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ANNA

POLITKOVSKAYA
3IARIO
RUSSO
UM DIÁRIO RUSSO
Anna Politkovskaya

UM DIÁRIO RUSSO
Prefacio de
JON SNOW

Tradução de
NIVALDO MONTIGELLI JR.
Sumário

Nota do tradutor da edição em inglês 7


Prefacio de Jon Snow 9

PARTE UM
A morte da democracia parlamentar russa
Dezembro de 2003 a março de 2004 13

PARTE DOIS
A grande depressão política da Rússia
De abril a dezembro de 2004 121

PARTE TRÊS
Nossos invernos e verões de insatisfação
De janeiro a agosto de 2005 225
Será que estou com medo? 350
Glossário 353
Nota do tradutor
da edição em inglês

A l g u m a s das entradas do diário de Anna i n c l u e m comentários que


ela acrescentou p o s t e r i o r m e n t e e estão separadas p o r um asterisco
centralizado. Os c o m e n t á r i o s entre parênteses são dela mesma.
Devido a seu assassinato q u a n d o a tradução estava sendo concluída,
a edição final teve de prosseguir sem sua ajuda. As informações
acrescentadas pelo tradutor estão entre colchetes. Um asterisco no
texto indica u m a entrada no glossário.
Prefácio

L e r Um diário russo, de Anna Politkovskaya, c o n h e c e n d o seu terrí-


vel fim - nas mãos de um assassino na escadaria do seu prédio em
M o s c o u — parece prognosticar que não lhe seria permitido viver. O
que ela revela aqui, e demonstrou em seus escritos anteriores, são ver-
dades tão contundentes e arrasadoras sobre o regime do presidente
Vladimir Putin, que alguém, mais cedo ou mais tarde, iria matá-la.
De certa forma, é um milagre que ela tenha vivido tanto tempo.
Mais milagroso ainda é o fato de, em m e i o às reviravoltas pós-
soviéticas, ter surgido u m a jornalista que trouxe quase sozinha à
atenção do m u n d o a escandalosa tragédia da T c h e t c h ê n i a e muitos
outros crimes da R ú s s i a m o d e r n a . O c o m p o r t a m e n t o q u e ela
expôs e c o n t i n u a a e x p o r neste registro representa u m a grande
quantidade de abusos sistêmicos, políticos e dos direitos humanos.
Este é o diário que ela manteve durante o p e r í o d o entre as eleições
parlamentares fraudadas de dezembro de 2003 até o final de 2005 e
as conseqüências do cerco à escola de Beslan.
Ao ler Um diário russo, eu me p e r g u n t a v a para q u e t e m o s
embaixadas na Rússia. C o m o foi que nossos líderes ignoraram tão
categoricamente o q u e sabiam que Putin pretendia? Seria pela sede
de combustível? Pelas riquezas da v e r g o n h o s a l i q u i d a ç ã o p ó s -
comunista dos ativos do Estado russo e seus recursos de fabricação,
p o r meio da qual nossas instituições financeiras tiveram participa-
ção na ascensão dos oligarcas ladrões? Ou teria sido o desejo cego
de manter a Rússia " a o nosso lado", qualquer q u e fosse o custo para
sua população empobrecida?
Foi para falar c o m essas pessoas e representá-las q u e A n n a
Politkovskaya viajou e n o r m e s distâncias. Os riscos que ela correu
1(1 A N N A POLITKOVSKAYA

foram assustadores, mas a intensa realidade que ela mostra é de tirar


o fôlego. Depois do atentado a b o m b a no m e t r ô de M o s c o u em
2 0 0 4 , no qual 39 pessoas foram mortas, ela visita alguns dos lares
das vítimas. E descobre que a "causa da m o r t e " , em vários atestados
de óbito, está simplesmente riscada — mesmo na m o r t e , escreve ela,
"o Estado russo não consegue deixar de ser desonesto. N e m uma
palavra a respeito de t e r r o r i s m o " .
Graças ao jornalismo de Anna, ela passou a ser um p o n t o de
referência para as pessoas a q u e m o Estado fez sofrer. C e r t a noite,
d e p o i s das 2 3 : 0 0 , ela r e c e b e um t e l e f o n e m a a n g u s t i a d o da
Inguchétia. "Alguma coisa terrível está acontecendo aqui! E uma
g u e r r a " , gritavam mulheres ao telefone. "Ajude-nos! Faça alguma
coisa! Estamos deitadas no chão c o m nossos filhos!"
Os anos de formação de Anna c o m o jornalista foram vividos
sob o j u g o do comunismo. Ela vinha de campanhas radicais q u a n -
do, em 1991, a U R S S transformou-se na Federação Russa, lidera-
da pelo presidente Bóris Ieltsin. A medida que os novos países da
antiga U n i ã o Soviética c o m e ç a r a m a caminhar p o r seus próprios
pés, irromperam várias guerras internas. U m a das mais sérias foi a
Primeira Guerra T c h e t c h e n a (1994-6), quando rebeldes t c h e t c h e -
n o s p r e d o m i n a n t e m e n t e islâmicos t e n t a r a m fundar u m Estado
i n d e p e n d e n t e . Anna foi u m a das pessoas cujas reportagens criaram
as circunstâncias que possibilitaram o acordo de paz e a retirada das
tropas russas. De fato, ela identifica a cessação dessa guerra c o m o a
m a i o r realização da mídia durante os anos relativamente livres do
g o v e r n o Ieltsin.
A chegada de Vladimir P u t i n ao Kremlin e sua iniciação na
Segunda Guerra Tchetchena, em 1999, elevaram as apostas militares
e t a m b é m jornalísticas. Aproveitando seu passado no serviço secre-
to, P u t i n t o m o u medidas para garantir que a mídia não conseguisse
embaraçá-lo c o m reportagens das brutais atividades da Rússia na
T c h e t c h ê n i a . Anna visitou a T c h e t c h ê n i a em mais de cinqüenta
ocasiões. O jornal para o qual ela trabalhava, o Novaya gazeta, p e r m a -
n e c e u c o m o uma das poucas publicações que não se curvavam à
pressão do Kremlin para reduzir ou moderar sua cobertura.
Em 2002, Putin estava usando ao máximo a "guerra ao terror"
de Bush-Blair c o m o cobertura para a tomada de posição de M o s -
c o u na Tchetchênia. Anna ficou cada vez mais isolada. Ela reportou
UM DIÁRIO RUSSO 11

as mortes, os sequestros, estupros, as torturas e os desaparecimentos


extrajudiciais que caracterizavam os m é t o d o s das forças russas na
sua luta para conter a Guerra Tchetchena. Cada vez mais, Anna sen-
tia - e escrevia publicamente - que a política de Putin alimentava
ativamente os m e s m o s terroristas que supostamente deveria d e r r o -
tar. Visível nesses relatos era sua profunda convicção de que o cami-
n h o de Putin à presidência foi construído em t o r n o do conflito
tchetcheno e dele dependia. Ela até estabelece ligações entre algu-
mas das práticas específicas de t o r t u r a q u e d e s c o b r i u na
Tchetchênia e aquelas enaltecidas pela K G B e seu sucessor, o FSB,
em seus manuais de treinamento.
O relato de A n n a sobre a reeleição de P u t i n em 2003 é sur-
preendente, tanto pela bravura da autora q u a n t o pelos fatos revela-
dos. O desaparecimento de Ivan R i b k i n , um dos candidatos que
desafiavam P u t i n , p o d e r i a parecer ficção se n ã o fosse tão sério.
Depois de desaparecer de M o s c o u , o n d e disse ter sido drogado,
R i b k i n reaparece em Londres. C o m o observa Anna, " u m candida-
to presidencial que foge é inédito em nossa história". Mas ela tem
certeza de que foi a cultura política engendrada pelos partidários de
Putin que levou a este estado de coisas.
Pouco depois da eleição, um j o v e m advogado ativista, Stanislav
Markelov, é e s p a n c a d o p o r cinco jovens no m e t r ô de M o s c o u .
Anna os descreve gritando para ele: "Você fez discursos demais!...
Estava pedindo p o r isto." Aquele era um p r e n ú n c i o da sujeira que
estava por vir. C o m o registrou Anna, é desnecessário dizer que a
polícia recusou-se a abrir um processo criminal e ainda não sabe-
mos q u e m atacou Markelov, n e m q u e m deu a o r d e m .
Em setembro de 2004, Anna foi vítima de um veneno coloca-
do numa xícara de chá a bordo do avião que a levava até Rostov.
Ela estava a c a m i n h o do cerco à escola de Beslan. Desse p o n t o em
diante, a combinação do seu isolamento c o m a crescente pressão
das "autoridades" levou Anna para além das reportagens, para c a m -
panhas e lutas pelos direitos das pessoas que, para ela, eram vítimas
da política do Kremlin.
Durante o cerco ao teatro em M o s c o u , em outubro de 2002,
A n n a havia a s s u m i d o papel ativo c o m o i n t e r m e d i á r i a entre as
autoridades e os seqüestradores. Sua intenção era de fazer o mesmo
em Beslan. E neste p o n t o que alguns jornalistas p o d e r i a m julgar
12 A N N A POLITKOVSKAYA

q u e ela havia cruzado o R u b i c ã o entre repórter objetiva e g u e r r i -


lheira. Mas a Rússia vivia um estado de evolução pós-comunista, se
não revolução. Anna via o respeito pelos direitos h u m a n o s c o m o o
R u b i c ã o . C o m o o regime P u t i n — para ela - estava c o m p r o m e t i d o
c o m o total desrespeito pelos direitos humanos n a T c h e t c h ê n i a , ela
achava que não tinha alternativa a não ser opor-se a ele.
P o r é m , Anna será j u l g a d a p e l o c o n j u n t o da sua o b r a . Q u e
inclui este livro extraordinário. Nele, c o m o em todos os seus escri-
tos, brilha seu incansável compromisso c o m a obtenção da verdade,
mas t a m b é m são visíveis os riscos possivelmente fatais q u e ela cor-
reu para fazer suas reportagens.
Para os muitos de nós q u e continuam a aspirar aos mais altos
padrões de jornalismo, Anna Politkovskaya permanecerá um farol
b r i l h a n d o forte, u m a referência pela qual integridade, coragem e
c o m p r o m e t i m e n t o serão medidos. Q u e m a conheceu ao longo dos
anos p o d e atestar que ela nunca permitiu que seus pés deixassem o
chão, nunca desejou fama ou celebridade. Ela p e r m a n e c e u m o d e s -
ta e despretensiosa até o fim.
Q u e m matou Anna e q u e m está além dele não sabemos. Seu
assassinato roubou, de muitos de nós, fontes de informações e c o n -
tatos absolutamente vitais. C o n t u d o , ele pode ao m e n o s ter ajuda-
do a preparar o caminho para o desmascaramento das forças s o m -
brias que estão no centro do atual regime russo.
Devo confessar que acabei de ler Um diário russo sentindo que
ele deveria ser jogado do ar em enormes quantidades p o r t o d o o
t e r r i t ó r i o da Mãe Rússia, para que todo o seu povo o lesse.

J O N SNOW*
Fevereiro de 2007

* Jon Snow é jornalista, foi correspondente internacional e é âncora do telejornal


inglês Channel 4 News, produzido pela ITN (Independent Television News). Ao longo
de sua carreira, recebeu cinco prémios da Royai Television Society.
PARTE UM

A m o r t e da democracia
parlamentar russa

Dezembro de 2003 a março de 2004


Como Putin conseguiu ser reeleito?

De acordo c o m o censo de outubro de 2002, há 145,2 milhões de


pessoas vivendo na Rússia, t o r n a n d o - a o sétimo país mais p o p u l o -
so do m u n d o . Apenas p o u c o m e n o s de 116 milhões de pessoas,
7 9 , 8 % d a p o p u l a ç ã o , d e s c r e v e m - s e c o m o e t n i c a m e n t e russas.
Temos um eleitorado de 109 milhões de pessoas.

7 de dezembro de 2003
Dia das eleições parlamentares à D u m a , * o dia em que Putin* ini-
ciou sua campanha para a reeleição c o m o presidente. Pela manhã,
ele falou aos povos da Rússia em um distrito eleitoral. Estava alegre
e um p o u c o nervoso. Aquilo era i n c o m u m : em geral ele é m a l -
humorado. C o m um sorriso largo, informou às pessoas à sua volta
que sua amada cadela labrador, C o n n i e , havia tido filhotes naquela
noite. "Vladimir Vladimirovitch estava m u i t o preocupado", disse a
sra. Putin atrás dele. "Estamos c o m pressa de voltar para casa", acres-
centou ela, ansiosa para voltar à cadela cujo senso de oportunidade
político havia dado aquele presente ao partido da Rússia Unida.
N a mesma manhã, e m Iessentuki, u m p e q u e n o hotel n o n o r t e
do Cáucaso, as 13 primeiras vítimas de um ataque terrorista a um
trem local estavam sendo enterradas. O ataque foi perpetrado ao
trem da manhã, conhecido c o m o t r e m dos estudantes, e os jovens
estavam a c a m i n h o da escola.
Q u a n d o , depois de votar, P u t i n voltou-se para os jornalistas,
parecia q u e certamente iria expressar suas condolências às famílias
dos m o r t o s . Talvez até pedir desculpas pelo fato de o governo ter
mais u m a vez fracassado na proteção dos seus cidadãos. Em vez
16 A N N A POLITKOVSKAYA

disso, ele lhes c o n t o u c o m o estava satisfeito c o m os novos filhotes


da labrador.
Meus amigos me telefonaram. "Desta vez ele m e t e u os pés pelas
mãos. Agora os russos nunca votarão no partido da Rússia Unida."
Porém, por volta da meia-noite, quando c o m e ç a r a m a chegar
os resultados, inicialmente do Extremo O r i e n t e , depois da Sibéria,
dos Urais e assim p o r diante, de leste para oeste, muitos ficaram em
estado de choque. Todos os meus amigos e conhecidos que eram
partidários da democracia estavam novamente ligando uns para os
o u t r o s e d i z e n d o : " N ã o p o d e ser verdade. N ó s v o t a m o s e m
Iavlinski; entretanto... Alguns haviam votado em Khakamada."
Pela manhã, não havia mais incredulidade. A Rússia, rejeitando
as mentiras e a arrogância dos democratas, havia se rendido silen-
ciosamente a Putin. A maioria tinha votado no partido da Rússia
U n i d a (RU), um fantasma cujo único programa político era apoiar
Putin. O partido reunira os burocratas russos em t o r n o da sua ban-
deira - t o d o s os a n t i g o s funcionários do P a r t i d o C o m u n i s t a
Soviético e da Liga C o m u n i s t a Jovem, agora empregados por inú-
meros órgãos governamentais — e eles haviam, em conjunto, aloca-
do enormes quantias para promover suas farsas eleitorais.
Relatórios que recebemos das regiões mostram c o m o isso foi
feito. Perto de um distrito eleitoral em Saratov, u m a senhora estava
distribuindo vodca de graça a uma mesa c o m u m a bandeira com os
dizeres "Vote em Tretiak", o candidato do R U . Tretiak venceu. Os
deputados da D u m a de toda a província foram derrotados por can-
didatos do partido da Rússia Unida, c o m exceção de uns poucos
que haviam entrado para o partido pouco antes das eleições. A cam-
panha eleitoral em Saratov foi marcada pela violência, em que can-
didatos não aprovados pelo Rússia U n i d a e r a m espancados p o r
"assaltantes não identificados", optando p o r deixar a disputa. Um
deles, que continuou a campanha contra um proeminente candida-
to do RU, por duas vezes teve sacos plásticos c o m partes de corpos
atirados por sua janela: duas orelhas e um coração. A comissão elei-
toral da província dispunha de uma linha telefônica para receber
denúncias de irregularidades durante a campanha e a eleição, mas
80% das chamadas e r a m simplesmente tentativas de chantagear as
empresas locais de serviços públicos. Havia q u e m ameaçasse não
UM DIÁRIO RUSSO 17

votar, a m e n o s que os vazamentos em seus encanamentos fossem r e -


parados ou seus radiadores consertados. Isto funcionou muito b e m .
Os habitantes dos distritos de Zavod e Lenin conseguiram o conser-
to de suas instalações de aquecimento e água.Várias aldeias no dis-
trito de Atkar finalmente tiveram sua eletricidade e seus telefones re-
ligados depois de vários anos de espera. As pessoas foram seduzidas.
Mais de 6 0 % do eleitorado da cidade votou e na província o n ú m e -
ro foi 5 3 % . Mais que suficiente para validar as eleições.
U m a das observadoras dos democratas em um distrito eleitoral
em Arkadak viu pessoas votando duas vezes, u m a vez na cabine e
uma segunda p r e e n c h e n d o u m a cédula sob a orientação do presi-
dente da comissão eleitoral local. Ela correu para ligar o telefone de
denúncia, mas foi puxada pelos cabelos para longe do aparelho.
ViatcheslavVolodin, um dos principais funcionários do RU em
Balakov, v e n c e u p o r ampla margem, c o m 82,9% dos votos; u m a
vitória sem precedentes para um político destituído de carisma,
renomado s o m e n t e por seus discursos incoerentes na televisão em
apoio a Putin. Ele não havia anunciado n e n h u m a política específi-
ca para p r o m o v e r os interesses da população local. Em toda a p r o -
víncia de Saratov, o RU teve 48,2% dos votos, sem necessidade de
publicar ou defender um manifesto. Os comunistas tiveram 15,7%,
os liberais democratas* (o partido de Vladimir Jirinovski) 8,9%, o
partido nacionalista R o d i n a (Terra Natal)* 8,9%. O único embara-
ço foi q u e mais de 10% dos votos foram para " N e n h u m dos n o m e s
anteriores". Um décimo dos eleitores tinha ido até o distrito elei-
toral, b e b i d o a vodca e dito a todos que fossem para o inferno.
De acordo c o m os números da Comissão Eleitoral Nacional,
n a T c h e t c h ê n i a , um território sob total controle militar, foram apu-
rados votos em n ú m e r o 10% superior ao n ú m e r o de eleitores.
São Petersburgo manteve sua fama de cidade mais progressista
e c o m maior tendência democrática da Rússia. Porém, até m e s m o
lá o RU obteve 3 1 % dos votos e o R o d i n a , cerca de 14%. A U n i ã o
de Forças de Direita* e o partido Iabloko* (Maçã) tiveram s o m e n -
te 9% cada; os comunistas, 8,5%, e os liberais democratas, 8%. Os
candidatos independentes Irina Khakamada, Alexander Golov, Igor
Artemiev e Grigori Tomtchin, democratas e liberais conhecidos em
toda a Rússia, sofreram uma ignominiosa derrota.
IS A N N A POLITKOVSKAYA

Por quê? As autoridades estatais estão esfregando as mãos de


alegria, dizendo que "os democratas só p o d e m culpar a si m e s m o s "
por ter perdido sua ligação c o m o povo. As autoridades supõem que
agora têm o povo do seu lado.
Aqui estão alguns resumos de trabalhos escritos por alunos da
escola de São Petersburgo sobre os temas " C o m o minha família vê
as eleições" e "A eleição de uma nova D u m a ajudará o presidente
em seu trabalho?"

M i n h a família desistiu de votar. Eles n ã o acreditam mais em


eleições. Elas não vão ajudar o presidente. Todos os políticos
p r o m e t e m tornar a vida melhor, mas infelizmente... Eu gosta-
ria de mais honestidade...

As eleições são u m a besteira. N ã o importa q u e m é eleito para


a D u m a , p o r q u e nada muda, porque não elegemos pessoas que
irão melhorar as coisas no país, mas pessoas q u e roubam. Essas
eleições não vão ajudar a ninguém — n e m o presidente, n e m os
mortais c o m u n s .

Nosso g o v e r n o é simplesmente ridículo. Eu gostaria que as


pessoas não fossem tão loucas por dinheiro, q u e houvesse pelo
menos algum sinal de princípios morais em nosso governo e
que eles enganassem as pessoas o m í n i m o possível. O governo
é o servidor do povo. N ó s o elegemos, e não o contrário. Para
falar a verdade, não sei por que nos pediram para escrever esta
redação. Só i n t e r r o m p e u nossas aulas. De qualquer maneira, o
governo não vai ler.

C o m o m i n h a família vê as eleições? Eles não estão interessados


nelas. Todas as leis que a D u m a aprovou foram sem sentido e
nada fizeram de útil para o povo. Se t u d o isto não é para o
povo, para q u e m é?

As eleições irão ajudar? É uma pergunta interessante. Teremos


de esperar e ver. É m u i t o provável q u e elas não ajudem em
nada. N ã o sou político, não tenho a educação necessária para
isso, mas o principal é que precisamos c o m b a t e r a corrupção.
Enquanto tivermos bandidos nas instituições estatais do país, a
vida não vai melhorar. Sabe o que está a c o n t e c e n d o agora no
UM DIÁRIO RUSSO 19

exército? Só u m a intimidação interminável. Se no passado as


pessoas costumavam dizer que o exército transformava garotos
em h o m e n s , hoje ele os transforma em deficientes. M e u pai diz
q u e se recusa a permitir q u e seu filho vá para um exército
c o m o esse. "Para m e u filho ser um aleijado depois do exército,
ou ainda pior - para m o r r e r n u m a trincheira na Tchetchênia,
lutando sem um motivo claro, para que alguém possa ganhar
p o d e r sobre a república?" E n q u a n t o o atual governo estiver no
poder, não vejo saída para a presente situação. N ã o agradeço a
eles p o r minha infância infeliz.

P a r e c e m idéias de idosos, não dos futuros cidadãos da N o v a


Rússia. A q u i está o custo real do cinismo político - a rejeição pela
geração mais nova.

8 de dezembro
Pela m a n h ã , enfim fica claro que, e m b o r a a ala esquerda tenha mais
ou m e n o s sobrevivido, a "ala direita" liberal e democrata foi d e r r o -
tada. O partido Iabloko e o p r ó p r i o Grigori Iavlinski não c o n s e -
guiram chegar à D u m a , n e m a U n i ã o de Forças de Direita c o m
Bóris N e m t s o v * e Irina Khakamada, n e m n e n h u m dos candidatos
independentes. Hoje não há no Parlamento russo quase n i n g u é m
capaz de defender os ideais d e m o c r á t i c o s e fazer u m a oposição
construtiva e inteligente ao Kremlin.
Mas o pior não é o triunfo do R U . Lá pelo fim do dia, c o m
quase todos os votos contados, fica evidente que, pela primeira vez
desde o colapso da U R S S , a Rússia favoreceu particularmente os
nacionalistas radicais, que p r o m e t e r a m aos eleitores q u e i r i a m
enforcar todos os "inimigos da Rússia".
E claro q u e isto é terrível, mas talvez seja o que se deve esperar
n u m país o n d e 4 0 % da p o p u l a ç ã o v i v e m abaixo até m e s m o da
nossa m e d o n h a linha de pobreza oficial. Estava claro que os d e m o -
cratas não tinham interesse em estabelecer contato c o m esse seg-
m e n t o da população. Eles preferiram se concentrar nos ricos e nos
m e m b r o s da e m e r g e n t e classe média, defendendo a p r o p r i e d a d e
privada e os interesses dos novos p r o p r i e t á r i o s de imóveis. Os
pobres não possuem propriedades e assim os democratas os ignora-
ram. Os nacionalistas não.
A N N A POLITKOVSKA\
20

C o m o era de se esperar, esse segmento do eleitorado afastou


se dos democratas, ao passo que os novos proprietários trocaram i
j p l o k o e a U n i ã o de Forças de Direita pelo RU tão logo percebe
a

j i que Iavlinski, N e m t s o v e Khakamada pareciam estar perdendc


r a I

• fluência j u n t o ao Kremlin. Os ricos fugiram para o n d e havia uma


n

c0<i c e n t r a ç ã o dos funcionários públicos, sem os quais as empresas


rUj s a s , que em sua maioria são corruptas e apoiam e alimentam a
f r u p ç ã o oficial, não p o d e m prosperar.
c 0

P o u c o antes dessas eleições, os altos representantes do RU


j-^iam abertamente: "Temos muito dinheiro! As empresas doaram
t o que não sabemos o que fazer c o m ele!" Eles não estavam se
t a ( 1

v3, i g l o r i a n d o . Tratava-se d e s u b o r n o , q u e significava: " N ã o s e


d.ueçam de nós depois das eleições, está b e m ? " Em um país cor-
es

e t o , as empresas são até mais inescrupulosas do que nos países


d e a c o r r u p ç ã o ao menos foi reduzida a um nível tolerável e não
o J l

> 0 c i a l m e n t e aceitável.
s

Q u e outra necessidade tinham eles do Iavlinski ou da U n i ã o de


p cças de Direita? Para nossos novos-ricos, liberdade nada t e m a
0

v ef com partidos políticos. Liberdade é a liberdade para tirar ótimas


as
féi> - Q u a n t o mais ricos ficam, maior a freqüência c o m a qual
p ilem voar para longe e não para Antalia na Turquia, mas para o
0

-rjjti ou Acapulco. Para a maioria deles, liberdade equivale a acesso


l u x o . Eles a c h a m mais conveniente não fazer lobby por seus i n t e -
a 0

r é s p o r i n t e r m é d i o dos partidos e m o v i m e n t o s p r ó - K r e m l i n ,
ja maioria simplesmente é corrupta. Para esses partidos, cada p r o -
cll

y^ina t e m seu preço; você paga o dinheiro e consegue a legislação


i que necessita ou a questão é levada p o r um deputado da D u m a
£

Gabinete do Procurador-geral. As pessoas até começaram a falar


a0

^ ' d e n ú n c i a s de deputados". Hoje em dia, esse é um m e i o eficaz


jji tirar seus concorrentes dos negócios.
A c o r r u p ç ã o t a m b é m explica o c r e s c i m e n t o do chauvinista
pitido Liberal D e m o c r a t a , liderado p o r Jirinovski. Esta é u m a
aposição" populista, que, na realidade, não é u m a oposição p o r -
qjjG, apesar de sua propensão a explosões histéricas sobre todos os
p>s de questões, sempre apoia a linha do Kremlin. O partido rece-
t] (

be doações substanciais das nossas c o m p l e t a m e n t e cínicas e apolíti-


ca empresas de p o r t e médio por defender interesses privados no
j ^ m l i n e territórios adjacentes c o m o o Gabinete do Procurador-
UM DIÁRIO RUSSO 21

geral, o Ministério do Interior, o Escritório Federal de Segurança,


o Ministério da Justiça e os tribunais. Eles usam a técnica das d e -
núncias de deputados.
Foi assim que Jirinovski entrou na D u m a nas duas últimas elei-
ções. Agora ele tem invejáveis 38 assentos.
O p a r t i d o R o d i n a é outra organização chauvinista, liderada
p o r D m i t r i R o g o z i n * e criada pelos doutores do Kremlin especi-
ficamente para esta eleição. O objetivo era tirar os eleitores m o d e -
radamente nacionalistas dos Bolcheviques Nacionais, mais e x t r e -
mistas. O R o d i n a também se saiu b e m , c o m 37 assentos.
*
Em t e r m o s ideológicos, a nova D u m a era orientada para o tradi-
cionalismo russo e não para o O c i d e n t e . Todos os candidatos p r ó -
Putin haviam forçado rigidamente esta linha. O RU encorajou a
visão de q u e o povo russo tinha sido h u m i l h a d o pelo O c i d e n t e ,
c o m p r o p a g a n d a a b e r t a m e n t e antiocidental e anticapitalista. Na
lavagem cerebral anterior às eleições, não havia n e n h u m a m e n ç ã o
a "trabalho á r d u o " , " c o n c o r r ê n c i a " ou "iniciativa", exceto em c o n -
textos pejorativos. Por outro lado, falava-se m u i t o em "tradições
nativas russas".
O eleitorado recebeu u m a variedade de patriotismo para todos
os gostos. O R o d i n a ofereceu um p a t r i o t i s m o h e r ó i c o ; o R U ,
patriotismo moderado, e o Partido Liberal Democrata, o chauvinis-
mo absoluto. Todos os candidatos favoráveis a Putin fizeram g r a n -
des demonstrações de oração e persignação sempre que localiza-
vam u m a camera de televisão, beijando a C r u z e as mãos dos sacer-
dotes ortodoxos.
T u d o aquilo era risível, mas as pessoas gostaram. Os partidos
favoráveis a P u t i n tinham agora a maioria absoluta na D u m a . O
R U , partido criado pelo Kremlin, conseguiu 212 assentos. O u t r o s
65 " i n d e p e n d e n t e s " t a m b é m eram pró-Kremlin, para todos os efei-
tos. O resultado foi o advento de um sistema de um partido e m e i o ,
u m g r a n d e p a r t i d o d o g o v e r n o e vários p e q u e n o s p a r t i d o s d e
orientação similar.
Os democratas falavam muito da importância da criação de um
autêntico sistema pluripartidário na Rússia. Foi um assunto pelo
qual Ieltsin tinha interesse pessoal, mas agora tudo aquilo estava
22 A N N A POLI TKOVSK.AYA

perdido. A nova configuração da D u m a excluía a possibilidade de


fortes discordâncias.
P o u c o depois das eleições, Putin c h e g o u ao p o n t o de nos i n -
formar q u e o Parlamento não era um lugar para debates, mas para
limpeza legislativa. Ele estava gostando do fato de a nova D u m a não
ser dada a debates.
Os comunistas, c o m o partido, obtiveram 41 assentos, além de
12 por i n t e r m é d i o de comunistas individuais independentes. Sofro
em dizer q u e h o j e os d e p u t a d o s c o m u n i s t a s são as vozes mais
moderadas e sensatas na Quarta D u m a . Eles foram derrubados há
somente 12 anos, contudo, no final de 2 0 0 3 , já haviam sido transfi-
gurados na grande esperança branca dos democratas russos.
N o s meses que se seguiram, a aritmética na D u m a m u d o u um
pouco, c o m deputados migrando de um partido para outro. Tudo
q u e a administração presidencial queria q u e fosse aprovado era
aprovado pela maioria dos votos. E m b o r a em dezembro de 2003 o
RU não houvesse o b t i d o u m a m a i o r i a suficiente para m u d a r a
Constituição (essas mudanças exigem 301 votos), isto não chegou a
ser um problema. Em termos práticos, o Kremlin "planejou" u m a
maioria constitucional. Escolhi a palavra c o m cuidado. As eleições
foram cuidadosamente planejadas e executadas. Foram realizadas
c o m numerosas violações à legislação eleitoral e, neste aspecto,
foram forjadas. N ã o havia n e n h u m a possibilidade de se questionar
legalmente qualquer aspecto delas, p o r q u e os burocratas já haviam
assumido o controle do judiciário. N ã o h o u v e u m a única sentença
contra os resultados por qualquer instituição judicial, da Suprema
C o r t e para baixo, por mais inequívocas q u e fossem as evidências.
Esta sanção judicial da Grande Mentira foi justificada "para evitar
desestabilizar a situação do país".
Os recursos administrativos do Estado entraram em ação nessas
eleições exatamente da mesma forma c o m que entravam no p e r í o -
do soviético. Isto t a m b é m foi verdade nas eleições de 1996 e 2000,
para garantir a eleição e Ieltsin, embora ele estivesse velho e d e c r é -
pito. Desta vez, p o r é m , nada deteve a administração presidencial. Os
funcionários se u n i r a m ao RU c o m o m e s m o entusiasmo q u e
t i n h a m c o m o Partido Comunista da U n i ã o Soviética ( P C U S ) .
Putin reviveu o sistema soviético c o m o n e m Gorbatchov ou Ieltsin
UM DIÁRIO RUSSO 23

haviam feito. Sua realização única foi o estabelecimento do R U ,


para regozijo dos funcionários públicos satisfeitíssimos p o r se tor-
narem membros do novo P C U S . Eles haviam sentido a falta do Big
Brother, que sempre pensava p o r eles.
P o r é m , o eleitorado russo t a m b é m estava sentindo falta do Big
Brother, pois não ouvira palavras de conforto por parte dos d e m o -
cratas. N ã o h o u v e protestos. Os slogans eleitorais do RU foram
roubados dos comunistas e falavam de ricos sanguessugas r o u b a n d o
nossa riqueza nacional e nos deixando em andrajos. Os slogans se
mostraram tão populares precisamente porque agora não eram os
comunistas que os estavam proclamando.
T a m b é m deve ser dito que, em 2 0 0 3 , pelos esforços dos m e m -
bros do R U , a maioria dos nossos cidadãos apoiou sinceramente a
prisão do oligarca Mikhail Khodorkovski,* dirigente da empresa
de petróleo Iukos. C o n s e q ü e n t e m e n t e , embora a manipulação dos
recursos administrativos do E s t a d o para fins políticos fosse um
abuso, os políticos tinham apoio do público. Era apenas u m a ques-
tão de o governo não deixar nada ao acaso.

8 de dezembro
L o g o c e d o os analistas políticos se r e u n i r a m no p r o g r a m a Livre
Debate para discutir os resultados à medida que chegassem. Eles
estavam tensos. Igor Bunin falou de u m a crise do liberalismo russo,
de c o m o o caso da Iukos havia subitamente provocado u m a onda
de sentimento antioligárquico durante a campanha. Eles falaram do
ódio q u e havia se acumulado no coração de muitas pessoas, " e s p e -
cialmente pessoas decentes q u e não podiam apoiar Jirinovski", e do
fato de o eclético RU ter conseguido unir todos, dos mais liberais
aos mais reacionários. Ele previu que o presidente não iria aceitar
os liberais na elite dirigente.
N o m e s m o programa,Viatcheslav Nikonov, neto d e Molotov,
sugeriu que os jovens não haviam votado e que esta seria a p r i n c i -
pal razão para a derrota dos democratas. "Ivan, o Terrível e Stalin
são mais do gosto do povo russo."
O programa c o n t i n u o u à tarde. O clima era funéreo, c o m a
sensação de u m a tempestade i m i n e n t e . Aqueles q u e estavam no
estúdio pareciam mais inclinados a pedir abrigo do q u e a lutar.
24 A N N A POLITKOVSKAYA

Georgi Satarov, ex-conselheiro do presidente Ieltsin, insistia que o


resultado fora decidido pelo "voto nostálgico" das pessoas saudosas
da U R S S . Os democratas entraram c o m m u i t o estardalhaço. O
escritorVasili Aksionov reclamou que os liberais haviam deixado de
explorar a ilegalidade do caso da Iukos. Ele tinha razão. Os d e m o -
cratas deixaram de assumir uma posição, para um lado ou para o
outro, sobre a questão do tratamento d a d o a Khodorkovski.

O Livre Debate logo foi tirado do ar pela NTV, sobre o que P u t i n


c o m e n t o u : " Q u e m precisa de um programa para políticos p e r d e -
dores?" S e m dúvida ele se referia a Iavlinski, N e m t s o v e outros
liberais e democratas derrotados.
Viatcheslav N i k o n o v iria se transformar, poucos meses depois,
em partidário ferrenho de Putin. Haveria muitas conversões entre
os analistas políticos.
Assim, para o n d e iríamos? Nossas liberdades nos foram c o n c e -
didas de cima para baixo e os democratas continuaram a correr ao
Kremlin em busca de garantias de que não seriam eliminados, acei-
tando de fato o direito do Estado de regular o liberalismo. Eles c o n -
tinuaram a ceder terreno e agora não tinham para o n d e correr.
Em 25 de novembro, 13 dias antes das eleições, vários de nós
jornalistas h a v i a m conversado p o r cerca d e c i n c o horas c o m
Grigori Iavlinski, do partido Iabloko. Ele parecia m u i t o calmo e
confiante, quase arrogante, de q u e conseguiria se eleger para a
D u m a . Suspeitamos de que algum pacto tinha sido fechado c o m a
Administração Presidencial; a provisão de recursos administrativos
para apoiar o Iabloko em troca do " e n t e r r o " de várias questões
durante a campanha. Para m i m e para muitos outros que costuma-
vam votar no Iabloko, aquilo deu arrepios.
Iavlinski não tinha tempo para a idéia de uma aliança entre o
Iabloko e a U n i ã o de Forças de Direita.
" A c h o que a U n i ã o de Forças de Direita teve e n o r m e i m p o r -
tância na solução da guerra na T c h e t c h ê n i a . Era o único partido
que poderia, de algum m o d o , ser descrito c o m o democrático e a
favor da s o c i e d a d e civil; c o n t u d o , eles p r e f e r i r a m dizer q u e o
Exército R u s s o estava renascendo na Tchetchênia e que qualquer
pessoa q u e pensasse de outra forma seria um traidor que estava
esfaqueando pelas costas as tropas russas."
UM DIÁRIO RUSSO 25

" C o m q u e m então o Iabloko p o d e se unir contra a guerra na


Tchetchênia?"
"Agora? N ã o sei. Se a U n i ã o de Forças de Direita admitisse
q u e estava errada, poderíamos discutir a possibilidade de u m a alian-
ça c o m ela. Mas, e n q u a n t o N e m t s o v fingir ser u m a p o m b a da paz
e Tchubais* estiver falando do ideal liberal, você terá de me descul-
par, mas não estou preparado para discutir essa possibilidade. C o m
q u e m mais poderíamos nos unir, eu não sei."
" M a s n ã o foi a U n i ã o de Forças de D i r e i t a q u e i n i c i o u a
segunda Guerra na T c h e t c h ê n i a ? "
" N ã o , foi P u t i n , mas a U n i ã o o a p o i o u c o m o c a n d i d a t o à
Presidência e, incidentalmente, legitimou-o c o m o líder guerreiro
aos olhos da elite intelectual e de toda a classe média."
"O senhor está em luta contra a U n i ã o de Forças de Direita.
N ã o quer uma aliança c o m ela, mas fez várias concessões ao presi-
dente e seu gabinete para obter algum apoio administrativo para
sua campanha. No m e u entender, e t e m havido m u i t o s boatos a
este respeito, a guerra na T c h e t c h ê n i a é precisamente a concessão
em questão. O senhor c o n c o r d o u em não fazer m u i t o barulho a
respeito da questão tchetchena e, em troca, garantiram-lhe a p o r -
centagem de votos necessária à sua eleição para a D u m a . "
" N ã o confie em boatos. Esta é u m a abordagem c o m p l e t a m e n -
te errada. T a m b é m há boatos sobre seu p r ó p r i o j o r n a l . N e n h u m
j o r n a l p o d e escrever a respeito da Tchetchênia, mas o seu não foi
fechado p o r fazê-lo. O b o a t o é que eles lhe dão esse espaço para
que possam ir a Estrasburgo e sacudir seu jornal para mostrar que
temos u m a imprensa livre. Vejam o que está sendo escrito sobre a
T c h e t c h ê n i a na Novaya gazetal N ã o creio, n e m p o r um m o m e n t o ,
q u e as coisas sejam realmente assim..."
" M e s m o assim, dê u m a resposta direta, p o r favor."
" E u nunca fechei n e n h u m acordo deste gênero, n e m c o n c o r -
dei em fazer concessões. Isto está fora de questão."
"Mas o senhor teve conversações c o m o governo?"
" N ã o , nunca. Eles falaram de nos dar dinheiro em setembro de
1999."
" D e o n d e vinha aquele dinheiro?"
" N ã o chegamos a esse tipo de detalhe, p o r q u e eu disse que
aquilo era inaceitável. Eu disse q u e não era contra P u t i n - só o
26 A N N A POLITKOVSKAYA

conhecia de vista -, mas dizer q u e eu endossaria t u d o o q u e ele iria


fazer c o m seis meses de antecedência era impossível. A resposta que
me deram foi: 'Então, neste caso, t a m b é m não p o d e m o s chegar a
um acordo c o m você.' Mais tarde, depois das eleições, q u a n d o os
líderes dos partidos foram convidados ao K r e m l i n e r e c e b e r a m
lugares de acordo c o m sua porcentagem da votação, um dos convi-
dados mais b e m c o l o c a d o disse: 'E você p o d e r i a estar s e n t a d o
aqui...' Eu respondi:'Bem, é assim que as coisas são.' Desta vez eles
n e m ofereceram."
" Q u a n d o o senhor falou c o m Putin pela última vez?"
" E m 11 de julho, a respeito do caso de Khodorkovski e as bus-
cas na Iukos."
"A seu pedido?"
"Sim. Eles reuniram t o d o o Conselho de Estado e os líderes
dos partidos políticos no Kremlin para discutir programas e c o n ô -
micos etc. A reunião t e r m i n o u às dez e meia da noite e eu disse a
P u t i n que precisava falar u r g e n t e m e n t e c o m ele. Às o n z e e meia,
e n c o n t r e i - m e c o m ele na sua casa. Discutimos vários problemas,
mas o principal foi Khodorkovski."
" O senhor c o m p r e e n d e u q u e Khodorkovski seria preso?"
" N ã o havia c o m o saber c o m antecedência, mas estava claro
q u e o caso era levado m u i t o a sério. Percebi que algo de r u i m iria
a c o n t e c e r a Khodorkovski q u a n d o o Financial Times de Londres
publicou um e n o r m e artigo c o m fotos de Khodorkovski, Mikhail
F r i d m a n * e R o m a n Abramovitch, sob u m a grande m a n c h e t e , coisa
q u e o j o r n a l n o r m a l m e n t e não faz. A matéria dizia que aqueles oli-
garcas estavam transferindo suas riquezas para o O c i d e n t e e se p r e -
parando para vender tudo lá. Havia citações de Fridman, dizendo
q u e era impossível criar empresas modernas na Rússia, que, apesar
de eles serem realmente gerentes muito bons, não havia c o m o , em
m e i o a toda a corrupção, criar empresas adequadas em nosso país."
"O senhor já aceitou o fato de que Putin vencerá u m a segun-
da eleição?"
" M e s m o que eu não aceite, ele o fará."
" C o m o o senhor avalia realisticamente suas chances?"
" C o m o vou saber? Nossa pesquisa nos diz que temos oito ou
nove p o r cento, mas estamos falando de eleições em que os votos
UM DIÁRIO RUSSO 21

são somados aqui, somados ali, e eles chamam isso de 'democracia


administrada'. As pessoas simplesmente desistem."
" T e n h o a impressão de q u e o senhor t a m b é m está desistindo.
Afinal, o povo da Geórgia rejeitou os resultados de eleições frauda-
das e utilizou métodos extraparlamentares para alterar a situação. O
senhor deveria fazer o mesmo? Todos nós deveríamos? Está prepa-
rado para recorrer a m é t o d o s extraparlamentares?"
" N ã o , não tomarei esse caminho, porque sei que na Rússia isso
terminaria em d e r r a m a m e n t o de sangue e não o meu."
"E quanto aos comunistas? Acha que poderão ir às ruas?"
"Todos estão r e c e b e n d o gradualmente a informação de que
receberão entre 12 e 13%. Isto já se t o r n o u pensamento convencio-
nal. N ã o descarto essa possibilidade, porque politicamente P u t i n os
t e m enganado c o m sucesso. O RU dificilmente irá às ruas p o r q u e
recebeu 3 5 % e não 38 e não há outros partidos de massa. Eles sim-
plesmente não existem. D e p o i s de 1996, a formação de u m a o p o -
sição política na Rússia t o r n o u - s e u m a impossibilidade prática. Em
p r i m e i r o lugar, carecemos d e u m judiciário i n d e p e n d e n t e . U m a
oposição precisa poder apelar para um sistema judiciário i n d e p e n -
dente. Em segundo, carecemos de mídia de massa i n d e p e n d e n t e . E
claro que me refiro à televisão e principalmente aos canais Um e
Dois. Em terceiro lugar, não há fontes independentes de financia-
m e n t o para nada de substancial. Na ausência desses três f u n d a m e n -
tos, é impossível criar u m a oposição política viável na Rússia."
" H o j e não existe democracia na Rússia, p o r q u e democracia
sem oposição é impossível. Todos os pré-requisitos para u m a o p o -
sição política foram destruídos q u a n d o Ieltsin derrotou os c o m u -
nistas em 1996 e em grande parte nós permitimos que eles fossem
destruídos. Hoje não existe n e m m e s m o a possibilidade teórica de
u m a manifestação em qualquer parte da Rússia.
" U m a peculiaridade do atual regime é q u e ele não esmaga
b r u t a l m e n t e a oposição, c o m o se fazia na era do totalitarismo.
N a q u e l a época, o sistema simplesmente destruiu as instituições
democráticas. Hoje, as autoridades do Estado estão adaptando todas
as instituições civis e públicas aos seus propósitos. Se alguém tenta
resistir, é simplesmente substituído. Caso a pessoa não queira ser
substituída, é melhor que t o m e cuidado. Noventa e cinco p o r cento
2x A N N A POLITKOVSKAYA

de todos os problemas são resolvidos usando essas técnicas de adap-


tação ou substituição. Se não gostamos do Sindicato dos Jornalistas,
criaremos o Mediasoiuz. Se não gostamos da N T V c o m este p r o -
prietário, nós a reinventaremos c o m um proprietário diferente.
"Se eles começarem a demonstrar um interesse indesejado pelo
seu j o r n a l , sei perfeitamente o que acontecerá. Eles c o m e ç a m c o m -
prando seu pessoal, criam uma rebelião interna. Isso não acontece
rapidamente, você t e m uma boa equipe, mas gradualmente, usando
dinheiro e outros métodos, convidando as pessoas para virem para
mais p e r t o do poder, apertando os parafusos, a c o m o d a n d o , t u d o
c o m e ç a a se desmanchar. Foi o q u e fizeram c o m a N T V . G l e b
Pavlovski declarou abertamente que eles haviam assassinado a p o l í -
tica pública. Era verdade. As autoridades t a m b é m deliberadamente
criam pares, de forma que todos possam ser trocados. O R o d i n a
p o d e assumir os comunistas, a U n i ã o de Forças de Direita p o d e
assumir o Iabloko; o Partido do Povo p o d e assumir o R U . "
"Mas, se eles estão dispostos a usar todos esses truques, do que
têm medo?"
" D e mudanças. As autoridades do Estado agem de acordo c o m
seus interesses corporativos. N ã o q u e r e m p e r d e r p o d e r . Isso as
colocaria n u m a situação muito perigosa e elas sabem disso."
Iavlinski não conseguiu se eleger para a D u m a .
Estávamos vendo uma crise da democracia parlamentar russa
na era Putin? N ã o , estávamos t e s t e m u n h a n d o sua m o r t e . Em p r i -
m e i r o lugar, c o m o colocou c o m precisão Lilia Chevtsova, nossa
m e l h o r analista política, os ramos legislativo e executivo do gover-
no t i n h a m se fundido e isto havia significado o renascimento do
sistema soviético. Em conseqüência desse fato, a D u m a era p u r a -
m e n t e decorativa, um fórum para aprovação das decisões de Putin.
Em segundo lugar - e é p o r isso que este foi o fim e não m e r a -
m e n t e u m a crise —, o povo russo deu seu consentimento. N i n g u é m
se levantou. N ã o houve manifestações, protestos em massa, n e m
atos de desobediência civil. O eleitorado aceitou o embuste e c o n -
cordou em viver, não apenas sem Iavlinski, mas sem democracia.
C o n c o r d o u em ser tratado c o m o um idiota. De acordo c o m u m a
pesquisa de opinião oficial, 12% dos russos pensavam que os repre-
sentantes do RU se saíram m e l h o r nos debates anteriores às elei-
ções pela televisão. Isto apesar do fato de os representantes do RU
UM DIÁRIO RUSSO 29

terem se recusado t e r m i n a n t e m e n t e a participar de qualquer deba-


te pela televisão. Eles nada tinham a dizer, a não ser que seus atos
falavam por eles. C o m o observou A k s i o n o v , " 0 grosso do eleitora-
do disse:'Vamos deixar as coisas c o m o estão.'"
Em outras palavras, voltemos à U R S S — m e i o retocada, polida,
modernizada, mas a boa e velha U n i ã o Soviética, agora c o m o capi-
talismo burocrático o n d e o funcionário público é o principal oli-
garca, muito mais rico do que qualquer proprietário de terras ou
capitalista.
O corolário foi que, se voltássemos à U R S S , P u t i n iria clara-
m e n t e vencer em março de 2004. Esta era u m a conclusão obriga-
tória. A administração presidencial c o n c o r d o u e p e r d e u t o d o o
senso de vergonha. N o s meses que se seguiram até 14 de março de
2004, quando Putin de fato foi eleito, os limites dentro do Estado
desapareceram e a única restrição era a consciência do presidente.
Infelizmente, a natureza h u m a n a e a natureza da sua profissão ante-
rior indicavam que isto não era o bastante.

9 de dezembro
As 10:53 de hoje u m a m u l h e r - b o m b a suicida explodiu a si mesma
diante do Nationale H o t e l em M o s c o u , no o u t r o lado da praça
o n d e está a D u m a e a 145 metros do Kremlin. " O n d e fica a D u -
m a ? " , perguntou ela a um transeunte antes de explodir. D u r a n t e
m u i t o tempo, a cabeça de um turista chinês que estivera ao lado dela
ficou no asfalto, sem o corpo. As pessoas gritavam p o r ajuda, mas,
embora não haja carência de policiais nessa área, eles só se aproxima-
ram do local da explosão 20 minutos depois, t e m e n d o outra explo-
são. Meia hora depois do incidente, chegaram as ambulâncias.
E a polícia fechou a rua.

