistêmica’ foi fundamental para
uma nova visão da ciência, a ‘teoria de sistemas’ trouxe conseqüências não tão saudáveis para as
teorias sociais, fundamentalmente porque, forjada a partir da observação do funcionamento dos
sistemas naturais, acabou ‘engessando’ as teorias sociais por conceitos supostamente universais.
Analisar a conservação em razão da ordem normativa, que implica uma cultura
institucionalizada e valores comuns, como fazia Parsons, por exemplo, é muito diferente do que
simplesmente transpor para os sistemas sociais conceitos de sistemas naturais, que se conservam
e auto-organizam por leis da natureza: autopoiesis, retroação, homeostase, e assim por diante. A
ordem normativa, a cultura e os valores são características da socialidade humana, e não têm
paralelo nos sistemas naturais por algumas razões simples: o homem pensa, tem livre arbítrio,
tem vontade, produz ações intencionais, e é capaz de fazer julgamentos morais e éticos. Por esta
razão, a organização humana é antes de tudo uma organização política, e isto não cabe em
nenhum conceito de sistema proveniente das ciências naturais. Assim sendo, o ‘novo
funcionalismo’ surgido a partir da TGS e do ‘paradigma da complexidade’, empobreceu o
próprio funcionalismo, pois concentrou nos conceitos de sistemas oriundos das ciências naturais
toda a teoria social. Mesmo as idéias de mudança e conflito trazidas pelos ‘novos funcionalistas’
são extraídas destes conceitos sistêmicos, tornando-se despolitizadas e ahistóricas.
Se o funcionalismo sistêmico tem o mérito de concentrar-se nas razões da integração-
conservação, tem também o demérito de ter deixado deslizar para dentro dos conceitos de
sistemas naturais toda a explicação sociológica, revogando as teorias passadas que se construíam
sobre a própria realidade social, e relegando ao próprio funcionalismo clássico o caráter de um
mero rascunho das modernas teorias de sistemas sociais. De certa forma, portanto, os novos
funcionalistas pretendem ‘zerar’ toda a teoria social para erguer em seu lugar aquilo que, alegam,
seria uma teoria verdadeiramente sistêmica, que abranja a complexidade, a incerteza e a
multidimensionalidade dos sistemas sociais, tal como a física, a química, a biologia e a
termodinâmica têm caracterizado os sis temas naturais. Face a isto, entende-se que é preciso
resgatar a teoria social clássica contra esta subserviência à uma suposta ‘ordem natural de todas
as coisas’, e para que voltemos a enxergar as organizações sociais como sistemas singulares,
políticos, morais, intencionais, históricos, humanos, compostos de culturas, valores, disputas de
poder, enfim, de todas estas características que não cabem aos sistemas naturais. Para o bem do
próprio funcionalismo e das teorias sociais e organizacionais.
Referências Bibliográficas
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KATZ, D. & KAHN, R. L. Psicologia Social das Organizações. São Paulo, Atlas, 1976.
MARCH, J. & SIMON, H. Teoria das Organizações. Rio de Janeiro, Editora da Fundação
Getulio Vargas, 1979.