10 de dezembro
Há poucos comentários sobre o incidente terrorista ou sobre por
que esses atos o c o r r e m .
A Câmara Alta da Rússia, o Soviet da Federação, anunciou a
data da posse de Putin para o segundo mandato. Ele imediatamente
acelera suas atividades, usando todos os tipos de aniversários e datas
30 A N N A POLITKOVSKAYA

especiais para se apresentar, ao país e ao m u n d o , c o m o o maior p e r i -


to da Rússia em qualquer coisa que esteja sendo c o m e m o r a d a . No
Dia do Criador de Gado, ele é nosso mais ilustre criador de gado,
no Dia dos Construtores, nosso primeiro empreiteiro. É bizarro, é
claro, mas Stalin fazia o m e s m o jogo.
H o j e é o Dia Internacional dos Direitos H u m a n o s e Putin c o n -
vocou nossos quatro mais destacados defensores dos direitos h u m a -
nos (selecionados por ele) ao Kremlin para uma reunião da Comissão
Presidencial dos Direitos H u m a n o s . C o m e ç o u às 18:00 e foi presidi-
da p o r Ella Parnfilova,* u m a democrata da era de Ieltsin.
O pediatra dr. Leonid R o c h a l falou por um m i n u t o a respeito
d e q u a n t o ama o p r e s i d e n t e ; L i u d m i l a Alexeieva, d o M o s c o w
H e l s i n k i G r o u p , falou p o r c i n c o m i n u t o s do uso i m p r ó p r i o de
recursos do Estado durante eleições (o que Putin não n e g o u ) ; Ida
Kuklina, da Liga de Comitês de Mães de Soldados, falou p o r três
m i n u t o s da exploração de soldados c o m o escravos e outros h o r r o -
res d o e x é r c i t o ; Valeri A b r a m k i n , d o C e n t r o pela R e f o r m a d o
Sistema de Justiça Criminal, falou p o r cinco minutos das coisas que
a c o n t e c e m nas casas de detenção (o presidente pareceu gostar mais
do discurso dele do que dos outros); Ella Parnfilova falou extensa-
m e n t e das péssimas relações entre os defensores dos direitos h u m a -
nos e órgãos de aplicação da lei; Svetlana G a n n u c h k i n a , do
M e m o r i a l de Direitos H u m a n o s , teve três minutos para explicar as
i m p l i c a ç õ e s das novas leis sobre a cidadania; Tâmara M o r c h t -
chakova, conselheira do Tribunal Constitucional, teve sete minutos
para apresentar propostas para tornar publicamente responsáveis as
autoridades do Estado; Alexei S i m o n o v falou por três m i n u t o s da
liberdade de falar e da desagradável situação dos jornalistas, e Sergei
Borisov e Alexander Auzan, da Associação de Consumidores, falou
da necessidade de proteger as pequenas empresas.
Alinhados contra eles estavam o chefe e o subchefe da a d m i -
nistração presidencial; o procurador-geral da Rússia,Vladimir Usti-
nov; o ministro do Interior, Bóris Grizlov; o ministro da Justiça; o
ministro da Imprensa. O presidente dos Tribunais Constitucional,
S u p r e m o e de Arbitragem de N e g ó c i o s . Nikolai Patrushev, diretor
do FSB,* t a m b é m estava presente no início, mas saiu p o u c o depois.
Todos os oradores atacaram o procurador-geral Ustinov. Entre
os ataques, Putin também lhe fez u m a reprimenda e o acusou de
UM DIÁRIO RUSSO 31

decisões injustificáveis. Tâmara Morchtchakova fez um comentário


legal sobre o que estava sendo dito, r e c o m e n d a n d o , p o r exemplo,
que um assistente social deveria estar presente durante o interroga-
tório de menores e suas aparições nos tribunais. Esta é uma prática-
padrão em muitos países, mas para o Kremlin parecia radicalmente
nova. Ustinov defendeu-se, afirmando que isso seria contrário às
leis russas, e Morchtchakova mostrou que as leis p o r ele citadas sim-
plesmente não existiam. Isto significava que o procurador-geral não
conhecia as leis, algo claramente impensável, ou estava deliberada-
m e n t e iludindo seus ouvintes. C o m Putin presente, isso t a m b é m
era impensável, o q u e levou de volta à primeira possibilidade, que
era incompatível c o m um ocupante da Procuradoria-geral.
"É s o m e n t e q u a n d o eles t ê m experiência pessoal direta de
alguma coisa q u e se p o d e c h e g a r a a l g u m l u g a r " , c o n t o u - m e
Svetlana Gannuchkina. " E n q u a n t o o presidente falava c o m Bush ao
telefone, fui até Viktor Ivanov, subchefe da administração presiden-
cial e presidente de um g r u p o de trabalho sobre legislação para
migração. Constatei inesperadamente que ele t a m b é m nutria senti-
m e n t o s negativos c o m relação ao visto residencial. A m u l h e r de
Ivanov recentemente havia ficado cinco horas n u m a fila para obter
vistos t e m p o r á r i o s para a m i g o s q u e v i e r a m ficar c o m eles em
M o s c o u . Isso a deixou furiosa."
Isso estimulou Ivanov a reconhecer a loucura de reviver o visto
residencial e ele j u r o u combatê-lo. C o m o general do FSB, ele se
ofereceu para formar um g r u p o de trabalho conjunto c o m G a n n u -
chkina para reformar o visto. "Ligue para m i m " , disse ele. "Faça
u m a lista de m e m b r o s para o grupo.Trabalharemos j u n t o s nela."
O u t r o exemplo do triunfo do envolvimento pessoal sobre a
inércia burocrática veio q u a n d o Valeri Abramkin, um defensor dos
direitos dos prisioneiros, c o n t o u ao presidente u m a história terrível
a respeito de duas m e n o r e s que haviam sido presas injustamente.
Sua situação de menores de idade foi ignorada tanto pelo tribunal
quanto pelas autoridades da prisão e só foi descoberta depois de
que as jovens tinham sido levadas sob custódia até o exílio, quando
foram libertadas. Inesperadamente, Putin reagiu fortemente ao fato.
Algo de h u m a n o b r i l h o u em seus olhos. A c o n t e c e q u e sua família
havia passado por um incidente semelhante, envolvendo duas garo-
tas que tinham sofrido p o r desrespeito à lei e às quais sua mulher
32 A N N A POLITKOVSKAYA

estava dando apoio. Parece realmente que alguma experiência pes-


soal é um pré-requisito para o governo se concentrar nas vítimas de
injustiças.
"Tem-se a impressão de que, em certas áreas, as informações do
presidente são de baixa qualidade e incompletas. E ele nada faz a
este respeito", foi a reação de Svetlana Gannuchkina.
Na maior parte do t e m p o , P u t i n ouviu o que estava sendo dito
e, q u a n d o falou, colocou-se do lado dos oradores. Fingiu ser um
d e f e n s o r dos direitos h u m a n o s . E v i d e n t e m e n t e , agora q u e os
d e m o c r a t a s foram silenciados, ele irá representar o I a b l o k o e a
U n i ã o de Forças de Direita para nós. A previsão dos analistas polí-
ticos na noite das eleições parlamentares se realizou.
Este era provavelmente o principal objetivo de Putin ao reunir
os defensores dos direitos h u m a n o s : mostrar-lhes quais eram suas
preocupações. Ele é um excelente imitador. Q u a n d o é necessário,
é um de vocês; quando não é, ele é seu inimigo. Ele é p e r i t o em se
colocar no lugar das outras pessoas e muitas são cativadas pelo seu
d e s e m p e n h o . O s defensores dos direitos h u m a n o s t a m b é m s e
e n t e r n e c e r a m c o m a personificação deles por Putin e, a despeito
das suas visões fundamentalmente diferentes sobre a realidade, ren-
deram-se a seus encantos.
E m c e r t o m o m e n t o , a l g u é m revelou q u e eles s e n t i a m q u e
P u t i n os compreendia m u i t o m e l h o r do que os funcionários da
segurança. Putin foi descarado e rebateu na hora: "É p o r q u e , no
coração, eu sou um democrata."
N e m é preciso dizer q u e d e p o i s disso a alegria de t o d o s
a u m e n t o u . O dr. R o c h a l pediu para falar apenas por um m o m e n -
to. "Vladimir Vladimirovitch", disse ele, "gosto m u i t o de você..."
E l e j a dissera isso antes. Vladimir Vladimirovitch baixou os olhos
para a mesa.
O médico prosseguiu:"... e não gosto de Khodorkovski." Vla-
d i m i r Vladimirovitch s u b i t a m e n t e enrijeceu. Só D e u s sabia para
o n d e aquele pediatra estava indo. E sua canoa c e r t a m e n t e estava
i n d o diretamente para os recifes. " E m b o r a goste de você e não de
Khodorkovski, não estou preparado para prendê-lo. Afinal, ele não
é um assassino. Para o n d e achamos que ele poderia fugir?"
Os músculos faciais do presidente estavam tensos e os presen-
tes m o r d e r a m a língua. Depois daquilo, ninguém voltou a m e n e i o -
UM DIÁRIO RUSSO 33

nar o n o m e de Khodorkovski, c o m o se Putin fosse um pai m o r i -


b u n d o e Khodorkovski seu filho pródigo. Os defensores dos direi-
tos humanos não levaram adiante o ataque, c o m o se poderia espe-
rar, mas puseram o rabo entre as pernas. O céu escureceu e s o m e n -
te uma pessoa ousaria, depois do lapso sobre a Iukos, levantar outro
tópico que os assessores do presidente sempre p e d e m que não seja
mencionado, por t e m e r e m que ele se descontrole. Svetlana G a n n u -
chkina levantou a questão da Tchetchênia.
C o n c l u i n d o seu c u r t o discurso sobre os problemas de migra-
ção, os quais haviam sido resolvidos pelo governo, G a n n u c h k i n a
prosseguiu dizendo que não podia esperar que o presidente falasse
da Tchetchênia e queria simplesmente presenteá-lo c o m um livro
q u e havia acabado de ser p u b l i c a d o pelo C e n t r o M e m o r i a l de
Direitos H u m a n o s , Aqui vivem pessoas: Tchetchênia, uma história de
violência.
Aquilo foi inesperado. Os assessores não tiveram t e m p o para
intervir. P u t i n p e g o u o livro e, t a m b é m de f o r m a inesperada,
demonstrou interesse p o r ele. Ficou folheando o livro até o encer-
ramento da reunião, às 22:30. No fim, ele m e s m o c o m e ç o u a falar
da Tchetchênia.
" E m primeiro lugar", lembra Gannuchkina, "ele t e m certeza
de que é certo atropelar os direitos humanos no decorrer da cam-
panha contra o terrorismo. Há fundamentos que justificam a não
observância da lei, circunstâncias nas quais a lei p o d e ser despreza-
da. Em segundo lugar, folheando o livro, Putin c o m e n t o u : ' E s t á mal
escrito. Se você escrevesse de f o r m a q u e as pessoas p u d e s s e m
entender, elas a seguiriam e você poderia exercer influência real
sobre o governo. Mas, da maneira c o m o as idéias estão apresenta-
das, isto será impossível.'"
E claro que o que ele tinha em m e n t e não era a Tchetchênia,
mas a derrota do Iabloko e da U n i ã o de Forças de Direita nas elei-
ções. " P u t i n t e m r a z ã o " , acredita G a n n u c h k i n a . Ela é há m u i t o
t e m p o m e m b r o do Iabloko e trabalhou na D u m a assessorando os
deputados do partido. " S o m o s incapazes de explicar às pessoas que
não estamos em um lado n e m em outro, mas defendendo direitos."
Depois a conversa passou para o Iraque. Os defensores dos direi-
tos disseram que não havia comparação: os tchetchenos eram cida-
dãos russos, ao contrário dos iraquianos. Putin respondeu, dizendo
34 A N N A POLITKOVSKAYA

q u e a Rússia deu u m a m e l h o r impressão de si m e s m a do que os


Estados Unidos, porque investigou as acusações contra militares que
cometeram crimes na Tchetchênia c o m muito maior freqüência do
que os Estados Unidos contra seus criminosos de guerra no Iraque.
O procurador-geral e n t r o u na conversa: "Mais de seiscentos
casos." Os defensores dos direitos h u m a n o s não deixaram aquilo
passar: quantos daqueles casos tinham levado a sentenças de fato? A
pergunta ficou no ar, sem resposta.
Liudmila Alexeieva, líder do Moscow Helsinki G r o u p e uma
espécie de decana extra-oficial dos defensores russos dos direitos
h u m a n o s , u m a pessoa q u e as autoridades do Estado haviam eleva-
do à posição de ícone, ao m e n o s para o Kremlin, propôs a convo-
cação de uma mesa redonda c o m os mesmos participantes para dis-
cutir os problemas da T c h e t c h ê n i a c o m o presidente. "Precisaremos
pensar nisso", m u r m u r o u P u t i n enquanto se despedia, o que signi-
ficava: "Isso nunca irá acontecer."

De fato, não aconteceu a discussão sobre a Tchetchênia entre Putin


e os defensores dos direitos h u m a n o s , mas depois da reunião de
dezembro alguns deles, j u n t a m e n t e c o m alguns democratas, decidi-
ram transferir sua lealdade dos derrotados Iavlinski e N e m t s o v para
o novo democrata Putin, que para eles seria igualmente b o m .
O m e s m o a c o n t e c e u c o m vários jornalistas c o n h e c i d o s .
R e p u t a ç õ e s foram comprometidas diante de nossos olhos. Vimos
q u a n d o Vladimir Soloviov, um conhecido apresentador de rádio e
televisão, um dos mais ousados, b e m informados e democráticos
repórteres, que há não m u i t o t e m p o havia revelado a maldade do
governo no caso do ataque químico no desastre o c o r r i d o na apre-
sentação do musical Nord-Ost (em que 912 espectadores de um
musical foram feitos reféns pelos tchetchenos), de um m o m e n t o
para outro proclamou publicamente seu apaixonado apoio a Putin
e ao Estado russo.
Isso a c o n t e c e u p o r q u e ele foi trazido para mais p e r t o do
K r e m l i n e " a d o ç a d o " . Ele se transformou. Este é um problema
recorrente russo: a proximidade c o m o Kremlin t o r n a as pessoas
lentas para dizer não e t a m b é m menos seletivas. O Kremlin sabe
m u i t o b e m disso. Quantas pessoas já foram p o r ele asfixiadas? Em
UM DIÁRIO RUSSO 33

primeiro lugar, elas são gentilmente trazidas para o peito das a u t o -


ridades. Na Rússia, a m e l h o r maneira de subjugar até m e s m o a pes-
soa mais recalcitrante não é o dinheiro, mas tirar as pessoas do frio
lá de fora, inicialmente a u m a certa distância. Os rebeldes logo
c o m e ç a m a ceder. V i m o s isso c o m Soloviov, c o m o dr. R o c h a l e
agora até os admiradores de Sakharov* e de Ielena B o n n e r * estão
c o m e ç a n d o a falar do carisma de Putin, dizendo q u e ele lhes dá
motivos para ter esperança.
E claro que essa não é a primeira vez na história recente em
que vemos esta aproximação entre o regime e defensores dos direi-
tos humanos, o regime e os democratas. P o r é m , é certamente a p r i -
meira vez em que isso t e m sido tão destrutivo para os antigos dissi-
dentes. Q u e esperança existe para o povo russo se u m a parte da
oposição foi eliminada e a outra, quase tudo o q u e resta, está sendo
posta de lado para uso posterior?

11 de dezembro
Nesta manhã, a c o n t e c e u de novo, u m a reputação destruída pelo
abraço do Kremlin. A n d r e i Makarevitch era um músico de rock
underground no p e r í o d o soviético, um dissidente, um opositor da
K G B , * que costumava cantar c o m paixão " N ã o baixe sua cabeça
diante do m u n d o incerto. Um dia esse m u n d o irá baixar sua cabe-
ça para nós". Esse era o h i n o dos primeiros anos de democracia sob
Ieltsin. Hoje, na televisão estatal Canal U m , ele está recebendo uma
medalha "Por Serviços à Pátria".
Makarevitch saiu em apoio ao RU e t o m o u parte das p r i m e i -
ras reuniões p r é - e l e i t o r a i s . Ele r e a l m e n t e b a i x o u a cabeça para
P u t i n e para o p a r t i d o . E c o n t o u às pessoas c o m o V l a d i m i r
Vladimirovitch era um b o m sujeito e, surpresos, agora o vemos
recebendo favores oficiais; um ex-dissidente q u e não ficou cons-
trangido por se j u n t a r ao partido do Kremlin.
Putin deu u m a recepção aos líderes dos partidos da D u m a , pois
hoje é o último dia da Terceira Legislatura. Ele falou de aconteci-
mentos nas relações entre os ramos do poder do Estado. Iavlinski
sorriu ironicamente.
Pouco tempo depois, no prédio da D u m a em frente ao Krem-
lin, foi realizada a última sessão do Parlamento que saía. Quase todo
36 A N N A POLITKOVSKAYA

m u n d o estava lá. O RU estava b e m - h u m o r a d o e não tentava ocul-


tar o fato. Por que fariam isso? Todos os dias, deputados recém-elei-
tos por outros partidos estavam se bandeando para o R U , para mais
perto de Putin. O RU está inflando como um balão de ar quente.
Iavlinski p e r m a n e c e u afastado de todos, sempre sozinho. Ele
estava intratável e taciturno. O que havia para aplaudir? A destrui-
ção da democracia parlamentar russa foi realizada no décimo ani-
versário da Primeira D u m a , sob a presidência de Ieltsin. Amanhã,
12 de dezembro, t a m b é m é o décimo aniversário da nova Cons-
tituição "Ieltsin" da Rússia.
Nemtsov está t e n t a n d o dar tantas entrevistas q u a n t o possíve
e n q u a n t o as pessoas ainda estão interessadas nele. E explica: "/
U n i ã o de Forças de Direita e o Iabloko estão fazendo o impossível
u m a coisa que antes de 7 de dezembro parecia u m a fantasia: esta
mos tentando nos unir." As pessoas não acreditam totalmente nel<
Todos os eleitores a favor da democracia estavam rezando para qu
eles se unissem antes de 7 de dezembro para ter impacto nas ele:
ções, mas eles simplesmente não estavam interessados.
Gennadi Selezniov, o orador, faz um discurso de despedida qt
n i n g u é m ouve. Ele sabe q u e seus dias de orador estão encerradc
;
p o r q u e no futuro o o c u p a n t e da posição n ã o será eleito pe.
Parlamento, mas n o m e a d o pelo Kremlin. E todos sabem q u e m se
ele: Bóris Grizlov, amigo de Putin e um de seus cúmplices m;
leais, líder do RU e ministro do Interior. E inquestionavelmen
um m o m e n t o histórico. Ao darmos adeus à Terceira D u m a , estam
d a n d o adeus a uma época política. Putin esmagou o Parlamer
argumentativo.
As exigências dos partidos não fizeram c o m q u e o Krem
negligenciasse assuntos ligados a dinheiro. O ataque à Iukos cor
nua, c o m nosso m u n d o dos negócios tentando p ô r as garras <
partes da empresa e n q u a n t o t u d o ainda pode ser agarrado. O Tril
nal de Arbitragem de Iakutia decidiu em favor da Surgutneftef
u m a empresa que p e r d e u para a Sakhaneftegaz, p o s t e r i o r m e
comprada pela Iukos, em um leilão de direitos de exploração
petróleo e gás realizado em março de 2002. O veredicto afaste
Iukos do campo de Talakan, c o m suas reservas de petróleo de
milhões de toneladas e 60 bilhões de metros cúbicos de gás, e c
UM DIÁRIO RUSSO 37

cedeu à rival u m a licença perpétua para explorar a concessão cen-


tral do campo.
O T s e n t r o b a n k registra outro recorde na recuperação das reser-
vas de ouro e moedas estrangeiras. Até 5 de dezembro, elas são de
US$70,6 bilhões. Mas isto é um triunfo? U m a das principais razões
pelas quais as empresas estão se desfazendo dos seus lucros em
moeda estrangeira é a grave situação da Iukos, acusada pelo Estado
de ter ocultado seus ganhos visando a u m a evasão fiscal. As outras
não estão provocando o destino e convertem seus lucros em rublos.
A confusão sobre a Iukos não está prejudicando em nada o Estado,
motivo pelo qual ele p o d e pagar sua dívida externa. O povo russo
se alegra sem ter idéia do que está acontecendo.
Hoje t a m b é m é o n o n o aniversário do início das últimas guer-
ras da Rússia contra os tchetchenos. Em 11 de d e z e m b r o de 1994,
os primeiros tanques entraram em Grozni e vimos os primeiros sol-
dados e oficiais q u e i m a d o s vivos dentro deles. H o j e não h o u v e
menção a este fato em n e n h u m dos canais de televisão. O aniversá-
rio foi eliminado do calendário da Rússia.
Essa unanimidade das estações de televisão n ã o p o d e ser fortui-
ta e deve refletir instruções da administração presidencial, o que
significa que p o d e m o s ter certeza de que a campanha presidencial
de Putin excluirá todas as menções à Tchetchênia. E assim que ele
age: c o m o não sabe o que fazer a respeito da Tchetchênia, esta não
entrará em sua agenda.
A noite, houve um debate na TV entre Valeria Novodvorskaia,
uma democrata até a medula, e Vladimir Jirinovski. Ela falou da
monstruosa irresponsabilidade da guerra na T c h e t c h ê n i a , do sangue
e do genocídio. A resposta de Jirinovski foi gritar histericamente:
"Saia do país! N u n c a cederemos a eles!" Na votação depois do p r o -
grama, os telespectadores deram 40 mil votos a favor de Jirinovski
e 16 mil para Novodvorskaia.

12 de dezembro
Dia da Constituição. É feriado. Moscou está inundada de homens da
guarda nacional e agentes em trajes civis. Há cães por toda parte,
farejando em busca de explosivos. O presidente deu uma grande
recepção no Kremlin para a elite política e oligárquica e fez um dis-
38 A N N A POLITKOVSKAYA

curso sobre direitos h u m a n o s , baseado na idéia de que eles haviam


triunfado na Rússia. Ieltsin estava presente, c o m aparência mais sau-
dável e j o v e m , mas c o m problemas mentais evidentes p o r toda a
face. Ele estava lá p o r q u e a Constituição foi adotada durante seu
governo. N o r m a l m e n t e ele não é convidado ao Kremlin de Putin.
U m a pesquisa revelou que somente 2% dos russos t ê m idéia do
q u e de fato diz a Constituição. Quarenta e cinco p o r c e n t o pensam
q u e sua principal garantia é o "direito ao trabalho" e somente 6%
m e n c i o n a r a m a liberdade de expressão c o m o u m a coisa fundamen-
tal para seu m o d o de vida.

18 de dezembro

Um programa de perguntas na televisão. U m a grande ocasião em


q u e Putin se encontra c o m o povo. Foi anunciado q u e mais de um
milhão de perguntas t i n h a m sido apresentadas. O diálogo virtual do
presidente c o m o país teve c o m o seus apresentadores os favoritos
Sergei Brilev, do canal Rossia, e Iekaterina Andreieva, do Canal
Um.
Andreieva para P u t i n : Esta é a terceira vez em q u e você se
apresenta nesta linha direta. Eu também. Está nervoso?
Putin: Não. N ã o prometa o que você não p o d e c u m p r i r e não
minta; assim você não t e m nada a temer.
Brilev, cheio de alegria: E parecido com nosso trabalho...
Putin: Tudo o que a Rússia tem conseguido foi o b t i d o c o m
m u i t o trabalho. T e m havido muitas dificuldades e reveses, mas a
Rússia mostrou ser um país que se m a n t é m firme sobre seus pés e
está se desenvolvendo rapidamente.Trouxe comigo algumas estatís-
ticas. Em 2002, nossa taxa de crescimento era de 4 , 3 % . Para este
ano, foram projetados 5%, mas atingiremos 6,6 ou m e s m o 6,9. Os
pagamentos da nossa dívida externa foram reduzidos. Pagamos 17
bilhões de dólares e o país n e m sentiu. As reservas em o u r o e m o e -
das estrangeiras eram de U S $ 1 1 bilhões. Em 2 0 0 3 , elas subiram para
U S $ 2 0 bilhões e hoje são de U S $ 7 0 bilhões. Estas não são estatísti-
cas vazias. Muitos fatores estão envolvidos. Se c o n t i n u a r m o s c o m
nossa atual política e c o n ô m i c a , não haverá mais evasão de divisas.
P o r outro lado, no início de 2 0 0 3 , havia 37 milhões de pessoas cuja
UM DIÁRIO RUSSO 39

renda estava abaixo do nível de subsistência. No terceiro trimestre


de 2003, esse n ú m e r o tinha caído para 31 milhões, mas isso ainda é
humilhante. O nível m é d i o de subsistência é 2.121 rublos [cerca de
US$80] por mês, o q u e é m u i t o baixo, e 31 milhões de pessoas
vivem abaixo desse nível.
U m a p e r g u n t a d e K o m o s o m o l s k - o n - A m u r , d a região d e
Khabarov: Nossa cidade é a terceira maior no E x t r e m o O r i e n t e da
Rússia, um e n o r m e centro industrial, u m a cidade de jovens, mas
muito distante de M o s c o u . M e u n o m e é Kirill Borodulin.Trabalho
no estaleiro do Amur. H o j e ainda estamos trabalhando para expor-
tação. Q u a n d o t e r e m o s p e d i d o s da i n d ú s t r i a da defesa russa?
Q u e r e m o s ser necessários à Rússia.
(As perguntas não dão a impressão de ser espontâneas e as res-
postas parecem ter sido preparadas. Putin lê estatísticas de suas a n o -
tações, embora a p e r g u n t a tenha sido feita "ao vivo". E evidente
que ele só responderá às perguntas que quiser.)
Putin: O fato de vocês estarem trabalhando para exportação é
inteiramente positivo. Está sendo travada u m a batalha pelo merca-
do de armas e a Rússia não está se saindo de t o d o mal. Temos um
programa de aquisição de armamentos para até o ano 2010 e ele
está sendo totalmente financiado. E claro que há problemas; sempre
gostaríamos de alocar mais recursos às nossas Forças Armadas. As
prioridades são decididas pelo Ministério da Defesa, que colocou
novos aviões na oitava posição de sua lista de prioridades, apesar das
guerras de hoje serem travadas c o m aviões.Vocês p o d e m ter certe-
za de que seus serviços serão exigidos.
Katia U s t i m e n k o , estudante: Votei pela p r i m e i r a vez. O que
podemos esperar da nova D u m a ?
Putin: N e n h u m Estado civilizado p o d e viver sem u m a institui-
ção legislativa. Muitas coisas d e p e n d e m da D u m a . Esperamos um
trabalho eficiente e sistemático.
Alexander Nikolaevitch: M o r o em Tula, na mesma casa em que
m e u pai viveu antes de m i m . As fundações estão cedendo. Estamos
numa área de escavações. Por que o Estado fala tanto, mas ainda não
resolve o problema de acomodações do solo?
Putin: Estive em Tula e fiquei surpreso c o m o estado das residên-
cias. Existem maneiras e meios. Quais são? Até há poucos anos, o
Estado não alocava praticamente fundo n e n h u m . Em 2003, pela pri-
4(1 A N N A POLITKOVSKAYA

meira vez destinamos fundos para corrigir este problema: 1,3 bilhão
de rublos [pouco mais de US$49 milhões] do orçamento federal. A
mesma quantia deveria ser alocada dos orçamentos municipais. A
saída é desenvolver empréstimos hipotecários. Caso as hipotecas
tivessem sido introduzidas, você teria conseguido fazer uso delas.
Qual é seu salário mensal? Você trabalha numa região eficiente.
Alexander Nikolaevitch: São 12.000 rublos [US$450].
P u t i n V o c ê teria direito a u m a hipoteca. Precisamos fazer algu-
mas mudanças legislativas.
Iuri Sidorov, Kuzbass: Trabalhar c o m o mineiro é perigoso. Por
que a pensão dos mineiros foi reduzida à taxa estatutária? Q u e tipo
de pensão é esse?
Putin: O salário m é d i o dos mineiros é de 12.000 rublos m e n -
sais e o salário m é d i o nacional é de 5.700 rublos [US$216]. A lógi-
ca da reforma das pensões reflete diretamente as contribuições fei-
tas a partir do salário. Sua p e n s ã o irá diferir p o s i t i v a m e n t e da
média; ela será mais alta. Esta mudança já foi introduzida. O fundo
nacional de pensões está abrindo uma rede de centros de consultas
em t o d o o país e nos locais de trabalho. Converse c o m eles.
Valentina Alexeievna, de Krasnodar: O senhor ainda não a n u n -
ciou o que pretende p r o p o r nas eleições presidenciais. Quais são
seus planos?
Putin: Farei um p r o n u n c i a m e n t o oficial em futuro próximo.
Alexei Viktorovitch, estaleiro de reparos navais, província de
M u r m a n s k : N ã o estamos recebendo salários n e m férias desde agos-
to. Q u a n d o isso será corrigido?
Putin: No que diz respeito ao orçamento, já tratamos das ques-
tões. Os atrasos salariais não devem exceder dois dias. Mas, na parte
relativa às indústrias, existem diversas variações. Há empresas estatais,
algumas das quais estão sendo reclassificadas c o m o empresas financia-
das pelo orçamento. Várias estão c o m graves problemas financeiros.
Em outros casos, os responsáveis são os proprietários e gerentes.
Pergunta de Brilev: O que o senhor acha de ter sua foto em
escritórios do governo?
Putin: O presidente é um símbolo do Estado; p o r t a n t o , não há
nada de terrível nisso. T u d o é b o m c o m moderação. Q u a n d o ela é
esquecida, dá lugar a preocupações.
S a r g e n t o Sergei S e r g e i v i t c h , base militar russa em K a n t ,
Kirghizia: Os americanos conseguiram capturar Saddam Hussein,
UM DIÁRIO RUSSO 41

mas haverá no Iraque um segundo Vietnã. Todos irão fugir. O caos


afetará a todos.
Putin: Sergei Sergeievitch, não é de nosso interesse nacional
ver os Estados U n i d o s derrotados numa luta contra o terrorismo
internacional. Q u a n t o ao Iraque, é uma questão à parte. N ã o houve
lá n e n h u m terrorismo internacional sob Saddam Hussein. Sem a
sanção do C o n s e l h o de Segurança das N a ç õ e s Unidas, a invasão
não pode ser considerada legal, para dizer o m í n i m o . Porém, em
todas as eras, grandes impérios tiveram ilusões a respeito da sua
invulnerabilidade, um senso de grandeza e infalibilidade. Isto inva-
riavelmente causou muitos problemas. Espero q u e isto não aconte-
ça com nossos parceiros americanos.
Vitali Potapov, eletricista, Borovitchi, província de N o v g o r o d :
Antes das eleições para a D u m a , sua cadela teve filhotes. C o m o vão
eles?
Putin:Vão b e m . São cheios de vida, mas ainda não abriram os
olhos. Q u a n t o ao futuro deles, temos recebido muitas solicitações de
pessoas que desejam adotá-los. E meus filhos e m i n h a mulher preci-
samos pensar nisso.Temos que saber b e m a q u e m iremos doá-los.
Balkarov, kabardiniano, Nalchik: Trabalho no teatro russo. Os
abkhazianos ( m o r a d o r e s de u m a parte em disputa da Geórgia)
estão ligados aos kabardinianos (que são cidadãos da Rússia). Será
que devemos trazer a Abkhazia para a Federação Russa* e evitar
uma nova guerra?
Putin: Essa é u m a pergunta m u i t o séria, para a Rússia c o m o
um todo e, em especial, para o sul do nosso país. M a n t e r a integri-
dade territorial do Estado era recentemente um dos nossos princi-
pais problemas, um dos mais prioritários. Essa tarefa em grande
parte foi concluída. Seguindo esses princípios, não p o d e m o s nos
recusar a aplicá-los aos nossos vizinhos. Somos m e m b r o das Nações
U n i d a s e c u m p r i r e m o s c o m nossas o b r i g a ç õ e s i n t e r n a c i o n a i s .
Existem peculiaridades ligadas ao fato de a família dos povos m o n -
tanheses constituir u m a comunidade especial, c o m laços de paren-
tesco que r e m o n t a m a muitos séculos. N ã o estamos indiferentes ao
destino desses povos. Depois do colapso da U R S S , surgiram muitos
conflitos, em Ossétia do Sul, Karabakh, Abkhazia. Seria um erro
supor que todos eles p o d e m ser resolvidos pela Rússia. Eu digo,
a c e r t e m as q u e s t õ e s e n t r e vocês e a g i r e m o s c o m o um avalista
42 A N N A POLITKOVSKAYA

honesto. Ficaremos de olho no problema da Abkhazia, mas respei-


tamos a integridade territorial da Geórgia.
A k h m a d Sazaev, escritor balkariano: Fomentar atritos étnicos é
proibido por lei, mas, durante a campanha eleitoral, alguns partidos
agiram sob o slogan "A Rússia para os russos". Por q u e se permitiu
q u e esses partidos divulgassem esses sentimentos pela televisão?
Putin: Q u a l q u e r pessoa que diz "A Rússia para os russos" é um
idiota ou um encrenqueiro. A Rússia é um país multinacional. O
que q u e r e m eles, divisão? O desmembramento da Rússia? É muito
provável que essas pessoas sejam malandros em busca de ganhos
fáceis, que q u e r e m mostrar o quanto são radicais. Q u a n t o à campa-
nha eleitoral, não vi isto na televisão. Mas, se aconteceu, falarei c o m
o procurador-geral. E preciso tomar providências.
Natalia Kotenkova, Krasnoiarsk: N ã o está na h o r a de acabar
c o m a privatização e iniciar a renacionalização?
Putin: Essa pergunta não é nova e tenho minhas próprias opi-
niões sobre o assunto. Q u a n d o o país iniciou a privatização, supu-
nha-se que os novos proprietários seriam mais eficientes. E isso era
correto. Porém, as economias desenvolvidas p o s s u e m um sistema
de administração b e m estruturado. Ao receber a tributação sobre as
receitas das empresas privadas, o Estado resolve problemas sociais
para seus cidadãos. Mas nós esbarramos numa dificuldade. O apare-
lho administrativo não existia e os recursos necessários não vieram
para o Tesouro. Estou certo de que é necessário fortalecer as insti-
tuições e a legislação do Estado e melhorar nosso sistema de admi-
nistração, e não parar a privatização.
D m i t r i Iegorov, 25 anos: Gosto de rock pesado. De que tipo de
música o senhor gosta?
Putin: Gosto de música clássica ligeira e de música russa c o m
letra.
Alexei, província de Sverdlovsk: O senhor foi m u i t o severo na
criação de suas filhas?
Putin: N ã o , infelizmente. Minhas filhas cresceram i n d e p e n d e n -
tes, c o m senso do p r ó p r i o valor. Acho que deu um b o m resultado.
Irina Mojaiskaia, professora: Nos últimos três anos, houve 12
ataques terroristas em Staropolie. Quarenta e cinco pessoas foram
mortas em Iessentuki. C o m o isto pode ser impedido?
UM DIÁRIO RUSSO 43

Putin: Q u a l é a origem do problema? É um problema prove-


niente n ã o só da T c h e t c h ê n i a . E x i s t e m pessoas no m u n d o q u e
acham que t ê m o direito de influenciar o destino daquelas que a d e -
rem ao islamismo. Elas pensam que t ê m o direito de assumir o c o n -
trole de territórios densamente povoados p o r muçulmanos. Isto é
e x t r e m a m e n t e relevante para nosso país. "Terroristas i n t e r n a c i o -
nais" é o n o m e que damos para esse tipo de gente. Eles têm e x p l o -
rado os problemas da desintegração da U R S S , os quais estão rela-
cionados c o m o que aconteceu na T c h e t c h ê n i a , mas t ê m outros
objetivos. Eles q u e r e m não a independência da Tchetchênia, mas a
secessão de todos os territórios c o m g r a n d e população islâmica.
Seria terrível se começasse a balcanização da Rússia. Precisamos
c o m b a t e r isso. A ameaça v e m do e x t e r i o r . Os grupos islâmicos
extremistas do Daguestão* são constituídos p o r 50% de estrangei-
ros. A única saída é não ceder à pressão deles, não entrar em p â n i -
co. D e v e m o s agir de forma firme e sistemática e os organismos de
c u m p r i m e n t o da lei precisam melhorar seu m o d o de trabalhar.
Anatoli N i k i t i n , província de M u r m a n s k : Os Escritórios de
Assuntos I n t e r n o s e a agência de c o m b a t e ao tráfico de drogas
parecem pensar que estão trabalhando para ter lucro. O senhor está
plenamente informado do que acontece nessas agências?
P u t i n : N e s t e ano, h o u v e mais de 19 mil irregularidades nas
áreas de responsabilidade do Ministério do Interior e, destas, mais
de 2.600 foram violações diretas à lei. M u i t o s funcionários p ú b l i -
cos enfrentaram acusações criminais. Os serviços de segurança
serão mais fortalecidos. Para lhe dar u m a resposta direta, sim, estou
ciente da situação real nos órgãos de imposição da lei.
Sergei Tatarenko: O Estado p r e t e n d e impedir a migração de
chineses para o E x t r e m o Oriente?
Putin: N ã o impedir, mas regular. Precisamos saber onde, q u a n -
tos i m i g r a n t e s e de que espécie necessitamos e d e s c o b r i r u m a
maneira de atrair a mão-de-obra de q u e precisamos. Nesta esfera, o
nível de c o r r u p ç ã o é muito alto.
Lidia Ivanova, Khimki, província de Moscou: Será criado um
mecanismo para o combate à c o r r u p ç ã o nos escritórios dos p r o c u -
radores e nos tribunais? E nas instituições executivas do Estado?
Putin: A l é m de endurecer as investigações nesta questão, preci-
samos introduzir mudanças fundamentais. Precisamos iniciar u m a
44 A N N A POLITKOVSKAYA

reforma administrativa verdadeira. Q u a n t o m e n o s oportunidades


os funcionários tiverem para interferir na t o m a d a de decisões,
melhor. O sistema judicial deve ser i n d e p e n d e n t e , mas transparente
- responsável perante a sociedade. Os juízes já possuem um sistema
de auto-regulamentação. Espero que c o m e c e a funcionar.
Iveta, estudante, Universidade Pedagógica, Nijni N o v g o r o d :
Dizem que o senhor é um pupilo político de Anatoli Sobtchak, um
dos fundadores do m o v i m e n t o d e m o c r á t i c o . Q u a l é sua atitude
c o m relação à derrota das forças da direita política?
Putin: Sobtchak foi m e u professor na universidade. A derrota
das forças da direita não me dá prazer n e n h u m . T o d a s as vozes polí-
ticas do país devem estar representadas em nosso Parlamento. Sua
ausência é u m a grande perda, mas é um resultado da política delas.
Elas c o m e t e r a m erros nas táticas e na estratégia da sua campanha
política. T i n h a m acesso a recursos administrativos - aTchubais está
no c o m a n d o de t o d o o sistema de eletricidade da Rússia. As forças
de direita t i n h a m tudo, exceto a compreensão daquilo que o povo
espera de um p a r t i d o político. T a m b é m h o u v e falta de vontade
política por parte das várias forças de direita para chegar a um acor-
do sobre um curso de ação conjunto. Espero que essa derrota não
resulte no desaparecimento da direita no mapa político. T a m b é m
devemos ajudá-los. Teremos discussões c o m a U n i ã o de Forças de
Direita e c o m o Iabloko e tentaremos fazer uso dos seus recursos
humanos.
Vladimir Bikovski,Tchuvachia: O senhor se permite ter emoções?
Putin: Sim, infelizmente.
Dobroslava Diatchkova, aposentada, Viborg: Trabalho em um
Centro de Esperança para idosos e incapacitados e converso muito
c o m as pessoas q u e lá estão. Muitas t ê m parentes e amigos nos
Estados Bálticos. Por q u e a Rússia não t o m a providências mais
positivas para defender a população russa nos Estados Bálticos?
P u t i n : N o s ú l t i m o s anos, nosso M i n i s t é r i o das R e l a ç õ e s
Exteriores t e m dedicado cada vez mais atenção a isto. Muitas coi-
sas naqueles Estados são causa de p r e o c u p a ç ã o para nós. N ã o se
p o d e dizer q u e aquelas pessoas estejam em plena posse de seus
direitos e liberdades. Estamos tentando ajudá-las, diplomaticamen-
te e nos tribunais em vários níveis, mas alguns padrões europeus,
considerados adequados em outras áreas em situação difícil, t a m -
UM DIÁRIO RUSSO 45

b é m devem ser válidos para os Estados Bálticos. Se, na Macedónia,


a O r g a n i z a ç ã o para Segurança e C o o p e r a ç ã o na E u r o p a e a
C o m u n i d a d e Européia acreditam q u e deve haver representação
para a população albanesa no sul do país, p o r que este princípio não
é aplicável a Riga, onde 2 5 % da população são russos? Por q u e há
padrões diferentes? Para não fazer mais mal do que b e m aos nossos
compatriotas, devemos abordar este assunto c o m cautela.
Anna Novikova, professora universitária: Os traficantes de d r o -
gas deveriam ser condenados à prisão perpétua?
Putin: Propus mudanças para t o r n a r as penas mais severas. A
Terceira D u m a aprovou-as, o Soviet da Federação as apoiou e, há
uma semana, as emendas foram transformadas em lei por m i m . Há
um a u m e n t o considerável na severidade - até vinte anos de prisão
para determinadas categorias. C o n s i d e r o este um m e l h o r a m e n t o
importante.
Em seguida, Putin leu uma pergunta que havia escolhido p e s -
soalmente dentre aquelas enviadas p o r e-mail: Qual é sua atitude
em relação ao a u m e n t o do mandato para presidentes?
Putin: Sou contra.

Imediatamente depois desta c o m u n h ã o c o m o povo, Putin c o n t o u


à i m p r e n s a : " N o s s o sistema estatal ainda não está t o t a l m e n t e
implantado. Na Rússia, tudo ainda está evoluindo. A comunicação
direta c o m os cidadãos é e x t r e m a m e n t e útil."
Foi assim q u e Putin encerrou o evento e isto pode explicar p o r
que c o m p a r e c e u ao p r o g r a m a : " F o r t a l e c e r a d e m o c r a c i a t e m
importância política na Rússia. Desenvolveu-se uma situação q u e
nos irá permitir criar um sistema pluripartidário único, c o m u m a
ala de centro-direita forte, a social-democracia à esquerda, aliados
em ambos os lados e t a m b é m c o m representantes de grupos e par-
tidos marginais. Agora esta é u m a meta que p o d e ser atingida."
U m a declaração estranha, q u e não reflete a realidade.
Se c o n s i d e r a r m o s o p r o g r a m a de p e r g u n t a s e respostas do
p o n t o de vista pré-eleitoral, os principais elementos da plataforma
de Putin em 18 de dezembro pareceriam ser: combate à pobreza,
defesa da Constituição, criação de um sistema pluripartidário, c o m -
bate à c o r r u p ç ã o e ao terrorismo e a implantação de u m a carteira
de empréstimos hipotecários.
4(1 A N N A POLITKOVSKAYA

Q u a n t o disso tem probabilidade de ser implantado pelo nosso


presidente virtual?

20 de dezembro
H o j e é Dia do Agente da Polícia Secreta. A O G P U - C h e k a - M G B -
K G B - F S B está aí há 86 anos. N o s noticiários da televisão, este é o
i t e m mais i m p o r t a n t e . Terrível. O t o m das reportagens é isento,
c o m o se milhões de vidas não tivessem sido sacrificadas a este ser-
viço sanguinário. O que mais p o d e m o s esperar em um país cujo
líder admite abertamente que, m e s m o o c u p a n d o o posto de presi-
dente, p e r m a n e c e "na reserva ativa da 'Firma'"?
U l t i m o resumo oficial dos resultados das eleições parlamenta-
res: R U , 3 7 , 5 5 % (120 assentos); P a r t i d o C o m u n i s t a , 1 2 , 6 % (40
assentos); P a r t i d o Liberal D e m o c r a t a , 1 1 , 4 5 % (36 assentos); o
R o d i n a o b t e v e 29 assentos. Em três áreas, as províncias de
Sverdlovsk e Ulianovsk e t a m b é m em São Petersburgo, serão reali-
zadas novas eleições em 14 de março p o r q u e na última vez o c a n -
didato de m a i o r sucesso foi " n e n h u m dos n o m e s a n t e r i o r e s " . A
partir de amanhã, os partidos p o d e r ã o apresentar seus candidatos
presidenciais.
D e p u t a d o s estão correndo para entrar para o R U . Particular-
m e n t e dolorosa é a deserção de Pavel Krachenninikov, eleito c o m o
candidato independente, mas c o n h e c i d o anteriormente pelo elei-
torado c o m o liberal e m e m b r o da U n i ã o de Forças de Direita. A
D u m a está se t o r n a n d o um espetáculo de um só partido.

21 de dezembro
Iavlinski r e c u s o u - s e a ser c a n d i d a t o presidencial da I a b l o k o .
T a m b é m declarou que eles "criariam um grande partido d e m o c r a -
ta", mas fez o anúncio c o m a expressão arrogante que leva todos a
desistirem de votar nele. U m a prova, c o m o se fosse necessária algu-
ma, de que precisamos de novas caras e novos líderes. Os de hoje
são incapazes de formar uma oposição democrata.
K h a k a m a d a t a m b é m a n u n c i o u q u e a U n i ã o d e Forças d e
Direita não apresentaria candidato. Sua explicação foi convincente:
" D a maneira pela qual as pessoas votaram, fica claro que elas não
UM DIÁRIO RUSSO 47

nos q u e r e m governando o país." Os Comunistas t a m b é m disseram


que não querem participar da eleição.
Um boicote à eleição presidencial pela oposição à direita e à
esquerda: será esta a única maneira que lhes restou para ter um
papel na política do país depois das eleições de dezembro?

22 de dezembro
H o j e P u t i n apresentou à Comissão Eleitoral Central pedidos de
um g r u p o de eleitores q u e desejam começar a colher assinaturas
em a p o i o à sua c a n d i d a t u r a . A pesquisa de o p i n i ã o pública do
Kremlin indica que 7 2 % do eleitorado votaria em P u t i n se a elei-
ção fosse hoje.
Q u e m está contra ele? Neste m o m e n t o , a única alternativa a
P u t i n é G h e r m a n Sterligov, um fabricante de caixões. Ele não tem
n e n h u m partido atrás de si, só m u i t o dinheiro e "O Ideal R u s s o " .
E um estranho à política. O u t r o possível c a n d i d a t o é V l a d i m i r
Jirinovski. Ele declarou que o Partido Liberal D e m o c r a t a terá um
candidato. T a m b é m é um estranho, mas fez sua parte para conseguir
trânsito no Kremlin. P u t i n parece ridículo em tal c o m p a n h i a . E
possível que, nas próximas semanas, o governo consiga reunir um
g r u p o de candidatos mais respeitáveis para Putin derrotar.
N i n g u é m acredita q u e Khodorkovski venha a ser considerado
culpado. A maioria das pessoas acha que tudo não passa de um t r u -
que do Kremlin que será deixado de lado depois q u e Putin for ree-
leito. Em 30 de d e z e m b r o , expirará o prazo para a d e t e n ç ã o de
Khodorkovski, mas foram providenciadas audiências no Tribunal
Basmanni em M o s c o u para prorrogar sua prisão.
Esta noite, ficou claro que o Gabinete do Procurador-geral está
pedindo que Khodorkovski permaneça detido até 25 de março. Isto
é, ele verá da prisão a reeleição de Putin. Khodorkovski só foi trazi-
do ao tribunal às 16:00. A l g u m t e m p o depois das 18:00, q u a n d o
todos os outros juízes, funcionários públicos, testemunhas, queixosos
e acusados em outros casos já tinham saído, as portas do Tribunal
Basmanni se fecharam e teve início a audiência do caso dele.
Do que eles t ê m t a n t o m e d o ? Khodorkovski é realmente o
h o m e m mais perigoso da Rússia? N e m terroristas r e c e b e m esse
tratamento e Khodorkovski t e m somente sete acusações de irregu-
48 A N N A POLITKOVSKAYA

laridades financeiras. Ele foi levado de volta ao presídio Matroskaia


T i c h i n a p o r volta das 22:00. O p e d i d o do Gabinete do P r o c u -
rador-geral foi atendido.
A l g u n s resultados das eleições de g o v e r n a d o r e s do ú l t i m o
d o m i n g o : na província deTver, 9% do eleitorado votaram em " N e -
n h u m dos n o m e s anteriores". Na província de Kirov, foram 10%.
Aqueles que votam " c o n t r a " são hoje os verdadeiros d e m o c r a -
tas da Rússia. Eles c u m p r i r a m seu dever, recusando-se a votar e são,
em sua maioria, pessoas criteriosas c o m aversão por todos aqueles
que estão agora no poder.

23 de dezembro
Estão o c o r r e n d o assassinatos rituais e m M o s c o u . U m a segunda
cabeça decepada foi encontrada nas últimas 24 horas, desta vez no
distrito de Golianovo, no leste da cidade. Ela estava n u m a lata de
lixo na rua Altaiskaia. O n t e m à noite, foi encontrada u m a cabeça
em um saco plástico sobre u m a mesa no pátio diante do B l o c o de
A p a r t a m e n t o s 3 na rua Kranoiarskaia. A m b o s os h o m e n s foram
m o r t o s 24 horas antes de ser descobertos. N o s dois casos, as cir-
cunstâncias foram quase idênticas: as vítimas eram do Cáucaso, c o m
idades entre trinta e quarenta anos e t i n h a m cabelos escuros. As
identidades são desconhecidas. As cabeças estavam a um q u i l ô m e -
tro de distância uma da outra.
Estes são os resultados da propaganda racista na corrida às elei-
ções parlamentares. Nosso povo é m u i t o suscetível à propaganda
fascista e reage prontamente a ela. Em M o s c o u , mais no início deste
mês, o partido R o d i n a , de D m i t r i R o g o z i n , obteve 15% dos votos.
A U n i ã o de Forças de Direita e o Iabloko revelaram seu novo
projeto conjunto: o Conselho D e m o c r a t a U n i d o , um órgão inter-
partidário para o qual cada partido irá nomear seis m e m b r o s . No
anúncio, n e m mesmo os funcionários dos partidos pareciam acre-
ditar m u i t o que a união iria durar. O público em geral parece total-
m e n t e desinteressado no que fazem Iavlinski, N e m t s o v e os l u m i -
nares do partido Iabloko.
P u t i n realizou u m a r e u n i ã o c o m a elite e m p r e s a r i a l , ou
melhor, h o u v e uma reunião do C o n s e l h o da Câmara de C o m é r c i o
e Indústria, à qual compareceu o Presidente.
UM DIÁRIO RUSSO 49

Putin favorece a câmara c o m relação à U R I E , a U n i ã o Russa de


Industriais e Empresários, considerada um sindicato de oligarcas. Foi
na U R I E que Anatoli Tchubais falou em defesa de Khodorkovski
p o u c o depois de sua prisão. Ele não usou meias-palavras, falando de
" u m a escalada das ações das autoridades e órgãos de imposição
da lei c o m relação às empresas russas". Ele alertou q u e a confiança
da c o m u n i d a d e de negócios no governo tinha sido abalada: "As
empresas russas não mais confiam no atual sistema de aplicação da
lei, n e m naqueles que o dirigem." Foi uma acusação direta, pelo sin-
dicato dos oligarcas, de que as forças sob o c o m a n d o de Putin esta-
vam desestabilizando a sociedade. Tchubais pediu que P u t i n adotas-
se uma "posição clara e inequívoca". Foram palavras de u m a dureza
sem precedentes dirigidas pelas empresas ao governo.
A resposta de Putin foi dizer-lhes publicamente q u e "deixas-
sem de histeria" e aconselhar o governo a "não se deixar atrair para
aquela discussão". Ele ignorou o c o n t e ú d o da queixa dos oligarcas
e expressou sua completa confiança nos órgãos de imposição da lei.
Q u a n d o , em janeiro, Bóris Grizlov foi n o m e a d o orador da D u m a ,
Putin promoveu R a c h i d Nurgaliev, um dos mais odiosos chefes de
milícias, a ministro do Interior. Esta também p o d e ter sido u m a rea-
ção a boatos da época a respeito de uma suposta fraqueza de Putin
c o m o líder, uma tentativa de demonstrar a robustez do regime.
Mas a r e u n i ã o de P u t i n c o m a C â m a r a de C o m é r c i o e
Indústria foi bastante diferente. Ele acredita que a câmara pertence
a u m a categoria diferente daquela da U R I E . O presidente da C C I ,
Ievgeni Primakov, uma velha e astuta raposa soviética, fez seu dis-
curso e citou Putin em cinco ocasiões, prefaciando suas palavras:
" C o m o observou corretamente Vladimir Vladimirovitch..."
Primakov garantiu a P u t i n que " u m oligarca e um grande e m p r e -
sário são coisas muito diferentes (...). A palavra oligarca soa pejora-
tiva. Afinal, o que é um oligarca? U m a pessoa q u e e n r i q u e c e por
m e i o da manipulação desonesta dos impostos a pagar, entre outras
coisas, que pode enganar seus sócios ou tentar interferir na políti-
ca, c o r r o m p e n d o funcionários, partidos, deputados (...)" e assim
por diante. Todo o discurso de Primakov foi uma demonstração de
servilismo soviético e Putin claramente gostou dele.
A seguir, vieram as p e r g u n t a s . N a t u r a l m e n t e , i n d a g o u - s e se
haveria u m a revisão dos resultados da privatização. Apesar de aque-
50 A N N A POLITKOVSKAYA

la não ser uma reunião do sindicato dos oligarcas, o caso da Iukos


estava na m e n t e de todos.
De repente, Putin se pôs a vociferar c o m o um feirante ou car-
cereiro. " N ã o haverá n e n h u m a revisão de privatizações! As leis
e r a m complicadas, confusas, mas era perfeitamente possível respei-
tá-las! N ã o havia nada impossível a este respeito e q u e m queria
privatizar, conseguiu! Se cinco ou dez pessoas não conseguiram
c u m p r i r as leis, isto não significa q u e todas deixaram de fazê-lo!
Aqueles q u e c u m p r i r a m as leis estão d o r m i n d o t r a n q ü i l a m e n t e ,
m e s m o que não t e n h a m ficado tão ricos! As pessoas q u e desrespei-
taram a lei não devem ser tratadas da mesma maneira c o m o a q u e -
las q u e a respeitaram."
"Estar d o r m i n d o t r a n q ü i l a m e n t e " t a m b é m é um eufemismo
russo para estar no túmulo.
Depois da explosão de Putin, t u d o prosseguiu sem incidentes.
Os empresários fizeram seus relatórios a Putin e assumiram "res-
ponsabilidades socialistas" para c o m o c u m p r i m e n t o de várias
metas, exatamente c o m o nos dias da U R S S . Primakov prosseguiu,
f a z e n d o o q u e n i n g u é m havia feito desde o a d v e n t o de
Gorbatchov, isto é, lamber as botas do líder do país e j u r a r q u e
n e n h u m a palavra podia ser mais profunda que as dele.
(Em dezembro de 2 0 0 3 , isso feria os ouvidos e muitas pessoas
ficaram consternadas c o m o c o m p o r t a m e n t o de Primakov. Mais
tarde, ficou claro que ele foi apenas o primeiro a ver para q u e lado
o v e n t o estava soprando. Em p o u c o tempo, todos os que faziam dis-
cursos na presença de P u t i n estavam c i t a n d o - o c o p i o s a m e n t e —
c o m o era a prática no t e m p o de Brejnev — e não lhe faziam p e r -
guntas inadequadas.)
Valeria Novodvorskaia, líder do partido U n i ã o Democrática,
recebeu o P r ê m i o Starovoitova em São Petersburgo " p o r sua c o n -
tribuição para a defesa dos direitos h u m a n o s e o fortalecimento da
democracia na Rússia". O p r ê m i o tem o n o m e de Alina Starovoi-
tova, líder do R U , que foi assassinada por h o m e n s de O p e r a ç õ e s
Especiais do Diretorado da Agência de Inteligência do Exército
( G R U ) na entrada da sua casa. Na cerimônia, Novodvorskaia disse:
" N ã o estamos em oposição, mas em confronto c o m o presente
regime. N ã o participaremos das próximas eleições. Iremos boicotá-
las, apesar de isto não m u d a r nada."
UM DIÁRIO RUSSO 51

A oposição na Rússia é feita basicamente p o r palavras, mas


Novodvorskaia as usa c o m excepcional precisão e é a primeira a
atacar o Estado.
O Tribunal M u n i c i p a l de M o s c o u a u m e n t o u a indenização
concedida a Alia Alianka, u m a das vítimas do atentado durante a
apresentação do musical Nord-Ost, cujo m a r i d o , um empresário,
m o r r e u no cerco ao teatro em 26 de o u t u b r o de 2 0 0 2 , em dois
copeques (alguns centavos).

24 de dezembro
Primeira reunião d o C o n s e l h o D e m o c r á t i c o U n i d o d o Iabloko
c o m a U n i ã o de Forças de Direita, na qual o principal assunto é a
perspectiva da sobrevivência política conjunta. Foi eliminado da
pauta um i t e m a r e s p e i t o do l a n ç a m e n t o de um c a n d i d a t o à
Presidência q u e representasse u m a frente d e m o c r á t i c a u n i d a .
Trecho de u m a entrevista c o m Gregori Iavlinski:
" P o r que o Iabloko está se recusando a participar da eleição
presidencial?"
" P o r q u e nossas eleições n ã o são n e m m e s m o relativamente
democráticas."
"Por que então o senhor participou das eleições parlamentares?"
" F o r a m precisamente os resultados questionáveis das eleições
parlamentares que deixaram claro que as coisas não p o d i a m conti-
nuar c o m o estão. D u r a n t e as últimas eleições, o envolvimento polí-
tico n ã o autorizado das empresas foi esmagado. H o j e n e n h u m a
empresa ousa contribuir para uma causa política sem a permissão
do Kremlin."
" C o m o vê o futuro do Iabloko?"
"E o mesmo do resto da Rússia. E provável q u e eles m o n t e m
um partido paralelo pseudodemocrático ou que nos c o m b a t a m até
a extinção. N ã o acredito n e m por um instante que seremos deixa-
dos em paz para nos preparar para as próximas eleições."
" U m a D u m a de um único partido? Mas o Partido Comunista
ainda está lá."
"Formalmente, sim. Mas, se você pegar cinco pessoas dos par-
tidos restantes, colocá-las em salas diferentes e lhes fizer perguntas
cruciais c o m o : 'O q u e deve ser feito na T c h e t c h ê n i a ? C o m o o
52 A N N A POLITKOVSKAYA

Exército deve ser reformado? O que deve ser feito a respeito de


educação e saúde? C o m o devem ser nossas relações c o m Europa e
América?', todos eles darão as mesmas respostas. Temos um parla-
m e n t o falsamente pluripartidário, eleições supostamente livres e j u s -
tas, um judiciário pseudo-imparcial e uma mídia de massa pseudo-
independente.Todo o cenário é uma fachada, uma dissimulação."
"O senhor acha que isto irá durar muito t e m p o ? "
"As coisas estão m u d a n d o r a p i d a m e n t e e q u a l q u e r um que
pense que isso irá durar m u i t o t e m p o está enganado. Mas para você
e para m i m talvez pareça t e m p o demais."
T e n h o interesse no que Iavlinski t e m a dizer quase q u e p o r for-
ça de hábito. Outros jornalistas não se interessam n e m um p o u c o .
E m M o s c o u , o v i t o r i o s o R U realiza sua assembléia. B ó r i s
Grizlov, o r e c é m - n o m e a d o orador da D u m a , declara: "Mais de 37%
dos cidadãos da Rússia, mais de 22 milhões de pessoas, votaram em
nós. Conseguimos a maioria na D u m a , o que significa u m a grande
responsabilidade para nós, e eu não acredito em fugir às responsa-
bilidades. Apresentei a P u t i n u m a solicitação e ele p r o v i d e n c i o u
m i n h a transferência para a D u m a . Permitam que eu expresse minha
g r a t i d ã o especial ao p r e s i d e n t e V l a d i m i r V l a d i m i r o v i t c h P u t i n .
Seguindo seu curso, nossa vitória foi assegurada. Nosso candidato
para as próximas eleições já é conhecido -VladimirVladimirovitch
Putin. E nosso dever garantir q u e ele vença de forma decisiva."
D e p o i s da assembléia, o c o r r e u a p r i m e i r a r e u n i ã o do R U .
Grizlov nos c o n t o u a respeito da sua visão do papel político da
D u m a . O debate político é tagarelice e deve ser eliminado. Para
Grizlov, a D u m a sem debates significará um passo à frente.
A Comissão Eleitoral Central registrou um g r u p o de eleitores
q u e p r o p u n h a m a candidatura de Putin. Agora eles p o d e m fazer sua
c a m p a n h a oficialmente, c o m o se n ã o a estivessem f a z e n d o até
agora.

26 de dezembro

A décima quinta assembléia do ilusoriamente d e n o m i n a d o Partido


Liberal Democrata t e m início em Moscou c o m o slogan " O s rus-
sos estão cansados de esperar!". J i r i n o v s k i não irá c o n c o r r e r à
UM DIÁRIO RUSSO 53

Presidência. "Apresentaremos um total desconhecido, mas eu lide-


rarei pessoalmente o partido durante a eleição presidencial", a n u n -
ciou ele. A assembléia escolheu O l e g Malichkin, um treinador de
luta livre que é guarda-costas de Jirinovski e um completo imbecil.
Em sua primeira entrevista c o m o candidato presidencial, ele teve
alguma dificuldade para lembrar qual era seu livro favorito.
Putin não carece apenas de concorrentes contra os quais c o m -
petir. Todo o cenário no qual a eleição está sendo organizada é um
deserto intelectual. O assunto não t e m lógica, n e m razão, n e m uma
centelha de pensamento sério. Os candidatos não t ê m manifestos e
é impossível imaginá-los c o m capacidade para conduzir um deba-
te político.
O que p o d e m o s fazer? As campanhas eleitorais foram criadas
p o r sociedades democráticas em parte para fornecer à população
informações para q u e ela decida seu futuro e dar aos candidatos
conselhos e instruções.
M a n d a r a m q u e nos calássemos. O c a n d i d a t o n° 1 c o n h e c e
melhor as necessidades de todos e, assim, não precisa dos conselhos
de ninguém. N ã o existe n i n g u é m para m o d e r a r sua arrogância. A
Rússia foi humilhada.

27 de dezembro
Sterligov, o fabricante de caixões, teve sua candidatura desqualifica-
da pela Comissão Eleitoral Central.Viktor Anpilov, um palhaço do
Partido dos Trabalhadores da Rússia, ofereceu-se prontamente. A
situação não m e l h o r o u .

28 de dezembro
Finalmente e n c o n t r a r a m um o p o n e n t e válido para Putin: Sergei
M i r o n o v , * o r a d o r do Soviet da F e d e r a ç ã o , foi p r o p o s t o pelo
Partido da Vida (outro dos partidos anões m o n t a d o s p o r Vladimir
Surkov,* subchefe da administração presidencial). Mas ele a n u n -
ciou imediatamente: "Apoio Putin."
Está acontecendo a assembléia do Partido C o m u n i s t a Russo.
Foi proposto o n o m e de Nikolai Khariotonov, um h o m e m estra-
n h o e falador que trabalhou na K G B . Maravilhoso!
54 A N N A POLITKOVSKAYA

Ivan R i b k i n anunciou q u e irá concorrer. Ele é cria de Bóris


Berezovski,* o principal o p o n e n t e de Putin, hoje exilado no exte-
rior. R i b k i n foi o r a d o r da D u m a e p r e s i d e n t e do C o n s e l h o
Nacional de Segurança. Q u e m é ele hoje? O t e m p o dirá.
E n q u a n t o isso, M o s c o u está paralisada. Os ricos não t ê m p r e o -
cupações; estão todos no exterior, em férias. M o s c o u é u m a cidade
m u i t o rica. Todos os restaurantes, até os mais dispendiosos, estão
lotados ou fechados para festas de empresas. As mesas estão repletas
de iguarias que estão além da imaginação do restante da Rússia.
Milhares de dólares são gastos n u m a noite. Será esta a última folia
da Nova Política E c o n ô m i c a do século X X I ?

29 de dezembro
Primeira sessão da nova D u m a . Putin declarou que o Parlamento
"precisa lembrar que o p o d e r emana do povo. Nossa maior p r i o r i -
dade é, antes de mais nada, nos concentrarmos nas questões que
afetam a qualidade de vida dos nossos cidadãos (...). F o r a m precisos
t e m p o e um esforço consideráveis para afastar a D u m a do confron-
to político e trazê-la para o trabalho construtivo (...). E essencial
abrir c a m i n h o em todas as frentes (...). Temos t o d o o direito de
dizer que esta época presencia o fortalecimento da democracia par-
lamentar na Rússia (...).Todo debate é inútil (...)".
Vladislav Surkov, da administração presidencial, t a m b é m estava
presente. Ele é a pessoa a q u e m o RU deve sua maioridade constitu-
cional, um projetista de partidos políticos, escorregadio e perigoso.
V l a d i m i r R i z k h o v , * c a n d i d a t o i n d e p e n d e n t e d a região d e
Altai, anunciou que pretende questionar a composição da D u m a
nos tribunais. "O eleitorado não deu ao RU um m a n d a t o para u m a
maioria constitucional." E mesmo? B e m , e o que você vai fazer a
este respeito? Vivemos em u m a época em que as autoridades do
Estado não têm vergonha n e n h u m a .
Sergei Choigu, ministro para Situações de Emergência e alto
funcionário do R U , e certamente não um dos mais estúpidos, p r o -
pôs subitamente que "o RU deve se tornar o partido que dê respal-
do público para o c u m p r i m e n t o das decisões do presidente".
Afinal, Irina Khakamada poderá concorrer à presidência.Todos
os democratas e liberais estão c o n d e n a n d o - a a n t e c i p a d a m e n t e ,
UM DIÁRIO RUSSO 55

dizendo que o governo lhe ofereceu um acordo para que haja pelo
m e n o s u m o p o n e n t e i n t e l i g e n t e para P u t i n d e r r o t a r . V i k t o r
Gerachenko, ex-diretor do Tsentrobank e hoje deputado pelo par-
tido R o d i n a , t a m b é m decidiu concorrer.

30 de dezembro
Irina Khakamada c o n f i r m o u sua candidatura. Ela pensou durante
24 horas depois que um g r u p o lobista lhe fez a proposta. Será que
o grupo foi enviado pelo Kremlin?
Ela t e m até 28 de janeiro para colher dois milhões de assinatu-
ras. Viktor G e r a c h e n k o não precisará colher assinaturas, porque o
R o d i n a é um partido c o m assentos na D u m a . O R o d i n a foi criado
porVladislav S u r k o v e é financiado p o r vários oligarcas. Sergei
Glaziev, t a m b é m do R o d i n a , concorrerá c o m o candidato indepen-
dente.
Putin precisava de concorrentes e os recebeu c o m o presente de
A n o - n o v o . Os novos candidatos declararam p r o n t a m e n t e que o
importante não é vencer, mas participar.

31 de dezembro
U m a triste despedida de 2 0 0 3 . As eleições para a D u m a foram uma
grande vitória para o absolutismo de Putin, mas p o r quanto t e m p o
se p o d e m construir impérios? Um i m p é r i o c o n d u z à repressão e
finalmente à estagnação e é para ela q u e estamos c a m i n h a n d o .
Nossos cidadãos foram exauridos pelos e x p e r i m e n t o s políticos e
e c o n ô m i c o s a eles i m p o s t o s . Eles q u e r e m m u i t o ter u m a vida
melhor, mas não q u e r e m ter de lutar por ela. Eles esperam que tudo
lhes venha de cima e, se o que vier for repressão, irão aceitá-la com
resignação. A piada mais popular na Internet: "E noite na Rússia.
Anões lançam sombras enormes."
Os telespectadores do programa Livre Debate da N T V votaram
para o R u s s o do A n o . E n t r e os n o m e s v o t a d o s , estavam o de
Vladislav Surkov (por causar a esmagadora vitória do R U ) ; o aca-
dêmico Vitali G i n z b u r g (prêmio N o b e l em 2 0 0 3 , pelo trabalho em
física quântica); o diretor Andrei Zviagintsev (cujo primeiro filme,
O retorno, g a n h o u o L e ã o de O u r o no Festival de C i n e m a de
56 A N N A POLITKOVSKAYA

Veneza); Georgi Iartsev (treinador da seleção russa de futebol, que


levou a equipe à vitória contra o País de Gales) e Mikhail K h o d o r -
kovski (por criar a empresa mais honesta e transparente da Rússia,
tornando-se o h o m e m mais rico do país e acabando na cadeia).
Os telespectadores escolheram Ginzburg. Surkov acabou em
último lugar.
No final do programa, o apresentador Savik C h u s t e r revelou a
classificação dos escolhidos n u m a pesquisa antes e n c o m e n d a d a ao
serviço de pesquisa de o p i n i ã o pública R o m i r . Nessa pesquisa,
Ginzburg t a m b é m foi o primeiro colocado e Surkov o último. Isso
mostra uma divergência entre o m o d e l o de realidade do governo
Putin e aquilo que realmente existe.
O m u n d o virtual das emissoras oficiais de televisão é m u i t o
diferente. O Vremia, o principal noticiário do país, t a m b é m realizou
u m a pesquisa de popularidade para 2003. Putin ficou em primeiro
lugar, Choigu em segundo e Grizlov em terceiro.
Agora, quase na hora dos sinos do Kremlin tocarem à meia-
noite, um pensamento final para o ano: por que tantas pessoas estão
emigrando? No ano passado, o n ú m e r o de nossos cidadãos que se
inscreveram para viver no O c i d e n t e a u m e n t o u em 56%. De acor-
do c o m o Gabinete do Alto Comissário da O N U para Refugiados,
a Rússia está à frente de t o d o s os outros países do m u n d o em
n ú m e r o de cidadãos q u e buscam asilo em outros países.

4 de janeiro de 2004
A assembléia do Partido da Vida confirma a candidatura de Sergei
Mironov. Ele repete que espera que Putin vença.
Mironov é um dos suportes para a candidatura de Putin. N ã o
deixar nada ao acaso é u m a das principais características desta cam-
panha. Por que eles estão tão preocupados?
Na vila tchetchena de Berkat-Iurt, soldados russos seqüestra-
r a m Khasan Tchalev, q u e trabalha para a milícia tchetchena. Seu
destino é desconhecido.
UM DIÁRIO RUSSO 57

5 de janeiro
P u t i n realiza u m a r e u n i ã o do gabinete. " P r e c i s a m o s explicar as
prioridades do governo aos deputados da D u m a " , insiste ele repe-
tidamente. Ele não está de b o m h u m o r . A R e v o l u ç ã o da R o s a *
triunfou na Geórgia e Saakachvilli* está c o m e m o r a n d o a vitória.
Resultados provisórios sugerem que ele conquistou cerca de 85%
dos votos. Este é um apelo ao despertar para os dirigentes dos
outros países da C o m u n i d a d e de Estados I n d e p e n d e n t e s . * Todos
em volta da mesa c o m P u t i n estão muito conscientes disso. Há um
limite para o t e m p o em q u e se p o d e m pisar as pessoas. Q u a n d o elas
querem realmente mudanças, não há nada que se possa fazer para
impedi-las. Será que é disso que eles estão c o m m e d o ?

6 de janeiro
U l t i m o dia para q u e os candidatos apresentem seus documentos.
Kharitonov, Malichkin, G e r a c h e n k o e M i r o n o v foram propostos
por partidos c o m assentos na D u m a . Há agora seis candidatos i n d e -
p e n d e n t e s ( P u t i n , K h a k a m a d a , Glaziev, R i b k i n , A k s e n t i e v e
Brindalov). Khakamada t e m problemas c o m seus colegas políticos
de direita. N e m a U n i ã o de Forças de Direita n e m o Iabloko estão
c o m pressa para apoiá-la ou ajudar na coleta de assinaturas. Isso faz
dela u m a espécie de pária, fato que p o d e levar os russos a votarem
nela. Gostamos de párias, mas t a m b é m de vitoriosos. As pessoas
admiram Putin pela maneira c o m o ele consegue enganar todas as
pessoas. Perdem aqueles q u e estão no meio.
Hoje é a véspera do Natal ortodoxo russo, q u a n d o as pessoas
tradicionalmente dão presentes e fazem boas ações (mas não em
público). Putin foi de helicóptero para Suzdal. Ele precisa vencer
u m a eleição e assim sua vida pessoal é p r o p r i e d a d e pública. Em
Suzdal, ele c a m i n h o u pelas igrejas antigas, ouviu o canto das novi-
ças em um dos conventos e posou para as câmeras de televisão e,
sem dúvida, o b a n d o de jornalistas no início do serviço de Natal. A
filmagem da televisão foi arranjada para mostrar P u t i n sozinho c o m
a congregação de criancinhas e mulheres c o m seus lenços na cabe-
ça. N e n h u m guarda-costas à vista. Ele se persignou. Graças a Deus,
58 A N N A POLITKOVSKAYA

há um progresso no m u n d o ; hoje em dia ele faz o sinal-da-cruz


c o m muita competência.
O u t r a tradição russa é que aqueles q u e estão no topo e na base
da nossa sociedade parecem viver em planetas diferentes. Exibir
Putin entre pessoas comuns no Natal não significa que a vida irá
mudar para elas. Saio para ver os menos privilegiados de todos, em
um lugar o n d e n i n g u é m da elite p õ e os pés: o O r f a n a t o
Psiconeurológico n° 2 5 , na periferia de M o s c o u .
A periferia de M o s c o u não é c o m o o centro da cidade, q u e
hoje em dia é improvavelmente opulento. A periferia é silenciosa e
faminta. N ã o há benfeitores c o m b r i n q u e d o s e presentes, livros e
fraldas Pampers. N e m mesmo no Natal.
"Vamos ver as crianças", diz a sábia Lidia Slevak, diretora do
orfanato para as crianças mais novas, em um t o m de voz que suge-
re que isto irá responder a todas as minhas perguntas.
O p e q u e n o Danila está esticado c o m o u m a vela nos braços
adultos de u m a funcionária. Ele parece estar c o m você, quase pôs
os braços à sua volta, mas t a m b é m não está, solitário, distante. O
m u n d o d e i x o u - o para trás, ele está só. Ele m a n t é m as costas m u i t o
retas, c o m o um praticante de ioga. Seus cabelos crespos parecem a
chama de u m a vela. U m a leve brisa que entra pela porta faz brilhar
seus cachos sedosos. Ele é um anjo, um milagre do Natal.
A única pergunta é: a quem pertence este anjo? N i n g u é m p o d e
adotá-lo, devido às nossas leis idiotas. A situação oficial de Danila é
um p r o b l e m a para o qual não há solução. Sua mãe natural n ã o
renunciou oficialmente aos seus direitos m a t e r n o s antes de fugir. A
polícia deveria localizá-la, mas tem coisas mais importantes c o m
que se preocupar. Isso significa que ele não p o d e ser adotado, a p e -
sar de ser u m a p e q u e n a maravilha. Q u a n t o mais cedo for adotado,
melhores serão suas chances na vida, mais cedo irá se recuperar e
esquecer t u d o o q u e lhe aconteceu. Mas o Estado também t e m c o i -
sas mais importantes c o m que se preocupar.
O ambiente é aquecido e limpo, c o m o em u m a boa creche.
U m a placa sobre a porta nos diz q u e o g r u p o ao qual Danila e
outros o n z e garotinhos pertencem se c h a m a Bebês Estorninhos.
Q u e m cuida deles são mulheres bondosas, m u i t o cansadas, que tra-
balham demais.Tudo lá é bom, só que as crianças não choram. Elas
ficam em silêncio ou uivam. N i n g u é m ri. Q u a n d o não está cerran-
UM DIÁRIO RUSSO 59

do os dentes, o p e q u e n o Danila, de 15 meses, fica em silêncio,


olhando atentamente para os estranhos que chegaram. Ele não olha
para as pessoas da maneira c o m que se espera de um bebê de 15
meses; ele espreita dentro dos olhos, c o m o um interrogador. Ele tem
uma experiência catastroficamente limitada de ternura humana.
É véspera de Natal no orfanato da rua Ieletskaia e um presen-
te acabou de ser entregue. Seu n o m e é D m i t r i Dmitrievitch e ele
sofre de severas insuficiências hepática e renal. Nasceu em d e z e m -
bro de 2002 e, em m a i o de 2003, sua mãe o " e s q u e c e u " na entrada
de um prédio. S u r p r e e n d e n t e m e n t e , a polícia conseguiu localizá-la
e ela redigiu a declaração necessária: " R e n u n c i o aos meus direitos
maternos."
Dmitri foi trazido do hospital para o orfanato. Ele passou m e t a -
de da sua vida em unidades de t r a t a m e n t o intensivo e não t e m
cabelos na n u c a , p o r q u e fica sempre d e i t a d o de costas. O novo
garoto do g r u p o está sentado em um andador especial e estuda este
lugar desconhecido. Há chocalhos e b r i n q u e d o s diante dele, mas
Dmitri D m i t r i e v i t c h parece mais interessado nas pessoas. Ele exa-
mina a consultora. Ele quer dar unia boa olhada nela, mas ainda não
sabe c o m o usar suas p e r n i n h a s , as quais, p e l o fato de ter ficado
preso ao leito p o r t a n t o t e m p o , não o estão ajudando a girar o
andador para ficar de frente para Lidia Konstantinovna. Ela não
intervém. Q u e r q u e ele aprenda a conseguir o que quer.
"Venha, D m i t r i Dmitrievitch", diz ela."Agarre a vida! Reaja!"
S e m ajuda, D m i t r i D m i t r i e v i t c h reage e , alguns m i n u t o s
depois, vence e está encarando Lidia Konstantinovna.
" Q u e tipo de trabalho você acha q u e faz aqui? O trabalho de
Madre Teresa ou de alguém que precisa limpar nossa sociedade? Ou
você apenas sente m u i t o pelas crianças?"
"As crianças não precisam de piedade", diz Lidia."Esta é a lição
mais importante q u e aprendi. Elas precisam de ajuda. Estamos aju-
dando-as a sobreviver. Devido ao trabalho q u e fazemos, elas p o d e m
esperar encontrar pais adotivos. E m e u pessoal nunca chama este
lugar de orfanato na frente delas. C h a m a m o s de creche para que
mais tarde, n u m a vida m u i t o diferente se elas forem adotadas, as
crianças não v e n h a m a ter n e m m e s m o u m a lembrança subcons-
ciente de ter estado em um orfanato."
60 A N N A POLITKOVSKAYA

"Vocês estão trabalhando para que as crianças sob seus cuida-


dos venham a ser adotadas?"
"E claro q u e sim. Essa é a coisa mais i m p o r t a n t e que posso
fazer por elas."
"O que você acha da adoção por estrangeiros? Nossos políticos
patriotas exigem q u e acabemos c o m isso."
"Acho que a adoção por estrangeiros é u m a coisa muito boa.
T a m b é m há algumas histórias de terror a respeito de famílias adoti-
vas russas, só que não são mencionadas. Neste m o m e n t o , estão falan-
do em tirar uma das nossas crianças dos pais adotivos russos. Ela não
voltará para cá. O u t r o problema é que os pais adotivos russos não
pegam crianças da mesma família. Os estrangeiros gostam de fazer
isso, o que significa q u e irmãos e irmãs não são separados. Isto é
muito importante. Tivemos uma família de seis crianças adotadas na
América. Natasha, a mais nova delas, nos foi trazida embrulhada com
papel de parede. Seu irmão de seis anos e m b r u l h o u - a para impedir
que ela congelasse, p o r q u e não havia mais nada para usar na casa.
Então, que mal há no fato de todas as seis estarem agora nos Estados
Unidos? Fico muito feliz quando vejo a foto que me mandaram de
lá. N i n g u é m acreditaria no estado em que se encontravam aqui. Só
nós nos lembramos disso. No ano passado, 15 das 26 crianças que
foram adotadas do nosso orfanato foram levadas p o r pais adotivos
estrangeiros, p r i n c i p a l m e n t e dos Estados U n i d o s e da Espanha.
Havia três pares de irmãos e irmãs. Os russos não as adotariam."
" N ã o adotariam p o r q u e não querem ou p o r q u e não poderiam
se dar a este l u x o ? "
" N ã o iam querer. E, c o m o regra geral, na Rússia os ricos não
adotam crianças."
Q u e espécie de pessoas elas serão q u a n d o crescerem, da m a n e i -
ra c o m que nosso país se transformou?
A onda de doações a instituições de caridade na Rússia parou
em 2002, quando o governo Putin revogou os privilégios fiscais para
aquelas instituições. Até 2002, as crianças em nossos orfanatos eram
cobertas de presentes no Ano-novo. Hoje os ricos não as presenteiam
mais. Os aposentados lhes trazem suas mantas velhas e rasgadas.
O Banco M u n d i a l t e m um programa especial d e n o m i n a d o
U m a C h a n c e para Trabalhar, que dá a crianças c o m problemas
experiência de trabalho e uma oportunidade para adquirir valiosas
UM DIÁRIO RUSSO 61

qualificações. Se alguém fizesse isso em nossa sociedade, provavel-


m e n t e seria visto c o m suspeita. "O q u e ele está g a n h a n d o c o m
isso?", perguntariam os vizinhos.
São os p r ó p r i o s órfãos que mostram compaixão. Nádia deixou
o orfanato q u a n d o ficou velha demais para lá permanecer e rece-
beu um q u a r t o da autoridade municipal, c o m o manda a lei. Ela
i m e d i a t a m e n t e alojou lá quatro outros órfãos. C o m p l e t a m e n t e
alheios às coisas do m u n d o , eles haviam trocado seus quartos p o r
telefones celulares e ficaram na rua.
Agora Nádia os está alimentando, mas ela não tem dinheiro.
N e n h u m deles encontra emprego. Sua atitude é de verdadeira cari-
dade. Ela não tenta abordar os bancos e outras instituições ricas,
pois sabe que não conseguiria passar n e m m e s m o pela segurança.
E n q u a n t o isso, nossos novos-ricos neste Natal estão esquiando
em Courchevel. Mais de dois mil russos, cada um ganhando mais
de meio milhão de rublos [US$20.000] p o r mês, reúnem-se lá para
a "estação russa" nos Alpes suíços. O cardápio oferece oito espécies
de ostras, a carta de vinhos inclui garrafas a US$3.000 e, no séqui-
to de cada n o v o - r i c o , você certamente encontrará funcionários do
governo, nossos verdadeiros oligarcas, q u e propiciam essas vastas
rendas a dois mil favorecidos. Nas reportagens da televisão sobre
C o u r c h e v e l , n ã o se diz em n e n h u m m o m e n t o q u e o trabalho
árduo os fez amealhar essas fortunas. A conversa é sobre sucesso, o
m o m e n t o em q u e t u d o se encaixou, do pássaro da felicidade apa-
nhado pela cauda, de merecer a confiança das autoridades do Es-
tado. A " c a r i d a d e " aos funcionários públicos, conhecida em outros
lugares c o m o c o r r u p ç ã o , é o c a m i n h o mais rápido para C o u r -
chevel. Trata-se de u m a versão m o d e r n a da história de Ivan, o Tolo,
que não conseguia empobrecer por mais q u e fosse enganado pelos
irmãos: apenas pague ao Kremlin e riquezas e p o d e r virão até você.

8 de janeiro

O guarda-costas de Jirinovski foi registrado pela Comissão Elei-


toral Central c o m o o primeiro candidato em 2004 à Presidência da
Rússia. H i p - h i p - h u r r a ! J i r i n o v s k i t e m u m a p r o c u r a ç ã o d e
Malichkin.
62 A N N A POLITKOVSKAYA

Na região de Krasnoiarsk, os camponeses estão sendo pagos


c o m bezerros doentes. O potentado q u e m a n d a naquela região é
Vladimir Potanin, o oligarca mais p r ó x i m o de P u t i n e, na verdade,
seu representante. Há mais de três anos, n e n h u m salário é pago em
dinheiro na fazenda de laticínios em Ustiug; em vez disso, os cam-
poneses recebem bezerros.Todo o maquinário foi vendido para sal-
dar dívidas. O veterinário foi demitido há m u i t o e assim não há
n i n g u é m para cuidar do gado doente.

9 de janeiro
Isto r e a l m e n t e é n o v i d a d e para nós. Os i n t e r n o s do O r f a n a t o
Internacional em Ivanovo estão fazendo greve de fome. O orfana-
to foi fundado em 1933 para cuidar de crianças de muitos países
diferentes, cujos pais estavam em campos de prisioneiros de estados
" c o m regimes reacionários ou fascistas".
As crianças estão exigindo que o Orfanato Internacional seja
deixado em paz, q u e não seja dividido n e m privatizado e que seu
prédio não seja vendido. (Elas tiveram sucesso.)

10 de janeiro
Na aldeia tchetchena de Avturi, soldados não identificados rapta-
ram de sua casa Alan Davletukaev, defensor dos direitos humanos.
Os seqüestradores fugiram em três veículos blindados de transpor-
te de pessoal e dois jipes blindados U A Z .

13 de janeiro
Hoje é o Dia da Imprensa Russa. Em expectativa, o Instituto R o m i r
de pesquisa da opinião pública perguntou às pessoas: " E m que ins-
tituições sociais v o c ê mais confia?" N o v e p o r c e n t o confiam na
mídia, 1% confia em partidos políticos, 5 0 % confiam em Putin,
2 8 % não confiam em n i n g u é m , e 14% confiam na Igreja Ortodoxa
Russa. O governo e o exército ficaram c o m 9% cada. Os governos
municipais e os sindicatos ficaram c o m 3% e as forças da lei conse-
guiram 5%. É claro que as pessoas tinham liberdade para escolher
mais de u m a instituição e algumas o fizeram.
UM DIÁRIO RUSSO 63

Vítimas de atos terroristas nos ú l t i m o s anos enviaram u m a


carta aberta a todos os candidatos presidenciais. Ela diz:
"A eleição presidencial é uma ocasião para se rever o passado e
para q u e as autoridades que estão saindo prestem contas do que
fizeram na vigência dos seus mandatos. Deve haver na Rússia
poucas pessoas que sofreram mais do que nós neste período.
Perdemos entes queridos quando prédios foram explodidos em
1999 e q u a n d o o teatro em Dubrovka foi t o m a d o por terroris-
tas em 2 0 0 2 . A p e l a m o s a vocês para q u e i n c l u a m em seus
manifestos a investigação desses atos terroristas.
"(...) Gostaríamos de saber o q u e cada um de vocês fará
caso seja eleito.
"Você irá instaurar inquéritos independentes e imparciais,
ou continuará a conspiração do silêncio que cerca a m o r t e de
nossos entes queridos? T e n t a m o s em vão obter explicações
dignas de crédito das autoridades do Estado. O atual presiden-
te da Federação Russa tinha obrigação de responder, não só em
virtude de sua posição, mas simplesmente p o r uma questão de
consciência. Afinal, a m o r t e de nossos entes queridos estava
diretamente relacionada c o m sua carreira política e decisões
p o r ele t o m a d a s . A explosão de p r é d i o s convenceu o p o v o
russo a apoiar sua linha dura c o m a T c h e t c h ê n i a durante a últi-
ma eleição presidencial e ele deu pessoalmente a ordem para o
uso do gás em Dubrovka."

A seguir os signatários apresentam aos candidatos uma lista de


perguntas, as quais foram antes dirigidas a P u t i n sem n e n h u m a res-
posta.
A respeito da explosão dos prédios:

1. Por q u e as autoridades obstruíram a investigação dos eventos


em R i a z a n , q u a n d o agentes do FSB foram apanhados
preparando-se para explodir um prédio de apartamentos?
2. C o m o é possível que o orador da D u m a tenha feito uma d e -
claração a respeito da explosão do prédio emVolgodonsk
três dias antes de ela ocorrer?
3. Por q u e n ã o foi investigada a d e s c o b e r t a de um p o t e n t e
explosivo (hexogen) em sacos rotulados c o m o "açúcar"
na base do exército em Riazan no o u t o n o de 1999?
64 A N N A POLITKOVSKAYA

4. Por que, sob pressão do FSB, foi encerrada a investigação sobre


a transferência de hexogen de depósitos do exército para
e m p r e s a s fictícias, através do I n s t i t u t o de Pesquisa
Roskonversvzrivtsentr?
5. Por que o advogado Mikhail Trepachkin foi preso depois de
descobrir a identidade do agente do FSB que alugou as
dependências para a colocação da b o m b a no prédio na
rua Gurianov?

A respeito do cerco em Dubrovka (a tomada c o m o reféns das


pessoas que assistiam ao musical Nord-Ost):

1. Por que foi tomada a decisão de iniciar um ataque a gás no


m e s m o instante em que havia surgido u m a oportunida-
de de negociar a libertação dos reféns?
2. O fato de as autoridades terem decidido usar um gás de ação
lenta, q u e p o d e r i a ter d a d o t e m p o para q u e artefatos
explosivos fossem detonados, indica que elas já sabiam
que os terroristas não tinham c o m eles explosivos reais?
3. Por que todos os terroristas, inclusive os incapacitados, foram
m o r t o s , q u a n d o poderiam ter sido presos e fornecer p r o -
vas para um inquérito?
4. Por que as autoridades ocultaram o fato de que K.Terkibaev,
que, depois que seu n o m e foi c o n h e c i d o , m o r r e u em um
acidente de carro, era um agente do FSB que participou
da t o m a d a do teatro?
5. Por que, q u a n d o o ataque foi planejado, não foi feita n e n h u -
ma tentativa de organizar a assistência médica no local para
os reféns, uma negligência que resultou nas mortes de 130
pessoas?

As únicas respostas v i e r a m de I r i n a K h a k a m a d a e de Ivan


R i b k i n . Ela apoiou as vítimas do incidente Nord-Ost desde o início.
No total, K h a k a m a d a está c o m e ç a n d o a parecer a mais n o r m a l
entre os candidatos.Tudo o que ela disse até aqui merece ser o u v i -
do. Ela v e m dizendo que, c o m Putin, o país não p o d e progredir.
Irina Khakamada:
DIÁRIO RUSSO 65

C o m o não analisei as explosões em M o s c o u eVolgodonsk,


responderei s o m e n t e às perguntas a respeito dos eventos em
Dubrovka.
A decisão de efetuar o ataque foi tomada no terceiro dia
do cerco. Eu estive dentro do prédio no primeiro dia e estou
respondendo c o m base no que aconteceu naquele dia. M i n h a
impressão é de que, no primeiro dia, teria sido possível libertar
os reféns p o r m e i o de negociações. Acredito que o objetivo do
ataque foi fazer u m a demonstração de força e que salvar a vida
das pessoas não era uma prioridade alta.
Ainda é um mistério para m i m c o m o foi possível matar
todos os terroristas, que estavam localizados em diferentes par-
tes do prédio e do auditório; e p o r q u ê , depois do ataque c o m
gás, todos os terroristas m o r r e r a m , e n q u a n t o algumas pessoas
próximas a eles m o r r e r a m e outras sobreviveram. Suspeito q u e
t e n h a m sido eliminados porque, c o m o testemunhas, eles p o d e -
riam ter declarado que os reféns p o d e r i a m ter sido libertados.
Enfatizo q u e se trata de uma suspeita, porque deveria haver a
presunção de inocência.
N ó s , da U n i ã o de Forças de D i r e i t a , organizamos u m a
investigação p o r conta própria e chegamos à conclusão de que
n i n g u é m p e n s o u em tentar salvar os reféns. Nada foi planejado
e o resultado foi um desastre. O aspecto militar foi considera-
do o mais importante da operação e n i n g u é m sequer foi desig-
nado para cuidar dos civis.
Posso acrescentar por m i n h a conta que, depois da tragédia
de Dubrovka, o sr. Putin enganou o m u n d o todo. R e s p o n d e n d o
à p e r g u n t a de um jornalista do Washington Post, ele disse:
"Aquelas pessoas não morreram em conseqüência do gás, p o r -
que ele era inofensivo. Era inofensivo e podemos dizer que, no
decorrer da operação, n e n h u m refém foi prejudicado" (pelo gás).
E n q u a n t o Putin e seus asseclas estavam tremendo de m e d o
no K r e m l i n , n ã o pela vida de seus cidadãos, mas de p e r d e r
p o d e r , várias pessoas tiveram a c o r a g e m de tentar salvar os
reféns, i n d o voluntariamente aos terroristas para tentar libertar
pelo m e n o s as crianças. Agradeço a D e u s por ter tido, sendo
mãe de duas crianças, coragem e determinação para entrar e
negociar c o m os terroristas.
A N N A POLITKOVSKAYA

A n t e r i o r m e n t e não tornei pública grande parte do que vi


n o C o m p l e x o d e Teatros d e D u b r o v k a n e m , e m particular,
c o m o o presidente e os membros do seu governo reagiram ao
m e u esforço para salvar vidas. Eu pensei, erroneamente, que o
presidente P u t i n iria ajudar a esclarecer a verdade e pediria
desculpas pela o r d e m q u e d e u para o uso de um gás letal.
P o r é m , ele p e r m a n e c e em silêncio e não responde às pessoas
que p e r d e r a m seus entes queridos. O presidente fez sua opção
e decidiu ocultar a verdade. T a m b é m fiz minha opção e c o n t a -
rei a verdade. Em conseqüência de minhas negociações c o m os
terroristas no teatro, em 23 de o u t u b r o de 2002, e daquilo que
aconteceu a seguir, cheguei à conclusão de que os terroristas
não t i n h a m a m e n o r intenção de e x p l o d i r o C o m p l e x o de
Teatros e q u e as autoridades não t i n h a m a m e n o r intenção de
tentar salvar todos os reféns.
Os eventos mais importantes o c o r r e r a m depois que retor-
nei da negociação c o m os terroristas. Alexander Volochin, o
dirigente da administração presidencial, a m e a ç o u - m e e o r d e -
n o u q u e eu não interferisse mais.
Pensando no ocorrido, cheguei à inescapável conclusão de
que aquele ato terrorista ajudou a reforçar a histeria antitchet-
chena, a prolongar a guerra na T c h e t c h ê n i a e a manter o alto
índice de aprovação do presidente. Estou convencido de que os
atos de P u t i n para ocultar a verdade constituem um crime c o n -
tra o Estado. C o m p r o m e t o - m e a, q u a n d o me tornar presiden-
te, fazer c o m q u e os cidadãos da Rússia saibam a verdade a res-
peito da explosão do prédio de apartamentos, da tragédia no
C o m p l e x o de Teatros e de muitos outros crimes c o m e t i d o s
pelas autoridades. R e c e n t e m e n t e , muitos amigos meus tenta-
ram me dissuadir de participar da eleição presidencial. Em
público, eles declaram que estou quase traindo os interesses dos
democratas, q u e p e d e m o boicote das eleições, mas em parti-
cular alertam que serei simplesmente assassinada se contar a
verdade. N ã o t e n h o m e d o deste regime terrorista. Apelo para
que n i n g u é m seja intimidado por ele. Nossos filhos precisam
crescer livres.

Ivan R i b k i n t a m b é m respondeu:
DIÁRIO RUSSO 67

Tanto a explosão dos prédios de apartamentos quanto os


eventos em Dubrovka são u m a conseqüência da "operação a n -
titerrorista" e, mais e x a t a m e n t e , da S e g u n d a G u e r r a T c h e t -
chena travada no norte do Cáucaso. O presidente Putin entrou
no Kremlin na crista desta onda, p r o m e t e n d o restaurar a o r -
dem, mas mostrou-se incapaz de fazê-lo. Há gente m o r r e n d o
em toda parte em ataques terroristas. A guerra prossegue sem
trégua e dela Putin e seus assessores imediatos são culpados. Até
hoje, há muitas coisas completamente obscuras e inexplicáveis
a respeito de todas essas tragédias.

Sobre a explosão dos prédios:

Acredito que o crime foi c o m e t i d o pelos órgãos de segu-


rança. M e s m o que aceitemos a alegação de que os agentes do
FSB d e s c o b e r t o s p l a n t a n d o explosivos em R i a z a n estavam
e m p e n h a d o s em "exercícios", todas as regras e instruções ofi-
ciais foram ignoradas.
C o m o Selezniov, o orador da D u m a , sabia do atentado?
Isto não é apenas estranho, é pavoroso. Depois de fazer aquela
declaração, ele deveria passar p o r u m a investigação criminal e
revelar o n d e conseguiu a informação, para que possamos ver
claramente q u e m de fato o r d e n o u e q u e m de fato levou a cabo
esta atrocidade...
As abordagens e o treinamento q u e as forças de segurança
estão r e c e b e n d o n o d e c o r r e r d a G u e r r a T c h e t c h e n a estão
sendo e x t r a p o l a d o s para toda a R ú s s i a . Elas são t o t a l m e n t e
insolentes e acreditam que o resultado final é a única coisa q u e
importa. Isto é extremamente perigoso.

Sobre Dubrovka:

T o d o o c o m p o r t a m e n t o das autoridades do Estado a p o n -


tam para o fato de que, quando ficou claro que havia u m a p o s -
sibilidade real de libertação dos reféns, eles decidiram realizar
um ataque. Em Moscou e em toda a Rússia, todos estão falan-
do de o ataque ter sido ordenado para ocultar a realidade a res-
peito do q u e lá aconteceu.
O g o v e r n o estava informado? A c h o particularmente desa-
gradável responder a essa pergunta, p o r q u e , durante os eventos
68 A N N A POLITKOVSKAYA

em Budionnovsk, numa reunião secreta, as forças de segurança


contradisseram tudo que o governo t e m afirmado. Fui infor-
m a d o de q u e aquele gás e outros meios químicos não p o d e -
riam ser usados em um ônibus c o m reféns porque os terroris-
tas teriam t e m p o para detonar seus explosivos. E n q u a n t o p e r -
diam a consciência, eles t a m b é m p o d e r i a m começar a atirar a
esmo. C o m o o gás foi usado, está claro que o governo sabia q u e
não haveria n e n h u m a explosão.
Os terroristas foram mortos e n q u a n t o estavam inconscien-
tes p o r q u e teriam tido muitas coisas interessantes para contar
em um i n q u é r i t o independente. Toda a Rússia está p e r g u n t a n -
do p o r q u e pessoas inconscientes foram mortas; identificadas,
abordadas e mortas a tiros na cabeça.
As autoridades não conseguiram manter o agente do FSB
Terkibaev longe do público e p o r isso ele foi morto. Agora sei
o q u a n t o as pessoas estavam i r r i t a d a s , p o r q u e sabiam q u e
Terkibaev tinha autorização da administração presidencial. Ele
m e s m o j a c t o u - s e do fato de ter conseguido redirecionar o ata-
que do líder terrorista Baraev da D u m a para Dubrovka.
A falta de assistência às pessoas q u e sofreram durante o ata-
que foi u m a barbárie e está totalmente na consciência dos res-
ponsáveis pela fase final. Há u m a tentativa de desviar para o
prefeito de M o s c o u a ira pública pela falta de assistência m é d i -
ca o p o r t u n a , mas ele não é responsável pelo combate ao t e r r o -
rismo; isto é trabalho do FSB.
A cascata de medalhas e estrelas nos peitos e nas dragonas
das forças de segurança, que deveriam ter sido punidas p o r p e r -
mitir q u e a unidade de Baraev passasse, não confere honra aos
condecorados, n e m aos indivíduos q u e os condecoraram. Mais
u m a vez, precisamos de um i n q u é r i t o independente.
N ã o sou daqueles que acreditam que virá o t e m p o em que
os arquivos serão abertos e descobriremos a verdade. Esse dia
nunca virá. Precisamos de u m a investigação agora, para que essa
atrocidade nunca se repita, para q u e nunca haja uma repetição
deste pavoroso ato de crueldade contra nossos cidadãos.

E n q u a n t o isso, em conseqüência de deserções, o RU conquis-


t o u na D u m a m a i o r i a suficiente para m u d a r a C o n s t i t u i ç ã o .
UM DIÁRIO RUSSO 69

Gennadi pediu hoje para entrar para o partido, elevando o n ú m e r o


de partidários de Putin no Parlamento a 3 0 1 .
A apatia é cada vez mais palpável; as pessoas estão certas de q u e
não se p o d e esperar nada de b o m . A eleição presidencial é discutida
na televisão, mas, fora de lá, ninguém diz u m a palavra a seu respeito.
Todos já sabem c o m o irá acabar. N ã o há debate, n e m entusiasmo.

Nesta noite, em M o s c o u , os mais conhecidos defensores russos dos


direitos h u m a n o s c o m e m o r a r a m o Velho A n o - n o v o [ O r t o d o x o
Russo] à sua maneira. Eles se reuniram no Museu e Centro Social
Andrei Sakharov para tentar formar ou u m a frente democrática
ampla ou um C l u b e Democrático ( c o m o está sugerindo Vladimir
Rizkhov) e fazê-lo fora das instituições democráticas tradicionais
da U n i ã o de Forças de Direita e do Iabloko.
As propostas mais práticas foram feitas p o r Ievgeni Iasin: "Se
quisermos realmente uma união ampla, precisamos de um progra-
ma limitado. Precisamos de poucas exigências para reunir o m á x i -
mo possível de pessoas. Nosso único objetivo deve ser defender os
ganhos da d e m o c r a c i a russa, enfrentar o r e g i m e a u t o r i t á r i o do
Estado policial."
Perto do fim de uma acalorada discussão que durou muitas h o -
ras, chegaram notícias da prisão ao C e n t r o Sakharov. A advogada
Karina M o s k a l e n k o c h e g o u d i r e t a m e n t e d a prisão M a t r o s k a i a
Tichina, o n d e tivera u m a reunião c o m Mikhail Khodorkovski, seu
cliente. Ela transmitiu os bons votos de Khodorkovski a todos os
defensores dos direitos h u m a n o s e a notícia de que o único ideal
que o entusiasma hoje é a defesa dos direitos humanos. Caso c o n -
siga sair da prisão, ele está d e t e r m i n a d o a se dedicar exclusivamen-
te ao aperfeiçoamento da sociedade.
C o n s e g u i r a m trazer um oligarca à consciência cívica. Os ativis-
tas aplaudiram c o m o crianças n u m a festa de Natal.

14 de janeiro

O Tribunal Basmanni de M o s c o u , c o m o sempre no bolso do


Kremlin, continua a refinar a arte da justiça seletiva, onde o i m p o r -
tante não é a lei, mas a pessoa a q u e m ela está sendo aplicada. Se essa
pessoa for um inimigo de Putin, os juízes do Basmanni são m e t i c u -
losos; se for um favorito, eles não p e r d e m t e m p o c o m detalhes, n e m
mesmo e x i g e m que compareça às audiências.
-I) A N N A POLITKOVSKAYA

Hoje o juiz StanislavVoznesnski estava analisando a reivindica-


ção de Nadeja B u c h m a n o v a , da província de R i a z a n , m ã e de
A l e x a n d e r Slesarenko, u m soldado m o r t o n a S e g u n d a G u e r r a
Tchetchena. Alexander estava combatendo na U n i d a d e Armavir de
Operações Especiais do Ministério do Interior.
Em setembro de 1999, no início da Segunda G u e r r a T c h e t -
chena, esta unidade foi incluída em um g r u p o de operações espe-
ciais sob o c o m a n d o de Viktor Kazantsev, na época comandante do
Distrito Militar do N o r t e do Cáucaso. Kazantsev c o m e t e u um erro
e Alexander, entre muitos outros, foi m o r t o . Eis o que aconteceu.
Tudo c o m e ç o u em 5 de setembro, oficialmente o primeiro dia
da guerra, quando P u t i n emitiu um decreto para o início de u m a
"operação antiterrorismo". Havia combates em aldeias no Dagues-
tão. P o r volta das 1 7 : 0 0 , os c o m b a t e n t e s o c u p a r a m a aldeia de
Novolakskoie, na fronteira daTchetchênia, e u m a tropa da Unidade
de Operações Especiais da Milícia Lipetsk viu-se cercada em seu
quartel. Ela precisava ser resgatada. Na noite de 5 de setembro, os
120 h o m e n s da U n i d a d e de Operações Especiais foram convoca-
dos para a ação. Entre eles, estava Alexander Slesarenko. Em 6 de
setembro, a unidade estava na base M o z d o k do exército, em Ossétia
do N o r t e . Em 7 de s e t e m b r o , eles foram e n v i a d o s à aldeia de
Batash-Iurt e, em 8 de setembro, a Novolakskoie. Àquela altura os
h o m e n s da Armavir ficaram sob o c o m a n d o de Kazantsev. Ele havia
sido encarregado de toda a operação para limpar as regiões de N o -
volakskoie e Khasaviurt do Daguestão e todas as categorias de tro-
pas estavam sob seu c o m a n d o .
Em 8 de setembro, Kazantsev ordenou que o general-de-divi-
são N i k o l a i T c h e k a c h e n k o , seu s u b c o m a n d a n t e das Tropas do
Interior, apresentasse um plano para a tomada das colinas adjacen-
tes, de acordo c o m a instrução geral de Kazantsev. Em 9 de setem-
bro, Kazantsev aprovou o plano e, às 21:30, o major Iuri Iachin, ofi-
cial-comandante da unidade Armavir, recebeu a o r d e m de atacar,
ocupar e manter as colinas até a chegada de reforços, para que o
fogo pudesse ser dirigido do alto para Novolakskoie.
Os homens da Armavir fizeram o que lhes foi ordenado e se
m o v i m e n t a r a m em velocidade máxima, surdos e nus, c o m o se diz
no exército, sem meios seguros de comunicação, usando somente
rádios portáteis de canal aberto, c o m as baterias descarregadas por-
UM DIÁRIO RUSSO "1

que não houvera t e m p o para recarregá-las. A quantidade de m u n i -


ção que eles deveriam levar não havia sido calculada, porque não
lhe haviam dito p o r quanto tempo deveriam manter suas posições.
Eles eram descartáveis e, de qualquer maneira, n e m mesmo p e r t e n -
ciam às forças regulares de Kazantsev.
A guerra no Cáucaso é muito estranha.Todas as tropas federais
supostamente estão do m e s m o lado, mas a realidade é muito dife-
rente. Os soldados sob o Ministério da Defesa são adversários do
FSB e as Tropas do Interior não gostam n e m daquelas do Minis-
tério do Interior, n e m das do exército. Q u a n d o os oficiais dizem
"As baixas n ã o f o r a m nossas", isso significa, na l i n g u a g e m do
exército, que aqueles que caíram eram milicianos ou soldados das
Tropas do Interior. E p o r isso que é travada u m a batalha antiga a
respeito de q u e m deve chefiar o C o m a n d o C o n j u n t o de Forças e
Recursos no N o r t e do Cáucaso. Se um h o m e m do exército estiver
no c o m a n d o , seu pessoal não receberá a m u n i ç ã o e os rádios de
campanha de q u e necessitam.
Foi o que aconteceu naquela ocasião. Kazantsev, um h o m e m do
exército, estava no c o m a n d o de h o m e n s de outras armas. Por volta
de 1:00 de 10 de setembro, 94 homens de operações especiais - não
pertencentes ao exército — haviam o c u p a d o as colinas sem sofrer
baixas. As 6:00, o general-de-divisão T c h e r k a c h e n k o recebeu um
relatório c o n f i a n t e do major Iachin e passou a i n f o r m a ç ã o a
Kazantsev, que imediatamente saiu, certo de que as colinas tinham
sido tomadas. Ele esteve ausente até as 8:40, mas, precisamente às
6:20, Iachin viu-se subitamente enfrentando u m a batalha. Às 7:20,
os c o m b a t e n t e s t c h e t c h e n o s c o m e ç a r a m a cercar os h o m e n s de
O p e r a ç õ e s Especiais. Iachin p e d i u ajuda pelo rádio, mas
T c h e r k a c h e n k o , deixado para representar Kazantsev no posto de
comando, não foi capaz de ajudar. Ele sabia que outro g r u p o das
Tropas do Interior, c o m a n d a d o pelo general-de-divisão G r i g o r i
Terentiev, já havia tentado chegar até o destacamento de Iachin, mas
tinha sido repelido por uma forte oposição. Catorze homens haviam
m o r r i d o e havia muitos feridos, inclusive o próprio Terentiev. Nas
ladeiras das colinas, cinco carros blindados de transporte de tropas
estavam em chamas.
Além do destacamento de Terentiev, n e n h u m outro iria em aju-
da de Iachin, p o r q u e eram homens do exército e porque Kazantsev
72 A N N A POL1TKOVSKAYA

estava d o r m i n d o . Às 8:30, Iachin avisou a T c h e r k a c h e n k o que seus


homens t i n h a m só um pente de munição cada e precisavam recuar.
T c h e r k a c h e n k o c o n c o r d o u . Às 8:40, Kazantsev, tendo acordado,
chegou ao posto de comando. Ele não conseguiu entender por q u e
Iachin estava recuando, pois lhe havia o r d e n a d o que mantivesse a
posição a qualquer custo.
Àquela altura, o contato c o m Iachin estava perdido. As baterias
dos rádios haviam se descarregado. O major estava "surdo" e intei-
r a m e n t e só. I a c h i n dividiu a u n i d a d e em g r u p o s , ficou c o m o
c o m a n d o de um e confiou o outro ao tenente-coronel Gaduchkin
e, por volta das 11:00, reunindo suas forças, eles começaram a des-
cer as colinas. Era a única maneira pela qual a unidade p o d e r i a
esperar sobreviver. Kazantsev estava no posto de c o m a n d o e obser-
vava pessoalmente os movimentos. E n t ã o ele deu ordens de b o m -
bardear as colinas. P o r quê? P o r q u e t i n h a seu plano e já havia
comunicado "a escalões superiores" a hora em que os combatentes
nas colinas seriam eliminados.
Às 15:00, dois aviões de ataque S U - 2 5 , v o a n d o baixo, surgiram
no céu acima de Iachin e bombardearam as tropas do Ministério do
Interior que tentavam escapar ao cerco. O responsável pela desig-
nação do alvo, seguindo ordens específicas de Kazantsev, foi o ofi-
cial-comandante do Q u a r t o Exército Aéreo e das Forças de Defesa
Antiaérea, major-brigadeiro Valeri G o r b e n k o . Q u a n d o as bombas
foram lançadas, esses dois heróis, Kazantsev e Gorbenko, estavam
em um p o n t o de observação e viram c o m seus próprios olhos que
o g r u p o de Iachin estava lançando sinais luminosos para indicar
onde as bombas não deveriam ser jogadas.
Por que a U n i d a d e Armavir de Operações Especiais foi punida
daquela maneira em 10 de setembro? P o r q u e aquilo havia sido p r e -
parado. Eles foram sacrificados para proteger Kazantsev e seu plano
idiota. Eles foram convidados a m o r r e r c o m o heróis em vez de
escapar ao cerco, mas não aceitaram. Esse é o m é t o d o dos nossos res-
ponsáveis pela segurança, mais tarde e m p r e g a d o muitas vezes na
Tchetchênia e em outros lugares. O caso Nord-Ost foi uma clara d e -
monstração da mesma coisa. Esse é um m é t o d o sancionado repetida-
mente por Putin. Se você sobrevive, deve ser caluniado e punido.
O E s c r i t ó r i o do P r o c u r a d o r Militar do Distrito Militar do
N o r t e do Cáucaso é, sob nosso monstruoso sistema judicial, efeti-
UM DIÁRIO RUSSO 73

vãmente d e p e n d e n t e do oficial-comandante do distrito, neste caso


Kazantsev, pela concessão de p r o m o ç õ e s , favores e privilégios. Ele
analisou a possibilidade de um processo criminal na chacina dos
homens da Armavir, pedido pelos parentes dos mortos. O tribunal
inocentou Kazantsev de todas as acusações. Mais do que isso, des-
creveu-o c o m o um herói cercado p o r covardes. Aqui está u m a cita-
ção dos registros do tribunal:

Na verdade, as Tropas do Interior estavam se retirando desorde-


n a d a m e n t e . A situação era quase crítica. Kazantsev t o m o u a
decisão de avançar ele m e s m o para o setor de frente. Ele d e t e -
ve pessoalmente as subdivisões das Tropas do Interior que esta-
vam fugindo em desordem e identificou pessoalmente u m a
nova missão para eles, tentando distribuí-los para cercar os i n i -
migos.

Kazantsev é um herói do exército e as Tropas do Interior são


covardes. Esse é o veredicto do tribunal.
Os soldados certamente estavam em fuga, mas de uma a r m a d i -
lha mortal na qual tinham sido postos. Eles tentaram sobreviver ao
bombardeio da melhor maneira, o qual estava sendo dirigido a eles
pelas o r d e n s de imbecis. Eles estavam arrastando seus f e r i d o s ,
pedindo ajuda para recuperar os corpos dos que tinham sido m o r -
tos, e Kazantsev assistiu a tudo isso.
O p r e ç o final daquele b o m b a r d e i o traiçoeiro das colinas às
15:00 p o r dois S U - 2 5 foi de oito m o r t o s e 25 feridos. S o m e n t e um
soldado foi m o r t o em combate c o m os tchetchenos.
As perdas totais das Tropas do Interior no decorrer da operação
de Kazantsev em 9-10 de setembro foram de "mais de 80 h o m e n s " ,
de acordo c o m o inquérito. N e n h u m outro detalhe está disponível.
Os soldados do condenado destacamento do major Iachin c o n t i -
nuaram a voltar para suas próprias linhas durante vários dias. O
corpo de Alexander Slesarenko foi encaminhado à sua família, na
província de Riazan, duas semanas depois, em um caixão lacrado.
Os caixões eram enterrados nos cemitérios da Rússia e o Estado
cravava nas suas sepulturas o m e m o r i a l mais barato de todos, um
insulto aos h o m e n s que jazem sob eles.
Superando a tristeza, a mãe de Alexander apelou para o T r i b u -
nal Basmanni, sob cuja jurisdição está o Ministério da Defesa. O
j u i z Voznesenski o r d e n o u q u e o Tesouro pagasse a ela 2 5 0 . 0 0 0
74 A N N A POLITKOVSKAYA

rublos [US$9.400] c o m o indenização. N ã o é preciso dizer q u e o


dinheiro não saiu dos bolsos de Kazantsev, que era então um favo-
rito do presidente e representante pessoal de Putin no n o r t e do
Cáucaso. Kazantsev foi coberto p o r P u t i n de medalhas, ordens e
títulos p o r sua participação na chamada operação antiterrorismo,
p o r levar a Tchetchênia à posição na qual o presidente a queria.
O j u i z Voznesenski é um h o m e m j o v e m , dinâmico e m o d e r n o
e não se fecha à menção de interferência administrativa no proces-
so judicial. Ele sabe exatamente do q u e você está falando. Eu o
c o n h e ç o b e m . E brilhantemente educado e apimenta sua conversa-
ção c o m expressões em latim, revelando um nível de erudição i n é -
dito entre os juízes russos. P o r é m , Voznesenski não se aprofundou
m u i t o nos detalhes da m o r t e do soldado Slesarenko, n e m se deu ao
trabalho de convocar o general Viktor Kazantsev, aquele " h e r ó i da
Rússia", ao seu tribunal.
Assim, mais u m a vez, os contribuintes russos pagam sem recla-
mar a conta da Segunda Guerra T c h e t c h e n a e as idiotices dos seus
generais, além de todos os outros gastos das sucessivas escapadas m i -
litares no n o r t e do Cáucaso.
Por q u a n t o t e m p o isto irá continuar? A tragédia da Segunda
G u e r r a T c h e t c h e n a foi o trampolim para a carreira estelar de todos
os nela implicados c o m o camaradas em armas do atual presidente.
Q u a n t o mais sangue derramado, mais alto eles ascendem. E q u e m
assume a responsabilidade? Simplesmente não importa quantas pes-
soas Kazantsev envia para a m o r t e ; não importa a freqüência c o m a
qual ele desaba bêbado nos braços de outras pessoas, inclusive j o r -
nalistas. N a d a acontece. A única coisa que importa na Rússia hoje
é a lealdade a Putin. A devoção pessoal ganha uma indulgência,
u m a anistia antecipada, para todos os sucessos e fracassos da vida.
C o m p e t ê n c i a e profissionalismo não c o n t a m no Kremlin. O siste-
ma q u e evoluiu sob Putin c o r r o m p e profundamente os funcioná-
rios públicos, tanto civis quanto militares.
A m ã e de Alexandre me conta: " N u n c a aceitarei o fato de que
m e u Sasha foi sacrificado pela ambição de um general. N u n c a . "

15 de janeiro
Em M o s c o u , há uma discussão sobre um novo livro-texto de histó-
ria. M e m b r o s do RU estão q u e r e n d o que Putin exija q u e sejam
UM DIÁRIO RUSSO 7

incluídos o "orgulho pelos a c o n t e c i m e n t o s " da Guerra Russo-fin-


landesa de 1939 e a coletivização da agricultura por Stalin. Ele;
insistem em que nossos filhos d e v e m ler, mais uma vez, o c o m p o r -
tamento soviético na Segunda G u e r r a Mundial e o papel suposta-
m e n t e positivo desempenhado p o r Stalin. Putin está c o n c o r d a n d o
c o m isso. O Homo sovieticus está fungando em nossos cangotes. Ao
m e s m o t e m p o , o u t r o livro d i d á t i c o foi b a n i d o p o r i n c l u i r u m
c o m e n t á r i o do acadêmico I a n o v d i z e n d o que a Rússia c o r r e o
risco de se t o r n a r um Estado nacional-socialista e q u i p a d o c o m
armas nucleares.
Parentes das vítimas de Nord-Ost t ê m uma reunião, no G a b i -
nete do Procurador-geral em M o s c o u , c o m Vladimir Kaltchuk, o
investigador de Crimes H e d i o n d o s que dirige o inquérito sobre a
tomada de reféns no teatro. Eles me pediram que os acompanhasse
para reduzir a probabilidade de Kaltchuk enganá-los ou insultá-los.
Q u a n d o não há estranhos presentes, Kaltchuk insulta c o n s t a n t e -
m e n t e os parentes dos mortos e nunca foi punido por isso. Ele t e m
instruções pessoais de Putin para fraudar a investigação e garantir
que as informações sobre o gás sejam suprimidas.
"Passaportes sobre a mesa!", grita Kaltchuk, sinalizando o iní-
cio da reunião. "Associação Nord-Ost'í O que é isso? Q u e m r e c o -
nheceu esta organização?"
"Será q u e p o d e m o s falar c o m o seres h u m a n o s civilizados?",
pergunta Tatiana Karpova. Ela é m ã e de Alexander Karpov, um dos
reféns que morreram, e presidente da Associação Nord- Ost. " Q u a n -
os terroristas foram mortos? Q u a n t o s conseguiram escapar?"
" D e acordo c o m nossos dados, todos os terroristas no prédio
• r a m m o r t o s , mas é impossível dar u m a garantia de 100%."
" P o r que foram todos m o r t o s ? "
" B e m , eles foram e é tudo. Essas coisas são decididas pelas for-
is de segurança. Eles estão arriscando a vida quando e n t r a m e não
rbe a m i m lhes dizer q u e m deveriam ou não matar. T e n h o m i n h a
"opria opinião c o m o ser h u m a n o e tenho c o m o advogado."
"O senhor considera q u e um vídeo publicado de um tiroteio
gere q u e q u a l q u e r dos reféns p o d e r i a ter sido m o r t o dessa
aneira?" (Tatiana está se referindo às imagens da m a n h ã de 26 de
t u b r o de 2002, i m e d i a t a m e n t e depois do ataque à entrada do
mplexo de teatros, que mostram uma mulher não identificada,
76 A N N A POLITKOVSKAYA

vestindo um uniforme militar de camuflagem, apontando u m a pis-


tola — e possivelmente atirando — para um h o m e m não identifica-
do cujas mãos estão amarradas atrás das suas costas.)
" N i n g u é m está 'acabando' c o m n i n g u é m nesse filme. Os j o r -
nalistas gostariam de fazer c o m que fosse visto c o m o um assassina-
to. N ó s o analisamos. O que há é um cadáver sendo arrastado de
um lugar para outro e a mulher está m e r a m e n t e indicando o n d e ele
deve ser colocado. Sabemos de q u e m é aquele corpo."
"De quem?"
"Se eu lhe contar, você dirá q u e é t u d o mentira."
"É o c o r p o d e V l a k h ? " (Gennadi Vlakh foi um moscovita q u e
entrou no prédio ocupado por iniciativa própria, para procurar seu
filho.)
" S i m , é. O exame demonstrará isso."
K a l t c h u k sabe perfeitamente q u e o filho d e V l a k h e sua e x -
m u l h e r estudaram cuidadosamente a gravação e negaram categori-
c a m e n t e q u e a pessoa que estava sendo arrastada fosse G e n n a d i .
N a d a encaixa: a estrutura do corpo, os cabelos ou as roupas.
Tatiana continua: "O senhor admite que houve pilhagem no
saguão depois do ataque?"
"Sim. As forças de segurança estavam lá e, se viam u m a bolsa,
colocavam-na no bolso. Eles são apenas humanos. E o tipo de país
em q u e vivemos. Os salários deles são miseravelmente baixos."
"Estão investigando a pilhagem?"
" O r a , faça-me o favor... E claro que não."
" Q u e r e m o s desesperadamente saber a verdade a respeito de
c o m o m o r r e r a m nossos parentes.Vocês pretendem registrar acusa-
ções contra algum funcionário p o r não ter providenciado auxílio
m é d i c o após o ataque?"
" S e t o d o s vocês recebessem u m m i l h ã o d e dólares, c o m o
fazem no O c i d e n t e , se calariam i m e d i a t a m e n t e . Vocês d e v e r i a m
chorar um p o u c o e depois simplesmente calar a boca."
V l a d i m i r Kurbatov, pai de u m a m e n i n a de 13 anos q u e era
m e m b r o do elenco de Nord-Ost, que m o r r e u :
" E u não me calarei. Buscarei a verdade sobre q u a n d o e o n d e
m i n h a filha m o r r e u . Até agora, n i n g u é m sabe."
Liudmila Trunova, uma advogada presente à reunião:
" C o m o foi que o c o r p o de G r i g o r i Burban, um dos reféns
m o r t o s , veio a ser descoberto na avenida Lenin?"
UM DIÁRIO RUSSO 77

" Q u e m disse? N ã o sei."


Tatiana Karpova:
" P o r que o corpo de G e n n a d i V l a k h foi cremado, c o m o se ele
fosse um dos terroristas?"
"Isso não é da sua conta. P o r q u e você não faz perguntas a res-
peito do seu pai?"
" U m a pergunta a respeito deTerkibaev..."
"Terkibaev nunca esteve lá. Politkovskaia não nos ajudou. (Es-
crevi no m e u jornal a respeito do papel do oficial do FSB Terkibaev
naquele cerco.) Ela se recusou a nos dar informações a respeito
dele. Disse apenas que não sabia de nada."
" A l g u é m chegou a ser acusado em conexão c o m este caso?"
"Não."
Kaltchuk é um típico representante dos oficiais de segurança e
da lei da nova era de Putin. Eles são ativamente encorajados a tra-
tar as pessoas de forma d o m i n a d o r a .
E n q u a n t o isso, em M a g a d a n grandes quantidades de recrutas
adoeceram a caminho de suas unidades. Putin reage instantanea-
m e n t e , dizendo que aquela é " u m a forma criminosa de tratar pes-
soas". Os recrutas ficaram enfileirados em uma pista de p o u s o por
várias horas usando s o m e n t e roupas leves e mais de oitenta foram
internados c o m p n e u m o n i a . Um dos soldados,Volodia Beriozin, da
província de Moscou, m o r r e u de hipotermia em 3 de dezembro.
Beriozin eram um rapaz forte e saudável, que foi selecionado para
servir no regimento do presidente. Seus pais, c o m o todos os outros,
estão exigindo do presidente u m a explicação de c o m o u m a coisa
dessas p o d e acontecer.
Já é 15 de janeiro e V o l o d i a Beriozin foi e n t e r r a d o há nove
dias, mas a Rússia ficou i n d i g n a d a s o m e n t e d e p o i s q u e P u t i n
expressou sua ira. Soldados são poeira sob as botas dos seus oficiais.
E assim que as coisas são aqui e Putin, ele m e s m o a encarnação de
um estereótipo, aceita isso.

16 de janeiro
O corpo de Aslan Davletukaev, seqüestrado em sua casa em 10 de
janeiro, foi encontrado apresentando sinais de tortura. Ele levara
um tiro na nuca. O c o r p o foi achado na periferia de G u d e r m e s .
78 A N N A POLITKOVSKAYA

Aslan era um conhecido defensor tchetcheno dos direitos h u m a -


nos. (Apesar da intervenção de organizações internacionais, a inves-
tigação do assassinato foi infrutífera.)
Glória ao nosso czar! Está em a n d a m e n t o uma investigação
sobre o caso dos soldados congelados. Seu tratamento d e s u m a n o
c o m e ç o u no aeroporto militar de Tchkalov, na província de
M o s c o u . O t e m p o estava frio e os novos recrutas foram a m o n t o a -
dos p o r 24 horas em um depósito de armas sem calefação, d o r m i n -
do sobre caixas ou no piso frio. Foram transportados em um avião
cargueiro à temperatura de - 3 0 graus Celsius, c o m o troncos, e fica-
ram congelados até a medula. Q u a n d o desceram em Novosibirsk,
foram forçados a permanecer em pé na pista por duas horas a - 1 9
graus. N o a e r o p o r t o d e K o m s o m o l s k - o n - A m u r , p e r m a n e c e r a m
quatro horas c o m roupas leves a - 2 5 graus. Em Petropavlovsk, ficou
óbvio q u e alguns estavam gravemente doentes, mas os oficiais que
os escoltavam ignoraram a situação. N o s alojamentos o n d e foram
a c o m o d a d o s depois do v ô o , a t e m p e r a t u r a era de + 1 2 g r a u s .
Aquela altura, quase cem deles estavam doentes. N ã o havia instala-
ções para tratá-los. Os médicos do exército tinham s o m e n t e anti-
b i ó t i c o s v e n c i d o s em m e a d o s da d é c a d a de 1990 e n ã o havia
n e n h u m a agulha hipodérmica. Os médicos lhes deram remédios
para tosse.
O Gabinete do Procurador Militar anunciou que em p o u c o
t e m p o irá interrogar o coronel Vasili Smirnov, chefe do C o n s e l h o
Geral de Logística do Ministério da Defesa, a respeito do caso dos
soldados congelados. Esta é u m a liberdade sem precedentes, i m a g i -
nável s o m e n t e se eles receberam sinal verde de cima. Vinte e dois
generais já foram interrogados, a p r i m e i r a vez em q u e generais
foram questionados sobre alguma coisa acontecida c o m recrutas. E
maravilhoso ver o presidente atuar c o m o o principal defensor dos
d i r e i t o s h u m a n o s da Rússia, mas será q u e ele estará u s a n d o a
m e s m a máscara depois da eleição presidencial?
N o s s a d e m o c r a c i a c o n t i n u a e m declínio. N a d a n a R ú s s i a
d e p e n d e do povo; tudo depende de Putin. Há uma crescente c e n -
tralização de p o d e r e de perda de iniciativa pelos f u n c i o n á r i o s
públicos. Putin está ressuscitando nosso antigo estereótipo: "Vamos
esperar até que nosso senhor, o barin, retorne. Ele nos dirá c o m o
t u d o deve ser." E preciso admitir q u e é assim que o p o v o russo
UM DIÁRIO RUSSO 79

gosta, o que significa que logo P u t i n irá tirar a máscara de defensor


dos direitos humanos. Ele não precisará mais dela.
Para o n d e foram todos os democratas? Alexander Jukov, antigo
democrata e hoje m e m b r o do R U , considera q u e : " E u m a boa coisa
q u a n d o há um partido d o m i n a n t e no Parlamento. O eleitorado vê
claramente q u e m é o responsável p o r tudo. Nas três D u m a s a n t e -
riores, isso não aconteceu. Está claro que o RU estimulará u m a
economia de mercado baseada na redução da carga fiscal, no desen-
volvimento da livre empresa e na redução do papel do Estado, na
reforma dos monopólios naturais, trazendo a Rússia para o merca-
do mundial, e reformas do bem-estar social, que não está hoje fun-
cionando satisfatoriamente. N ã o há motivos para nos preocupar-
mos c o m esta D u m a . Os procedimentos democráticos estão sendo
melhor observados do que nas suas antecessoras."
(Jukov p o u c o depois foi n o m e a d o vice-primeiro-ministro.)

17 de janeiro

C o n t i n u a m os r o m p i m e n t o s políticos e deserções. O Partido do


R e n a s c i m e n t o da Rússia, o u t r o partido anão, chefiado p o r G e n n a -
di Selezniov, decidiu apoiar P u t i n na eleição e deixar de lado Sergei
Mironov, presidente do Soviet da Federação e líder do Partido da
Vida, c o m q u e m tinha u m a aliança durante as eleições parlamenta-
res. A decisão foi tomada depois de uma análise dos resultados do
partido nas eleições. Em c o n j u n t o , os partidos desses dois líderes
conseguiram apenas 1,88% dos votos.
A televisão mostra P u t i n reiterando: " N ã o precisamos de uma
D u m a barulhenta." Os m e m b r o s do RU garantem ao país que a
tomada do Parlamento que fizeram é "mais honesta" c o m os eleito-
res. Estão se tornando cada vez mais óbvias as regras disciplinares mili-
tares dentro do RU. N e n h u m dos deputados pode dar entrevistas a
jornalistas ou votar de acordo c o m sua consciência. Hoje o partido
tem 310 deputados. Estes ainda estão se unindo e j u r a n d o lealdade.
A campanha eleitoral para a Presidência é realmente m u i t o es-
tranha. Na realidade, não existe n e n h u m a necessidade de c o m e n t a -
ristas favoráveis. Todos já preferem Putin, m e s m o aqueles que estão
contra ele. Malichkin, o guarda-costas idiota, já admitiu isto. H o u v e
a
l g o na televisão a respeito da m ã e de Malichkin, que m o r a na p r o -
80 A N N A POLITKOVSKAYA

víncia de R o s t o v n u m a casa sem água corrente. Ela diz q u e vai


votar em Putin porque está m u i t o contente c o m ele. M i r o n o v c h e -
g o u a perguntar c o m espanto: "Por que ainda somos candidatos?
Deveríamos formar o m b r o a o m b r o c o m ele."
Sergei Glaziev, outro pseudocandidato, declara ao p o v o : " G o s t o
de P u t i n . T e n h o muita coisa em c o m u m c o m ele. O q u e não gosto
é de c o m o as decisões são implementadas."
O fracasso dos democratas e liberais em lançar um candidato
conjunto assemelha-se cada vez a um suicídio político.
Em G r o z n i , à luz do dia, tropas russas r a p t a r a m Khalid
Edelkhaev, 47, um motorista de táxi, na estrada que vai até a vila de
Petrovpavlovskaia. Seu paradeiro é desconhecido.

18 de janeiro
A Comissão Eleitoral Central está c o m e ç a n d o a receber assinaturas
dos defensores dos candidatos sem partido, mas ainda existe alguém
de fato contra Putin? Só Irina Khakamada.
D e n t r o do Partido Comunista, há um conflito entre os líderes,
Z i u g a n o v e Semigin, e eles não t ê m t e m p o para u m a batalha polí-
tica contra Putin. R o g o z i n , do R o d i n a , diz que quer apoiar Putin.
Glaziev ainda está indeciso.
O prazo final para a apresentação de assinaturas é 28 de j a n e i -
ro e faltam 35 dias para as eleições.

19 de janeiro
O C o m i t ê 2008, uma organização que defende eleições justas, mas
só espera consegui-las em 2008, publicou um manifesto no qual diz
q u e atualmente é " r e p u g n a n t e " viver na Rússia. C o m o se já não o
soubéssemos! O presidente do comitê é Gari Kasparov, o e x - c a m -
peão mundial de xadrez. Ele é inteligente e autoconfiante, o que é
u m b o m começo.

20 de janeiro
D u r a n t e a noite, pistoleiros mascarados em carros Jiguli brancos e
sem placas — a marca registrada das forças de Kadirov — raptaram
UM DIÁRIO RUSSO 81

Milana Kodzoeva da sua casa na aldeia tchetchena de Kotar-Iurt.


Milana é viúva de um insurgente t c h e t c h e n o e t e m dois filhos
pequenos. Seu paradeiro é desconhecido.

21 de janeiro
Irina Khakamada fez um apelo público p o r fundos j u n t o à elite
empresarial russa. Leonid Nevzlin, amigo de Khodorkovski, ofere-
ceu-lhe apoio. T c h u b a i recusou.
Aqueles q u e s o b r e v i v e r a m ao C e r c o de L e n i n g r a d o estão
começando a receber medalhas e pagamentos para marcar o sexa-
gésimo aniversário da suspensão do cerco. Estão recebendo entre
450 e 900 rublos [US$16 e 34]. Os sobreviventes são pobres e em
São Petersburgo h o u v e fila durante muitos dias para receber. No
total, cerca de 300 mil pessoas tinham o direito de receber esta
n i n h a r i a , mas s o m e n t e 1 5 mil c o n s e g u i r a m . O s sobreviventes
detestam as novas medalhas, que c o n t ê m a inscrição " R e s i d e n t e na
Leningrado Sitiada" e "Pela Defesa de Leningrado". A Fortaleza de
Pedro e Paulo é mostrada de u m a perspectiva inimaginável e arma-
dilhas p a r a ' t a n q u e s , q u e n u n c a existiram, a p a r e c e m nos aterros.
Tudo foi feito ao estilo soviético. Goste dele ou agregue-o.

24 de janeiro
Em Grozni, pessoas não identificadas vestindo roupas de camufla-
gem e dirigindo um j i p e militar U A Z raptaram Tur pai Baltebiev, 23
anos, do p o n t o de ônibus do H i p ó d r o m o . Seu paradeiro é desco-
nhecido.

27 de janeiro
Putin está em São Petersburgo. Sua campanha eleitoral continua
c o m o pano de fundo do sexagésimo aniversário da suspensão do
C e r c o de L e n i n g r a d o . Ele v o o u até Kirovsk, local da lendária
C a b e ç a - d e - p o n t e do Neva, o n d e seu pai,Vladimir Spiridonovitch
Putin, combateu e foi gravemente ferido. Foi a partir da Cabeça-
de-ponte do Neva que, em 18 de janeiro de 1943, foi levantado o
S2 A N N A POLITKOVSKAYA

C e r c o de Leningrado. D u r a n t e o cerco, o i r m ã o mais velho de


Putin m o r r e u de fome. Sua mãe mal sobreviveu. E n t r e 200 mil e
400 mil soldados m o r r e r a m tentando avançar. O n ú m e r o exato e os
n o m e s de muitos deles são desconhecidos até hoje, p o r q u e quase
todos eram simplesmente voluntários de Leningrado que m o r r e -
ram antes de p o d e r ser alistados c o m o soldados. A cabeça-de-ponte
t e m um quilômetro e m e i o de extensão e várias centenas de metros
de largura. M e s m o hoje, as árvores não crescem no lugar. Putin
depositou um b u q u ê de rosas vermelhas no m o n u m e n t o .
Em h o m e n a g e m à chegada de Putin, foi realizada u m a sessão
do Presídio do C o n s e l h o do Estado. Essa é u m a instituição pura-
m e n t e consultiva, mas altamente cerimoniosa, criada p o r P u t i n
para manter satisfeitos os governadores das províncias russas.
A sessão daquele dia era dedicada aos problemas dos aposenta-
dos, dos quais há mais de 30 milhões na Rússia. Cerca de vinte
foram reunidos para um encontro c o m Putin, vestindo velhos ter-
nos e suéteres rasgados. Eles eram da província de Leningrado e
falaram da sua qualidade de vida terrivelmente baixa. P u t i n ouviu
todos, não i n t e r r o m p e u n i n g u é m e disse: "E essencial que pense-
m o s em c o m o poderemos proporcionar uma vida digna na velhi-
ce. Esta é uma tarefa crucial para o Estado." As palavras "tarefa cru-
cial" são ouvidas constantemente, mas, dependendo do público, é o
bem-estar dos trabalhadores rurais ou a melhoria dos serviços de
saúde que é crucial. É a conversa habitual de um agente da K G B , mas
as pessoas parecem não perceber. Desta vez, Putin p r o m e t e u dobrar
o valor pelo qual as pensões serão indexadas em 2004. O acréscimo
médio mensal chegará a 240 rublos [US$9], quantia c o m a qual eles
poderão comprar meio quilo de carne de boa qualidade.
Khakamada publicou seu manifesto:

N o s últimos quatro anos, as autoridades eliminaram toda a


oposição política e destruíram a mídia de massa independente;
O partido do governo na D u m a não t e m programa, n e m
idéias;
Se em quatro anos, p o r volta de 2008, aqueles que apoiam
a democracia não se tiverem feito ouvir, a Rússia voltará de
forma irreversível ao autoritarismo;
Desafio Putin para um debate, p o r q u e q u e r o ouvir dele
exatamente que espécie de Rússia quer construir;
UM DIÁRIO RUSSO 83

C o l h i quatro m i l h õ e s de assinaturas em a p o i o à m i n h a
candidatura;
Estou preparada para ser a rolha que salta da garrafa que
confina o espírito da vontade dos cidadãos russos.

Um b o m manifesto, mas Putin não se abalou diante de n e n h u -


ma das declarações, c o m o se elas não tivessem sido feitas. N i n g u é m
insistiu para que ele respondesse. Nossa sociedade está doente. Em
sua maioria, as pessoas sofrem da doença do paternalismo, que é
c o m o Putin escapa de tudo, o motivo pelo qual ele é possível na
Rússia.

28 de janeiro
Às 18:00, a Comissão Eleitoral Central deixou de aceitar assinatu-
ras de partidários dos candidatos presidenciais. P u t i n , M i r o n o v e
R i b k i n já haviam apresentado as suas. Khakamada entregou a dela
às 1 5 : 0 0 . 0 empresário A n z o r i Azsentiev enviou u m a carta retiran-
do sua candidatura.
Há alternativas: K h a k a m a d a para os favoráveis ao O c i d e n t e ,
Kharitonov para os comunistas, Malichkin para os radicais políticos
e rufiões, Glaziev para aqueles que acreditam no nosso status de
superpotência.

29 de janeiro
Vladimir Potanin c o n t i n u a tentando se posicionar c o m o " b o m "
oligarca — isto é, não comparável a Khodorkovski. Está p r o p o n d o
uma reforma no sindicato dos oligarcas: "As empresas constituem
uma força construtiva. Precisamos de um diálogo novo e significa-
tivo c o m as autoridades do Estado. As empresas devem levar em
conta as necessidades da sociedade, devem explicar q u e m somos."
Ele também fala de m o d e r a r as ambições dos oligarcas e diz que as
grandes empresas n ã o necessitam de representação nos principais
conselhos do país.
Potanin r e c e b e u h o r á r i o n o b r e na televisão para dizer isso.
Todos acham que ele recebeu a bênção do p r ó p r i o Putin.
S4 A N N A POLITKOVSKAYA

2 de fevereiro
Pela televisão, P u t i n reduz o preço do pão usando o velho m é t o d o
soviético de parar as exportações de grãos. Por que estamos expor-
tando, se o país está c o m fome? N ã o há n i n g u é m para fazer essa
pergunta, pois a oposição não tem acesso à mídia. P u t i n ouve rela-
tórios de que em muitas regiões o custo do pão d o b r o u no último
mês e exige que essas altas de preços descontroladas sejam detidas
imediatamente.
Na televisão, ele p r o m e t e analisar os pagamentos de pensões
para pessoas incapacitadas na infância durante a Segunda Guerra
Mundial. Zurabov, o ministro da Saúde e do Bem-estar Social, diz-
lhe que está bastante seguro de que a legislação necessária será rapi-
d a m e n t e aprovada em t o d o s os trâmites na D u m a . E c o m o se a
D u m a não tivesse outras leis para aprovar. Tudo que interessa são as
exigências do presidente para sua campanha eleitoral, que parece
consistir em uma constante distribuição de esmolas.
Ao m e s m o t e m p o , Z u r a b o v fala c o m Putin sobre pensões para
padres. Putin t e m um grande interesse pelo bem-estar dos padres!
Z u r a b o v l e m b r a q u e , antes d a q u e d a d a U R S S , o s padres n ã o
tinham direito a pensões.
Em vez de verdadeiros debates pré-eleitorais, temos mais um
episódio da novela política que é o partido R o d i n a : u m a furiosa
briga entre R o g o z i n e Glaziev em vez de debates sobre o futuro do
país. R o g o z i n ofende Glaziev, este responde c o m um a m o n t o a d o
de bobagens e n i n g u é m fala do que Putin poderia ter a oferecer em
um segundo mandato. Quase n e n h u m dos candidatos supostamen-
te oponentes de Putin t e m alguma idéia.
E m M o s c o u , I e l e n a T r e g u b o v a quase foi m o r t a p o r u m a
p e q u e n a b o m b a plantada em seu prédio.Teria sido obra de desor-
deiros? Ela publicou r e c e n t e m e n t e um livro a n t i - P u t i n , Tales of a
Kremlin Digger (Contos de um escavador do Kremlin). Acredita-se que
Tregubova tenha sido a m a n t e de Putin. Ela foi m e m b r o da e q u i -
pe de imprensa do Kremlin, mas então viu a luz e escreveu um
livro a respeito da vida íntima do Kremlin, q u e mostra os fatos
sob u m a luz desfavorável. [Tregubova emigrou da Rússia p o u c o
t e m p o depois.]
UM DIÁRIO RUSSO 85

3 de fevereiro
Por volta das 17:00, h o u v e um ataque terrorista em Vladikavkaz.
Cadetes militares tiveram seu carro Jiguli explodido q u a n d o ultra-
passavam um caminhão. U m a mulher m o r r e u e 10 pessoas ficaram
feridas. Um dos cadetes está em estado crítico.

4 de fevereiro
Em Grozni, h o m e n s armados não identificados, usando máscaras e
roupas de camuflagem, raptaram Satsita Kamaeva, 23 anos, de sua
residência na rua Aviatsionnaia. Seu paradeiro é desconhecido.
E n q u a n t o isso, em M o s c o u , dizem que o quartel-general da
campanha eleitoral de P u t i n foi montado, mas é tão virtual quanto
o próprio Putin. O endereço é Praça Vermelha, 5, só que ninguém
p o d e entrar. P u t i n n o m e o u c o m o líder de sua e q u i p e eleitoral
Dmitri Kozak, primeiro subchefe da administração presidencial e
encarregado das reformas judiciária e administrativa. Kozak tem a
fama de ser o m e m b r o mais inteligente do g o v e r n o , depois de
Putin, é claro. C o m o Putin, ele é formado na Faculdade de Direito
da Universidade de Leningrado. Lá ele trabalhou no Gabinete do
Procurador e na Prefeitura de São Petersburgo e, em 1989, foi vice-
governador de São P e t e r s b u r g o . Em outras palavras, p e r t e n c e à
Brigada de P u t i n de São Petersburgo.
A Liga de C o m i t ê s de Mães de Soldados formará um partido
político. Na Rússia, os partidos nascem por três motivos: porque há
muito dinheiro em algum lugar, porque alguém não t e m nada de
melhor para fazer ou p o r q u e alguém foi levado ao desespero. O
Partido das Mães de Soldados é inteiramente fruto das eleições par-
lamentares de 7 de d e z e m b r o , nascido na selva de u m a política russa
destituída de todas as forças democráticas.
"Agora estamos suficientemente maduras para fundar um par-
tido", diz Valentina Melnikova, presidente do c o m i t ê organizador.
Temos conversado a este respeito há m u i t o t e m p o , mas anterior-
mente podíamos contar c o m o apoio da U n i ã o de Forças de D i -
reita e do Iabloko na nossa campanha pela reforma do Exército,
para ajudar soldados, pela abolição do serviço militar obrigatório e
por iniciativas do legislativo. Iavlinski e N e m t s o v ainda participa-
86 A N N A POLITKOVSKAYA

v a m , mas agora t u d o está em ruínas. Estamos em m e i o a u m a


Hiroshima política, mas ainda temos problemas q u e precisam ser
resolvidos. N ã o há n i n g u é m a q u e m possamos recorrer, n i n g u é m
em q u e m possamos depositar nossas esperanças.Todos os atuais par-
tidos políticos são u m a continuação do Kremlin p o r outros meios.
S u s p e i t a m o s de q u e os d e p u t a d o s da D u m a c o r r e m todas as
manhãs à Praça Vermelha para receber instruções do Mausoléu de
Lenin e a seguir vão fazer o que lhes foi ordenado. Foi p o r isso que
decidimos formar nós mesmas um partido."
Portanto, o P a r t i d o das Mães de Soldados é um p a r t i d o de
desespero, nascido da completa desesperança política que é a soma
dos quatro últimos anos de tristeza. N u m a época em q u e t u d o está
sob o controle do Kremlin, essa é uma iniciativa direta de cidadãos
comuns, que surgiu sem o benefício de "recursos administrativos",
na qual Vladimir Surkov, o u b í q u o subornador político da Rússia,
não teve participação n e n h u m a .
A decisão de criar o partido foi tomada de u m a forma muito
simples: depois das eleições para a D u m a , mulheres de Miass, Nijni
N o v g o r o d , Sochi e Nijni Tagil telefonaram para o escritório de
M o s c o u da Liga de C o m i t ê s de Mães de Soldados. Os comitês
daquelas cidades foram a força motriz por trás da criação de um
novo partido político.
Os remanescentes do Iabloko e da U n i ã o de Forças de Direita
são um triste espetáculo, mas ao mesmo t e m p o surgem iniciativas
públicas de pessoas profundamente comprometidas c o m um i m e n -
so potencial de dissidência. Putin quer tudo isso p o d a d o rente, mas
de sua atitude c o m relação à oposição está b r o t a n d o algo de positi-
vo. Aproxima-se um t e m p o de novas iniciativas. A devastação da
arena política i n c e n t i v a aqueles q u e se r e c u s a m a viver sob os
velhos clichês soviéticos e pretendem lutar. Para sobreviver em ter-
ritório inimigo, q u a n d o mais ninguém luta por você, é preciso reu-
nir sua determinação e começar a lutar p o r si m e s m o . Na lingua-
g e m das mães de soldados, isso quer dizer lutar pela vida dos solda-
dos contra a máquina de recrutamento do exército, q u e os devora.
A última gota foi um i n c i d e n t e e n v o l v e n d o Ida Kuklina e
P u t i n . Ida trabalha há dez anos no c o m i t ê de M o s c o u e hoje é
m e m b r o da Comissão Presidencial de Direitos H u m a n o s . Ela dedi-
cou muita energia para conseguir um a u m e n t o na pensão paga a
UM DIÁRIO RUSSO ST

soldados recrutados q u e foram reduzidos ao estado de invalidez


Categoria I (a pensão atual é de 1.400 rublos ou cerca de US$52
por mês). Os inválidos de Categoria I tiveram m e m b r o s amputa-
dos, foram c o n d e n a d o s ao leito por ferimentos na coluna ou estão
confinados a cadeiras de rodas.
Ida Kuklina entregou pessoalmente u m a petição a Putin numa
das reuniões da sua comissão. Ele escreveu nela u m a recomendação
animadora, apesar de não muito específica — "A questão está corre-
tamente apresentada. P u t i n " — e enviou-a ao governo e ao departa-
mento de pensões.
Galina Karelova, vice-primeira-ministra do Bem-estar Social,
respondeu sarcasticamente que haveria u m a revolta dos inválidos
caso fosse feita u m a tentativa de elevar o nível das pensões de sol-
dados que haviam sido incapacitados d u r a n t e a Segunda Guerra
Mundial, a guerra no Afeganistão e outras guerras locais. Para ela,
isso seria antiético.
Mais u m a vez, Ida abordou Putin; mais u m a vez, recebeu uma
resposta positiva e, mais uma vez, teve seu pedido recusado pelos fun-
cionários. Isso aconteceu três vezes seguidas. Foi nesse ponto que as
mães decidiram q u e a única solução era elas mesmas se tornarem
legisladoras. Sua intenção é ter deputados do Partido das Mães de
Soldados na D u m a depois das eleições parlamentares de 2007.
" Q u e m será o líder do seu novo partido? Vocês convidarão
algum político e x p e r i e n t e ? "
"Será u m a das nossas", r e s p o n d e e n f a t i c a m e n t e Valentina
Melnikova.
Conversando c o m as mães de soldados a respeito do futuro,
ouvimos sobre u m a nova atrocidade dentro do exército. O soldado
A l e x a n d e r S o b a k a e v foi b r u t a l m e n t e t o r t u r a d o na Divisão
Dzerjinski de O p e r a ç õ e s Especiais das tropas do Ministério do
Interior. A última vez em que sua família ouviu sua voz ao telefo-
ne foi na noite de 3 de janeiro. Alexander, c o m vinte anos i n c o m -
pletos, estava no seu segundo ano no exército e já havia sido p r o -
movido a cabo no batalhão de sapadores. T i n h a telefonado para
dizer que t u d o estava b e m . Eles recordaram o dia em que o viram
sair de casa para ir para o exército e riram à idéia de que logo esta-
riam c o m e m o r a n d o seu retorno. Naquela m e s m a noite, nas p r i -
88 A N N A POLITKOVSKAYA

meiras horas de 4 de janeiro, se acreditarmos nos d o c u m e n t o s que


acompanhavam o esquife de zinco, Alexander enforcou-se c o m o
p r ó p r i o cinto, "na ausência de circunstâncias suspeitas". Em 11 de
janeiro, seu c o r p o foi levado para sua casa na p e q u e n a aldeia de
Velvo-Baza, a 290 km de P e r m . Os representantes da divisão, que
levaram o caixão, explicaram aos pais que "foi suicídio". N ã o havia
atestado de óbito. Os pais não acreditaram e exigiram q u e o caixão
fosse aberto. Os primeiros a recuar horrorizados foram seus colegas
de serviço. O corpo não só estava coberto de escoriações e cortes
de lâmina de barbear, mas a pele e os músculos dos pulsos estavam
cortados até os ossos, e x p o n d o os tendões. Um médico do hospital
local foi chamado e, na presença dos policiais locais, de um fotógra-
fo da C I D e representantes do comissariado do distrito militar,
registrou que aquela mutilação havia ocorrido enquanto Alexander
ainda estava vivo.

Os pais recusaram-se a enterrar o filho, exigindo um i n q u é r i -


to. A m ã e ficou em casa, mas o pai foi direto a M o s c o u , à Divisão
Dzerjinski de Operações Especiais e aos jornais da capital. Foi assim
q u e o escândalo veio à luz.
P u t i n não reagiu ao caso. De fato, se ele fosse reagir a cada atro-
cidade no exército, faria isso quase todos os dias e o eleitorado
c o m e ç a r i a a se perguntar p o r q u e aquelas ocorrências e r a m tão
c o m u n s e p o r que o c o m a n d a n t e - e m - c h e f e - isto é, P u t i n — nada
fizera antes a esse respeito.
C o n s e q ü e n t e m e n t e , nada foi feito pela identificação dos assas-
sinos de Alexander. O Gabinete do Procurador Militar fez t u d o o
q u e p ô d e para assegurar q u e a v e r d a d e p e r m a n e c e s s e o c u l t a .
Alexander se saiu pior que Volodia Beriosin, p o r cuja m o r t e p o r
frio e fome oficiais responderão no tribunal, graças somente ao fato
de a campanha eleitoral de Putin ter acabado de começar e de ele
ter posto suas mãos na história.
A investigação da m o r t e de Alexander está a c o n t e c e n d o sem
u r g ê n c i a n e n h u m a . E m b o r a seus pais não quisessem e n t e r r a r o
c o r p o até que um inquérito i n d e p e n d e n t e tornasse pública a ver-
dade a respeito da sua morte, isso foi recusado. A família ficou sem
d i n h e i r o para m a n t e r o c o r p o n o n e c r o t é r i o d o d i s t r i t o d e
K u d i m k r e Alexander foi enterrado c o m o suicida. Q u a n t o s mais de
nossos filhos terão de ser sacrificados antes que u m a grande c a m p a -
UM DIÁRIO RUSSO 89

nha conjunta e pública leve à reforma c o m p l e t a deste exército?


£sta é uma pergunta q u e se recusa a desaparecer.
Será que estamos v e n d o uma mudança no h u m o r da socieda-
de desta sociedade civil q u e começa medrosamente a emergir das
cozinhas da Rússia da m e s m a maneira pela qual, depois de um
expurgo n a T c h e t c h ê n i a , as pessoas, em silêncio e c o m cautela, dei-
xam seus porões e suas tocas?
Ainda não, e m b o r a muitos estejam c o m e ç a n d o a se dar conta
do que as pessoas na T c h e t c h ê n i a perceberam, depois de ser sujei-
tas à "operação antiterrorista": é preciso confiar em você mesmo
para sobreviver; se n i n g u é m mais o defende, defenda-se você. O
aumento de violência da burocracia está mais descontrolado do que
nunca depois do triunfo do RU e ainda há m u i t o poucas iniciati-
vas públicas.
C o m a aproximação do dias da eleição, os boletins noticiosos da
televisão se parecem cada vez mais com despachos animadores sobre
as realizações de Putin. A maior parte do noticiário é ocupada por
burocratas se reportando a Putin diante das cameras, mas sem n e n h u -
ma semelhança c o m c o m e n t á r i o s i n d e p e n d e n t e s . H o j e , Sergei
Ignatiev, presidente do conselho do Tsentrobank, falava c o m ele sobre
o improvável crescimento das reservas de ouro e moedas estrangeiras.
Para acompanhar muitas conversas políticas sobre o bem-estar
do povo, a Q u a r t a D u m a está aprovando leis motivadas por lobistas
de forma ainda mais gritante do que a Terceira D u m a . Por e x e m -
plo, há uma proposta para u m a redução significativa do Imposto
sobre Valor Agregado para agentes imobiliários. Isso é simplesmen-
te risível, p o r q u e na Rússia os agentes imobiliários são milionários.
N i n guém levanta o assunto na mídia de massa, embora se cochiche
muito a este respeito. Os jornalistas p r a t i c a m u m a autocensura
rigorosa. Eles n e m m e s m o p r o p õ e m essas matérias aos jornais ou às
emissoras de televisão, p o r ter certeza de que elas serão cortadas.
Terminou o Oitavo Encontro Mundial dos Povos da Rússia.
Foi saudado c o m o o grande evento de fevereiro e foi quase igual a
um congresso do R U , c o m a participação de todos os altos b u r o -
cratas d o g o v e r n o . E s t r a n h a m e n t e , n i n g u é m c o n s e g u e l e m b r a r
quando ocorreu o Sétimo Encontro Mundial.
No encontro, Sergei Pugatchev, o banqueiro oligarca do presi-
dente, sentou-se à direita do patriarca da Igreja O r t o d o x a Russa.
90 A N N A POLITKOVSKAYA

Pugatchev é um dos oligarcas de Putin que substituíram os oligarcas


de Ieltsin e o governo chega ao p o n t o de se referir a ele " c o m o um
banqueiro o r t o d o x o russo". A pedido de Pugatchev, o encontro
adotou um tipo estranho de decálogo para empresários, chamado
Um C ó d i g o de R e g r a s e Princípios Morais para a C o n d u ç ã o de
Empresas.
O código pontifica sobre assuntos c o m o riqueza e pobreza,
nacionalização, evasão fiscal, propaganda e lucros. Um dos manda-
mentos nos informa que "a riqueza não é um fim em si. Ela deve
servir para criar u m a vida boa para o indivíduo e para o p o v o " .
O u t r o alerta que " a o empregar mal propriedades, deixar de respei-
tar bens comunitários, deixar de dar u m a recompensa justa a um
trabalhador pelo seu trabalho ou ao enganar um sócio, a pessoa
transgride a lei m o r a l , prejudicando a sociedade e a si m e s m a " .
Além disso, sobre o assunto da evasão fiscal, deixar de pagar seus
i m p o s t o s é " r o u b a r dos órfãos, dos idosos, dos incapacitados e
outros menos aptos a se protegerem".
"Transferir parte da renda de uma pessoa através da tributação
para prover as necessidades da sociedade deve deixar de ser u m a
obrigação pesada c u m p r i d a de má vontade, e às vezes não c u m p r i -
da, e passar a ser u m a questão de honra, merecedora da gratidão da
sociedade." Sobre os p o b r e s : " O pobre t a m b é m t e m a obrigação de
se comportar de forma digna, de se esforçar para trabalhar de forma
eficiente, de elevar suas qualificações vocacionais para sair da sua
condição de pobreza." Mais u m a vez: "A veneração da riqueza é
incompatível c o m a retidão moral."
O c ó d i g o c o n t é m alusões a K h o d o r k o v s k i , a Berezovski e
Gusinski. "Deve haver separação entre os poderes político e e c o n ô -
mico. O envolvimento de empresas na política e sua influência na
opinião pública sempre deve ser transparente e aberta. Toda assis-
tência material dada p o r empresas a partidos políticos, organizações
públicas e à mídia de massa deve ser de c o n h e c i m e n t o público e
monitorada. Apoios clandestinos dessa natureza d e v e m ser c o n d e -
nados publicamente c o m o imorais."
E claro que, neste caso, toda a campanha eleitoral do RU foi
imoral, assim c o m o o fato de o oligarca de P u t i n ser senador.
Tudo isso pretende reforçar a idéia de q u e é certo e honrado
ser um " b o m " empresário no bolso de Putin, mas se a pessoa tentar
UM DIÁRIO RUSSO 91

ser independente, passa a ser má e deve ser destruída. O código é


manifestamente anti-Iukos. Apesar de ser supostamente voluntário,
ele é, como t u d o hoje na Rússia, " c o m p u l s o r i a m e n t e voluntário".
N ã o é preciso entrar para o R U , mas se você n ã o o fizer, sua carrei-
ra não irá a lugar n e n h u m . O metropolita kiril, cotado c o m o suces-
sor do atual patriarca, em rápido declínio e constantemente d o e n -
te, presidiu a sessão em que o código foi discutido. Ele disse aber-
tamente: "Iremos a todos e os convidaremos a assinar. Caso algum
deles se recuse, nós nos certificaremos de que seu n o m e seja c o n h e -
cido por todos." B e l o sacerdote!
De q u a l q u e r m a n e i r a , q u e m está p r e g a n d o esta moralidade
para nós? A mesma Igreja O r t o d o x a Russa q u e dá sua bênção para
a guerra à T c h e t c h ê n i a , para o tráfico de armas e para a luta fratri-
cida no n o r t e do Cáucaso. A adoção desse código de princípios
morais para e m p r e s á r i o s é u m a e x t r a o r d i n á r i a oferta da Igreja
Ortodoxa Russa, q u e está desestabilizada, para se envolver nas polí-
ticas interna e externa. O U R I E c o m e n t o u q u e "A Igreja em si
precisa ser reformada. Sua estagnação é a razão pela qual ela se sai
com fantasias tão bizarras".
ViktorVekselberg, um oligarca que, s e g u n d o os rumores, será o
próximo a ser aprisionado por Putin, a n u n c i o u subitamente q u e
está c o m p r a n d o a coleção de ovos Fabergé q u e pertenceu à família
d e N i c o l a u II, n o s s o ú l t i m o i m p e r a d o r . N i n g u é m duvida q u e
Vekselberg esteja simplesmente t e n t a n d o pagar seu resgate para
escapar de problemas, demonstrando que está " d o lado da Rússia",
e que o governo aceite isso c o m o u m a forma codificada de dizer:
"estou ao lado de Vladimir Vladimirovitch."
Vekselberg insiste que "o r e t o r n o desses tesouros à Rússia é
para m i m um assunto pessoal. Q u e r o que m i n h a família, m e u filho
e minha filha t e n h a m u m a compreensão diferente dos seus lugares
na vida. Q u e r o q u e as grandes empresas participem de forma i n t e -
ligente d e obras públicas. N ã o estou b u s c a n d o vantagens, n e m
quero provar nada a n i n g u é m , n e m compensar qualquer erro".
Acho que o oligarca fala demais.
')2 A N N A POLITKOVSKAYA

5 de fevereiro
Em T c h e r e m k h o v o , na província de Irkutsk, 17 trabalhadores do
Setor n° 1 da Administração de Serviços Residenciais Comunais
entraram em greve de fome. Eles exigem o p a g a m e n t o de seus salá-
rios, que estão seis meses atrasados.Têm a receber um total de cerca
de 2 milhões de rublos [US$75.000]. Estão seguindo o exemplo de
seus colegas em o u t r o setor, que tiveram de recorrer a uma greve
de fome p o r três dias para conseguir receber os salários atrasados.
H o u v e e m M o s c o u u m a reunião d o F ó r u m Aberto, u m even-
to c o m a participação de analistas políticos; não necessariamente os
mais importantes, mas pessoas respeitáveis q u e estiveram envolvi-
das, c o m o conselheiros políticos, em todas as eleições nacionais e
regionais. Eles concordaram em um p o n t o i m p o r t a n t e : nos quatro
anos do governo P u t i n , a modernização da Rússia foi superada pela
meta de fortalecer o p o d e r de uma pessoa. Aqueles a ela associados
não constituem u m a classe n e m um partido, mas apenas pessoas
que estão " e m sintonia c o m Putin". Os analistas t a m b é m c o n c o r -
daram que o m o d e l o de democracia gerenciada não funciona.

6 de fevereiro
8:32: três meses depois do ataque terrorista p e r t o do Nationale
Hotel, h o u v e u m a explosão no m e t r ô de M o s c o u , na interseção
entre as linhas Paveletskaia e Avtozavodskaia-Zamoksvoretskaia. O
trem se dirigia ao centro da cidade durante o h o r á r i o de rush q u a n -
do uma b o m b a explodiu perto da primeira porta do segundo
vagão. O dispositivo havia sido colocado 15 cm acima do nível do
piso, dentro de um saco. Depois da explosão, o impulso do trem
ainda o fez percorrer mais 300 metros e teve início um forte incên-
dio.Trinta pessoas m o r r e r a m no local e outras nove morreram mais
tarde em conseqüência das queimaduras. Há 140 feridos. Há deze-
nas de pequenos fragmentos de corpos, não identificáveis. Mais de
700 pessoas saíram do túnel, tendo providenciado elas próprias a
evacuação, na ausência de qualquer assistência. Nas ruas, há caos e
medo, as sirenes uivantes dos serviços de emergência, milhões de
pessoas aterrorizadas.
As 10:44, mais de duas horas depois da explosão, foi implanta-
do o Plano C o n t i n g e n c i a l Volcano-5 para capturar os culpados.
UM DIÁRIO RUSSO 93

Q u e m eles pensam que irão capturar? Se houvesse algum cúmpli-


ce teria fugido há muito. As 12:12, a polícia c o m e ç o u a buscar p o r
um h o m e m c o m idade entre 30 e 35 anos, " d e aparência caucasia-
na". M u i t o útil. As 13:30,Valeri Chantsev, prefeito em exercício de
Moscou e n q u a n t o Lujkov está nos Estados U n i d o s , anunciou que
as famílias das vítimas irão receber 100 mil rublos [US$3.700] de
indenização e os feridos receberão a m e t a d e desta quantia.
Terroristas c o m explosivos p o d e m se m o v i m e n t a r por M o s c o u
sem obstáculos, apesar dos poderes extraordinários concedidos ao
FSB e à polícia, e m e s m o assim o povo apoia Putin. N i n g u é m suge-
re uma m u d a n ç a da política na T c h e t c h ê n i a , apesar dos dez atos
terroristas e n v o l v e n d o h o m e n s - b o m b a s no ú l t i m o ano. H o j e a
Praça Vermelha está fechada a visitantes quase p e r m a n e n t e m e n t e . A
palestinização da T c h e t c h ê n i a é óbvia. U m a hora depois da e x p l o -
são, foi feita u m a declaração pelo " M o v i m e n t o Contra a Imigração
Ilegal", u m a organização criada pelas forças de segurança. Seu líder,
Alexander Belov, disse:

Nossa p r i m e i r a exigência é proibir os tchetchenos de viajar


para fora da Tchetchênia. Até hoje, nos E U A e no Canadá, exis-
tem reservas especiais para pessoas inadequadas. Se um g r u p o
étnico não q u e r viver c o m o seres h u m a n o s civilizados, deixe-
mos q u e eles vivam atrás de u m a barreira. D ê e m o n o m e que
quiserem: u m a reserva, uma cerca. De algum m o d o , precisamos
nos defender. N ã o p o d e m o s mais fingir q u e os tchetchenos,
cuja maioria está de uma forma ou outra ligada à resistência
tchetchena, sejam cidadãos no m e s m o sentido que os chuva-
ches, buriats, carelianos ou russos. Para eles, isto é uma c o n t i -
nuação da guerra. Eles estão se vingando. Os tchetchenos que
m o r a m na Rússia, inclusive os empresários, constituem um
viveiro de terroristas. Estou s o m e n t e dizendo o que pensam
80% dos russos.

Ele está certo. É exatamente isso q u e pensa a maioria. A socie-


dade está c a m i n h a n d o para o fascismo.
Só uns p o u c o s m e m b r o s das autoridades do Estado continuam
tentando pensar. O general Bóris Gromov, governador da provín-
cia de M o s c o u e herói da U n i ã o Soviética pelos serviços prestados
no Afeganistão, falou: " Q u a n d o o u v i a respeito da explosão no
94 A N N A POLITKOVSKAYA

metrô, m e u p r i m e i r o pensamento foi que t u d o isso começou lá no


Afeganistão. A d e c i s ã o dos líderes da U R S S de enviar tropas
ao Afeganistão foi irresponsável ao extremo, assim c o m o a decisão
posterior dos líderes da Rússia de enviar tropas àTchetchênia. Estes
são os frutos daquelas decisões. Eles disseram q u e estavam i n d o
atrás de gángsteres, mas em conseqüência disso estão sofrendo pes-
soas inteiramente inocentes. E isto continuará p o r muito tempo."
N o s canais da televisão estatal, c o n t i n u a m a dizer ao povo que
o terrorismo é u m a doença da liberal-democracia; se você q u e r
democracia, deve esperar atos terroristas. Eles ignoram o fato de
que Putin esteve no poder durante os últimos quatro anos.
Putin, apesar da explosão, está m a n t e n d o conversações c o m
Ilkhan Aliev, presidente do Azerbaijão, q u e está em Moscou. Putin
m e n c i o n o u de passagem: " E u não me surpreenderia se isto viesse a
ser explorado mais p e r t o da eleição, c o m o m e i o para pressionar o
atual chefe de Estado. Há uma grande coincidência entre o atenta-
do e o fato de q u e planos de paz para a T c h e t c h ê n i a nos estejam
sendo mais u m a vez apresentados do exterior. Nossa recusa em
manter negociações de qualquer espécie c o m terroristas..."
Q u e negociações? H o m e n s - b o m b a e x p l o d e m a si mesmos. Ele
estava ansioso, seus olhos piscavam, traindo um h o m e m histérico
que não sabe o q u e fazer a seguir.
N o s p r ó x i m o s dias, haverá um escrutínio das listas de assinatu-
ras dos candidatos sem partido: Ivan R i b k i n , ex-chefe do Conselho
de Segurança da Federação Russa; Sergei Glaziev, líder do partido
R o d i n a , e Irina Khakamada. As ações das autoridades revelam a
pessoa que mais as preocupa, apesar de sua pontuação nas pesquisas
de opinião ser praticamente zero. Alexander Vechniakov, dirigente
da Comissão Eleitoral Central, declarou, antes do escrutínio, que
uma verificação preliminar das listas de R i b k i n mostrou que 2 6 %
das assinaturas são inválidas. Precisamente 2 6 % — não 27, n e m 24,9,
porque a lei diz que, se o número de assinaturas inválidas exceder
25%, o registro do candidato poderá ser recusado. As pessoas riem e
dizem que pelo m e n o s o número não é 2 5 , 1 % .
O n d e , na verdade, está a campanha eleitoral? Até aqui, não há
nada para se ver. Os candidatos a candidatos não estavam c o m pres-
sa para se apresentar e a maioria deles não está c o m pressa de ven-
cer. N i n g u é m parece p r e o c u p a d o c o m isso, n e m os candidatos,
UM DIÁRIO RUSSO 95

nem seus partidários. Q u a n t o ao Candidato n ° l , ele não faz n e n h u -


ma tentativa de lutar, debater e vencer. Irina Khakamada está c o n -
vencida de q u e o Kremlin conseguiu persuadir a todos de que eles
não p o d e m derrotar u m a conspiração."Não há n e n h u m a luta aber-
ta. N i n g u é m acredita que irá ajudar."
O partido R o d i n a continua suas lutas internas. E também não
quer vencer a eleição. D m i t r i R o g o z i n , q u e t a m b é m é o vice-ora-
dor da D u m a , chegou a anunciar que irá apoiar Putin na eleição e
não Glaziev, o vice-presidente do seu p r ó p r i o partido. Eles consti-
tuem um b a n d o muito estranho. Será que já pensaram nos seus par-
tidários? Eles dão a impressão de que aquilo que os eleitores pensam
não tem importância e que t u d o será decidido sem consultá-los.
Rogozin até p e d e que a eleição presidencial seja cancelada e seja
declarado um estado de emergência, devido aos atos terroristas.

7 de fevereiro
Foram abertos nove centros de doação de sangue em Moscou. Há
uma necessidade urgente de todos os g r u p o s sangüíneos para as
128 vítimas da b o m b a que p e r m a n e c e m hospitalizadas.
Mas o n d e estão os detectores de explosivos no metrô? O n d e
estão as patrulhas? N ó s , russos, somos irresponsáveis por natureza,
sempre v e n d o conspirações contra nós. N u n c a nos i n c o m o d a m o s
em a c o m p a n h a r qualquer coisa até sua conclusão; apenas espera-
mos pelo melhor. A polícia verifica passaportes no metrô, mas sem
dúvida os terroristas certificam-se de q u e seus documentos estejam
em ordem. A polícia prende um tajique faminto, que não consegue
emprego na sua terra natal e veio cavar nosso solo congelado p o r -
que não q u e r e m o s fazer isso. Os soldados lhe tiram seus últimos
100 rublos e d e i x a m - n o ir. O n d e estão os órgãos de segurança que
deveriam responder pelo fato de o ataque ter tido sucesso? O n d e
esta o pessoal de segurança? Milhares de recrutas famintos das
Tropas do I n t e r i o r foram trazidos para guardar M o s c o u . Isso é
bom. Pelo m e n o s eles serão pagos e p o d e r ã o comer. Pelo m e n o s
não estão em seus quartéis.
Mas " m e d i d a s " c o m o essas são ineficazes, são uma mera reação.
Tão logo as pessoas c o m e c e m a esquecer esse pesadelo, tudo volta-
ra a ser c o m o antes. O escritor e jornalista Alexander Kabakov
96 A N N A POLITKOVSKAYA

comenta: "Ainda estamos vivos somente p o r q u e aqueles que e n c o -


m e n d a m esses atos carecem de pessoas para levá-los a cabo. Mas p o r
que aqueles q u e e n c o m e n d a m atos terroristas ainda estão vivos é
outra questão."
P u t i n n ã o d e m i t i u Patruchev, o d i r e t o r do FSB. Ele é seu
amigo pessoal. Q u a n t o s outros atos de t e r r o r i s m o terão de ser
bem-sucedidos antes de Putin concluir q u e seu amigo não serve
para a tarefa?
O C e n t r o M e m o r i a l dos Direitos H u m a n o s publicou u m a
declaração:

Lamentamos p o r aqueles que m o r r e r a m e simpatizamos p r o -


fundamente c o m os feridos. N ã o p o d e haver justificativa para
aqueles q u e planejaram e executaram este crime. O presidente
e organismos da lei estão afirmando q u e foi obra dos t c h e t c h e -
nos, e m b o r a não tenha surgido n e n h u m a evidência neste sen-
tido. Caso essa especulação se mostre correta, infelizmente esta
tragédia terá sido previsível. A recusa, pelos líderes do país, de
tomar quaisquer providências no sentido de um acordo — real
e não decorativo - para o fim do conflito somente fortaleceu a
p o s i ç ã o dos extremistas. N o s s o s líderes n ã o e s t a b e l e c e r a m
n e n h u m a m e t a política decente, c o m base na qual um acordo
seria possível. N o s últimos anos, as associações de direitos
h u m a n o s e muitos representantes públicos e políticos têm aler-
tado repetidamente que os atos brutais das forças federais na
T c h e t c h ê n i a representam p e r i g o para todas as pessoas q u e
vivem na Rússia. Por muito t e m p o , centenas de milhares de
pessoas v ê m vivendo todos os dias em um ambiente letal. Elas
estão sendo forçadas a viver além dos limites de uma vida civi-
lizada. Milhares de pessoas humilhadas, cujos parentes e amigos
foram m o r t o s , seqüestrados, aleijados física e psicologicamente,
representam, para os cínicos e inconscientes líderes de grupos
t e r r o r i s t a s , u m a fonte da qual r e c r u t a m seus seguidores,
h o m e n s - b o m b a e aqueles que c o m e t e m atentados terroristas.
A paz e a tranqüilidade para os cidadãos da Rússia só poderão
ser alcançadas por meio de uma m u d a n ç a resoluta na política.

Ivan R i b k i n desapareceu. F i n a l m e n t e um p o u c o de ação na


eleição: um dos candidatos não está em lugar n e n h u m . Sua m u l h e r
UM DIÁRIO RUSSO 97

t á e n l o u q u e c e n d o . Em 2 de fevereiro, R i b k i n criticou Putin em


es

termos m u i t o duros e sua mulher acredita q u e isso selou seu desti-


no. Em 5 de fevereiro, Ksenia P o n o m a r i o v a , c o o r d e n a d o r a do
grupo de apoio a R i b k i n , alertou q u e u m a "maciça sabotagem"
estava sendo preparada contra ele. Sua sede central havia recebido,
por uma semana, relatos regionais a respeito de interrogatórios não
autorizados dos seus partidários. A polícia visitou as casas das pes-
soas que coletaram assinaturas e t o m o u seus depoimentos. Os poli-
ciais q u e r i a m saber p o r que elas estavam a p o i a n d o R i b k i n . Em
Kabardino-Balkaria, os estudantes que colhiam assinaturas foram
ameaçados de q u e a polícia iria informar a reitoria da universidade
e considerar se seria adequado que lhes fosse permitido continuar
seus estudos.

9 de fevereiro
Ainda não foram dados detalhes sobre o tipo de b o m b a usado no
metrô, n e m da composição do seu explosivo. Putin continua r e p e -
tindo, c o m o fez depois do desastre de Nord-Ost, que ninguém d e n -
tro da Rússia era responsável. Tudo foi planejado no exterior.
Foi decretado um dia de luto para os q u e morreram, mas as
emissoras de televisão não o observam. Músicas populares em volu-
me alto e comerciais marcadamente alegres nos deixam envergo-
nhados. C e n t o e cinco pessoas ainda estão hospitalizadas. Duas das
que m o r r e r a m estão sendo enterradas hoje. U m a delas é Alexander
Ichumkin, um tenente das Forças Armadas de 25 anos, nascido na
província de Kaluga, o n d e será e n t e r r a d o . F o r m o u - s e na
Universidade B a u m a n e começou a servir c o m o oficial. Em 6 de
fevereiro, estava voltando a N a r o - F o m i n s k , o n d e sua unidade está
estacionada. Ele havia v i n d o a M o s c o u para conseguir peças de
reposição para um veículo e tinha aproveitado a oportunidade para
visitar alguns amigos da universidade. Naquela manhã, ele pegou o
metro para ir à Estação Kiev, c o m u m a baldeação em Paveletskaia.
C o m o Alexander não voltou, sua m ã e supôs que ele tivesse perdido
o trem - p o u c o antes de ir para o m e t r ô , ele havia telefonado para
dizer que estaria de volta às 11:00. Seu tio Mikhail, que não conse-
guia acreditar naquilo, identificou o c o r p o no necrotério. O pai de
Alexander havia sido m o r t o sete anos antes e, desde então, o tio
98 A N N A POLITKOVSKAYA

tinha assumido o papel de chefe da família. Sua mãe lamentou: "É


como se minha alma tivesse sido arrancada de mim. Ele tinha me
prometido netos." Nem mesmo na emissão do atestado de óbito, o
Estado consegue conter sua desonestidade: o espaço para "causa da
morte" foi riscado. Nem uma palavra a respeito de terrorismo.
A outra pessoa que está sendo enterrada hoje é Vânia Aladin,
um moscovita de apenas 17 anos. A procissão da família e dos cole-
gas de turma de Vânia se estende por metade do cemitério. Ele era
um garoto cheio de vida, alegre e simpático que as pessoas chama-
vam de "Furacão Vânia". Três dias antes, havia conseguido um
emprego de mensageiro e, em 6 de fevereiro, estava a caminho do
trabalho. Em 16 de fevereiro, ele teria comemorado seu décimo
oitavo aniversário.
Ribkin ainda está desaparecido. Gennadi Gudkov, vice-presi-
dente do Comitê de Segurança da Duma e coronel reformado do
FSB, diz que ele está em segurança. Mas onde está ele? O Estado
não tem obrigações especiais para com os candidatos à Presidência?
Albina Nikolaevna, mulher de Ribkin, insiste em que ele foi
raptado. O Gabinete do Procurador do Distrito de Presnia abriu
inesperadamente uma investigação criminal pelo artigo 105, assas-
sinato premeditado, mas o Diretorado Central de Assuntos Internos
começou a insistir em que há bons motivos para supor que Ribkin
está vivo. Uma hora depois, o gabinete de Presnia mudou de idéia
a respeito do inquérito, por ordem do Gabinete do Procurador-
geral. O que está acontecendo?
Os comentaristas políticos concordam com o fato de que foi
criada uma aparência de competição, salvando a eleição de ser uma
farsa completa, como teria sido se os únicos adversários de Putin
fossem um fabricante de caixões e um guarda-costas. Risco zero, é
claro, mas muito constrangedor. E claro que foi por isso que eles
registraram todos os candidatos e decidiram que apenas 2 1 % das
assinaturas de Ribkin eram inválidas, apesar de, na véspera, terem
dito que eram 26%. O único problema era que Ribkin tinha desa-
parecido.
A idéia de boicotar as eleições, proposta pelos liberais e demo-
cratas, perdeu força. Eles não se esforçaram muito.
UM DIÁRIO RUSSO 99

10 de fevereiro
Em M o s c o u , foram enterradas mais 13 pessoas mortas na explosão
no metrô. O u t r a s 29 p e r m a n e c e m em estado grave. O n ú m e r o de
mortos subiu para 40; mais u m a pessoa m o r r e u nas últimas 24
horas.
R i b k i n foi e n c o n t r a d o . U m e p i s ó d i o m u i t o estranho. A o
meio-dia, ele r o m p e u o silêncio na rádio e anunciou que estava em
Kiev. Disse q u e havia tirado uns dias de folga c o m amigos e que,
afinal, um ser h u m a n o t e m o direito a u m a vida privada! Ksnia
Ponomariova p r o n t a m e n t e demitiu-se da liderança da sua equipe
eleitoral. Sua m u l h e r está chocada e recusa-se a falar c o m ele.Tarde
da noite, ele viajou para Moscou, p a r e c e n d o um semimorto e não
uma pessoa q u e se divertira c o m alguns dias de folga. R i b k i n obser-
vou que a folga havia sido mais dura do q u e negociar c o m os t c h e t -
chenos. Ele usava óculos femininos e estava escoltado por um e n o r -
me guarda-costas.
" Q u e m o estava detendo?", perguntaram, mas não houve res-
posta. R i b k i n t a m b é m se recusou a falar c o m os investigadores do
G a b i n e t e d o P r o c u r a d o r q u e a n d a r a m p r o c u r a n d o p o r ele.
Enquanto pegava o avião de volta para casa, sua mulher deu u m a
entrevista à agência noticiosa Interfax dizendo que "sentia pena de
um país q u e tinha pessoas c o m o aquela c o m o seus líderes". Ela
estava se referindo ao marido.
Mais tarde, foi anunciado que R i b k i n poderia retirar sua c a n -
didatura.
O n o v o livro de G r e g o r i Iavlinski, Capitalismo periférico (na
Rússia), foi lançado em Moscou. Foi publicado em russo, mas c o m
dinheiro ocidental. O livro trata do " m o d e l o autoritário de m o d e r -
n i z a ç ã o " , q u e Iavlinski c o n s i d e r a inviável. Apesar desse livro,
Iavlinski efetivamente desistiu da luta contra Putin.
Em São P e t e r s b u r g o , skinheads esfaquearam até a m o r t e a
menina K h u r c h e d a Sultanova, de n o v e anos, no pátio do p r é d i o
onde morava sua família. Seu pai, Iusuf Sultanov, c o m 35 anos, um
tajique, trabalhava em São Petersburgo havia muitos anos. N a q u e l a
noite, ele estava t r a z e n d o os filhos do p a r q u e Iusupov q u a n d o
alguns j o v e n s agressivos c o m e ç a r a m a segui-los. Em um t r e c h o
escuro p e r t o do prédio, os jovens os atacaram. Khurcheda levou
100 A N N A POLITKOVSKAY

onze facadas e morreu imediatamente. Alabir, de onze anos, sobri-


n h o de Iusuf, escapou na escuridão, escondendo-se sob um carro
estacionado. Alabir disse que os skinheads continuaram a esfaquear
K h u r c h e d a até terem certeza de q u e ela estava morta. E eles esta-
vam g r i t a n d o : " A Rússia para os russos!"
Os Sultanov não são imigrantes ilegais. São registrados oficial-
m e n t e c o m o cidadãos de São Petersburgo, mas os fascistas não estão
interessados em carteiras de i d e n t i d a d e . Q u a n d o os líderes da
Rússia falam publicamente em c o n t e r a entrada de imigrantes e
trabalhadores convidados, i n c o r r e m na responsabilidade p o r tragé-
dias c o m o esta. Q u i n z e pessoas foram detidas p o u c o depois, mas
logo liberadas. Muitos eram filhos de pessoas empregadas p o r for
ças da lei em São Petersburgo. H o j e , 20 mil jovens daquela cidade
p e r t e n c e m a organizações fascistas ou racistas extra-oficiais. Os
skinheads de São Petersburgo estão entre os mais ativos do país e
estão constantemente atacando azerbaijanos, chineses e africanos.
N i n g u é m é punido, porque as forças da lei estão infestadas de racis-
m o . Basta você desligar seu gravador para que os policiais c o m e c e m
a dizer q u e c o m p r e e n d e m os skinheads, e q u e q u a n t o àqueles
negros... etc. etc. O fascismo está na m o d a .

11 de fevereiro
C o n t i n u a a novela O Candidato Ribkin. Ele faz declarações cada vez
mais espantosas. Um e x e m p l o : " D u r a n t e aqueles dias, experimentei
a Segunda Guerra Tchetchena." N i n g u é m acredita nele. Os b r i n c a -
lhões p e r g u n t a m : " H á um direito h u m a n o a dois dias de vida p r i -
vada em Kiev?"
Antes disso, R i b k i n era considerado u m a pessoa meticulosa,
avessa a farras, altamente responsável, que bebia p o u c o e era até um
p o u c o chata. "Dois dias em Kiev" não se encaixam no personagem.
Então o q u e realmente aconteceu na Ucrânia?* E foi lá que a c o n -
teceu? R i b k i n disse que, depois q u e desapareceu, passou a l g u m
t e m p o na província de M o s c o u , no R e t i r o Woodland, u m a casa
para hóspedes da administração presidencial. Depois foi levado de
lá e, q u a n d o de novo pôde contar o n d e estava, era Kiev. R i b k i n
t a m b é m disse que aqueles que o controlavam forçaram-no a ligar
UM DIÁRIO RUSSO 1D1

para M o s c o u de Kiev e falar de m o d o despreocupado a respeito de


ter direito a u m a vida privada.
*

Então, o q u e estava acontecendo? Q u a l era o motivo? N ã o h o u v e


inquérito sobre o caso R i b k i n e, assim, d o u estas sugestões:
C o m o sabemos, Putin recusou-se a participar de debates p ú b l i -
cos, alegando q u e o povo supostamente já sabia em q u e m votar.
Isso era claramente u m a desculpa. P u t i n não é b o m em diálogos,
em especial q u a n d o o assunto o deixa p o u c o à vontade. Tem sido
demonstrado em viagens ao exterior, q u a n d o o governo não p o d e
controlar os repórteres; os jornalistas fazem perguntas que o presi-
dente c o n s i d e r a inadequadas e c o m as quais se descontrola. O
gênero preferido de Putin é o m o n ó l o g o , c o m as principais p e r -
guntas preparadas antecipadamente.
Permitimos que nosso firmamento se configure de tal forma
que hoje existe somente um astro. Ele é infalível e goza de alta
popularidade, que parece invulnerável a tudo, exceto ao p r ó p r i o
h o m e m e seu passado turvo.
Mas então, da multidão de candidatos reunidos pelo Kremlin,
na semana anterior a 5 de fevereiro, R i b k i n se destaca e começa a
falar de material c o m p r o m e t e d o r q u e desacreditam o astro e seu
ilustre passado, sendo óbvia a sugestão de que ele irá revelar parte
dele. Além disso, R i b k i n teve a audácia de descrever Putin c o m o
oligarca, u m a declaração c o m p l e t a m e n t e fora de contexto, u m a vez
que a c a m p a n h a de nosso astro se baseia em mostrar às pessoas
c o m o são maus os oligarcas que " n ã o estão do nosso lado".
R i b k i n estava começando a dar ao nosso candidato n° 1 m o t i -
vos para u m a séria inquietação. A l é m disso, havia a sombra de Bóris
Berezovski p o r trás de R i b k i n . Talvez ele tivesse realmente alguma
coisa.
Na semana anterior ao rapto, R i b k i n estava começando a p a r e -
cer um míssil armado c o m material q u e poderia prejudicar seria-
mente o Kremlin.
Mas o que eles p o d e r i a m fazer? Foi p o r isso que precisaram
empregar drogas psicotrópicas, q u e são hoje tão sofisticadas q u e a
pessoa não consegue se conter e revela t u d o o que sabe. A p r i n c i -
pal fonte de informações era o p r ó p r i o R i b k i n e não os q u e o cer-
102 A N N A POL1TKOVSKAYA

cavam, não seus assessores, mas seu cérebro. É provável que o p r ó -


prio R i b k i n não tenha idéia do que c o n t o u a eles naqueles dias ou
a q u e m o fez.
T a m b é m há o Retiro Woodland, um local isolado e c o n v e n i e n -
t e m e n t e fechado a estranhos, e Kiev e a grosseira desmoralização
sofrida p o r R i b k i n depois que reapareceu, quando utilizaram até
sua m u l h e r indignada, falando a u m a agência oficial de notícias.
Vejamos os detalhes e aspectos práticos da operação. O fato de
R i b k i n ter sido levado ao R e t i r o W o o d l a n d é evidência de q u e a
administração presidencial estava ciente do rapto, assim c o m o o
FSB. O Secretariado do Presidente é um grupo há muito descrito
c o m o u m a subdivisão do FSB. Essas duas organizações são as p r i n -
cipais gerentes da Rússia e não trabalham meramente em associa-
ção, mas funcionam como u m a entidade única. Além disso, o fato de
R i b k i n ter sido visto no Retiro Woodland foi revelado p o r Gudkov,
que evidentemente havia obtido a informação por antigos contatos
ou p o r outros meios. Imediatamente depois que G u d k o v abriu a
boca, a administração do retiro n e g o u que R i b k i n estivesse lá.
E de fato ele não estava mais lá. Seu retorno via Kiev já estava
sendo arranjado. Um detalhe i m p o r t a n t e é que o candidato presi-
dencial foi c o n t r a b a n d e a d o da Rússia para a U c r â n i a . ( N ã o há
registro alfandegário ou de passaporte de sua passagem pela frontei-
ra.) Tecnicamente, isso é possível; existem furos na fronteira e não é
segredo o fato de trabalhadores ucranianos entrarem na Rússia p o r
eles, q u e são grandes o suficiente para a passagem de veículos,
q u a n d o q u e r e m evitar encontros desnecessários c o m funcionários
que precisam ser subornados.
P o r é m , o que é interessante no caso R i b k i n não é a técnica
usada para transferi-lo pela fronteira, mas o fato de ele ter sido
levado da casa de hóspedes do Secretariado da Administração do
atual presidente para apartamentos de luxo em Kiev, controlados
pelo governo do atual presidente da Ucrânia. Leonid K u t c h m a * é
í n t i m o do governo Putin porque é cúmplice dos seus crimes e, em
troca, p o d e r e m o s ajudá-lo da m e s m a f o r m a , caso ele v e n h a a
necessitar. Essa t a m b é m é a razão pela qual o Estado quer desenvol-
ver a C o m u n i d a d e de Estados Independentes, não para t o r n a r suas
fronteiras demasiadamente impermeáveis e sim para que e x - c o l e -
UM DIÁRIO RUSSO 103

gas na K G B da U R S S possam realizar operações especiais c o n j u n -


tas lá e aqui.
Vejamos a seguir as personalidades. Q u e m poderia dar a o r d e m
de arrancar informações de R i b k i n depois de desligada sua m e n t e
consciente? Cui bono? Nosso astro, é claro.
O b v i a m e n t e , não estamos falando de ordens escritas. A g o r a
sabemos c o m o nossos mandachuvas realizam suas vontades. Eles
precisam apenas erguer a sobrancelha, indicando seu augusto des-
prazer, para que seus servos corram imediatamente para realizar seus
desejos. Em nosso País das Maravilhas político, esse erguer de sobran-
celha t e m até um n o m e : é c o n h e c i d o c o m o "o efeito Patcha
Gratchev", referindo-se à época em que o ex-ministro da Defesa
ficou muitíssimo irritado c o m o fato de Drnitri Kholodov, um j o r n a -
lista, estar desenterrando seus segredos sombrios. O então ministro da
Defesa sugeriu aos amigos militares o quanto Kholodov o estava
aborrecendo e o jornalista foi reduzido a pedaços. Até hoje, muitos e
muitos anos depois, ninguém conseguiu fazer com que aquele erguer
de sobrancelha fosse incluído nas exposições sobre o assassinato.
N ã o há dúvida de que o efeito Gratchev t a m b é m esteve em
ação neste caso. Graças a D e u s , R i b k i n não foi assassinado, mas só
porque u m a intervenção tão grosseira do Anjo da M o r t e nas elei-
ções teria sido contrária aos interesses do Candidato n° 1.
São atos criminosos desse tipo, completos, c o m drogas psico-
trópicas, q u e vemos quando um candidato, que por acaso é o atual
presidente, é simplesmente incapaz de um b o m d e s e m p e n h o nos
debates pré-eleitorais, é incapaz de discutir, tem um m e d o irracio-
nal da oposição e, além disso, passou a acreditar em seu p r ó p r i o
messianismo. N ã o s o m o s e s t ú p i d o s a o p o n t o d e acreditar q u e
R i b k i n estava fugindo da mulher.
Assim, as aparências indicam q u e R i b k i n possuía relativamente
p o u c o m a t e r i a l c o m p r o m e t e d o r . A novela t e r m i n o u . T o d o s se
esqueceram dele, inclusive P u t i n . O resultado final, péssimo para
uma sociedade carente de alternativas, foi que R i b k i n não conse-
guiu confrontar publicamente o regime.
D u r a n t e t o d o o mês de j a n e i r o , pessoas e r a m raptadas na
Tchetchênia e seus corpos eram encontrados mais tarde. O n ú m e -
ro de raptados é comparável ao n ú m e r o de mortos em 6 de feve-
reiro no m e t r ô de Moscou. Na Tchetchênia, todos estão em guer-
1()4 A N N A POLITKOVSKAYA

ra contra todos. Há h o m e n s armados p o r toda parte, as chamadas


"forças de segurança tchetchenas". A expressão mais c o m u m na
cara das pessoas é de tristeza. Há um grande n ú m e r o de adultos
traumatizados e semi-enlouquecidos. As crianças, que só se asseme-
lham a crianças na aparência física, vão para a escola. Os carros blin-
dados de transporte de pessoal passam c o m arrogância e deles os
soldados apontam suas submetralhadoras para você c o m o despre-
zo de sempre. Aqueles para q u e m eles olham devolvem os olhares,
de forma não menos impiedosa. A noite, há tiroteios, "suavizados"
por fogo de artilharia, batalhas e bombardeios no sopé das m o n t a -
nhas. De manhã, há novas crateras de bombas. E uma guerra e m p a -
tada. Q u e r e m o s acabar c o m ela ou, na verdade, ela não nos i n c o -
m o d a tanto assim?
N ã o h o u v e na Tchetchênia n e n h u m a manifestação considerá-
vel contra a guerra durante toda a campanha da eleição presiden-
cial. O incrível e prolongado sofrimento de nosso povo é q u e p e r -
mite a c o n t i n u i d a d e do h o r r o r q u e é P u t i n . N ã o se p o d e achar
outra explicação.
Por q u e n i n g u é m "reclama" a responsabilidade pela explosão
no m e t r ô em 6 de fevereiro? Aqui estão duas possíveis explicações:
Ou as forças de inteligência estavam p o r trás do atentado, não
i m p o r t a n d o quantas pessoas u s a r a m , o q u e p o d e r i a e x p l i c a r a
ausência de exigências ou admissões de responsabilidade;
Ou terroristas individuais se envolveram em uni ato de v i n g a n -
ça pessoal p o r parentes que foram m o r t o s , por sua honra e sua terra
natal espezinhadas. Esta é u m a explicação tão vergonhosa e d e p r i -
m e n t e q u a n t o aquela que envolve a cumplicidade dos serviços de
inteligência.

12 de fevereiro
Putin está elevando em 250% a remuneração daqueles que "traba-
lham dentro da zona da operação antiterrorista".Talvez isso c o n d u -
za a m e n o s pilhagens na Tchetchênia.
R i b k i n ainda está oscilando. Foi a Londres consultar Berezovski.
Ele parece determinado a concluir sua implosão política à vista do
público. Por que na Rússia é tão fácil derrubar a oposição d e m o -
crática? E alguma coisa na própria oposição. N ã o é que o adversa-
UM DIÁRIO RUSSO 105

rio que ela está confrontando seja forte demais, embora este seja
um fator importante. O principal é q u e a oposição carece de u m a
determinação inflexível para se opor. Berezovski é um m e r o j o g a -
dor não um combatente, e aqueles que se alinham c o m ele t a m -
b é m não são combatentes. N e m t s o v está apenas j o g a n d o e Iavlinski
sempre parece ter sido ofendido p o r alguma coisa.
Alexander Litvinenko, em Londres, e Oleg Kalugin, em
Washington, dois ex-agentes da K G B / F S B que r e c e b e r a m asilo
político no Ocidente, sugeriram q u e u m a substância psicotrópica
denominada SP117 p o d e ter sido usada em R i b k i n . Esse c o m p o s -
to era usado nas seções de contra-inteligência do FSB e em unida-
des de combate ao terrorismo, mas somente em casos excepcionais
com "alvos importantes". O SP117 é um soro da verdade q u e age
em partes específicas do cérebro, i m p e d i n d o que a pessoa tenha
pleno controle de sua m e n t e . Ela conta t u d o o que sabe. De acor-
do c o m Litvinenko, " Q u a n d o u m a pessoa está sob a influência do
SP117, você p o d e fazer c o m ela o que quiser e ela será incapaz de
lembrar em detalhes ou explicar de forma coerente o q u e a c o n t e -
ceu, c o m q u e m esteve ou o q u e disse. O SP117 consiste em dois
componentes, a droga e o antídoto. Primeiro, é ministrada a droga.
Duas gotas são adicionadas a qualquer bebida e, quinze m i n u t o s
depois de tê-la ingerido, a vítima perde completamente o controle
de si mesma, possivelmente p o r várias horas. O efeito p o d e ser p r o -
longado p o r pequenas doses adicionais da droga. Q u a n d o as infor-
mações necessárias foram extraídas, a vítima recebe o antídoto, dois
comprimidos dissolvidos em água, chá ou café. Depois de cerca de
dez m i n u t o s , ela volta à n o r m a l i d a d e . Há u m a total p e r d a de
memória. A vítima sente-se abalada. Se a droga tiver sido ministra-
da durante vários dias, a pessoa p o d e sentir pânico e c h o q u e pelo
fato de a q u e l e p e r í o d o de sua vida ter sido o b l i t e r a d o da sua
m e m ó r i a e será incapaz de e n t e n d e r o que lhe aconteceu".

Essas declarações de Livtinenko e Kalugin não salvarão a car-


reira política d e R i b k i n . P u t i n v e n c e u esse e m b a t e c o n t r a
Berezovski, hoje seu inimigo j u r a d o , mas grande amigo no final da
década de 1990.
H o j e , p r e c i s a m e n t e u m dia d e p o i s d a r e m o ç ã o efetiva d e
R i b k i n da corrida eleitoral e de sua declaração de que não irá par-
ticipar de debates, é a largada oficial da campanha eleitoral. Cada
106 A N N A POLITKOVSKAYA

um dos candidatos tem direito a quatro horas e meia na televisão


nos canais estatais e essa concessão é para transmissões ao vivo.
R i b k i n , a única pessoa c o m material c o m p r o m e t e d o r contra Putin,
abriu m ã o voluntariamente da o p o r t u n i d a d e de aparecer na televi-
são, exatamente c o m o queria o Kremlin.
As 14:00, P u t i n teve u m a reunião na Universidade de M o s c o u
c o m mais de 300 assessores e partidários. Ele prestou contas do que
fez d u r a n t e seu primeiro m a n d a t o . Todos os repórteres da mídia
impressa e da TV foram c o n v i d a d o s , mas, c o m o enfatizaram as
p r i n c i p a i s emissoras estatais de televisão ao divulgar o e v e n t o ,
" P u t i n estava falando c o m o pessoa física". Ele se recusou a partici-
par de debates pela TV e aquele discurso foi tão insípido q u a n t o
e r a m no passado os relatórios dos secretários-gerais aos congressos
do Partido Comunista. Seu público na Universidade de M o s c o u
despertou q u a n d o ele p r o n u n c i o u suas últimas palavras e o aplau-
diu l o u c a m e n t e . Portanto, no decorrer da transmissão, um candida-
to à Presidência falou p o r um p e r í o d o de t e m p o no valor de 9
milhões de rublos (US$330.000). A tarifa oficial do canal Rossia
para 30 segundos de propaganda de campanha varia entre 90 mil e
166 mil rublos. Putin pagou isso? Foi um caso flagrante de abuso
de recursos do Estado para proveito eleitoral e uma clara violação
à lei eleitoral.
Seiscentos jornalistas cobriram o evento. Eles foram reunidos
no centro de imprensa do Ministério do Exterior às 9:30 e o regis-
tro c o n t i n u o u até o m e i o - d i a . Todos foram revistados antes de
entrar nos ônibus. Um m e m b r o da equipe de campanha do presi-
dente, q u e parecia ser - e certamente era - agente do FSB, nos dizia
p e r i o d i c a m e n t e : " R e p i t o mais u m a vez: n i n g u é m deve fazer per-
guntas! Todos vocês ouviram?" Os jornalistas foram levados à reu-
nião em 23 ônibus verdes c o m escolta policial, c o m o são transpor-
tadas na Rússia crianças até um acampamento. Depois da reunião,
os jornalistas foram novamente levados de volta nos ônibus. N a d a
de sair da linha! Aquela era u m a reunião particular entre um indi-
v í d u o e seus amigos, para buscar maneiras de assegurar um futuro
m e l h o r para seu país?
O l g a Zastrojnaia, u m a das secretárias da Comissão Eleitoral
Central, declarou que a transmissão pela TV do discurso do presi-
d e n t e era " u m a violação direta às regras eleitorais, p o r q u e a trans-
UM DIÁRIO RUSSO 107

niissão foi inquestionavelmente um elemento de campanha políti-


ca e não informativo". Alexander Ivantchenko, diretor do Instituto
Eleitoral I n d e p e n d e n t e e e x - s e c r e t á r i o da C o m i s s ã o Eleitoral,
c o m e n t o u claramente: "A campanha eleitoral de Putin está m u i t o
a q u é m dos padrões eleitorais civilizados. E m t e r m o s t é c n i c o s ,
houve uma deslegitimização dos procedimentos eleitorais. A elei-
ção presidencial deveria ser declarada inválida, mas a C o m i s s ã o
Eleitoral Central é impotente."
N ã o houve reação pública à transmissão. Gleb Pavlovski, um
indivíduo totalmente cínico, diretor da Fundação de Política Eficaz
e um dos principais assessores de imprensa do Kremlin, c h e g o u a
dizer p u b l i c a m e n t e : " O e l e i t o r a d o n ã o s e i m p o r t a c o m q u e m
o b t é m quantos minutos a mais no ar!"
A televisão continua sua lavagem cerebral p o r i n t e r m é d i o de
transmissões otimistas. Hoje, o primeiro-ministro Kasianov regis-
trou que a produção agrícola a u m e n t o u 1,5% p o r cento e que, c o m
Putin, existem todas as c o n d i ç õ e s para o desenvolvimento b e m -
sucedido do a g r o n e g ó c i o na R ú s s i a . "Estamos d e t e r m i n a d o s a
recuperar nossa posição p r o e n u n e n t e nos mercados mundiais de
grãos", garantiu-nos Kasianov. E p o u c o provável que seu servilismo
o salve. Ele será afastado logo. P u t i n sente-se p o u c o à vontade c o m
políticos que sobraram da era Ieltsin, que o fazem se lembrar de
u m a época em que ele era um m e r o fantoche, e da história de
c o m o veio a ser escolhido c o m o sucessor de Ieltsin.
No decorrer da campanha eleitoral, ouvimos que somos líde-
res mundiais em praticamente t u d o , de vendas de armas e exporta-
ções de grãos até a exploração do espaço. Por e n q u a n t o não estão
afirmando que somos líderes mundiais na fabricação de carros. As
costas dos altos funcionários evidentemente ainda não esqueceram
a experiência de andar em nossos Jigulis.

13 de fevereiro
Será que a D u m a tem alguma influência? Putin quis que ela elegesse
Vladimir Lukin, ex-Iabloko e liberal conhecido, c o m o ombudsman
de Direitos Humanos antes da eleição presidencial. O RU ehminou
todos os obstáculos e, embora o R o d i n a e o Partido Comunista tives-
sem dito que iriam boicotar a votação, a nomeação foi aprovada.
108 A N N A POLITKOVSKAYA

Lukin foi candidato único; os outros foram simplesmente excluídos.


Ele está feliz. " Q u e r o muito trabalhar nesta área", disse ele. Mas e
quanto àqueles cujos direitos precisam ser defendidos?
(Lukin mostrou ser um o m b u d s m a n medíocre, carecendo de
iniciativa e, sob o c o m a n d o do K r e m l i n j a m a i s indo além dos limi-
tes do permissível. Por exemplo, a Tchetchènia nunca foi u m a das
suas prioridades.)
N o Q a t a r , Z e l i m k h a n Iandarbiev, e x - v i c e - p r e s i d e n t e d a
T c h e t c h è n i a e colega dos presidentes Dudaev e Maskhadow,* foi
m o r t o p o r u m a b o m b a aparentemente colocada sob seu jipe. Ele
d e i x o u a Tchetchènia no início da Segunda G u e r r a T c h e t c h e n a .
Esse foi, quase certamente, um trabalho das agências de inteligência
russas — o D i r e t o r a d o C e n t r a l de Inteligência do exército ou o
B u r e a u Federal de Segurança, mais provavelmente este último.
Ivan R i b k i n anunciou que não voltará de Londres. Um candi-
d a t o presidencial q u e deserta era i n é d i t o na nossa h i s t ó r i a .
N i n g u é m mais duvida de q u e ele foi drogado pelo regime.
Um apelo às redações dos nossos jornais, supostamente de " u m
a m i g o " nos serviços de inteligência. "Passem para Londres, c o m o
s a b e m o s q u e vocês p o d e m , q u e , se R i b k i n apresentar q u a l q u e r
material contra Putin em debates pela televisão, haverá o u t r o ato
terrorista. O presidente terá de desviar de alguma forma a atenção
da opinião pública."
Passamos adiante a mensagem, mas R i b k i n já havia desistido da
eleição. Ele t e m e por sua vida.
Os eleitores liberais parecem indecisos. Khakamada convocou
u m a r e u n i ã o d e seus p a r t i d á r i o s e m M o s c o u e e u c o m p a r e c i .
Muitas pessoas disseram claramente: "Se não apoiarmos Khakamada,
n ã o teremos opção a não ser votar contra todos eles ou não votar."
R o g o z i n e Glaziev c o n t i n u a m a jogar perigosamente c o m as
e m o ç õ e s daqueles que t ê m u m a sensação enfraquecida de naciona-
lidade.

14 de fevereiro

U m a nova tragédia em M o s c o u . O teto do Aqua Park em Iasenevo


desabou. O desastre ocorreu à noite, q u a n d o as c o m e m o r a ç õ e s do
UM DIÁRIO RUSSO 109

Dia de São Valentim estavam no auge. Setenta e cinco p o r cento da


cúpula, u m a área do t a m a n h o de um c a m p o de futebol, caíram
sobre a piscina. Oficialmente, havia 426 pessoas no Aqua Park, mas
extra-oficialmente o n ú m e r o é mais p r ó x i m o de mil. O prédio
ficou envolto em vapor. Pessoas em trajes de b a n h o pulavam para
20 graus negativos. Na área mais afetada, t a m b é m havia um restau-
rante, uma pista de boliche, casas de banho, saunas, salas de exercí-
cio e u m a área familiar c o m u m a piscina aquecida para crianças.
Vinte e seis corpos foram encontrados imediatamente, mas há m u i -
tas partes de corpos. As autoridades dizem que não se trata de um
ato terrorista.
Os funcionários públicos c o m e ç a r a m a dificultar a vida para o
novo Partido das Mães de Soldados. O Ministério da Justiça, res-
ponsável pelo registro de partidos, alega não ter recebido n e n h u m
d o c u m e n t o do partido; mas os d o c u m e n t o s não só foram entregues
ao Ministério, c o m o o p a r t i d o t a m b é m possui um recibo oficial
dos mesmos. Os burocratas estão tentando todos os tipos de a r m a -
dilhas, na esperança de levar o novo partido a infringir as turvas e
onerosas leis de formação de partidos e assim livrarem-se dele. Até
agora, as mulheres estão fazendo t u d o certo, verificando cada passo.
Ievgeni Sidorenko, o p o r t a - v o z do Ministério da Justiça, decla-
rou: " N ã o estou certo de q u e iremos registrar este partido. Um par-
tido político não p o d e limitar seus m e m b r o s a um d e t e r m i n a d o
grupo da população. E se alguém que não é mãe de soldado quiser
entrar para o partido? Um pai de soldado, por e x e m p l o ? "
Ele deve ser um adivinho. Os pais q u e r e m entrar. Em nosso
Saara político, o Partido das Mães de Soldados é tão atraente que
muitos homens nele ingressaram apesar do n o m e e é claro que n i n -
guém tem n e n h u m a intenção de impedi-los. Além disso, oficiais da
ativa têm telefonado para os C o m i t ê s de Mães de Soldados pergun-
tando se t a m b é m haverá lugar para eles quando a estrutura do par-
tido estiver definida. Estes são oficiais honrados, que se recusam a
aceitar a idéia de um exército que é p o u c o mais do que um meca-
nismo para tirar a vida de jovens. O Partido das Mães de Soldados
esta começando a parecer um m e i o real de resgatar o exército e
criar responsabilidade pública para nossas forças armadas.
110 A N N A POLITKOVSKAYA

15 de fevereiro
A família Sultanov, da garotinha K h u r c h e d a , assassinada p o r ski-
nheads em São Petersburgo, a b a n d o n o u a Rússia e voltou para o
Tadjiquistão. Eles levaram um p e q u e n o esquife c o n t e n d o os restos
da criança.
O FSB está encarregado de investigar a explosão no m e t r ô .
Exigiu imediatamente novos poderes, comparando a situação c o m
a dos Estados U n i d o s depois de 11 de setembro.
Nossa guerra do norte contra o sul continua. N i n g u é m imagi-
na q u e esse seja o último ataque terrorista, n e m duvida de q u e os
t c h e t c h e n o s estiveram por trás dele. A maioria das pessoas apoia
represálias. Setenta e cinco p o r c e n t o dos russos são a favor da
expulsão de todos os caucasianos. Mas para onde? O Cáucaso ainda
faz parte da Rússia.
H o j e é o d é c i m o q u i n t o a n i v e r s á r i o da nossa retirada do
Afeganistão. A data é vista c o m o o m a r c o do fim da Guerra Afegã,
mas já havíamos lançado as sementes para o desenvolvimento do
terrorismo. Exatamente c o m o os americanos c o m Bin Laden: ele é
o que é hoje p o r q u e a Guerra Afegã foi o que foi.

16 de fevereiro
Foram m o n t a d o s centros para doação de sangue para as vítimas do
desastre do Aqua Park. Estamos c o m e ç a n d o a saber o que fazer nes-
sas situações.
Os acionistas da Iukos declararam estar preparados para resga-
tar K h o d o r k o v s k i do Estado. L e o n i d N e v z l i n (braço direito de
Khodorkovski na Iukos), que fugiu para Israel, anunciou q u e estão
dispostos a entregar suas participações em troca da liberdade para
ele e Platon Lebedev ( C E O do M e n a t e p Bank, que era o principal
acionista da Iukos, que cumpre sentença de oito anos p o r alegação
de evasão fiscal).
O p r ó p r i o Nevzlin possui 8% das ações do M e n a t e p G r o u p .
Ele disse q u e a oferta também é apoiada p o r Mikhail B r u d n o (7%)
e Vladimir D u b o v (7%).
Khodorkovski expressou do presídio sua indignação e recusa-
se a ser resgatado. Ele decidiu beber sua taça até o fim.
UM DIÁRIO RUSSO 1 11

17 de fevereiro
A rede de televisão N T V está se recusando a liberar t e m p o no ar
para a campanha eleitoral e os debates dos " o u t r o s " candidatos pre-
sidenciais. Ela alega que eles estão c o m baixa classificação nas pes-
quisas de opinião e n i n g u é m assistirá aos programas. P o d e ser que
um país tenha os candidatos q u e m e r e c e , mas eles p e l o m e n o s
deveriam ter o direito de falar. N ã o há dúvida de que a decisão da
empresa foi tomada por pressão do Kremlin.
Em M o s c o u , o c o m i t ê de apoio a Khakamada se reuniu no
elegante e caro Berlin C l u b . Khakamada disse:"Estou partindo para
esta eleição c o m o se fosse para o cadafalso e c o m um ú n i c o objeti-
vo: mostrar às autoridades do Estado que existem pessoas normais
na Rússia, que sabem exatamente o que querem." Isso é b o m . Ela
está p r o c u r a n d o m o s t r a r q u e o m e d o ainda n ã o c o n q u i s t o u a
Rússia, o que seria uma vitória incondicional de Putin.
O RU t a m b é m realizou u m a reunião da "intelligentsia d e m o -
crática" em apoio a Putin que, disseram, está sofrendo ataques de
seus oponentes. Entre os defensores de Putin estavam a veterana
cantora Larisa Dolina, o diretor de cinema e teatro M a r k Zakharov,
o ator Nikolai Karatchentsev e a diretora de circo Natalia Durova.
Eles haviam recebido u m a carta pedindo que "defendessem a honra
e a dignidade do p r e s i d e n t e " e o b e d i e n t e m e n t e responderam ao
apelo. Foi m e n c i o n a d o de passagem que o n ú m e r o de m e m b r o s do
RU chegou a 740 mil e q u e mais de dois milhões de "partidários"
foram registrados, e m b o r a não tenha sido dada n e n h u m a explica-
ção quanto ao que isso significa. O RU enfatizou q u e seu propósi-
to c o m o partido político é dar apoio ao presidente. N a d a de polí-
ticas, n e m ideais, n e m programas de reformas: apenas um indivíduo.
A Comissão Eleitoral Central registra alegremente que mais de
200 observadores internacionais já foram oficialmente credenciados
Para a eleição de 14 de março. No total, são esperados cerca de 400.
A D u m a contribui c o m sua parcela para as tentativas patéticas
de c o m b a t e ao t e r r o r i s m o . Os poderes da polícia secreta e dos
espiões serão ampliados e foram adotadas e m e n d a s ao C ó d i g o
Penal para elevar as p u n i ç õ e s para h o m e n s - b o m b a . A g o r a eles
poderão pegar prisão p e r p é t u a ! Parece p o u c o provável que essa
naedida possa dissuadir q u e m queira acertar desta maneira suas c o n -
112 A N N A POLITKOVSKAYA

tas c o m a vida. A Q u a r t a D u m a é o cérebro coletivo da estúpida


burocracia russa de hoje.
A D u m a está j o g a n d o de acordo c o m os serviços de inteligên-
cia p o r q u e é disso que P u t i n gosta. N ã o há m e n ç ã o aos três bilhões
de rublos adicionais [US$111 milhões] concedidos aos serviços de
inteligência p o u c o depois de Nord-Ost para o c o m b a t e ao terroris-
m o . Para onde eles foram e p o r que o n ú m e r o de ataques terroris-
tas não decresceu? A Q u a r t a D u m a deu sua b ê n ç ã o legislativa para
u m a luta puramente virtual contra o terrorismo. A eficiência dos
serviços de inteligência n e m m e s m o é questionada e o problema da
Tchetchênia, que está na o r i g e m de tudo, não é m e n c i o n a d o .

19 de fevereiro
Sergei Mironov participou pela primeira vez dos debates pela tele-
visão.Todos imediatamente se concentraram nele, c o m o se ele fosse
Putin, mas M i r o n o v recusou-se a ser sacrificado.
"E claro que você é Putin!", disse Khakamada."Por que, depois
de todos os atos terroristas, Grislov foi promovido, q u a n d o deveria
ser demitido?"
" N ã o sou r e p r e s e n t a n t e d o c a n d i d a t o P u t i n ! " , r e s p o n d e u
Mironov.
" E n t ã o responda c o m o a terceira pessoa na hierarquia de poder
do Estado", prosseguiu Khakamada.
Mas Mironov recusou-se a responder. Esse é d tipo de debate
q u e t e m o s . N i n g u é m os leva a sério. Eles são t r a n s m i t i d o s de
m a n h ã m u i t o cedo.
A Comissão Eleitoral Central recusou permissão a R i b k i n para
participar de debates de Londres. N i n g u é m permitirá q u e R i b k i n
lave a roupa suja de P u t i n ao vivo na televisão.

21 de fevereiro
E m V o r o n e j , Amat A n t o n i u Lima, 24 anos, aluno do primeiro ano
na Academia Médica de Voronej, m o r r e u depois de ser esfaqueado
17 vezes. Ele era de Guiné-Bissau. É o sétimo assassinato de um
estudante estrangeiro em Voronej nos últimos anos. Os assassinos
são skinheads.
UM DIÁRIO RUSSO 113

O slogan de Jirinovski nas eleições parlamentares foi "Estamos


c o m os pobres! Estamos c o m os russos!". Foi e n c a m p a d o pelo RU
e também pelo Avalista da Constituição. E pelos skinheads.

22 de fevereiro
Há uma especulação crescente de que todos os candidatos, c o m
exceção de M a l i c h k i n e M i r o n o v (e P u t i n ) , p o d e r ã o se retirar
s i m u l t a n e a m e n t e da eleição. Glaziev já a n u n c i o u sua retirada.
R i b k i n está prestes a fazê-lo e t a m b é m Khakamada. A imprensa
favorável a Putin diz q u e se trata de um plano para salvar sua ima-
gem política, p o r q u e eles terão porcentagens diminutas da votação
em 14 de março.

24 de fevereiro
Putin demitiu seu ministério ao vivo na televisão, 19 dias antes da
eleição. De acordo c o m a Constituição, o presidente recém-eleito
nomeia um novo ministério e, neste ponto, o ministério anterior se
retira. A razão para a demissão não foi revelada. O ministério não
foi acusado de nada, e m b o r a haja muitas razões para isso, e a única
explicação dada é que P u t i n quer ir para o eleitorado sem másca-
ras, para que todos saibam c o m q u e m ele irá trabalhar depois da
eleição. Os ministros demitidos falam na televisão da alegria c o m a
qual e n c h e r a m seus corações q u a n d o s o u b e r a m da demissão. O
Kremlin demonstrou para o eleitorado que nossas eleições são um
completo fingimento e q u e o ministério é p u r a m e n t e ornamental.
A qualquer m o m e n t o , p o r opção do assessor de imprensa, ele pode
ser afastado.
E importa alguma coisa q u e m Putin n o m e a r para p r i m e i r o -
ministro, no lugar de Kasianov, ou q u e m está no ministério? Não.
Tudo no país d e p e n d e da administração presidencial. A demissão
pareceu uma operação especial. Ela foi feita em sigilo total. N ã o
houve vazamentos. Foi c o m o se eles estivessem efetuando um ata-
que militar a um alvo específico e não apenas d e m i t i n d o ministros.
Em sua maioria, os ministros souberam que estavam demitidos pela
televisão.
I 14 A N N A POLITKOVSKAYA

A demissão do ministério dessa maneira demonstra o estabeleci-


m e n t o da Oligarquia Política na Rússia. C o m esse ato, todos os oli-
garcas financeiros, que até agora tinham um dedo na torta, estão fora.
Os canais oficiais de televisão explicam q u e "o presidente está
otimizando a substituição de ministros ineficazes para que o povo
russo saiba q u e m fará parte do governo depois de 14 de m a r ç o " . E
c o m o se a eleição já houvesse acontecido.
O primeiro m a n d a t o de Putin chegou hoje efetivamente ao
fim.E o t é r m i n o da era Ieltsin, da qual Kasianov era o último rema-
nescente. Agora P u t i n passará seu segundo m a n d a t o distanciándo-
se completamente das políticas de Ieltsin.
Ielena B o n n e r * fez um apelo aos c a n d i d a t o s presidenciais
n u m a carta aberta enviada da América:

Mais u m a vez, a p e l o aos candidatos presidenciais Irina


Khakamada, Nikolai Kharitonov e Ivan R i b k i n para que em
conjunto se retirem da eleição. P e r m a n e c e n d o c o m o candida-
to, cada um de vocês procurou tornar seu programa conhecido
do eleitorado e demonstrar à sociedade russa e à opinião m u n -
dial a desonestidade desta eleição. D e i x e m o candidato n° 1,
Putin, sozinho c o m seus fantoches e peçam que os grupos que
os apoiam e os eleitores comuns b o i c o t e m a eleição. Q u e m
não gostar da palavra boicote poderá, se preferir, descrever isso
c o m o um apelo à abstenção. Assim, não terá importância a p o r -
c e n t a g e m c o m a qual eles sonham para o resultado final. O
importante é que as autoridades saberão o n ú m e r o real.
Ainda mais importante é que todos aqueles q u e delibera-
damente deixarem de votar ganharão respeito p r ó p r i o por não
participar desta farsa patrocinada pelo Estado. Mais i m p o r t a n -
te, recusando-se a participar, vocês indicarão claramente sua
meta, u m a meta compartilhada, nos próximos quatro anos, por
políticos de direita e de esquerda e seus partidários políticos.
Essa é a batalha para restaurar a instituição das eleições reais na
Rússia, no lugar da contrafação que está sendo imposta hoje ao
país. Mais tarde, em 2007 e 2008, se em conjunto fizerem c o m
q u e as eleições d e i x e m de constituir u m a g r a n d e m e n t i r a ,
vocês voltarão a ser oponentes políticos e competidores na luta
pelos votos. Neste m o m e n t o , porém, somente sua recusa c o n -
UM DIÁRIO RUSSO 115

junta a participar das eleições e seu apelo aos eleitores para que
não participem são estratégica e m o r a l m e n t e justificáveis.

N ã o h o u v e n e n h u m a reação a o apelo d e B o n n e r . N e n h u m
comentário, n e m raios e trovões. Nada.

26 de fevereiro
As pessoas estão c o m e ç a n d o a rir baixinho de Putin, até mesmo na
televisão. H o j e ele está em Khabarovsk, p a r e c e n d o p o m p o s o e
imperial c o m o um rei de contos folclóricos. Pela manhã, ele inau-
gurou a rodovia Khabarovsk-Tchita. Depois disso, conversou c o m
alguns veteranos de guerra, que lhe pediram mais dinheiro; assim,
ele elevou o s u p l e m e n t o do n o r t e para pensões. D e p o i s , passou
algum tempo c o m jovens jogadores de h ó q u e i em um novo estádio
de patinação no gelo.Viktor Fiodorov, o comandante da Frota do
Pacífico, havia expressado alarme diante da possibilidade de redu-
ções da força; assim, P u t i n t a m b é m anunciou q u e a Frota do Pacífico
não seria reduzida, p o r q u e "nosso p u n h o no Pacífico precisa ser
forte". Ele t a m b é m p r o m e t e u apoio para a base de submarinos em
Kamtchatka. (Ele deveria procurar ir até lá para ver pessoalmente as
condições da vila dos oficiais em Petropavlovsk-Kamtchatski.) A
seguir, o ministro em exercício dos Transportes, Vadim Morozov,
pediu a Putin quatro bilhões e m e i o de rublos [US$165 milhões]
para uma ligação ferroviária entre a Ferrovia Trans-Siberiana e a
Rodovia Baikal-Amur, e foi atendido. Sergei Darkin, empresário e
governador de P r i m o r i e , p e d i u três bilhões de rublos [US$109
milhões] para novos navios. Viacheslav Shtirov, o presidente de
Iakutia, pediu fundos para um oleoduto e gasoduto de Irkutsk até o
Extremo O r i e n t e e P u t i n prometeu concedê-los.

N e n h u m a indicação foi dada de q u e m será o novo primeiro-


ministro. Os boatos estão circulando.
Alguns dizem que P u t i n irá se a u t o n o m e a r primeiro-ministro;
outros dizem que será Grislov ou talvez K u d r i n .
Naquela noite, a N T V transmitiu o programa de debates Ao
Limite! Os d e b a t e d o r e s e r a m Vladimir Rijkov, um d e p u t a d o da
D u m a de mentalidade independente, e Liudmila Narusova, a viúva
de Anatoli Sobtchak, professor e chefe de Putin. A questão em dis-
116 A N N A POLITKOVSKAYA

cussão era p o r q u e P u t i n havia demitido seu ministério. Rijkov


estava b r i l h a n t e e i r ô n i c o , sem ser malicioso. Ele r i d i c u l a r i z o u
Putin de u m a forma simpática e condescendente. D u r a n t e o p r o -
grama, os telespectadores foram convidados a votar em Narusova
ou Rijkov.
Narusova insistiu em que o presidente estava sempre certo a
respeito de tudo, mas não conseguiu explicar nada além disso. Isso
é m u i t o t í p i c o dos p a r t i d á r i o s de P u t i n . O r e s u l t a d o foi u m a
retumbante vitória de Rijkov, que recebeu 71 mil votos contra os
19 mil de Narusova pela defesa de Putin. Narusova, garantindo a
todos que P u t i n estava i n d o para a eleição c o m a mais pura das
intenções, foi derrotada.

27 de fevereiro
A votação antecipada na eleição já c o m e ç o u para aqueles que esta-
rão e m alto-mar, e m aviões, e m expedições o u q u e m o r a m e m
regiões remotas e inacessíveis. Apesar dos resultados serem declara-
dos somente em 14 de março, as maiores fraudes irão ocorrer c o m
essas urnas de votos antecipados. É muito fácil.

29 de fevereiro
D u r a n t e toda a semana, ouvimos que o presidente estava consul-
tando as principais figuras do RU a respeito de q u e m indicar para
primeiro-ministro. Q u a s e todas as pessoas t ê m certeza de que isso é
apenas relações públicas e que n i n g u é m está sendo consultado a
respeito de nada.
Em M o s c o u , foi realizada uma "eleição presidencial" por m e n -
sagens de t e x t o . O resultado foi 6 4 % para P u t i n , 1 8 % para
Khakamada e 5% para Glaziev.

2 de março
Putin é exibido em todos os canais de televisão conversando com
o ator e diretor Iuri Solomin, a respeito do 250° aniversário, cm
2006, da ordem de Catarina, a Grande, sobre a criação de teatros na
UM DIÁRIO RUSSO 117

Rússia. P u t i n c o n t i n u a p e r g u n t a n d o c o m o a ocasião deverá ser


comemorada e continua interessado por um l o n g o período.
O novo p r i m e i r o - m i n i s t r o da R ú s s i a é M i k h a i l F r a d k o v *
N i n g u é m sabe q u e m ele é. Aparentemente, era um funcionário do
Ministério do C o m é r c i o Exterior e trabalhou em várias embaixa-
das; ocupou vários cargos em vários ministérios no período pós-
soviético e trabalhou na Polícia Fiscal q u a n d o esta estava em seu
ponto mais baixo. Voando de volta de Bruxelas, Fradkov disse que
ainda não sabe o q u e é um "primeiro-ministro t é c n i c o " . Isto é, ele
não sabe para q u e posição foi escolhido p o r P u t i n . Até para nós, um
primeiro-ministro tão desinformado é m u i t o i n c o m u m .

5 de março
Tudo está sendo r e d u z i d o ao absurdo. A n o m e a ç ã o de Fradkov
como primeiro-ministro pela D u m a merece um verbete no Livro
Guinness dos Recordes: 352 votos em favor do h o m e m que, quando
lhe perguntaram quais eram seus planos para o futuro, só conseguiu
murmurar: "Acabei de sair da sombra para a luz."
Fradkov é um h o m e m das sombras p o r q u e é um espião.Temos
um primeiro-ministro de terceira classe. Ele é até careca. Sua apa-
rência revela q u e se trata de um truque político. Ele foi escolhido
para que Putin, e só P u t i n , seja a figura de autoridade. Nada irá
mudar. Putin continuará a decidir.
Então, qual é a nova política? A resposta é: nada. Fradkov é um
executivo modesto, sempre pronto para realizar as tarefas ditadas
pelo Partido. N a d a mais, nada menos.
Ribkin retirou sua candidatura, sem dar n e n h u m a explicação
clara sobre o p o r q u ê . C o n t i n u a dando a impressão de estar mental-
mente perturbado.
Khakamada viajou a Nijni Novgorod, P e r m e São Petersburgo.
Nas suas aparições públicas, ela parece irritada e exausta, mas se esse
e
o estado em q u e está, ela faria melhor se não saísse. Kharitonov
foi a Tula. Malichkin está em Altai, mas mal p o d e j u n t a r suas pala-
vras. Mironov está em Irkutsk, mas não é capaz de dizer nada sem
anotações.
Quase todos os comentários na televisão a respeito dos candi-
tos dizem que é um escândalo eles ousarem competir c o m nosso
118 A N N A POL1TKOVSKAYA

Candidato Principal. Há uma atrofia gradual do órgão responsável


pela percepção democrática da realidade. A propaganda mostra que,
no período soviético, as pessoas votavam em um candidato único e
t u d o estava b e m . E possível que, nas próximas eleições, esses assun-
tos n e m m e s m o v e n h a m a ser debatidos. Haverá um candidato de
oposição oficialmente escolhido e a sociedade retomará seu rumo.
O país está afundando em um estado de inconsciência coletiva, na
irracionalidade.

8 de março
Dia Internacional da Mulher. De acordo c o m u m a velha tradição
do Kremlin, Putin r e ú n e mulheres que trabalham. Deve haver uma
m o t o r i s t a de trator, u m a cientista, u m a atriz e u m a professora.
Discurso decorado, u m a taça de champanhe, câmeras de televisão.
E o último m o m e n t o para os candidatos se retirarem da corri-
da. N i n g u é m o fez e seis p e r m a n e c e m na cédula: Malichkin, Putin,
Khakamada, Glaziev e Kharitonov. Muita cobertura de televisão é
dedicada aos primeiros votos por criadores de renas e pessoas que
trabalham em postos de fronteira.

9 de março
A partir de hoje é proibido fazer campanha e realizar pesquisas de
opinião pública, mas todos desistiram de fazer campanha depois da
nomeação de Fradkov. Parecia uma inutilidade.

10 de março
P u t i n está em todos os canais de televisão r e u n i d o c o m esportistas
para lhes p e r g u n t a r d o q u e necessitam para v e n c e r nos Jogos
Olímpicos de Verão. Eles necessitam de mais dinheiro. Putin p r o -
m e t e dá-lo.

11 de março
Há cinqüenta anos, Khruschov lançou a campanha pelo cultivo das
terras virgens da Sibéria e do Cazaquistão. P u t i n recebe figuras
UM DIÁRIO RUSSO 119

públicas proerninentes em sua residência e pergunta do que elas


necessitam. Elas necessitam de mais dinheiro. P u t i n promete que
elas o terão. A formação do " n o v o " governo não parece promisso-
ra. H o u v e conversas a respeito da redução do n ú m e r o de burocra-
tas de alto nível, mas, na verdade, o n ú m e r o cresceu.Todos os minis-
tros supostamente demitidos foram reintegrados c o m o vice-minis-
tros em ministérios combinados, o que quer dizer que temos um
novo burocrata mais dois antigos. No total, dos 24 antigos ministé-
rios e departamentos, criaram 42 novos. O governo é exatamente o
mesmo, c o m exceção de Kasianov. Um governo oligárquico, c o n -
trolado p o r oligarcas diferentes, próximos não do Ministério das
Finanças e do Ministério da Propriedade, mas de Putin. Putin é um
oligarca político. Em outros tempos, seria c h a m a d o de imperador.

12 - 13 de março
Silêncio e apatia. N i n g u é m se incomoda em ouvir as besteiras na
televisão.Vamos apenas acabar c o m isso.

14 de março
Então, ele foi eleito. A votação foi m u i t o elevada, c o m o exigia a
administração presidencial. Bóris Grizlov, o orador da D u m a , sain-
do da cabine de votação, disse aos jornalistas: " H o j e é proibido fazer
campanha, mas antecipando sua curiosidade, direi que votei na pes-
soa que, nos quatro últimos anos, tem assegurado o desenvolvimen-
to estável da e c o n o m i a da Rússia.Votei em políticas claras como o
dia de hoje."
A noite, Alexander Vechniakov, diretor da Comissão Eleitoral
Central, informou ao povo russo que somente u m a infração à lei elei-
toral havia sido observada durante a eleição: "Estavam vendendo
vodca em um ônibus próximo dos distritos eleitorais em NijniTagil."
E m V o r o n e j , o C o n s e l h o Central de Saúde emitiu a O r d e m
n
114, alertando que n e n h u m hospital deveria admitir, durante o
horário de votação, n i n g u é m que não estivesse de posse do atesta-
do de voto fora do domicílio eleitoral.Todos os pacientes apresen-
taram o atestado, para que lhes fosse p e r m i t i d o estar doentes. O
mesmo processo se repetiu em R o s t o v - o n - D o n . No departamento
120 A N N A POLITKOVSKAYA

de doenças contagiosas do hospital municipal, as mães foram proi-


bidas de ver seus filhos, a menos que tivessem o atestado.
Em Bachkortostan, o presidente R a k h i m o v apurou 92% dos
votos para Putin; no Daguestão, 94%; em Kabardino-Balkaria, 96;
em Ingushetia,* 9 8 . Havia uma competição? D u r a n t e os 13 anos da
nossa nova vida pós-soviética, esta é a quarta vez em que a Rússia
elegeu um presidente. Em 1991, foi Ieltsin; em 1996, novamente
Ieltsin; em 2000, P u t i n ; em 2004, novamente Putin. Para os cida-
dãos russos, o e t e r n o ciclo se repete, de u m a onda de esperança à
total indiferença em relação ao Candidato n° 1.

15 de março
Agora temos os n ú m e r o s oficiais: P u t i n obteve 71,22%. Vitória!
(Embora de Pirro.) Khakamada obteve 3,85; Kharitonov, 13,74;
Glaziev, 4 , 1 1 ; M a l i c h k i n , 2,23; Mironov, 0,76. A candidatura de
M i r o n o v se deveu totalmente à sua lealdade canina a Putin. Seu
resultado reflete isso. De m o d o geral, o conceito de dirigir o país
pelos mesmos m é t o d o s usados na condução da "operação antiter-
rorismo" foi justificado: L'Etat Cest Putin.
PARTE DOIS

A grande depressão
política da Rússia

De abril a dezembro de 2004


Da reeleição de Putin
à Revolução Ucraniana

U m a terrível sensação de tédio p a i r o u s o b r e nossas cidades e


aldeias depois da reeleição de P u t i n . T u d o parecia tedioso e despre-
zível, c o m o nos dias da U n i ã o Soviética. Até aqueles que haviam
apoiado os d e r r o t a d o s p a r e c i a m i n c a p a z e s de ficar c o m raiva.
Parecia que o p o v o simplesmente tinha desistido, c o m o se dissesse:
" Q u e m se i m p o r t a c o m o que vai a c o n t e c e r agora?" A Rússia
recaiu na hibernação sociopolítica, em um n o v o período de estag-
nação cuja profundidade p o d e ser julgada pelo fato de n e m m e s m o
a tragédia de Beslan, um cataclisma de proporções bíblicas, conse-
guir perturbá-la.

6 de a b r i l

Em Nazran, capital da Inguchétia, o presidente Murat Ziazikov*


sofreu um atentado a b o m b a em sua Mercedes, mas sobreviveu. Ele
e um dos apadrinhados de Putin e foi " e l e i t o " há dois anos de u m a
forma muito original. Agentes do FSB invadiram a república, sem
se incomodar em esconder que estavam agindo por ordens diretas
de Putin. Este foi extremamente perspicaz ao assegurar que, m e s m o
que tivesse de ser pelo voto popular, o p o d e r na Inguchétia deveria
estar nas mãos de alguém sob seu controle. A Inguchétia faz fron-
teira com a T c h e t c h ê m a .
N i n g u é m realmente imagina q u e a eleição do general Ziazi-
ov
j > do FSB, t e n h a sido legítima, mas n ã o havia c o m o prová-lo
^galmente. Os tribunais da república n ã o aceitarão ações contra
azikov mais q u e os tribunais de M o s c o u aceitam processos c o n -
124 A N N A POLITKOVSKAYA

tra P u t i n e, q u a n d o não há c o m o o v a p o r escapar, tem-se u m a


explosão de terrorismo.
Ziazikov sobreviveu ao ataque graças ao seu Mercedes blinda-
do. Ele o classificou c o m o um ultraje ao povo da Inguchétia. N ã o
havia n e n h u m a simpatia por ele, mas interessa pelo que havia p o r
trás do ataque. Um motivo possível é q u e tenha sido provocado
pela c o r r u p ç ã o que floresceu mais do q u e nunca sob Ziazikov e
Ruslanbi Ziazikov, seu primo e principal guarda-costas. D u r a n t e o
inverno a n t e r i o r à tentativa de assassinato, Ruslanbi estava sendo
alertado, p o r pessoas que incluíam parentes do presidente, de q u e
ele deveria controlar seus delitos. O m e s m o estava sendo dito a
Ziazikov. Q u a n d o essas palavras não tiveram efeito, o novo jipe de
R u s l a n b i foi q u e i m a d o em março no c e n t r o de Nazran, diante
dele. N a t u r a l m e n t e , a destruição de um j i p e pertencente ao p r i n c i -
pal guarda-costas do presidente foi abafada. N e m Ruslanbi n e m
Ziazikov c r i a r a m caso c o m aquilo. A explicação de que era um
alerta aos oficiais que haviam se descontrolado é levada muito mais
a sério em N a z r a n do que a idéia de u m a tentativa de assassinato.
A segunda explicação está relacionada c o m uma série recente
de raptos na Inguchétia. Sob a gestão de Ziazikov, os raptos c o m e -
çaram a o c o r r e r de acordo c o m o padrão estabelecido na T c h e t -
chênia. As vítimas eram dominadas p o r "soldados mascarados não
identificados" e levadas a local desconhecido em veículos sem pla-
cas. Até agora, há quarenta nomes n u m a lista compilada p o r seus
familiares. Ziazikov nega categoricamente a ilegalidade do Estado
nesta escala e impôs o silêncio nas informações a respeito dos rap-
tos. Eles não p o d e m ser relatados dentro das fronteiras da Inguchétia
e, no Gabinete do Procurador e no Ministério do Interior, os fun-
cionários só falam c o m os parentes extra-oficialmente.
N a t u r a l m e n t e , as famílias estão fazendo suas próprias investiga-
ções e isso as encoraja a enfrentar os problemas por conta própria,
c o m o na T c h e t c h ê n i a . O n d e não há justiça, há a justiça bruta. As
pessoas p e r d e m a paciência.
B a t e m à m i n h a porta. Estou em um hotel em Nazran. Fora há
u m a fila de idosos. São as mães e os pais dos desaparecidos da
Inguchétia. C o n t a m que as pessoas estão sendo mortas c o m o gali-
nhas. Destacamentos não identificados de tropas federais p e r c o r r e m
as ruas dia e noite. M a h o m e d Yandiev, aposentado de Karabulak,
UM DIÁRIO RUSSO 125

perdeu seu filho Timur, um c o n h e c i d o programador de c o m p u t a -


dor popular entre os jovens. Foi no c o m e ç o da noite.Timur estava
saindo do seu escritório pouco depois das 17:00 em 16 de março
quando h o m e n s armados, usando máscaras e uniformes de camufla-
gem, o puseram em um carro Neva branco sem placa e fugiram. O
Neva tinha a cobertura de um Giselle, t a m b é m sem placa. Os seqües-
tradores prosseguiram sem tropeços até a Tchetchênia pelo posto de
fronteira do Cáucaso, o mais i m p o r t a n t e na fronteira e n t r e a
Inguchétia e a Tchetchênia. Ali, mostraram seus passes: todos estavam
registrados na Sede Regional da Operação Antiterrorismo. Essas são
as constatações da família Yandiev. Os órgãos da lei nada fizeram.
"Estive e m t o d a p a r t e " , diz M a h o m e d c h o r a n d o . Ele ficou
arrasado c o m o q u e aconteceu. "Perguntei a t o d o m u n d o : ao G a b i -
nete do Procurador, ao Ministério do Interior, ao FSB. Implorei
que me dissessem por que ele foi levado. I n d e p e n d e n t e m e n t e do
que ele fez, eu deveria saber. Em resposta, tive o silêncio. T e n h o
muitas perguntas. Aqueles mascarados são superiores aos órgãos da
lei? Q u e m são eles? Nosso Ministério do Interior tem seis mil fun-
cionários. E m u i t o para uma república de somente 300 mil h a b i -
tantes. Esses seis mil funcionários não p o d e m policiar o território
da república? Ou estão permitindo q u e indivíduos que não p o d e m
ser identificados raptem pessoas? Estou horrorizado c o m o fato de
o presidente Ziazikov não ter dito nada em público a respeito do
problema. C o m o não está dizendo nada, ele sabe onde estão as pes-
soas raptadas e está dando cobertura para os seqüestradores. Eles
deflagraram u m a guerra contra seu p r ó p r i o povo. A Tchetchênia é
uma base para trazer de volta o stalinismo para toda a Rússia; a
Inguchétia é a seguinte depois da T c h e t c h ê n i a , p o r q u e somos o
povo mais p r ó x i m o deles. Detesto P u t i n e sua cria, Ziazikov."
M a h o m e d Yandiev sai e seu l u g a r é t o m a d o p o r T s i e s h
Khazbiev e seu filho Islam. Em 2 de março, b e m na sua frente, "sol-
dados m a s c a r a d o s n ã o i d e n t i f i c a d o s " m a t a r a m a tiros sua filha
Madina, de 24 anos. N a q u e l e dia, elas estavam vindo de N a z r a n
para visitar a avó na aldeia de Gamurzievo.
Foi p o u c o antes de chegarmos a Gamurzievo", chora Tsiesh.
Os carros à nossa frente frearam e bloquearam a estrada. F o m o s
forçadas a parar. Vimos soldados mascarados arrastarem um j o v e m
para fora do carro da frente. J o g a r a m - n o ao chão e atiraram, apesar
126 A N N A POLITKOVSKAY

de ele n ã o estar oferecendo resistência n e n h u m a . N a t u r a l m e n t


comecei a gritar: 'O que vocês estão fazendo?!' Em resposta, atira
r a m e m n ó s . A c e r t a r a m m i n h a filha n a carótida. Ela n e m tev
t e m p o de sair do carro. M e u m a r i d o foi g r a v e m e n t e ferido no
o m b r o e na perna. Ele sobreviveu, mas os médicos não consegui-
ram retirar os fragmentos dos ossos. H o j e quase não saio de casa e
t e n h o m u i t o m e d o das pessoas. As autoridades não expressaram
condolências. N a d a foi dito a este respeito nos jornais ou na televi-
são. Pelo q u e mostram na televisão, dá para pensar que vivemos err"
u m paraíso. N ã o vejo p o r q u e m i n h a M a d i n a tinha d e m o r r e r .
Q u e m é o responsável por terem atirado nela?"
Mais tarde, procurei Idris Artchakov, o investigador para o caso
da m o r t e daquela garota inocente. Ele p o u c o tinha a dizer. Estava
aterrorizado c o m a verdade e ficava se explicando. "Você precisa
entender... q u e r o trabalhar..." Na Inguchétia, hoje o m e d o está em
todos, do c a m p o n ê s ao procurador, c o m o um dragão que olha a
todos de cima. Estou falando c o m Idris c o m o se estivéssemos em
u m e n c o n t r o secreto, sentados e m u m carro emprestado c o m o
m o t o r ligado.
A q u i está u m breve r e s u m o das palavras d o investigador
Artchakov, nas quais havia mais covardia e m e d o do que qualquer
desejo de executar os deveres da sua posição. Madina foi m o r t a p o r
um dos esquadrões da m o r t e federais q u e incursionam regular-
m e n t e pela Inguchétia. Em 2 de março, eles estavam encarregados
de matar A k h m e d Basnukaev, um c o m a n d a n t e de campo.
" P o r q u e precisavam liquidar Basnukaev atirando em todas as
pessoas na área? Basnukaev era da ala m o d e r a d a da Resistência
tchetchena. Ele não só não resistiu q u a n d o foi preso, mas t a m b é m
morava a b e r t a m e n t e havia muito t e m p o na Inguchétia e tinha, p o r
solicitação das autoridades tchetchenas favoráveis a Moscou, tenta-
do fazer a mediação entre Grozni e alguns dos comandantes a res-
peito de eles entregarem suas armas voluntariamente."
"E claro que aquilo foi desnecessário, mas ninguém liga para o
que dizemos. Os federais fazem o que querem.Você sabe, eles t ê m
m e d o da p r ó p r i a sombra. Para eles, é mais fácil atirar para matar do
que pensar e ver a realidade."
"E o q u e você vai fazer quando tiver certeza de que as tropas
federais foram as responsáveis?"
UM DIÁRIO RUSSO 127

" N a d a . Ficarei quieto, c o m o t o d o m u n d o . C o m o Putin v e n -


ceu ele t e m o p o d e r e isso significa q u e temos que ficar de cabeça
baixa. Arquivarei o caso do assassinato de Madina. Seus pais irão
chorar p o r algum tempo, mas depois se acalmarão. Eles são pessoas
simples. N ã o vão começar a escrever para o Gabinete do P r o c u r a -
dor-geral. E m e s m o que o façam, receberei agradecimentos p o r
não ter investigado muito de perto."
A atitude de Artchakov é típica dos nossos tempos.
A família Khazbiev sai e entra a família Mutsolgov. Se existe
alguma coisa c o m a qual isso t u d o p o d e ser c o m p a r a d o , é a
Tchetchênia: somente lá um jornalista atrai instantaneamente u m a
fila do t a m a n h o daquelas que víamos nas lojas de alimentos na era
soviética. São os parentes de vítimas de execuções extrajudiciais ou,
de acordo c o m a descrição do G a b i n e t e do Procurador, "forças
especiais necessárias na luta contra o t e r r o r i s m o " . São os parentes
de todas as pessoas que foram "desaparecidas", arrastadas e assassi-
nadas p o r "soldados mascarados não identificados, usando unifor-
mes de camuflagem". As famílias n u n c a conseguem encontrar os
responsáveis, n e m qualquer indício dos desaparecidos. Eles n ã o
estão em n e n h u m a instituição do Estado, seja sob interrogatório ou
aprisionados.
A d a m Mutsolgov é o pai de Bashir, um professor de 29 anos da
cidade de Karabulak. Seu filho foi j o g a d o para dentro de um Neva
branco diante da sua casa, em plena luz do dia. Os dois outros filhos
de Adam t a m b é m fizeram uma investigação independente.
(Mais tarde, descobririam que os responsáveis pelo rapto eram
agentes da Diretoria do FSB para a Inguchétia, sob o c o m a n d o do
general Sergei Koriakov, um a m i g o do presidente Ziazikov. O
general Koriakov estava pessoalmente envolvido. Os irmãos obtive-
ram evidências de que Bashir havia passado a primeira noite depois
do rapto no prédio do DFSB em N a z r a n (ou Magas, c o m o a cida-
de foi rebatizada),bem atrás do palácio presidencial. Pela manhã, ele
foi levado, em um veículo do D F S B , para a base militar de Hankala,
a
principal base russa na T c h e t c h ê n i a , mas depois disso eles n ã o
conseguiram descobrir mais nada. O informante deles era m e m b r o
do DFSB. Aqueles que haviam visto Bashir Mutsolgov em Hankala
também contaram a Adam que ele estava mal, mostrando sinais de
torturas terríveis.)
128 A N N A POL1TKOVSKAYA

Adam Mutsolgov me entrega a lista de quarenta nomes de pes-


soas que foram raptadas nos últimos meses. E urna lista extra-ofi-
cial, compilada p o r suas famílias. O Gabinete do Procurador recu-
sou-se a aceitá-la. A única opção que eles t ê m é se unir e trabalhar
em conjunto. A lista, que no final de fevereiro era m u i t o mais curta,
foi entregue, p o u c o antes da eleição de P u t i n , a Rashid Ozdoev,
assistente do P r o c u r a d o r da I n g u c h é t i a . Os deveres oficiais de
R a s h i d e r a m m o n i t o r a r a legalidade das a ç õ e s do D F S B em
Inguchétia. Na m e s m a ocasião, ele estava a c o m p a n h a n d o o que
havia acontecido c o m as pessoas raptadas e t a m b é m tinha concluí-
do que estavam o c o r r e n d o execuções extrajudiciais c o m o c o n h e -
cimento dos serviços de segurança da república. Rashid apresentou
um relatório ao p r o c u r a d o r - g e r a l da Federação Russa, Vladimir
Ustinov, apresentando provas de atividades ilegais, principalmente
pelo general Koriakov e pelo DFSB.
Em 11 de m a r ç o , R a s h i d O z d o e v foi visto pela última vez
entrando em seu carro no estacionamento do palácio presidencial
em Nazran.Vinte e quatro horas depois, seu carro foi visto, cober-
to p o r uma lona, no pátio do DFSB de Inguchétia. Mais tarde, ele
foi observado em Hankala, c o m o descobriram seus parentes, apre-
s e n t a n d o sinais de ter sido espancado e t o r t u r a d o . Eles sabem
somente que ele não está mais lá.
"Cada dia que passo sem saber, eu enterro m e u filho", diz B ó -
ris Ozdoev, pai de Rashid, balançando a cabeça. Ele é juiz aposen-
tado e muito c o n h e c i d o na Inguchétia. E está longe de ser jovem.
"Seu filho lhe c o n t o u o que havia no relatório dele ao procu-
rador-geral?"
"Sim. Ele escreveu sobre o uso de força extrajudicial e q u e m
era culpado desse uso. Eu lhe disse:'Não faça isso. Essa é u m a orga-
nização terrível! P o r q u e você quer assumir esse risco?' Ele respon-
deu: 'Se você quiser, largo este emprego. Mas, se sou o p r o m o t o r
cuja função é m o n i t o r a r o D F S B e se a organização que estou
m o n i t o r a n d o está envolvida c o m assassinato e seqüestro, então eu
sou a única pessoa na república que t e m o direito legal de exigir
um retorno à legalidade. Se não usar esse direito agora, Deus nunca
irá me perdoar.' Discutimos o assunto p o r m u i t o t e m p o e ele se
p e r g u n t o u : ' B e m , o q u e p o d e m fazer eles? Plantar drogas ou armas
em mim? Isso n ã o pegaria: t e n h o i m u n i d a d e c o m o procurador.
UM DIÁRIO RUSSO 129

Todos sabem que não aceito suborno.' Ele não considerou a possi-
bilidade de p o d e r ser raptado. Depois de seu desaparecimento, fui
ao presidente Ziazikov e fiquei, um idoso, um juiz, esperando p o r
uma hora e meia. Ele me fez esperar e depois simplesmente passou
o recado, pela secretária, de que nada tinha a dizer para m i m . Isto
sem dúvida significa que ele sabe q u e m raptou Rashid."
No fim, os chefes de família cujos filhos tinham sido raptados
convocaram u m a reunião e exigiram q u e Ziazikov lhes dissesse
onde eles estavam e q u e m era o responsável pelos raptos. P o r é m ,
exatamente naquele m o m e n t o , Ziazikov estava a caminho de um
encontro c o m P u t i n em Sotchi, para relatar c o m o a Inguchétia
estava florescendo e lhe contar que 9 8 % do eleitorado haviam vota-
do " e m você,VladimirVladimirovitch".
A c o n s e q ü ê n c i a direta da c o l o c a ç ã o , na presidência da
Inguchétia, de um general do FSB q u e havia trabalhado para a
KGB soviética foi a organização da ilegalidade em grande escala e
sancionada pelo Estado. Ziazikov não é um fiador da lei mais digno
de confiança do que Putin, fato que, aliás, frustrou as esperanças de
muitas pessoas na Inguchétia, q u e estavam cansadas de desordem.
Em vez disso, Ziazikov tem presidido um afastamento da d e m o c r a -
cia, não apenas no sentido da autocracia, mas do t e r r o r i s m o de
Estado e da barbárie medieval.
Fui até meus colegas jornalistas locais para saber c o m o funcio-
na o sistema de censura da mídia nessas regiões distantes da a d m i -
nistração de P u t i n em Moscou. Por que, p o r exemplo, não há na
mídia local u m a só palavra a respeito das execuções extrajudiciais,
quando ocultar o problema só p o d e fazê-lo piorar?
Essa discussão mostrou-se difícil. Em primeiro lugar, n i n g u é m
falaria oficialmente. Em segundo, só p o d í a m o s falar em um carro,
longe de olhares curiosos, c o m o nos dias da U n i ã o Soviética. A p e s -
soa c o m q u e m falei vivia um estado de profunda depressão, q u e
Parece ser universal. Era o subeditor-chefe de um dos dois jornais
publicados na Inguchétia.
Por q u e todas essas precauções?", perguntei.
Se d e s c o b r i r e m que abri a b o c a , n ã o conseguirei e m p r e g o
nem de motorista de trator", respondeu ele, um h o m e m grisalho,
inteligente, um jornalista profissional.
130 A N N A POLITKOVSKAYA

"O q u e aconteceria se você escrevesse a respeito dos raptos, da


corrupção, dos ' 9 8 % ' de Putin? A respeito das fraudes nas urnas nas
últimas eleições parlamentares em d e z e m b r o ? "
"Se eu escrevesse sobre isso, seria demitido q u a n d o a matéria
chegasse aos censores. Artigos desse gênero simplesmente não são
p u b l i c a d o s e eu seria incapaz de e n c o n t r a r trabalho no futuro.
M e u s parentes t a m b é m p e r d e r i a m seus empregos, apesar de eles
nada t e r e m a ver c o m jornalismo."
M e u colega c o n t o u - m e do m e c a n i s m o de censura que apoia o
m i t o da "estabilização da Inguchétia". Cada coluna dos jornais é
lida pessoalmente, no estágio de prova, p o r Issa Merjoev, secretário
de Imprensa do presidente. Essa é a lei. Ele elimina tudo que c o n -
sidera prejudicial, qualquer coisa que possa prejudicar o "processo
de estabilização". Qualquer tipo de informação negativa é censura-
da caso se relacione, mesmo indiretamente, aos atuais ocupantes do
p o d e r . N ã o se p o d e p r o p o r artigos sobre c o r r u p ç ã o se h o u v e r
parentes de Ziazikov envolvidos. Sobre a guerra na Tchetchênia, só
se p o d e escrever sobre as mortes de combatentes tchetchenos e a
" r e a c o m o d a ç ã o voluntária de refugiados". Os esquadrões da m o r t e
são tabu, assim c o m o as atividades extrajudiciais.
O m e s m o vale para o rádio e a televisão. Merjoev verifica pes-
soalmente os programas do ângulo político e verifica antecipada-
m e n t e todos os tópicos a serem cobertos.
Mas p ô r quê? As pessoas não t ê m ar para respirar, elas estão em
c o m p l e t o desespero. Q u e m p o d e q u e r e r aqui u m a repetição d o
cenário tchetcheno? N i n g u é m na Inguchétia, n e m m e s m o
Ziazikov. Ele não é c o m o Ruslan Auchev, seu competente anteces-
sor. Se h o u v e r uma crise, ele estará completamente perdido. P o r é m ,
u m a outra Tchetchênia pode ser algo de que Moscou necessita e
Ziazikov d e p e n d e inteiramente de M o s c o u . Sua ascensão à P r e -
sidência foi acertada por M o s c o u e o Kremlin impôs duas c o n d i -
ções, das quais as pessoas na Inguchétia sabem: que ele não crie o b -
jeções caso a "operação antiterrorismo" seja estendida à Inguchétia
e que garanta a lealdade de seu pessoal. Em segundo lugar, que ele
não exija a devolução da região de Prigorodni à Inguchétia pela
Ossétia do N o r t e . E Ziazikov faz sua parte, ele e seus cúmplices. Se
permitissem à mídia refletir a realidade, em p o u c o t e m p o ficaria
claro q u e as pessoas querem a correta demarcação da fronteira c o m
UM DIÁRIO RUSSO 131

a Tchetchênia e a devolução da região de Prigorodni, que lhes foi


tirada q u a n d o Stalin deportou toda a população da Inguchétia para
o Cazaquistão em 1944.
"É p o r isso que estamos sob pressão", diz o jornalista. "Eles
precisam dar a impressão de que na Inguchétia todos estão felizes
com a política do Kremlin e c o m o que Ziazikov está fazendo."
"Vocês p o d e m desobedecer a Merjoev?"
"Até hoje, n e n h u m dos editores-chefes ousou tentar."
" Q u e m p o d e resistir?"
" N i n g u é m . Só se p o d e resistir d e i x a n d o a I n g u c h é t i a o u ,
melhor ainda, emigrando da Rússia."
" C o m o v o c ê descreveria o q u e está a c o n t e c e n d o h o j e na
Inguchétia?"
"O sistema soviético c o m m u i t o d e r r a m a m e n t o de sangue."
É claro q u e a estabilidade soviética t a m b é m era u m a grande
realização — os caixões c o n t e n d o soldados mortos no Afeganistão
não p o d i a m ser identificados c o m o tais; dissidentes eram aprisiona-
dos em campos de trabalho e em hospitais psiquiátricos; 99,9% da
população votavam a favor de t u d o ; os chefes do partido t e m i a m
somente a Comissão de C o n t r o l e do Partido; os b e m treinados
artistas do cinema faziam filmes politicamente corretos em q u e
todos t i n h a m u m a fé inabalável no futuro. O Ocidente deu apoio
financeiro a Brejnev porque não queria que tudo se esfacelasse. Essa
era a realidade, disfarçada de estabilidade. Agora, em abril de 2004,
estamos de volta ao p o n t o de partida. A realidade é apresentada para
dar a impressão de estabilidade, tanto na Inguchétia quanto em toda
a Rússia. Mais u m a vez, o O c i d e n t e nos lança uma crosta. Sabemos
tudo a respeito de recorrência eterna.
Muitas vezes, me pergunto p o r q u e nosso povo se assusta tanto
com qualquer indicação de u m a ameaça de repressão. Se o povo
protesta, é só anonimamente, e x p l o d i n d o u m a Mercedes presiden-
cial e não de forma civilizada e aberta, pela oposição no Parlamen-
to ou exigindo que sejam anulados os resultados de u m a eleição
fraudulenta.
Só p o d e ser u m a questão de tradição. A tradição russa é de
^ c a p a c i d a d e para planejar e realizar o trabalho árduo de oposição
S1
stemática. Se vamos fazer alguma coisa, é preciso que possamos fa-
132 A N N A POLITKOVSKAY

zê-la aqui e agora e depois disso a vida estará ordenada. C o m o não


é assim que as coisas funcionam, a vida não é ordenada.
T a m b é m me pergunto p o r que Ziazikov, c o m o P u t i n (porque
Z i a z i k o v é um m e r o c l o n e ) , n ã o p o d e fazer nada de m a n e i r a
decente, h u m a n a , democrática. Por quê, para permanecer no poder,
eles precisam mentir, torcer e distorcer, apoiar funcionários c o r r u p -
tos, evitar contato pessoal c o m seu p r ó p r i o povo, t e m ê - l o e, em
conseqüência disso, não ter a m o r p o r ele?
Penso que o problema subjacente deve ser que eles não foram
a d e q u a d a m e n t e preparados para a liderança. Eles são indicados para
a Presidência à maneira soviética, quase por acaso. O Partido dá suas
o r d e n s e o ávido J o v e m C o m u n i s t a r e s p o n d e : " S i m , c a m a r a d a
comissário!" Durante algum t e m p o , é provável que ele goste de ser
p r e s i d e n t e , mas, depois da posse e de todas as c o m e m o r a ç õ e s ,
depois dos fogos de artifício, ele se vê diante do trabalho rotineiro
de ser presidente: dirigir a economia, manter as tubulações de água
e as estradas, enfrentar terroristas, guerras e funcionários desones-
tos. E q u a n d o ele se dá conta de q u e é incapaz de fazer tudo, exce-
to franzir as sobrancelhas c o m ar severo, fingir ser Tallairand, guar-
dar silêncio e atribuir a culpa de seus fracassos aos inimigos que
estão à espreita em todos os cantos.
Ziazikov, na Inguchétia, copia seu chefão em M o s c o u em tudo,
mas p a r t i c u l a r m e n t e em sua a b o r d a g e m f u n d a m e n t a l . O q u e
importa não é resolver os problemas, mas controlar o que é dito na
televisão; não a realidade, mas a virtualidade; a censura c o m o forma
de evitar assuntos difíceis. A desvantagem é que, devido à censura
ubíqua e à constante duplicidade, não se t e m n e n h u m a oposição
visível c o m a qual debater as questões diariamente. O n d e estão as
vozes discordantes, que p o d e m criticar e trazer idéias alternativas?
N ã o é possível o u v i - l o s , p o r q u e eles n ã o existem. N e m e m
M o s c o u , n e m na Inguchétia.
D u r a n t e m u i t o t e m p o , os únicos opositores na república de
Ziazikov e r a m Musa O z d o e v e algumas pessoas próximas a ele.
Musa c h e g o u a pertencer à equipe de Ziazikov e foi seu conselhei-
ro p o r algum tempo.
Musa O z d o e v tentou questionar os resultados das eleições para
a D u m a . No tribunal, apresentou registros de distritos eleitorais em
que votos haviam sido escritos no registro, uma estranha lista de
u M DIÁRIO RUSSO 133

eleitores na qual pessoas c o m n o m e s diferentes tinham o m e s m o


passaporte, ou em que u m a pessoa votou várias vezes u s a n d o o
mesmo n o m e , mas passaportes diferentes. Aqui estão alguns e x e m -
plos que explicam c o m o a oposição foi "derrotada" nas eleições de
dezembro e c o m o o partido de Putin, o R U , conseguiu sua impres-
sionante vitória.
A Seção Eleitoral 68 fica na aldeia de Barsuki, nos arredores de
Nazran, a terra natal de M u r a t Ziazikov. E lá que vivem seus paren-
tes e é lá que, na mais alta colina, está sendo construído o "Castelo
de Alface" do presidente. E um grande edifício desajeitado de aspec-
to feudal, mas a cor verde funciona surpreendentemente b e m e espe-
ra-se que ele se m u d e logo para lá. Naturalmente, de acordo c o m as
piores tradições caucasianas, os supervisores da votação nas seções
eleitorais de Barsuki eram parentes de Ziazikov, seus vassalos, traba-
lhadores na construção do castelo, fornecedores e assessores.
Estudei o registro eleitoral, que havia sido oficialmente certifi-
cado e trazia todas as assinaturas e selos exigidos. Ele nos diz q u e m
r e c e b e u cédulas eleitorais em 7 de d e z e m b r o na S e ç ã o 6 8 .
C o n s t a t a m o s q u e pelo m e n o s três cidadãos diferentes v o t a r a m
u s a n d o o passaporte n° 26 0 1 0 1 0 6 8 3 : T i m u r K h a m z a t o v i t c h
Balkhaev, da rua A l k h a n - T c h u r t s k a i a , 15;Tamerlan M a g o m e d o -
vitch D z o r t o v , da rua Z i a z i k o v (de o u t r a família), e Beslan
Bagaudinovitch Galgoev, da rua Kortoev, 5.
Mais uma vez, o mesmo passaporte n° 26 01032665 aparente-
mente pertence a quatro cidadãos de Barsuki, três h o m e n s e u m a
mulher.Três deles vivem na ruaYujnaia, 13. Há dezenas de exemplos
de votação, dupla, tripla e quádrupla, usando o mesmo passaporte. A
seguir, encontramos uma coluna de assinaturas idênticas em sucessão,
pretendendo certificar as identidades de diferentes pessoas.
C o m p a r a n d o os registros de Barsuki para as eleições de 7 de
dezembro e 14 de março (quando P u t i n foi eleito), constatamos
que a mesma pessoa t e m dois passaportes. No registro das eleições
parlamentares de 7 de dezembro, o passaporte n° 26 0 2 0 9 8 8 5 0 foi
apresentado p o r A k h m e d Tagirovitch Ajigov, da fazenda de T i b i -
Khi (parte de Barsuki), mas, em 14 de março, a mesma pessoa votou
usando o passaporte n° 26 0 3 3 5 6 5 6 4 . Então, q u e m é Ajigov? Ele
existe? Foi impossível localizá-lo em Tibi-Khi, um lugarejo o n d e
c
° d o s se c o n h e c e m . N i n g u é m jamais havia ouvido falar dele.
134 A N N A POLITKOVSKAYA

Há muitos Ajigovs, p o r q u e as comissões eleitorais foram desa-


vergonhadamente criativas em seus esforços para garantir o resulta-
do correto. Porém, o resultado de t u d o isso não é engraçado: p r o -
v o c o u a queda não só da democracia russa, mas t a m b é m da socie-
dade russa. Na Inguchétia, Musa O z d o e v protestou contra isso e,
em cada cidade, p o d e m ser encontrados um ou dois Musa Ozdoev.
Em geral, eles são considerados loucos. As pessoas mais sensatas lhes
dão tapinhas nas costas e dizem: "Vá em frente, faça u m a tentativa.
Vamos observar e ver o que acontece."
Se o maluco da cidade de repente matasse o dragão, milhões se
reuniriam para dividir sua glória e gozar os frutos de sua vitória.
Este é um velho e deplorável c o s t u m e soviético: não faça nada,
fique parado no lodo da m a r g e m do rio e espere u m a nova e mara-
vilhosa vida flutuar até você.
Mas, voltando à fraude eleitoral, p o r que ela foi necessária?
A resposta é simples: p o r q u e um n ú m e r o insuficiente de pes-
soas votou realmente em P u t i n em 14 de março ou no RU em 7
de dezembro. O Ocidente acredita nos resultados, mas as porcenta-
gens estão infladas. Os 9 8 % da Inguchétia apenas nos m o s t r a m o
q u a n t o Z i a z i k o v estava d e s e s p e r a d o para m o s t r a r s e r v i ç o ao
Kremlin.
Foi o que aconteceu. Foi por isso que os cúmplices de Ziazikov
p u s e r a m pessoas de joelhos, torceram os braços de m e m b r o s das
comissões eleitorais, perverteram, ameaçaram, torturaram e enreda-
ram pessoas numa conspiração de mentiras. E elas cooperaram.
E m sua m a i o r i a , o s m e m b r o s d e comissões eleitorais c o m
q u e m consegui falar disseram que estavam c o m medo. Eles tinham
famílias que podiam ser raptadas. Era mais fácil acrescentar votos
falsos do q u e perder entes queridos. Q u e m p o d e dizer q u e não
estamos r e t o r n a n d o aos m é t o d o s stalinistas c o m Putin? Há u m a
m e m ó r i a hereditária em ação, lembrando as pessoas c o m o devem
viver, se quiserem sobreviver. N a d e m c o m a maré.
T o d o esse sistema de juízes desonestos, eleições fraudulentas,
presidentes que t ê m somente desprezo pelas necessidades do seu
povo só p o d e funcionar se n i n g u é m protestar. Essa é a arma secre-
ta do K r e m l i n e a mais c h o c a n t e característica da vida atual na
Rússia. Este é o segredo da genialidade de Surkov: apatia, baseada
na certeza, quase universal na população, de que as autoridades do
UM DIÁRIO RUSSO 135

Estado prepararão tudo, inclusive as eleições, para seu p r ó p r i o p r o -


veito. As pessoas só reagem q u a n d o alguma coisa as afeta pessoal-
m e n t e : o velho juiz Bóris O z d o e v , q u a n d o seu filho R a s h i d foi
seqüestrado, assim c o m o a família Mutsolgov. Até então, se minha
cabana está segura, p o r q u e v o u me preocupar? N ó s saímos do
socialismo c o m o pessoas totalmente centradas em nós mesmas.
E esse é o p a n o de f u n d o para a tentativa de assassinato de
Ziazikov.

7 de a b r i l

Hoje, Igor Sutiagin, perito militar e acadêmico no Instituto E U A -


Canadá da Academia Russa de Ciências, autor de centenas de arti-
gos sobre armas estratégicas e desarmamento, foi sentenciado a 15
anos de prisão por "trair a Pátria". Putin cuidou pessoalmente do
caso quando era diretor do FSB.
Sutiagin foi preso em o u t u b r o de 1999, acusado de passar
informações secretas a serviços de inteligência estrangeiros. Na ver-
dade, seu trabalho consistia exclusivamente em analisar informa-
ções à disposição do público e chegar a conclusões c o m base em
fontes não classificadas. Ele n e m m e s m o tinha acesso a segredos de
Estado. O FSB só d e m o n s t r o u que, pelo uso de dados à disposição
do público, Sutiagin c h e g o u a conclusões secretas. Foi obviamente
um julgamento preparado para fazer de u m a pessoa um exemplo
para as outras.
"Fazer um e x e m p l o " está se t o r n a n d o cada vez mais c o m u m
nos tribunais c o m o demonstração de lealdade ao Kremlin. C o m o o
instigador do caso Sutiagin está agora no Kremlin c o m o presiden-
te da Rússia, foi impossível não o considerar culpado. Além disso, o
caso Sutiagin está sendo usado para instilar na m e n t e do público o
conceito de "repressões justificáveis", de que as autoridades sabem
melhor que n i n g u é m q u e m é o inimigo e, assim sendo, t ê m o direi-
to de perseguir determinados indivíduos m e s m o q u e seus crimes
não sejam provados.
E elas o fizeram b e m . A sociedade aceitou a idéia das repressões
justificadas. Além dos defensores dos direitos h u m a n o s , poucos vie-
ram eni auxílio a Sutiagin. A l g u m t e m p o atrás, o público exigiu
u
4 e outro "espião", o oficial naval Grigori Pasko, fosse libertado,
136 A N N A POLITKOVSKAYA

mas ele supostamente respondeu, de seu confinamento solitário,


que não queria receber clemência. Porém agora, c o m o veredicto
de culpado em seu julgamento-espetáculo tipicamente stalinista, o
FSB venceu a batalha pelo p r ó p r i o futuro.
O caso Sutiagin revelou outro dos nossos problemas, o julga-
m e n t o p o r um j ú r i . Na Rússia, t u d o que é civilizado parece se tor-
nar subvertido ou pervertido, transformando-se em seu oposto.
N o s s o s j ú r i s são c o m p o s t o s p o r cidadãos c o m u n s q u e n ã o s e
i m p o r t a m em ficar sem pão desde q u e os " i n i m i g o s da P á t r i a "
sejam confinados p o r m u i t o t e m p o . Foi o j u i z M i r o n o v a q u e m
d e t e r m i n o u a duração da sentença, mas foi o j ú r i que considerou
S u t i a g i n c u l p a d o , apesar da total ausência de provas. P o r quê?
P o r q u e está gravado nos cérebros de todos que a K G B e a FSB
sempre estão certas. O j ú r i de Sutiagin demonstrou até q u e p o n t o ,
c o m o sociedade, ainda t r a z e m o s c o n o s c o u m m o d o d e pensar
repressivo. N ã o aprendemos nada. A crueldade é mais respeitada do
q u e a misericórdia e a compreensão. E melhor derrubar a floresta
do q u e se preocupar c o m as lascas de madeira. É m e l h o r condenar
do que refletir.
O C o m i t ê 2008 d e n u n c i o u o veredicto: "O j u l g a m e n t o p o r
j ú r i está se tornando p u r a m e n t e ornamental, usado apenas para dis-
tinguir m i n i m a m e n t e a natureza profundamente antidemocrática
da m á q u i n a de repressão do Estado. O veredicto injusto de hoje é
u m a t a q u e das a u t o r i d a d e s à p r ó p r i a fundação d e u m sistema
democrático constitucional."
Isso não é verdade. E u m a pequena mentira democrática típi-
ca. O j ú r i não é um filtro: o j ú r i é o problema. O j ú r i somos nós.
A D u m a aprovou u m a lei impressionante de tão draconiana
p r o i b i n d o todas as reuniões de protesto nas imediações de institui-
ções do Estado. Isto é, elas p o d e r ã o ser realizadas s o m e n t e o n d e
n i n g u é m , exceto os participantes, irá ouvi-los ou vê-los. Entre os
q u e votaram a favor da lei estão o ex-líder sindical Andrei Isaev, que
mais de u m a vez liderou pessoas até as praças em meados dos anos
90, mas agora tornou-se um atarefado funcionário do RU e intér-
p r e t e das idéias de P u t i n na televisão. Em c o n t r a s t e , Alexei
Kondaurov, deputado do Partido Comunista e antigo general da
K G B , votou contra, descrevendo a lei c o m o " u m ataque aos direi-
tos e liberdades dos cidadãos". O Partido Comunista está se tor-
u M DIÁRIO RUSSO 137

nando o mais progressista de todos. C o m o é viver na Rússia entre


a Scüla de Putin e a Charibdis dos comunistas?
(É interessante o fato de P u t i n ter esperado pelo m o m e n t o
certo e então se manifestado sobre a lei contra reuniões de protes-
to "Isso é ir longe demais! Precisamos de algo mais brando." A D u -
ma prontamente reformulou e abrandou a lei, t u d o ao vivo na tele-
visão, sob os olhos de toda a nação. Mais u m a vez é p e r m i t i d o rea-
lizar reuniões perto de instituições do Estado e em praças centrais.)

12 de abril

Trabalho na Novaya gazeta e publiquei imagens de um vídeo feito


em março de 2000 por um soldado russo na Tchetchênia, que de
algum m o d o chegou às minhas mãos.
O vídeo mostra combatentes tchetchenos que t i n h a m se ren-
dido. O ataque à aldeia de Komsomolskoio em fevereiro-março de
2004 foi, depois do cerco a Grozni no inverno de 1999-2000, a
segunda maior operação da Segunda Guerra T c h e t c h e n a . Naquela
ocasião, retirando-se de Grozni, o comandante de c a m p o Ruslan
Gelaev liderou mais de 1.500 h o m e n s até sua aldeia natal de
Komsomolskoio.
Teve início um cerco terrível, usando todos os tipos de t e c n o -
logias militares e levando à m o r t e a maioria das pessoas na aldeia.
Q u a n d o Komsomolskoio estava quase que completamente destruí-
da, Gelaev e alguns de seus h o m e n s escaparam m i l a g r o s a m e n t e
através das linhas russas. Aqueles que restaram receberam a p r o m e s -
sa de anistia, caso se rendessem; 72 h o m e n s , c o m o a n u n c i o u oficial-
m e n t e o c o m a n d o e m m a r ç o d e 2 0 0 0 , r e c e b e r a m anistia d o
Governo Federal.
Eles foram "anistiados", mas presos logo em seguida. Desde
e
n t a o , somente as famílias de três deles sabem de seu paradeiro: os
outros não voltaram. O v í d e o mostra esses h o m e n s "anistiados"
sendo transferidos de dois c a m i n h õ e s de prisioneiros para um
V a
g a o de carga na estação tchetchena de Tchervlenaia. A transfe-
rencia foi registrada p o r oficiais de u m a unidade d e O p e r a ç õ e s
speciais do Ministério da Justiça russo.
v
£• í d e o parece um filme sobre um campo de concentração
Cls
t a . E precisamente assim que os guardas se c o m p o r t a m , c o m
138 A N N A POLITKOVSKAYA

seus fuzis de assalto prontos, alinhados numa colina, no sopé da qual


espera o vagão. Os soldados m a n t ê m suas armas apontadas para
aqueles que estão sendo retirados dos caminhões. Entre eles, vemos
duas mulheres. Elas estão vestidas e, ao contrário dos h o m e n s , não
foram espancadas. São imediatamente separadas.
Os restantes, h o m e n s e rapazes (um deles t e m claramente 15
ou 16 anos), são j o g a d o s dos caminhões ou p u l a m para o chão.
Todos estão em péssima forma, alguns são carregados pelos compa-
nheiros.Todos estão feridos. Alguns sem pernas, outros sem braços;
a orelha de um está pendurada, quase cortada. P o d e m - s e ouvir os
comentários dos soldados fora de cena: "Veja, não arrancaram direi-
to a orelha daquele." M u i t o s estão completamente nus, descalços e
cobertos de sangue. Suas roupas e seus calçados são atirados separa-
d a m e n t e dos veículos. Eles estão completamente exaustos. Alguns
n ã o e n t e n d e m o q u e q u e r e m deles e t r o p e ç a m em confusão.
Alguns enlouqueceram.
No vídeo, os soldados os espancam de forma rotineira e auto-
mática, c o m o se o fizessem só por força de hábito. N ã o há médicos
à vista. Alguns dos combatentes mais fortes r e c e b e m a o r d e m de
tirar dos caminhões os corpos dos que m o r r e r a m durante a trans-
ferência e arrastá-los para um lado. No final do vídeo, há u m a m o n -
tanha de cadáveres dos prisioneiros anistiados ao lado dos trilhos.
Os federais não t o c a m fisicamente os prisioneiros, usando
s o m e n t e suas botas e os canos dos fuzis. Eles estão simplesmente
revoltados c o m os prisioneiros. Usam as pontas das botas para virar os
rostos dos mortos para olhar para eles; ao que parece, p o r curiosida-
de. N i n g u é m está anotando nada, n e m registrando as mortes. N e -
n h u m d o c u m e n t o está sendo compilado. No fim, há u m a discussão
entre os federais, acompanhada por risos: "Eles disseram que eram
72, mas temos 74.Tudo b e m , dois de reserva."
O que aconteceu q u a n d o foram publicadas as imagens desse
registro do nosso Abu Ghraib? Nada. N i n g u é m m e x e u u m a palha,
n e m o p ú b l i c o , n e m a mídia, n e m o G a b i n e t e do P r o c u r a d o r .
M u i t o s jornalistas estrangeiros me tomaram o vídeo emprestado e,
na Polônia, a manchete sobre a foto era "O Abu Ghraib R u s s o " . Na
Rússia, houve silêncio.
O q u e a c o n t e c e na I n g u c h é t i a reflete o q u e a c o n t e c e em
M o s c o u . Depois da reeleição de Putin, houve um c o m p l e t o expur-
U M DIÁRIO RUSSO 139

go de fontes de informações, refletindo o expurgo da arena políti-


ca Agora q u e m não quiser saber não precisará saber. A maioria pre-
fere assim.

14 de abril
IMa Ucrânia, o primeiro-ministro Ianukovitch foi declarado suces-
sor do presidente K u t c h m a . Será o candidato das autoridades na
eleição presidencial. Será q u e P u t i n realmente apoiará Ianukovitch?
N ã o dá para acreditar.
O advogado Stanislav Markelov foi atacado à m e i a - n o i t e no
metrô de Moscou p o r cinco jovens. Eles gritavam: "Você fez dis-
cursos demais!" e "Você provocou isto" e n q u a n t o o espancavam,
roubaram seus d o c u m e n t o s e sua carteira de advogado, ignorando
os bens de valor.
Markelov é um advogado j o v e m e muito ativo. No caso contra
o ex-coronel Budanov, ele defendeu os interesses da família tchet-
chena de Elsa Kungaeva, estuprada e morta p o r Budanov. Por isso,
ficou sujeito a ataques constantes de "patriotas". Ele atuou na acu-
sação d o " C a s o d o C a d e t e " c o n t r a u m s o l d a d o federal, Sergei
Lapin, cujo c o d i n o m e na T c h e t c h ê n i a era "O C a d e t e " . Pela p r i -
meira vez em nossa história recente, um oficial foi c o n d e n a d o a 12
anos de prisão pelo r a p t o de um t c h e t c h e n o em G r o z n i , q u e a
seguir "desapareceu".
A polícia recusou-se a abrir um caso criminal para o ataque a
Markelov. Seus agressores e q u e m o r d e n o u o ataque c o n t i n u a m
desconhecidos.

16 de abril
Há novas evidências sobre o rapto de Rashid Ozdoev, procurador
assistente da Inguchétia, p o u c o antes da reeleição de Putin.
Foi enviada u m a carta aVladimir Ustinov, procurador-geral da
Rússia, por Igor O n i s c h e n k o . Ela foi recebida e registrada c o m o
b e m 1556 pela Secretaria do Gabinete do Procurador-geral para o
distrito Federal Sul em 16 de abril de 2004.
14M A N N A POLITKOVSKAYA

"Esta carta l h e foi enviada p o r um a g e n t e do FSB


R e g i o n a l de Stavropol. Eu vinha trabalhando para o FSB da
Inguchétia n u m a missão especial. Ela t e r m i n o u e voltei para
casa. Trabalhei c o m o agente do FSB p o r quase 12 anos, mas
nunca imaginei q u e ficaria tão atormentado.
"Koriakov, diretor do FSB da Inguchétia, é u m a pessoa
terrível para t e r m o s em nosso sistema, e m b o r a ele afirme ter
sido enviado para esse trabalho pessoalmente p o r Patruchev (o
chefe nacional do FSB) e Putin. Esse parasita desprezível des-
trói pessoas exclusivamente porque são inguches ou tchetche-
nas. Ele tem algum ressentimento e as odeia.
"Koriakov forçou a m i m e a meus colegas — havia cinco de
nós trabalhando para ele - a espancar sistematicamente todas as
pessoas que prendíamos, fingindo ser agentes do R O S h . Tudo
era planejado: roupas especiais, máscaras, d o c u m e n t o s falsos,
camuflagem, veículos (que pertenciam a pessoas presas, mas
c o m as placas trocadas), passes especiais. E m b o r a fingíssemos
levar as pessoas para fora (de Nazran), n o r m a l m e n t e dávamos
u m a volta e retornávamos ao nosso prédio em outros carros,
para espancá-las.Tudo isso era feito à noite. D u r a n t e o dia, nós
dormíamos. Koriakov precisava reportar a M o s c o u que o tra-
balho estava prosseguindo e justificar a patente de general, que
recebera recentemente. Para isso, havia um plano exigindo o
processamento de pelo menos cinco pessoas p o r semana. No
início de 2003, q u a n d o eu tinha acabado de chegar, nós pren-
d í a m o s pessoas q u e r e a l m e n t e t i n h a m a l g u m a culpa. Mas,
depois que Koriakov se irritou c o m o que chamava de " a q u e -
le p r o c u r a d o r " , c o m e ç a m o s a pegar pessoas s e m m o t i v o
n e n h u m , só pela sua aparência. Koriakov dizia q u e não fazia
diferença, eram todas piolhos. Pessoalmente, Sergei e eu inca-
pacitamos mais de cinqüenta pessoas. Enterramos cerca de 35.
" H o j e retornei à m i n h a casa. Fui r e c o m p e n s a d o p o r um
serviço impecável devido à última operação para eliminar o
procurador local, p o r q u e ele possuía materiais c o m p r o m e t e d o -
res sobre Koriakov. Destruí a carteira de identidade e a arma do
procurador e quebrei todos os seus m e m b r o s . Naquela noite,
Koriakov deu ordens para que pessoas diferentes se livrassem
dele.
u M DIÁRIO RUSSO 141

"Sou culpado e estou envergonhado. É a pura verdade.


Igor N. O n i s h c h e n k o . "

(Mesmo depois da publicação desse d o c u m e n t o monstruoso,


nada m u d o u . N ã o h o u v e p r o t e s t o p o p u l a r e o G a b i n e t e do
Procurador limitou-se a deixar que ele fosse esquecido.)

22-23 de abril
R e u n i ã o entre K u t c h m a e P u t i n na C r i m é i a . E o m o m e n t o em
que Putin decide se apoia ou não Ianukovitch. Até o m o m e n t o ,
parece que não irá fazê-lo, graças a Deus. Ianukovitch não foi c o n -
vidado para a reunião, e m b o r a esperasse sê-lo o t e m p o todo.

28 de abril
Às 11:20, na rua Staraia Basmannaia, em M o s c o u , um pistoleiro
profissional atirou em G e o r g i Tal à queima-roupa.Tal era um filho-
te do n i n h o de Ieltsin e havia sido, de 1997 a 2 0 0 1 , diretor do
Serviço Federal para R e c u p e r a ç ã o Financeira e Falências. Ele m o r -
reu no hospital esta noite, sem recuperar a consciência. Seu assassi-
nato faz parte de um processo de destruição dos envolvidos na redis-
tribuição dos principais ativos industriais da Rússia por meio de um
sistema organizado de falência de empresas. D u r a n t e os anos de Tal
como diretor, houve u m a realocação de propriedades por este meio,
principalmente nos setores de petróleo e alumínio. C o m Putin, m u i -
tas falências criminosas c o m e ç a r a m a ser investigadas. Esse é um
componente no caso da Ukos. O objetivo das investigações é realizar
uma nova redistribuição em favor de partidários de Putin.
Na verdade, o sistema de falências no governo Ieltsin era per-
feitamente legal e foi explorado p o r todos aqueles que são hoje as
pessoas mais ricas do país, os oligarcas que fizeram suas fortunas
com Ieltsin. Putin detesta a maioria deles. Poucas pessoas duvidam
de que Tal tenha sido assassinado para evitar q u e falasse dos princí-
pios sob os quais operava o Serviço de Falências. Ele simplesmente
sabia demais daqueles q u e hoje são muito influentes. O assassinato
de especialistas em insolvências p o r pistoleiros fazia parte do ramo
de falências na Rússia.
142 A N N A POLITKOVSKAYA

Tal era um profissional importante no gerenciamento dos bens


de empresas falidas. Depois de 2002, passou a chefiar uma parceria
sem fins lucrativos denominada Organização Auto-regulamentada
Inter-regional de Administradores Profissionais de Insolvencias. A
organização existia sob a égide da U n i ã o Russa de Industriais e
Empresários e aconselhava os m e m b r o s do c o n s e l h o da U R I E
sobre q u e m deveria falir e quando, para que a empresa pudesse ser
posta sob sua a d m i n i s t r a ç ã o . Estes são nossos oligarcas: O l e g
Deripaska,Vladimir Potanin, Alexei Mordachev, Mikhail Fridman e
outros. Porém, é improvável que a m o r t e de Tal fosse do interesse
dessas pessoas.
O assassinato não causou surpresa na sua própria organização,
na U R I E , entre as grandes empresas ou na burocracia do governo.
A população em geral ficou ainda menos surpresa. E foi excelente.

Fim de abril
Passamos por abril c o m a sensação de estar constantemente enga-
nados, u m a sensação q u e satisfez a muitas pessoas, q u e queriam
exatamente isso.
T a m b é m vivemos a expectativa de outra afronta, arranjada para
7 de maio: a posse de Putin para o segundo mandato. N ã o se podia
dizer exatamente q u e o ar estava cheio de expectativa. A maioria da
população, na verdade, não se interessa pela c e r i m ô n i a de posse,
n e m quer saber se ela acontece ou não.
Na véspera de eventos oficiais i m p o r t a n t e s , é tradicional a
Rússia fazer u m a pausa e refletir sobre o futuro. Seria de se esperar
q u e u m a posse levasse os principais participantes políticos a nos
contar quais são seus planos para o período entre hoje e 2007.
N ã o há nada disso. O silêncio total da oposição nos diz que ela
d e s a b o u . O fracasso para gerar q u a l q u e r n o v o m o v i m e n t o nos
conta que a "velha" oposição não estará em condições de lutar por
assentos na D u m a em 2007, n e m de indicar candidatos presiden-
ciais dignos de crédito em 2008. Também n i n g u é m acredita numa
revolução.
A T s I O M , unidade de pesquisa social do Kremlin, perguntou
ao público: "Se houvesse manifestações de massa em sua região em
UM DIÁRIO RUSSO 143

defesa dos seus direitos, você participaria?" S o m e n t e 2 5 % respon-


deram "sim". Sessenta e seis por cento disseram " n ã o " . N ã o tere-
mos uma revolução tão cedo.

7 de maio
Posse de Putin no Kremlin. U m a demonstração do poder autocrá-
tico e da magnificência de nosso Primeiro Cidadão, de sua separa-
ção e do seu distanciamento.
Até m e s m o da própria esposa. D u r a n t e a transmissão ao vivo
pela televisão, os comentaristas chegaram a dizer: "Entre os convi-
dados para a c e r i m ô n i a solene da posse do presidente Putin está a
esposa de Vladimir Vladimirovitch, Liudmila Putina." É risível, é
claro, e as pessoas riram, mas não c o m muita alegria. Durante toda
a cerimônia, ela p e r m a n e c e u na áreaVIP, atrás de u m a cerca ao lado
da qual Putin c a m i n h o u pelo tapete v e r m e l h o .
Ele c h e g o u só, passou pela m u l h e r a c a m i n h o do p ó d i o e
depois voltou à Varanda do Czar para assistir à parada militar. O
tempo todo sozinho. N a d a de amigos, n e m família. O h o m e m está
louco. Esse é um sinal seguro de que ele não confia em ninguém,
uma característica fundamental da regra de Putin. A conclusão é a
certeza de que s o m e n t e ele, Putin, sabe o q u e é m e l h o r para o país.
Na realidade, nós não sabemos c o m o é a posse de um líder em
outros países. E u m a ocasião de c o m e m o r a ç ã o popular? Ou será
que é, c o m o na Rússia, meramente um embaraço?

9 de maio
A k h m e d - h a d j i Kadirov, o p r i n c i p a l a p a d r i n h a d o de P u t i n na
Tchetchênia, foi assassinado. Ele havia c o m p a r e c i d o à posse de
Putin e o n t e m p e g o u um avião de volta à Tchetchênia, sem ocul-
tar seu desprazer c o m o lugar a ele destinado pela equipe de Putin.
Ele ficou no segundo salão, não nas primeiras filas dos convidados
mais importantes, e considerou isso um p r e o c u p a n t e esfriamento
do
Primeiro Cidadão e m relação a ele.
Ele tinha b o n s motivos para ficar nervoso. P u t i n era sua única
es
perança de p o d e r e sobrevivência. Kadirov havia presidido o p r o -
!44 A N N A POLITKOVSKAYA

cesso de "tchetchenização" do conflito na sua república, o início de


u m a guerra civil entre tchetchenos, c o m o Kremlin apoiando os
" b o n s " , que se alinham c o m Kadirov e Putin, contra aqueles que
" n ã o estão do nosso l a d o " e devem ser exterminados.
Kadirov foi m o r t o enquanto assistia à parada do Dia da Vitória
no Estádio do D í n a m o em Grozni. O dispositivo explosivo foi
concretado nos suportes sob a tribuna principal.

H o u v e boatos constantes de que Kadirov foi m o r t o p o r "nossa


gente". Seu esquema de segurança nos últimos meses de sua vida
indicava q u e n i n g u é m , a não ser "nossa g e n t e " , p o d e r i a chegar
perto dele. Sempre q u e aparecia em público, t u d o era isolado c o m
muita antecedência e verificado repetidamente em busca de explo-
sivos. Os responsáveis pelo assassinato de Kadirov n u n c a foram
encontrados, i n d e p e n d e n t e m e n t e da freqüência c o m a qual nos
mostravam na televisão o quanto todos estavam se esforçando.
Q u e m é "nossa g e n t e " neste contexto? Agentes das unidades
d e O p e r a ç õ e s Especiais Federais a t u a n d o n a T c h e t c h ê n i a .
Assassinos a soldo do Estado. Soldados da D i r e t o r i a Central de
Inteligência do Exército, as G R U ; o C e n t r o de Missões Especiais da
Agência Federal de Segurança e subseções secretas do FSB para a
execução de missões particularmente delicadas, que normalmente
significam assassinatos.
Em 9 de maio, parecia que a m o r t e de Kadirov, não importan-
do pelas mãos de q u e m , significava o fim da tchetchenização e, c o m
ele, da política imbecil de Putin no n o r t e do Cáucaso. Kadirov,
s u p u n h a m as pessoas, havia sido eliminado para q u e a política aca-
basse. Essa suspeita durou pouco. Na noite de 9 de maio, R a m z a n
Kadirov,* o filho mais novo do presidente assassinado, um psicopa-
ta extremamente estúpido, foi, contrariando toda lógica, elevado à
proeminência na Tchetchênia. R a m z a n fora encarregado da segu-
rança pessoal do pai, para a qual havia trazido a escória criminosa
da Tchetchênia, atraindo-os c o m promessas de imunidade contra
acusações.
Putin recebeu R a m z a n no Kremlin naquela noite. Este apare-
ceu c o m um agasalho de malha azul vivo e garantiu a Putin que
continuaria c o m a política de tchetchenização iniciada pelo pai. O
U M DIÁRIO RUSSO 145

encontro foi exibido em todos os canais de televisão e foi visto em


toda a T c h e t c h ê n i a , deixando claro que as gangues de Kadirov esta-
vam recebendo imunidade para agir c o m o antes. Por alguma razão,
o governo P u t i n havia suspeitado de que, depois da m o r t e do pai,
Ramzan iria fugir para as montanhas para se j u n t a r aos insurgentes.
Em vez disso, ele recebeu permissão para continuar a aterrorizar a
população da república.
Isso produziu ainda mais discórdia e violência na Tchetchênia
em apoio à posição do vazio R a m z a n Kadirov. A resistência a r m a -
da foi fortalecida pela entrada de novos v o l u n t á r i o s depois da
morte de Kadirov pai, mas, em p o u c o t e m p o , as pessoas estavam se
curvando diante do novo idiota e logo ele se iludiu, achando que
era realmente i m p o r t a n t e .

26 de maio
Putin fez seu discurso anual à Assembléia Federal. É assim que o
povo russo é i n f o r m a d o dos planos do p r e s i d e n t e para o a n o
seguinte. Ele estava em ótima forma e agressivo. Falou da socieda-
de civil c o m c o m p l e t o desprezo, afirmando q u e ela era toda cor-
rupta e que os defensores dos direitos h u m a n o s eram uma quinta
coluna financiada pelo Ocidente. Esta é u m a citação literal: "Para
algumas dessas organizações (da sociedade civil), a prioridade é
conseguir financiamentos de fundações estrangeiras influentes...
Quando há um problema c o m violações básicas dos direitos h u m a -
nos, de transgressão dos reais interesses do povo, as vozes dessas
organizações algumas vezes não são ouvidas. Isto não surpreende
ninguém. Elas não p o d e m morder a m ã o q u e as alimenta."

E claro que, d a q u e l e m o m e n t o em diante, o ataque absurdo de


Putin aos defensores dos direitos h u m a n o s foi assumido pelos fun-
cionários do seu governo, em especial p o r Vladislav Surkov, seu
principal ideólogo e h o m e m de imprensa. Depois disso, os defen-
sores dos direitos h u m a n o s , quando compareciam a manifestações
de protesto contra a guerra na Tchetchênia, levavam cartazes c o m
°s dizeres: " S o u a quinta coluna do O c i d e n t e . "
Depois do discurso de 26 de maio de P u t i n , as autoridades do
stado c o m e ç a r a m a montar u m a nova variedade de "associações
146 A N N A POLITKOVSKAYA

de direitos h u m a n o s " sob seu patrocínio. Isso não deu em nada, mas
a idéia era q u e aquela sociedade civil paralela, " d o nosso lado",
deveria ser financiada pelas empresas russas, pelos oligarcas. Eles se
recusaram, sem dúvida pensando no destino de Khodorkovski, que
estava preso p o r ter financiado organizações não-governamentais.
Por que P u t i n m o n t o u de repente esse assalto às associações de
direitos humanos? No verão de 2004, depois do colapso dos parti-
dos democráticos e liberais, parecia claro que, se a oposição fosse se
cristalizar em algum lugar, seria em t o r n o da comunidade de direi-
tos h u m a n o s , c o m o no período soviético. Foi p o r isso que Putin
difamou essas organizações na sua mensagem; p o r q u e estava ansio-
so para desacreditá-las.
Em maio, os democratas p e r m a n e c e r a m quietos. A ascensão de
R a m z a n Kadirov à proeminência na T c h e t c h ê n i a foi o principal
acontecimento do mês, ofuscando a posse de Putin, mas eles não
fizeram n e n h u m protesto. Na verdade, n ã o fizeram c o m e n t á r i o
nenhum.

o
I dejunho
Leonid Parfionov, um brilhante jornalista de televisão, foi demitido
da emissora N T V . Em seu popular programa de análise de notícias,
O Outro Dia, ele exibiu uma entrevista c o m a esposa de Zelimkhan
Iandarbiev, o líder t c h e t c h e n o assassinado no Qatar. A entrevista
nada tinha de especial, em que a viúva não disse nada de particular-
m e n t e impressionante, mas ela estava inconsolável. Porém, o assun-
to não era p e r m i t i d o .
Parfionov não é um apresentador agressivo e buscou um meio
termo entre o que queriam as autoridades e o que ele queria m o s -
trar em seu programa. Sua demissão é u m a censura política da NTV.
Kakha B e n d u k i d z e , um acadêmico da Geórgia que também é
um oligarca industrial russo, foi n o m e a d o ministro da Indústria da
nova Geórgia. Saakachvili imediatamente fez dele um cidadão da
sua república.
Bendukidze foi persuadido a assumir o cargo p o r Zurab Jvania,
primeiro-ministro da Geórgia. Ele anunciou que pretende introdu-
zir "reformas ultraliberais" em sua velha terra natal. E evitou cuida-
dosamente qualquer comentário sobre a natureza das reformas que
UM DIÁRIO RUSSO 147

oderão ser necessárias, mas sua partida fala p o r si só. E evidente


que não há lugar para ele como liberal na Rússia de Putin. M e s m o
antes da Revolução da Rosa emTbiliso.Bendukidze havia falado, em
público e em particular, de sua decepção c o m o desenvolvimento
econômico russo e de seu desejo de deixar os negócios. Eleja estava
providenciando a venda de seus interesses russos nos negócios.
Em M o s c o u , a Comissão Eleitoral Central está iniciando u m a
campanha de propaganda para fazer c o m q u e o eleitorado aceite a
abolição do direito de voto nas eleições à D u m a para candidatos
individuais, em favor do voto em partidos mediante um sistema de
representação proporcional. Esse é um direito pelo qual lutamos
para conquistar e é fundamentalmente i m p o r t a n t e em nossa socie-
dade pós-comunista. O objetivo do Kremlin é permitir que as pes-
soas votem s o m e n t e em listas de partidos. Ele t a m b é m pretende
elevar a parcela de votos exigida para q u e um partido possa ter
representação no Parlamento. Em outras palavras, só os grandes
partidos p o d e r ã o participar de eleições.
Um sistema assim nos levaria de volta ao passado soviético. Ele
tornaria impossível a formação de novos partidos parlamentares e
os novos partidos não parlamentares seriam marginalizados. O efei-
to seria possibilitar que o Kremlin negocie somente c o m dois ou
três "velhos" partidos, que já t e n h a m se mostrado dispostos a fazer
grandes c o n c e s s õ e s . O P a r t i d o C o m u n i s t a , o P a r t i d o Liberal
Democrata e, c o m algumas reservas, o partido R o d i n a operariam
sob o c o m a n d o daquele partido inchado de burocratas, o R U .
O objetivo subjacente é possibilitar q u e o Kremlin acabe c o m
a imprevisibilidade das eleições. O resultado planejado será o resul-
tado real. Os partidos democráticos serão instantaneamente m a r g i -
nalizados, p o r q u e o apoio ao Iabloko e à U n i ã o de Forças de D i -
reita está abaixo do limiar de 7%, no qual insiste a administração
Presidencial. E ssa proposta foi c o n s i d e r a d a i m e d i a t a m e n t e um
acordo fechado p o r Alexander Vechaniakov, diretor da Comissão,
que está longe de ser independente.
Vechaniakov explicou que eleições baseadas na representação
proporcional p o d e r ã o passar a ser lei em j u n h o de 2005 pela i n t r o -
dução de e m e n d a s na lei " S o b r e G a r a n t i a s Básicas de D i r e i t o s
Eleitorais e o Direito de Participar de um R e f e r e n d o de Cidadãos
d a
Federação Russa".
14* A N N A POLITKOVSKAYA


Foi exatamente isso que aconteceu. Foi explicado que o novo sis-
tema era "mais responsável". N ã o houve manifestações de protesto
e somente os defensores dos direitos h u m a n o s tentaram alertar os
líderes da Assembléia Parlamentar do C o n s e l h o da Europa de que a
Rússia não tinha mais um sistema eleitoral democrático. Os e u r o -
peus observaram q u e não acontecera n e n h u m protesto popular e
t a m b é m aceitaram o sistema.

2 de junho
Na T c h e t c h ê n i a , foi enterrado Z e l i m k h a n Kadirov, o filho mais
velho de A k h m e d - h a d j i Kadirov. Era n o t ó r i o o fato de que era
viciado em drogas e ele m o r r e u de um ataque cardíaco três sema-
nas depois do assassinato do pai. Parentes disseram que Zelimkhan
se opunha totalmente à política brutal do pai e do irmão mais novo
e procurou refúgio na heroína.

19 de junho
Em São Petersburgo, Nikolai Girenko foi m o r t o a tiros em seu
apartamento. Trata-se de um assassinato político de um conhecido
defensor dos direitos humanos e acadêmico antifascista. O assassi-
nato foi executado por fascistas russos, que não fizeram segredo do
fato. Foi u m a demonstração de força da parte deles. Primeiro publi-
caram na Internet u m a "sentença de m o r t e " para Girenko; as a u t o -
ridades a ignoraram e depois Girenko foi m o r t o de acordo c o m a
"sentença".
Q u e m era Girenko? Era um etnógrafo acadêmico, p r o e m i n e n -
te pesquisador do M u s e u de Antropologia e Etnografia Pedro, o
Grande, da A c a d e m i a Russa de Ciências. Havia sido convocado
c o m o testemunha técnica nos poucos processos levados aos tribu-
nais contra organizações fascistas. Ele analisava os textos de publi-
cações nacionalistas radicais e os manifestos de grupos neonazistas
e demonstrava que eles eram muito extremistas. Suas análises j u d i -
ciais eram precisas e eruditas e c o m freqüência constituíam a base
para a condenação dos neonazistas. Esses j u l g a m e n t o s são raros. Em
UM DIÁRIO RUSSO 149

2003, de 72 crimes identificados c o m o de motivação racial, só o n z e


chegaram aos tribunais. Os outros casos fracassaram q u a n d o os
investigadores se mostraram incapazes o u , mais c o m u m e n t e , relu-
tantes para provar a motivação racial.
Os neonazistas odiavam Girenko p o r q u e , quando ele era teste-
munha, c o m freqüência eles eram sentenciados à prisão, em vez de
conseguir perdão ou suspensão da sentença, os casos mais comuns.
Ele foi t e s t e m u n h a , no início deste mês, em um j u l g a m e n t o em
Novgorod de m e m b r o s de um r a m o local do partido da U n i d a d e
Nacional Russa.
Hoje p o u c o s acadêmicos se d i s p õ e m a testemunhar aberta-
mente em j u l g a m e n t o s c o m o este, p o r q u e t e m e m retaliações pelos
fascistas, que g o z a m do apoio das autoridades e de uma parcela sig-
nificativa da população. Eles não p o d e m confiar em esquemas de
proteção de testemunhas, porque os próprios órgãos responsáveis
pelo c u m p r i m e n t o da lei estão repletos de chauvinismo e x e n o f o -
bia. Sempre estiveram, mas o governo P u t i n e a Segunda G u e r r a
Tchetchena viram a elevação de um t e m o r histérico das pessoas
originárias do Cáucaso.
" Q u a n d o ouvi falar do assassinato de Girenko, tive certeza de
que haveria u m a onda de protesto social", c o m e n t o u a escritora
Alia Gerber, presidente da Fundação Holocausto. Até dezembro, ela
era deputada na D u m a e havia muitos mandatos, pela U n i ã o das
Forças d e D i r e i t a . P o r é m , mais u m a vez, n ã o h o u v e p r o t e s t o
nenhum, s o m e n t e uma onda de satisfação social quando os websi-
tes de organizações nacionalistas veicularam a alegre notícia do
assassinato de Girenko. " O s nacionalistas ficaram jubilosos ao ouvir
a notícia da m o r t e deste a c a d ê m i c o ! " O P a r t i d o da U n i d a d e
Nacional Russa anunciou que " s o u b e do desaparecimento deste
antifascista c o m u m a sensação de alívio". A U n i ã o Eslava (cujas i n i -
ciais em russo são SS) exibiu um pôster que, disseram eles, havia
sido preparado antes do assassinato. Ele mostra um j o v e m c o m o
uniforme das tropas de assalto c o m u m a pistola. A legenda diz: " I n
m e m o r i a m Girenko." N i n g u é m os deteve. O Gabinete do P r o c u r a -
dor nada tinha a dizer, menos ainda t o m a r as providências r e q u e r i -
das por lei. N e n h u m dos sites foi fechado. Seus proprietários n ã o
enfrentarão acusações criminais.
150 A N N A POLITKOVSKAYA

Ao m e s m o tempo, uma lista de "inimigos do povo russo" foi


exibida no website de outra organização ultranacionalista, o Partido
da Rússia Maior. A lista contém 47 n o m e s , inclusive o de Svetlana
Gannuchkina, diretora da Ajuda aos Cidadãos, a maior organização
de assistência a refugiados e pessoas forçadas a adotar um novo e n d e -
reço. T a m b é m está o n o m e de Alia Gerber, presidente da Fundação
Holocausto, conhecida defensora na luta contra o anti-semitismo na
Rússia. E o de Andrei Kozirev, ex-ministro do Exterior, p o r sua
inclinação p r ó - o c i d e n t a l ; t a m b é m do apresentador de televisão
Nikolai Svanidze, porque é da Geórgia, e, incidentalmente, o de u m a
parente de Stalin, Ielena Khanga, porque sua mãe foi casada c o m um
africano. T a m b é m está o nome da autora destas linhas.
A U n i ã o Eslava afirma: "E fato b e m conhecido que numerosas
chamadas associações de direitos h u m a n o s , geralmente compostas
por defensores não russos e venais dos direitos humanos e sobrevi-
vendo de doações vindas do exterior, de fundações ligadas à C I A ,
ao M I 6 e ao Mossad, estão c o m p i l a n d o dossiês contra militantes
russos." Em o u t r o trecho, Dmitri D e m u c h k i n , líder do SS, ameaça
a b e r t a m e n t e as pessoas que estão na lista: "A N o i t e das Facas
Longas está próxima!"
N ã o há dúvida de que essa vilania foi provocada pelo assassina-
to de G i r e n k o — que as autoridades relutaram em revelar e p r o c u -
raram silenciar — e também pelo exemplo de cima sobre c o m o se
deve lidar c o m "defensores venais dos direitos h u m a n o s " . Em seu
Discurso à Assembléia Federal, Putin usou quase as mesmas palavras
do SS.

21-22 de j u n h o
D u r a n t e a noite, a "operação a n t i t e r r o r i s m o " , que já dura cinco
anos, atingiu sua apoteose quando os rebeldes assumiram o c o n t r o -
le da Inguchétia.
P o u c o depois das 23:00, c o m e c e i a receber telefonemas da
Inguchétia, o n d e t e n h o muitos amigos. " U m a coisa terrível está
a c o n t e c e n d o aqui! E uma guerra!", gritavam as mulheres ao telefo-
ne. "Ajude-nos! Faça alguma coisa! Estamos deitadas no chão c o m
nossos filhos!" Eu podia ouvir o barulho de tiros de fuzis a u t o m á -
ticos e muitas pessoas gritando: "Allahu Akbar! Alá é grande!"
UM DIÁRIO RUSSO 151

A guerra virtual pelo telefone varou a madrugada, c o m a noite


inteira repleta de u m a sensação de i m p o t ê n c i a . Em M o s c o u , à
noite, não há nada que se possa fazer para ajudar alguém. As e m i s -
soras de televisão estão fechadas, o pessoal dos serviços de notícias
foi para casa. O pessoal dos órgãos de imposição da lei desligou seus
celulares e foi dormir.Você p o d e matar se quiser, pode roubar, mas
os generais só darão ordens pela m a n h ã .
Foi isso q u e a c o n t e c e u na I n g u c h é t i a . Q u a n d o os rebeldes
começaram a sair de madrugada, os soldados, dos quais a Inguchétia
e as regiões adjacentes estavam repletas, finalmente deixaram suas
"posições de desdobramento p e r m a n e n t e s " e começaram a organi-
zar u m a perseguição. Helicópteros trovejavam nos ares, surgia apoio
aéreo.
Era tarde demais. Os rebeldes já t i n h a m ido. Havia corpos nas
ruas, de civis e militares. A grande maioria dos mortos era de p o l i -
ciais do M i n i s t é r i o do I n t e r i o r da I n g u c h é t i a , do G a b i n e t e de
Assuntos I n t e r n o s de N a z r a n e do D e p a r t a m e n t o de Polícia de
Karabulak. Procuradores e agentes do FSB também foram m o r t o s .
Funcionários de nível médio dos órgãos de segurança foram m o r -
tos, veículos e prédios foram queimados. Ficou claro que mais de
200 rebeldes haviam c o n s e g u i d o assumir o controle c o m p l e t o
de Nazran e que tinham o c o r r i d o ataques simultâneos na cidade de
Karabulak e na aldeia de Sleptsovskaia. Eles colocaram bloqueios
nas estradas e m a t a r a m todas as pessoas q u e chegavam aos b l o -
queios p o r t a n d o carteiras de identidade que indicavam q u e elas
trabalhavam para órgãos ligados ao c u m p r i m e n t o da lei, j u n t a m e n -
te com outras que caíam em suas mãos. Testemunhas disseram q u e
os defensores dos bloqueios eram tchetchenos, inguches e "pessoas
de aparência eslava" e que eles estavam c o m Shamil Basaev.*
Então Basaev consegue reunir um g r u p o de 200 combatentes,
quando t o d o s os órgãos de segurança, inclusive da T c h e t c h ê n i a ,
vem reportando aos seus superiores nos últimos três anos que não
restaram mais que cinqüenta rebeldes, ou talvez vinte ou trinta?
Foi u m a operação de guerrilha brilhantemente organizada da
qual os serviços de inteligência n ã o d e r a m alerta, u m a operação
que não enfrentou a resistência n e m do retardado Kadirov e seu
regimento (que pode assustar o Kremlin, mas evidentemente não
as
susta Basaev); n e m dos milhares de soldados russos em Hankala,
152 A N N A POLITKOVSKAYA

n e m dos o u t r o s milhares d e reserva e m M o z d a k , n e m d o 58°


Exército, sediado em Ossétia, de onde vieram alguns dos rebeldes.
E também há mais de 14 mil policiais na T c h e t c h è n i a e seis mil na
Inguchétia.
Mas os serviços de inteligência realmente existem? E o regi-
m e n t o de Kadirov? E os 14 mil policiais, mais outros seis mil na
Inguchétia? E Hankala e M o z d o k , existem realmente?
O ataque na Inguchétia prova que, c o m o força de segurança
efetiva, não existem. Nosso sistema de defesa é tão virtual quanto
Putin, criado p u r a m e n t e para fazer um espetáculo de combate, mas
não para combater. E p o r isso que todos aqueles milhares de pes-
soas desaparecem sem deixar traços depois q u e se encontram com
"soldados mascarados não identificados v e s t i n d o uniformes de
camuflagem". A l g u é m precisa enviar aos seus superiores um novo
relatório "antiterrorista". Resultados são necessários. Essas "forças"
somente são capazes de seqüestrar e saquear furtivamente. E para
isso que servem hoje o exército e as forças de segurança da Rússia.
E houve pessoas que deixaram suas casas à noite e foram até os
bloqueios nas estradas para pedir aos rebeldes que deixassem claro
que os "invasores" eram inguches e tchetchenos.
Q u a n d o c o m e ç a r a m os raptos em larga escala, no inverno ao
último ano, e jovens da Inguchétia começaram a ir para as m o n t a -
nhas em vez de continuar resistindo, as autoridades tornaram um
inferno a vida daqueles que diziam a b e r t a m e n t e q u e aquilo era
muito perigoso e levaria a uma escalada da guerra. Elas continua-
ram a insistir na sua própria estabilidade. Em 22 de j u n h o , esse mito
custou quase c e m vidas. Os policiais que se defendiam e, à espera
de ajuda, m o r r e r a m em batalha, c u m p r i r a m seu dever até o fim.
Mas q u e m assume a responsabilidade pelas mortes de civis?
Os rebeldes, evidentemente, têm plena responsabilidade crimi-
nal p o r todas aquelas m o r t e s , mas as c h a m a d a s a u t o r i d a d e s do
Estado são igualmente culpadas. Elas nunca se cansam de nos dizer
que "assumem a responsabilidade por t u d o " . As autoridades m e n t i -
ram, nada fizeram, preocupando-se somente c o m sua permanência
no poder e c o m isso condenaram inocentes à m o r t e .
E o n d e estava Ziazikov naquela noite? Ele fugiu disfarçado de
mulher. Dispensou seu guarda-costas para não ser identificado e só
voltou quando o perigo havia passado, q u a n d o as pessoas estavam
u M DIÁRIO RUSSO 153

buscando seus entes queridos em m e i o aos cadáveres. Foi um c o m -


p o r t a m e n t o n u n c a visto antes em um h o m e m e não apenas no
Cáucaso. E n q u a n t o todas essas grandes tolices perdurarem, c o m
Ziazikov c o m o parte condigna do sistema, e enquanto Putin não
mudar sua política e n l o u q u e c i d a na T c h e t c h ê n i a , que não t e m
futuro n e n h u m , tragédias c o m o a de 22 de j u n h o serão inevitáveis.
Nossas mentiras coletivas ao l o n g o de muitos anos a respeito da
Guerra T c h e t c h e n a , nossa incapacidade até m e s m o de a p r e n d e r
com a tragédia de Nord-Ost, causaram esses eventos monstruosos na
Inguchétia.
Precisamos simplesmente buscar u m a saída política para esse
impasse.

23 de junho
Vinte e q u a t r o horas depois da tragédia, e n q u a n t o a c o n t e c i a m
funerais em toda a Inguchétia, Alu Alkhanov, ministro do Interior
da Tchetchênia, anunciou na televisão q u e seria candidato ao cargo
de presidente da Tchetchênia. Alkhanov é um dos responsáveis pelo
fracasso na captura de Basaev, mas m e s m o assim está sendo repeti-
d a m e n t e a p r e s e n t a d o c o m o o c a n d i d a t o preferido de P u t i n .
Adiantando-se, Alkhanov disse q u e esperava m u i t o p o r "eleições
pacíficas em 29 de agosto" e que agora o mais importante era c o n -
solidar a agricultura tchetchena. Ele parecia ignorar o quanto era
i n a d e q u a d o dizer t u d o aquilo um dia d e p o i s da catástrofe na
Inguchétia.

1° de julho
Houve u m debate n o Mosteiro Sivato-Danilovski, e m M o s c o u ,
sobre o tema "Liberdade e Dignidade Pessoal: As Visões O r t o d o x a
e Liberal". Rostilav Chafarevitch estava lá; no passado ele fora c o l e -
ga e amigo de Andrei Sakharov, mas hoje é um terrível reacionário
e defensor de Putin. Ella Pamfilova, diretora da Comissão Presi-
dencial para o Desenvolvimento da Sociedade Civil e dos Direitos
manos, t a m b é m estava. Estavam presentes t a m b é m o d i á c o n o
n
rei Kuraev e o vigário VsevolodTchaplin. A mesa redonda tra-
°u de elaborar o c o n c e i t o de Vladislav Surkov de um m o d e l o
154 A N N A POLITKOVSKAYA

russo para a defesa dos direitos h u m a n o s : em primeiro lugar, seria


financiado p o r empresas russas; em segundo, seria baseado na ética
ortodoxa russa.
E q u a n t o àqueles q u e n ã o são o r t o d o x o s ? M u ç u l m a n o s ?
Judeus? Eles serão excluídos da defesa dos direitos h u m a n o s ? O
m o v i m e n t o pelos direitos h u m a n o s é, p o r sua própria natureza,
supranacional e supra-religioso. De qualquer maneira, se acreditar-
m o s em Dostoiévski, o russo é um " h o m e m universal".
Mas as coisas não são b e m assim. Putin instruiu a Igreja O r -
todoxa Russa a revelar que ele falaria, no seu Discurso à Assembléia
Federal, a favor da substituição da defesa "ocidental" dos direitos
h u m a n o s pela defesa " o r t o d o x a " dos direitos humanos. Para provar
mais u m a vez sua lealdade às autoridades e em troca de ter sido tor-
nada p o r Putin a principal religião do Estado, a Igreja O r t o d o x a
Russa c o n c o r d o u . O metropolita kiril fez um discurso e m o c i o n a -
do sobre a necessidade de se e n c o n t r a r e m novos líderes para o
m o v i m e n t o dos direitos h u m a n o s , " q u e a m a m nosso país". Ele
parece não compreender que simplesmente não é possível " e n c o n -
trar novos líderes para o m o v i m e n t o dos direitos h u m a n o s " . Ou
eles existem, gerados pela própria vida, ou não.
Ella Pamfilova t a m b é m falou. A n t e r i o r m e n t e ela era u m a
democrata entusiasmada, que fazia campanhas contra os privilégios
dos figurões do partido. Agora apoiava entusiasticamente P u t i n e
sua nova atitude em relação aos defensores dos direitos h u m a n o s .
Ela disse:"Não concordo que haja u m a crise de ideologia no m o v i -
m e n t o pelos direitos humanos. N ã o p o d e haver u m a crise de algo
que p o r definição não pode existir! Existe uma crise em d e t e r m i -
nadas associações de direitos h u m a n o s cujos líderes, em m u i t o s
aspectos, ainda estão no século passado, t e n t a n d o c o m b a t e r um
Estado totalitário que há m u i t o desapareceu. Eles estão acostuma-
dos a apelar para os líderes de Estados ocidentais para que t e n t e m
influenciar nossas autoridades. R e p i t o , não devemos associar t o d o o
m o v i m e n t o por direitos h u m a n o s na Rússia a cinco ou dez pessoas
m u i t o conhecidas, a maioria das quais dos velhos tempos, q u e há
m u i t o confundiram fazer campanhas pelos direitos h u m a n o s c o m
política, q u e ainda c o n f u n d e m u m a coisa c o m outra, d e f e n d e m
r a d i c a l m e n t e posições que n ã o t ê m o apoio da m a i o r p a r t e da
p o p u l a ç ã o o u d o público b e m i n f o r m a d o . N ã o creio q u e elas
UM DIÁRIO RUSSO 155

r ep n t e m u m grande perigo para nós. Acredito que estamos tes-


r e s e

t e m u n h a n d o hoje o nascimento de um m o v i m e n t o p o r direitos


humanos de u m a nova qualidade na Rússia (...) e que há muitos
jovens líderes de organizações pelos direitos h u m a n o s q u e estão
trabalhando pelos interesses do nosso povo (...)."
C e r t a m e n t e há, mas eles n ã o irão alegrar o c o r a ç ã o de
Pamfilova.A radicalização dos jovens é um fato óbvio. Os filhos dos
derrotados partidários do Iabloko e da U n i ã o das Forças de Direita
se j u n t a r ã o ao p a r t i d o de L i m o n o v , * o Partido B o l c h e v i q u e
Nacional.
o
C o m e ç o u o ato final da destruição daYukos. Na noite de I
para 2 de j u l h o , as contas da empresa foram congeladas. A extração
de petróleo cessou, fazendo c o m q u e seu preço subisse m u i t o nos
m e r c a d o s m u n d i a i s . A Yukos o f e r e c e u um p a c o t e de a ç õ e s da
empresa Sibneft Oil para pagar p o r suas novas dívidas. O Estado
recusou a oferta, insistindo na liquidação daYukos. Esta é u m a cala-
midade equivalente ao que P u t i n gosta de chamar de "acabar c o m
eles". N i n g u é m se importa.

6 de julho
U m a assembléia na aldeia tchetchena de Sernovodskaia, para exigir
o retorno do último g r u p o de h o m e n s raptados pelos federais, foi
dispersada a tiros. Mulheres da aldeia vizinha de Assinovskaia e da
cidade de A k h c h o i - M a r t a n b l o q u e a r a m a rodovia c o m a m e s m a
exigência: parar c o m os raptos arbitrários de seus filhos, maridos e
irmãos. N a d a m u d o u . Só os defensores dos direitos h u m a n o s da
própria Rússia apoiaram esses protestos.

~l de julho
Na cidade tchetchena de Chali, h o u v e um encontro das mães dos
raptados. Elas declararam estar preparadas para fazer u m a greve de
fome de duração indefinida, pois sua paciência se esgotou diante da
nicapacidade dos organismos legais para buscar as vítimas. Elas
Pedem que os defensores europeus de direitos h u m a n o s e as orga-
nizações internacionais o u ç a m seu g r i t o de desespero p o r u m a
S1
m p l i f i ç â dos procedimentos para a concessão do status de refu-
ca 0
156 A N N A POLITKOVSKAYA

giados aos tchetchenos. " F o m o s expulsos da Inguchétia, estamos


sendo mortas e nossos filhos raptados na Tchetchênia e na Rússia.
Somos cidadãs de segunda classe." Essa foi a resolução do encontro.
Na m e s m a noite, forças federais continuaram furtivamente a
arrancar h o m e n s de suas casas em Grozni, Nazran e Karabulak. Há
u m a inundação de cartas da T c h e t c h ê n i a até Estrasburgo.

9 de julho
A mais r e c e n t e m o r t e atroz de um soldado russo pelo exército
russo. Soldados m o r r e m no exército p o r muitos motivos; o exérci-
to t o r n a fácil eles serem mortos.Você p o d e estar ansioso p o r servir,
p o d e se alistar antes do prazo, c o m o Ievgeni Fomovski, mas isso
não irá salvá-lo. Haverá um mau e l e m e n t o que não gostará de você,
do seu t a m a n h o , ou do t a m a n h o dos seus pés, e ele o matará.
" S e u s a m i g o s de escola estavam fazendo as provas finais
e n q u a n t o m e u filho estava sendo e n t e r r a d o " , c o n t o u - m e a m ã e de
Ievgeni, Svetlana. Ela é da cidade de Iarovoie, na região de Altai.
"Ievgeni fez todos os exames mais c e d o para poder se alistar no
exército na primavera."
"Por quê?"
"Para acabar de servir mais depressa, sem ser i n c o m o d a d o pelo
Comissariado Militar, e depois ir para a faculdade."
N ã o foi o que aconteceu. A carreira de Ievgeni Fomovski no
exército durou de 31 de maio até 9 de julho, menos de um mês e
m e i o . Ele chegou à sua unidade de guardas da fronteira do FSB nos
arredores de Priargunsk, na província d e T c h i t a , em 8 de j u n h o . Em
4 de j u l h o , fez o j u r a m e n t o de lealdade. Em 6 de julho, esse siberia-
no grandalhão e saudável foi enviado às montanhas, para um c a m p o
de t r e i n a m e n t o a 12 quilômetros de Priargunsk. Na madrugada de
9 de j u l h o , foi encontrado enforcado por dois cintos amarrados em
um p r é d i o semi-arruinado a 100 metros das tendas do c a m p o de
treinamento. Às nove da noite do m e s m o dia, o carteiro c h e g o u à
rua Altaiskaia, em Iarovoie, c o m um telegrama que dizia: "Seu filho
Ievgeni Anatolievitch c o m e t e u suicídio em 9 de j u l h o de 2004.
C o m u n i q u e imediatamente local do enterro. A data de despacho
do caixão será comunicada separadamente. Oficial C o m a n d a n t e da
U n i d a d e Militar (...)."
UM DIÁRIO RUSSO 157

Mas o que aconteceu? Ievgeni era forte e b e m preparado para


ser um soldado. Era um b o m esportista e, na época, tinha 18 anos e
havia a d q u i r i d o várias qualificações militares. P o r é m , o exército
não precisa de recrutas educados, ele quer colaboradores. A o r i g e m
da tragédia foi que o soldado Ievgeni Fomovski calçava botas tama-
nho 47 e tinha 1,96 de altura. Ele recebeu botas t a m a n h o 44 e foi
obrigado a usá-las durante u m a corrida diária de 5 km sob um
calor de 40 graus.
Torturar recrutas é um m e i o de vida no exército russo. No dia
anterior ao do "suicídio", Ievgeni só conseguia andar usando c h i -
nelos.
" Q u a n d o o vimos no necrotério, o dedão do pé estava gasto
até o osso", c o n t o u - m e Iekatarina Mikhailovna, a tia dele.
A Rússia é um país grande. Q u a n d o a mãe e a tia de Ievgeni
iniciaram a jornada de cinco dias até Priargunsk para visitá-lo, não
u n h a m idéia do que as esperava."Chegamos tarde demais", l a m e n -
ta a mãe. " C h e g a m o s a Priargunsk em 10 de j u l h o e ele m o r r e u no
dia 9." Priargunsk é u m a p e q u e n a cidade na distante fronteira da
Rússia c o m a C h i n a e a M o n g ó l i a . O n e c r o t é r i o é um p r é d i o
anexo ao Hospital Distrital.
" Q u a n d o estávamos no necrotério, eu vi Ievgeni", c o n t o u - m e
a tia. "Havia uma marca no pescoço, aparentemente de um laço.
Havia cortes no pulso esquerdo. N o s disseram que ele antes t e n t o u
cortar os pulsos. Todo seu c o r p o fora espancado, a cabeça estava
coberta de escoriações. Ela estava m o l e ao t o q u e , c o m o se não
tivesse ossos; todos t i n h a m sido q u e b r a d o s . Na nuca havia u m a
marca clara de um o b j e t o p e s a d o . Seus órgãos sexuais estavam
esmagados: eles eram u m a e n o r m e escoriação preta. Suas pernas
estavam inchadas, c o m um ferimento atrás do outro, c o m o se ele
tivesse sido arrastado. N ã o havia pele nas costas, t a m b é m c o m o se
ele tivesse sido arrastado. Havia u m a queimadura no p é . Havia feri-
mentos nos ombros, c o m o se eles tivessem sido fortemente pressio-
nados. A c h o que ele foi t o r t u r a d o e depois pendurado para ocultar
° assassinato."
Ievgeni não quisera se s u b m e t e r ao t o r m e n t o de suas botas de
n u m e r o m e n o r e tinha exigido botas do tamanho certo. Decidiram
ensinar-lhe uma lição, de acordo c o m uma antiga prática do exér-
c l t
o : c o m o a s s e n t i m e n t o dos oficiais, isso é e x e c u t a d o pelos
158 A N N A POLITKOVSKAYA

"vovôs" — sargentos, soldados em seu segundo ano de serviço, sol-


dados v e t e r a n o s . Os oficiais esperam q u e eles " m a n t e n h a m a
o r d e m " nos alojamentos. O fato de Ievgeni ter sido assassinado foi
mais tarde confirmado por outros recrutas, q u e disseram que seus
torturadores não pretendiam matá-lo, só ensinar-lhe uma lição para
que ele não tentasse aparecer. Eles exageraram e Ievgeni morreu. E n -
tão os assassinos decidiram fingir que ele havia cometido suicídio.
A tragédia do soldado Fomovski, 18 anos, m o r t o porque seus
pés eram grandes demais, não causou n e n h u m clamor público em
particular diante de tal selvageria no exército. N i n g u é m insistiu
para que o ministro da Defesa, Sergei Ivanov, e o diretor do FSB,
Nikolai Patruchev, fizessem algo para garantir no futuro, para nos-
sos soldados, um a m b i e n t e organizado, c o m alimentos, roupas e cal-
çados adequados para seres humanos; ou que eles assumissem res-
ponsabilidade pessoal pela vida dos jovens q u e recrutamos.
Tudo c o n t i n u o u c o m o antes, até o p r ó x i m o assassinato de um
soldado.
Na mesma noite, Paul Klebnikov, editor-chefe da edição russa
da revista Forbes, foi mortalmente ferido. Klebnikov era descenden-
te de Puchkin, um veterano da revolução de dezembro de 1825 e
amigo de Alexander Puchkin; era americano e havia muito estuda-
va o desenvolvimento da oligarquia na nova Rússia. Seu assassinato
era um mistério e a sugestão, pelos órgãos de segurança, de que os
assassinos eram tchetchenos vingando-se de um livro mal escrito
sobre o a v e n t u r e i r o H o j - A k h m e d N o u k h a e v é um c o m p l e t o
absurdo. Os órgãos de segurança estavam em apuros porque não
conseguiam solucionar um crime que havia causado ampla indig-
nação internacional. N o u k h a e v é uma figura estranha, contraditó-
ria. Tendo sido c o m a n d a n t e de campo, ele d e i x o u a Resistência e
c o m e ç o u a se apresentar c o m o filósofo, coisa q u e não era. Sua
autoridade n u n c a foi grande entre os tchetchenos e é difícil imagi-
nar alguém m a t a n d o em seu nome.
M u k h a m e d Tsikanov foi n o m e a d o vice-presidente da Yukos-
Moscou, a holding daYukos. Ex-vice-ministro do Desenvolvimento
E c o n ô m i c o , Tsikanov é na realidade um emissário do Estado inse-
rido para garantir u m a venda "correta". N e m é preciso dizer que
ele está no bolso das autoridades. Antes disso, se engajou na "restau-
ração da T c h e t c h ê n i a " , um e m p r e e n d i m e n t o reconhecidamente
UM DIÁRIO R U S S O 159

fracassado, apesar de todo o dinheiro gasto. O encarregado de t u d o


isso goza a vida sem conseqüências, t e n d o sido até promovido.

10 de julho
A última edição do programa Livre Debate, de Savik Chuster, foi
transmitida pela N T V . O ú n i c o talk show p o l í t i c o da televisão
nacional russa foi c o r t a d o . Assim c o m o o p r o g r a m a Negócios
Pessoais, t a m b é m na NTV. Tratava-se de um programa semanal de
análise de notícias, dirigido por Alexander Gerasimov, vice-diretor
geral para noticiários da NTV, que do m e s m o m o d o está de saída.
O e s m a g a m e n t o do livre p e n s a m e n t o e da imprevisibilidade na
televisão russa é um fait accompli.

16-17 de julho
Na aldeia t c h e t c h e n a de Sernovods, na fronteira da T c h e t c h ê n i a
com a Inguchétia, soldados chegaram em carros blindados e rapta-
ram seis h o m e n s : os dois irmãos Indarbiev, um deles major da polí-
cia; os três irmãos Inkemirov, c o m idades entre 15 e 19 anos, e o
aleijado A n z o r Lukaev. Um protesto organizado pelas mulheres das
famílias das vítimas para exigir seu r e t o r n o foi dispersado por tiros
de alerta. Os p r i m e i r o s a atirar f o r a m os guarda-costas de Alu
Alkhanov, o "presidente do C o m i t ê Público para a Restauração da
Tchetchênia". Ele é o principal candidato presidencial, m e m b r o da
polícia e ministro do Interior — o m e s m o Alu Alkhanov que nunca
se cansa de nos dizer na televisão que "a onda de raptos está decli-
nando, tivemos sucesso nisso". E mais fácil fazer essa afirmação
quando se atira em qualquer um que afirma que isso não é verdade.

20 de julho
Por volta das 4:00, em Galachki,na Inguchétia, Beslan Arapkhanov,
motorista de trator, foi espancado diante da m u l h e r e de sete filhos
e
P q u e n o s antes de ser m o r t o a tiros. P o r engano. As forças de segu-
rança estavam tentando prender o rebelde Ruslan Khutchbarov. De
acordo c o m i n f o r m a ç õ e s a l t a m e n t e secretas, naquela n o i t e ,
khutchbarov estava d o r m i n d o na rua Partizanskaia, n° 11.
160 A N N A POLITKOVSKAYA

P o r é m , p o r a l g u m m o t i v o , os soldados v i e r a m e m a t a r a m
A r a p k h a n o v , i n o c e n t e , no n° 1 da m e s m a rua. I m e d i a t a m e n t e
d e p o i s do assassinato, um f u n c i o n á r i o e n t r o u na casa de Arap-
khanov, apresentando-se para a chocada mulher c o m o o investiga-
d o r Kostenko, do FSB, e apresentou um mandado de busca para a
" r u a Partizanskaia n° 1 1 " . N a q u e l e ponto, o erro ficou evidente,
mas Kostenko não se desculpou para a chorosa viúva.
Essa é a realidade da nossa "operação antiterrorismo". O que
farão os sete filhos de Beslan Arapkhanov a este respeito? Q u a l é a
probabilidade de eles esquecerem e perdoarem?

Kostenko t a m b é m não se desculpou às mães das crianças q u e m o r -


reram na atrocidade terrorista subseqüente na Primeira Escola da
C i d a d e de Beslan, comandada pelo m e s m o Khutchbarov que ele
n ã o conseguiu prender.

23 de julho
A equipe que investigava o caso dos reféns de Nord-Ost foi desfei-
ta. D e n t r o de três meses, será o segundo aniversário daquela tragé-
dia e o público cansou-se de ouvir a respeito dela. Foi precisamen-
te p o r isso que a investigação t e r m i n o u , apesar de ainda não ter
identificado a maioria dos terroristas, n e m estabelecido a composi-
ção do gás q u e e n v e n e n o u as pessoas, n e m d e s c o b e r t o q u e m
t o m o u a decisão de usá-lo.
Um inquérito que era de crucial importância para o progresso
político do Estado russo foi posto na geladeira. De toda a equipe,
supostamente " u m grupo de nossos melhores investigadores traba-
l h a n d o para resgatar uma dívida de h o n r a " , c o m o disseram nossos
p o r t a - v o z e s oficiais, restaram apenas o sr.V. I. K a l t c h u k e salas
vazias no Gabinete do Procurador de Moscou.
Kaltchuk se reúne c o m as pessoas que sofreram — reféns sobre-
viventes e parentes dos que m o r r e r a m — e as faz ler suas descober-
tas: não houve culpa criminal p o r parte do pessoal dos órgãos de
segurança, que utilizaram um gás letal para simplificar a "operação
de resgate", ao custo de 129 vidas e da saúde de centenas de outras
pessoas.
UM DIÁRIO RUSSO 161

Suas constatações são de um cinismo chocante. No d o c u m e n -


to toda a culpa é atribuída a Basaev:

O investigadorV. I. Kaltchuk d e t e r m i n o u que Basaev, depois de


1995 (...) planejou (...) c o m p r o m e t e u (...) selecionou (...) dele-
gou (...)• Um m a n d a d o internacional de busca foi e m i t i d o atra-
vés da Interpol em 5 de m a i o de 2003 (...). Sob o pretexto de
combater pela liberdade e independência do Estado ilegal e
autoproclamado de Itchkeria (...) no p e r í o d o indicado, para
levar as instituições estatais da Federação Russa a t o m a r a deci-
são de retirar suas tropas do t e r r i t ó r i o da R e p ú b l i c a T c h e t -
chena, onde u m a operação antiterrorismo está sendo realizada,
conspirou c o m os líderes de um g r u p o a r m a d o ilegal e de
separatistas t c h e t c h e n o s n ã o identificados pela investigação
para provocar explosões em lugares d e n s a m e n t e povoados e
socialmente importantes e t o m a r um grande n ú m e r o de pes-
soas c o m o reféns (...).

E razoável esperar q u e o relatório conclua que foi Basaev o


culpado por não deixar, aos serviços de segurança, n e n h u m a opção
a não ser usar um p r o d u t o q u í m i c o letal. Porém, a culpa de Basaev
é descrita somente no preâmbulo. N ã o há u m a só palavra a respei-
to dele na seção de conclusões, q u e considera a questão da culpa.

N o s vários estágios dos preparativos para c o m e t e r os atos ter-


roristas, Basaev e outros organizadores do g r u p o c r i m i n o s o
selecionaram nada m e n o s q u e 52 pessoas, q u e se t o r n a r a m
membros do grupo. Para realizar a tomada de reféns, os seguin-
tes foram recrutados e treinados:
Um terrorista não identificado pela investigação... c o r p o
n° 2007,
Um terrorista não identificado pela investigação... c o r p o
n° 2028,
Um terrorista n ã o identificado pela investigação... c o r p o
n° 2036...

Q u e m são eles? Só D e u s sabe. C o n t u d o , u m a das razões para a


abertura do inquérito foi ligar um n o m e e um s o b r e n o m e a cada
u
m daqueles indivíduos não identificados. C o m o p o d e m o s ver a
partir de suas constatações, Kaltchuk sabe o n o m e de um ou dois
162 A N N A POLITKOVSKAYA

terroristas. São aqueles cuja identidade é conhecida de todos, cujos


n o m e s foram publicados nos jornais e divulgados na televisão.
" D i a n t e de u m a séria ameaça à vida e à saúde do g r a n d e
n ú m e r o de reféns, os órgãos competentes da Federação Russa deci-
d i r a m efetuar u m a o p e r a ç ã o de resgate." Mas quais e r a m esses
"órgãos competentes"? Constatamos que a pergunta mais impor-
tante a respeito de Nord-Ost — q u e m t o m o u a decisão de usar o gás
e, p o r t a n t o , q u e m é o responsável p o r todas aquelas m o r t e s - é
t o t a l m e n t e deixada de lado. Isso só aumenta a suspeita de que a
c o m p e t ê n c i a m e n c i o n a d a era p r i n c i p a l m e n t e em ocultar o que
realmente aconteceu, m a t a n d o todos os terroristas.
Esta é a conclusão final:

A m o r t e de quase todos os reféns foi causada p o r colapso res-


piratório e cardiovascular agudos, resultantes de u m a combina-
ção letal de fatores adversos surgidos durante o p e r í o d o em que
eles ficaram presos. A multiplicidade dos fatores causadores de
m o r t e (...) exclui u m a ligação causal direta entre o efeito, sobre
o organismo, de u m a substância química gasosa e a m o r t e (...).
N ã o há fundamentos objetivos para supor que o uso de uma
substância química possa ter sido a única causa de m o r t e .

C o m o é possível dizer qualquer coisa a respeito de " f u n d a m e n -


tos objetivos", se a composição do gás p e r m a n e c e u desconhecida?
Essas constatações, assinadas pelo sr. Kaltchuk, c o n t ê m muito
p o u c o s fatos. O m o m e n t o mais detalhado v e m q u a n d o o autor
procura explicar p o r que todos os terroristas, sem exceção, foram
m o r t o s , apesar de ter sido declarado oficialmente que u m a i m p o r -
tante realização da operação foi o fato de todos eles terem ficado
inconscientes. Kaltchuk não fala disso. "Eles responderam ao fogo
usando 13 fuzis de assalto e oito pistolas."
A q u i está o grand fmale: " E m conseqüência de u m a decisão
t o m a d a c o r r e t a m e n t e pelos órgãos c o m p e t e n t e s d a F e d e r a ç ã o
Russa e das ações de operadores qualificados dos serviços de inte-
ligência, a atividade criminosa dos terroristas foi eliminada e uma
catástrofe muito maior foi evitada, a qual poderia ter colocado em
risco a autoridade da Rússia na arena internacional."
É terrível quando os cidadãos de um m e s m o Estado t ê m opi-
niões fundamentalmente diferentes sobre o valor da vida humana.
UM DIÁRIO RUSSO 163

Foi isso que levou à vitória dos bolcheviques e à ascensão de Stalin


e essa característica maligna de nossa vida nacional está voltando
implacavelmente à m o d a entre aqueles que d e c i d e m se devemos
viver ou morrer.
Há mais: "A solicitação de acusações criminais contra os agen-
tes dos serviços especiais q u e libertaram os reféns está indeferida. O
caso criminal sobre os terroristas que capturaram e detiveram os
reféns está encerrado."
O governo recebeu u m a indulgência do procurador, tanto para
si mesmo quanto para suas forças de operações especiais, que exis-
tem para nos proteger dos terroristas e de seus ataques no futuro.
Q u e haverá mais ataques, p o u c o s duvidam.

27 de julho
Igor Setchin, a eminência parda do Kremlin, foi n o m e a d o presi-
dente do Conselho de Administração da Rosneft, a empresa estatal
de petróleo. Ele supervisionou pessoalmente o desmantelamento e a
destruição daYukos e a prisão de Khodorkovski. Sua nomeação para
comandar a Rosneft, q u e reivindica as melhores partes daYukos,
prova que o Kremlin destruiu aquela empresa em proveito próprio.
Sua ideologia exige a formação de uma "economia estatal", suposta-
mente dirigida em benefício do povo. Na realidade, trata-se de uma
economia burocrática cujo principal oligarca é o representante do
governo. Q u a n t o mais alto o representante, maior o oligarca.
Esse ideal de oligarquia estatal agrada a P u t i n e a seu círculo
exclusivo. O conceito subjacente é o de que as principais receitas
da Rússia p r o v ê m da e x p o r t a ç ã o de m a t é r i a s - p r i m a s , e assim o
Estado deve controlar os recursos naturais e"L'Etat, c'est moi".Eles
pensam ser as pessoas mais espertas do país, a c h a m q u e sabem
melhor o que é b o m para nós e portanto para que aquelas receitas
d e v e m ser usadas. Para a t e n d e r aos s u p e r m o n o p ó l i o s c o m o a
Rosneft e a G a z p r o m , c o n g l o m e r a d o s financeiros m o n s t r u o s o s ,
c o m o o V n e s h t o r g b a n k e o V n e s h e k o n o m b a n k , estão sendo
ampliados e estão conquistando novos territórios c o m a ajuda da
administração presidencial.
Esses supermonopólios são controlados p o r ex-agentes da polí-
C l a s e c
r e t a , que hoje são oligarcas. Putin só confia nesses oligarcas
164 ANNA POLITKOVSKAYA

chekistas,* acreditando que, devido à sua o r i g e m c o m u m nos ser-


viços de inteligência, eles e n t e n d e m quais são os melhores interes-
ses do povo. T u d o deve passar pelas suas mãos. O círculo imediato
de Putin e, aparentemente, ele próprio acreditam que quem con-
trola os mercados de recursos naturais t e m o m o n o p ó l i o do poder
político. E n q u a n t o estiverem nos negócios, eles estarão no poder.
Há alguma verdade nisso. Muitas juntas militares latino-ameri-
canas p e r m a n e c e r a m no poder assegurando-se de que as institui-
ções de repressão e o governo — que fazia parte daquelas instituições
- controlassem todas as grandes empresas. O detalhe negligenciado
pelo regime de P u t i n é que aquelas juntas foram invariavelmente
derrubadas p o r outras juntas, muitas vezes em p o u c o tempo.
Em nossa j u n t a , não há lugar para a ala j o v e m do Iabloko ou os
jovens bolcheviques nacionais. Em M o s c o u , a "Juventude Iabloko"
organizou u m a manifestação, que durou vários segundos, diante do
edifício do FSB na praça Lubianka. Os jovens democratas estão
cada vez mais independentes dos "velhos".
A manifestação não foi oficialmente sancionada. Os jovens ati-
raram rolimãs pintados de vermelho na placa memorial que mostra
Iuri A n d r o p o v (o n o v o culto a Andropov, c o m o autor do plano
para reformar o sistema soviético sem destruí-lo, está sendo meti-
culosamente p r o m o v i d o pelo governo Putin) e vestiam camisetas
pretas c o m o slogan "Abaixo o Big Brother!". Carregavam placas
c o m u m a foto rabiscada de Putin e a frase "Abaixo a autocracia
policial!" e cantavam:"Vamos demolir a Lubianka e esmagar o regi-
m e ! " e "Abaixo o p o d e r dos chekistas!"
A manifestação foi rapidamente dispersada; sempre há muitos
policiais na praça Lubianka. Nove militantes foram levados para o
FSB antes de ser transferidos para o posto policial de Meschanski.
Por volta das 20:00, oito deles foram libertados. Dois estão hospita-
lizados: IrinaVorobioka, 21 anos, e Alexei Kojin, 19. Eles foram leva-
dos numa ambulância chamada para a recepção do FSB. O presi-
dente da ala j o v e m do Iabloko, IliaYachin, afirmou que Kojin havia
sido espancado pelo tenente Dmitri Streltsov, do FSB. Os militantes
disseram que, q u a n d o começaram a se dispersar depois da manifes-
tação, foram emboscados nas ruas laterais por pessoas em trajes civis,

* De Cheka, agência de repressão às atividades contra-revolucionárias, criada na Rússia,


em 1917. (N. doT.)
JJM D I Á R I O RUSSO 165

que os atacaram. V á r i o s jornalistas da N T V , da E c h o T V e da


sjezauisimaia gazeta t a m b é m foram detidos e os policiais ameaçaram

confiscar suas câmeras. Os jornalistas foram liberados s o m e n t e


depois de tudo o que haviam filmado lhes ter sido tirado.
*
O protesto da J u v e n t u d e Iabloko foi um dos raros exemplos de
resistência política ao Estado policial autocrático na Rússia. No
verão de 2 0 0 4 , a dissidência havia sido r e d u z i d a a apenas duas
variedades: a dos m u i t o ricos e a dos muito pobres. O colapso da
Yukos, a descarada tomada do Guta-Bank e o ataque ao Alfa-Bank
escandalizaram a elite dos negócios, que está enviando seu capital
para o exterior. A s e g u n d a variedade v e m dos m u i t o pobres, à
medida que o governo reduz os benefícios do bem-estar social para
os mais vulneráveis. T a m b é m esta t e m motivação financeira, não
sendo uma dissidência política.
Em julho, a Rússia viu manifestações, apesar de fracas, contra
Putin, por ex-combatentes irritados pela i m i n e n t e eliminação dos
seus benefícios, essenciais à sobrevivência da maioria, mas também
vistos c o m o provas materiais de respeito. Alguns dos e x - c o m b a t e n -
tes ameaçavam boicotar a comemoração do sexagésimo aniversário
da vitória na Segunda G u e r r a Mundial, que será um grande evento.
Os incapacitados pelo acidente nuclear em T c h e r n o b i l realizaram
uma marcha de R o s t o v a M o s c o u para protestar contra a proposta
de pagamento u m a indenização de 1.000 rublos [US$38] mensais
no lugar dos medicamentos gratuitos, sem os quais eles não p o d e m
sobreviver e que custam muito mais de 1.000 rublos. Há desconten-
tamento no exército, t a m b é m devido à perda de benefícios.
Por enquanto, os estratos sociais entre os mais ricos e os mais
pobres estão a d o r m e c i d o s . Q u e m não foi atingido em seu bolso
não tem nada a dizer.

1° de agosto
Aqui está c o m o o Kremlin elimina os candidatos a eleições que ele
desaprova.
Malik Saidullaev acabou de ser desqualificado para concorrer
na eleição presidencial da República T c h e t c h e n a p o r ter um passa-
166 A N N A POLITKOVSKAYA

p o r t e "inválido". Ele era o rival mais sério de Alu Alkhanov, que o


Kremlin decidiu que será o próximo presidente, embora a eleição só
vá acontecer em 29 de agosto. Saidullaev foi desqualificado porque
seu local de nascimento está escrito de forma incorreta no passapor-
te: " A l k h a n - I u r t , T c h e t c h ê n i a " deveria ser " A l k h a n - I u r t , A S S R
T c h e c h e n o - I n g u c h e " , u m a vez que, quando ele nasceu, a aldeia de
Alkhan-Iurt f i c a v a e m u m territorio d e n o m i n a d o C I ASSR.
Está correto, exceto pelo fato de que não foi Malik Saidullaev
q u e m p r e e n c h e u seu passaporte, mas u m f u n c i o n á r i o d o
D i r e t o r a d o B a l a c h i k i n de Assuntos I n t e r n o s , na província de
M o s c o u , q u a n d o os velhos passaportes ao estilo soviético foram
substituídos. "É claro q u e eu esperava que eles encontrassem um
m e i o para me i m p e d i r " , disse Malik Saidullaev n u m a entrevista à
Novaya gazeta, "mas não um tão ridículo. Q u a n d o ouvi a alegação
de que o passaporte era inválido, não a levei a sério."
" O s e n h o r p r e t e n d e q u e s t i o n a r a decisão d a Comissão
Eleitoral?"
" N ã o . A q u e m deveria questionar? Eles r e c e b e m ordens de
M o s c o u . O m e s m o g r u p o de cinco pessoas está de volta, os antigos
m e m b r o s da Comissão Eleitoral Central da Federação Russa, que
atuou na eleição anterior. Eles foram instruídos a encontrar uma
maneira de me desqualificar e foi o que fizeram, só q u e no proces-
so eles se t r a n s f o r m a r a m em o b j e t o de riso i n t e r n a c i o n a l . A
Federação Internacional de Helsinque está preparando um protes-
to. Eles me telefonaram o n t e m para avisar que não permitiriam que
eu me candidatasse. Q u a n d o cheguei a Grozni e fui registrar minha
candidatura na Comissão Eleitoral Central, a sede e eu fomos cer-
cados por h o m e n s armados. Cerca de cem deles."
" D e n t r o de escritórios do governo, c o m segurança própria?
Q u e m eram esses h o m e n s ? "
"Tropas de Kadirov, m e m b r o s da O M O N . * Estavam sob o
c o m a n d o de Sultán Satuev, o vice-ministro do I n t e r i o r ; Ruslan
Alkhanov, outro vice-ministro, t a m b é m estava lá. Exigiram que o
registro da candidatura fosse destruído e que eu saísse. Fui ver Arsa-
khanov, o presidente da Comissão. Homens armados tiraram-no da
sua poltrona. Ele fugiu e foi substituído porTaus Dzabrailov (nomea-
do por Ramzan Kadirov 'presidente do Conselho de Estado da R e -
pública Tchetchena'). Taus disse:'Neste lugar, o que dizemos vale.'"
UM DIÁRIO RUSSO 167

"E o que eles disseram?"


"Disseram que eu saísse. H o u v e uma discussão acalorada. Eles
perceberam que nada p o d e r i a m fazer c o m i g o pela força. Tentaram
desarmar meus seguranças, mas isso era impossível e então eles tive-
ram de recuar. Avisaram-me várias vezes q u e retirariam meu n o m e
de qualquer maneira. Três dias antes da saga do passaporte, recebi
um telefonema da Comissão Eleitoral C e n t r a l me convidando a
retirar voluntariamente minha candidatura, p o r q u e ela seria retira-
da de qualquer forma. Recusei. Essa desqualificação é o início da
fraude da eleição de 29 de agosto. Sei t a m b é m que já foram e n c o -
mendadas duzentas mil cédulas extras em gráficas do Daguestão, a
seis rublos a unidade. Elas serão usadas para fraudar a eleição em
favor de Alkhanov."
"Além desses j o g o s eleitorais, o que o senhor acha que aconte-
cerá na T c h e t c h ê n i a no o u t o n o e no inverno?"
"Haverá problemas. Todas essas gangues legalizadas que estão
atualmente fazendo confusão pela T c h e t c h ê n i a são incapazes de
fazer o p o s i ç ã o às forças q u e e x e c u t a r a m essa o p e r a ç ã o na
Inguchétia.A população está a favor daqueles q u e estão nas m o n t a -
nhas. As pessoas q u e t o m a r a m o poder aqui fizeram o possível para
que isso acontecesse."
"Estão dizendo na Tchetchênia que será inevitável uma tercei-
ra guerra. As pessoas estão escavando novos porões e construindo
abrigos, baseadas na experiência c o m a Segunda Guerra. Esta t e m
sido uma das principais preocupações neste verão. Até que p o n t o o
senhor leva isso a sério?"
"Muito a sério, porque sei que é verdade. Depois da reeleição de
Putin, eu disse q u e haveria operações importantes dos rebeldes, a
menos que fosse dado um basta. E a mesma coisa, só que pior. Os
rebeldes não ficarão inativos neste verão, especialmente porque ante-
riormente não contavam c o m o apoio que t ê m hoje. Eles irão forçar
o outro lado a ir à mesa de negociações. Isso parece sério para mim."
Qual será o destino de R a m z a n Kadirov?"
N ã o vale a p e n a falar nisso. Ele não t e m n e n h u m lugar sério
na república."
E difícil concordar c o m isso."
E claro que, do p o n t o de vista criminal, ele é importante, mas
e
um analfabeto. N ã o teve n e m m e s m o a educação elementar. Se
168 A N N A POLITKOVSKAYA

tiver a sorte de sobreviver e o povo perdoar seus pecados, R a m z a n


deveria receber um b o m tratamento psiquiátrico e educação."

2 de agosto
Um g r u p o de bolcheviques nacionais entrou no edifício do Minis-
tério da Saúde e do Desenvolvimento Social na rua Neglinnaia, no
centro de Moscou. Eles subiram as escadas, fecharam-se no gabinete
do ministro, Mikhail Zurabov; jogaram sua poltrona na rua e c o m e -
çaram a gritar das janelas slogans contra a reforma dos benefícios do
bem-estar social. Eles exigiam as renúncias de Zurabov e Putin.
*
Os manifestantes logo foram presos e, no tribunal, foi declarado
que a poltrona custava US$30.000. C o m o é q u e um Ministro do
B e m - e s t a r Social t e m u m a poltrona tão cara? Inicialmente eles
receberam u m a sentença severa sem precedentes, de cinco anos em
campos de trabalhos forçados, por distúrbio político. A seguir, a
Suprema C o r t e reduziu a pena a três anos e m e i o , a serem c u m p r i -
dos na companhia de assassinos e criminosos reincidentes.
Está claro o q u e o Estado pretende, mas aqui está a posição dos
prisioneiros políticos. Um deles, Maxim Gromov, disse o seguinte
no tribunal: "E i m p o r t a n t e o fato de ter sido m e n c i o n a d o o n o m e
do terrorista Ivan Kaliaev na argumentação do p r o m o t o r . Há cem
anos, u m a série de j u l g a m e n t o s políticos sangrentos t a m b é m p r e -
cedeu a emergência de Ivan Kaliaev. As coisas q u e estavam acon-
t e c e n d o no Estado naquela época garantiram o s u r g i m e n t o da
organização de c o m b a t e de Bóris Savinkov. Estamos sendo julga-
dos p o r um protesto político pelo artigo 2 1 3 , mas, de acordo c o m
este artigo, todos os bajuladores na D u m a deveriam ser julgados.
D u r a n t e muitos anos, seus membros t ê m conspirado para mostrar
seu manifesto desrespeito pela sociedade. N e s t e caso, eles mostra-
ram desrespeito p o r milhões de pessoas incapacitadas, pensionistas
e ex-combatentes e mulheres. Isso é simplesmente u m a desgraça
para a Rússia e para a sociedade de hoje, que nada teve a dizer a
esse respeito."
Ele tem razão. A aprovação da lei que aboliu benefícios mate-
riais e privilégios não provocou indignação n e n h u m a . N ã o ouvi-
u M DIÁRIO RUSSO 169

mos exigências de demissão de Zurabov. Os bolcheviques nacio-


nais são os primeiros a defender os grupos prejudicados pela lei.
Gromov prosseguiu: " E m um Estado policial, tentar combater
a injustiça sem acabar na prisão é tão inútil q u a n t o tentar atirar em
mosquitos c o m um canhão. T e n h o o r g u l h o de estar preso nesta
época cruel e ainda mais pelo fato de n ã o estar sozinho. T e n h o
comigo meus companheiros de luta... Adeus, amigos! Espero que
mais cedo ou mais tarde rompamos o gelo q u e prende nosso país.
Pela liberdade da nossa pátria, devemos ir para a prisão."
Existe aqui algo de que eu discorde? N ã o , endosso cada palavra.
Hoje os bolcheviques nacionais constituem um g r u p o de jovens
idealistas que e n t e n d e m que a geração de oposicionistas mais velhos
deixou de ter impacto. E natural que radicalizem rapidamente.
O que eu descobri de mais perturbador, conversando com eles
e seus pais, cuja maioria é de ex-partidários do Iabloko e da direita
liberal, foi que os pais dizem exatamente o q u e dizem os pais na
Tchetchênia a seu p r ó p r i o respeito e dos seus filhos.Também lá os
jovens estão rapidamente se t o r n a n d o radicais e isto costuma acon-
tecer com os melhores e mais idealistas deles.
Aqui está u m a conversa recente na T c h e t c h ê n i a , c o m a mãe de
um dos jovens que fugiram para as montanhas, c o m o dizem q u a n -
do os jovens vão se j u n t a r a Basaev e Maskhadov* em sinal de p r o -
testo contra os b a n d i d o s " N o v o s T c h e t c h e n o s " q u e t o m a r a m o
poder e contra as atrocidades das tropas federais. A mãe era uma
professora, u m a m u l h e r instruída:
Penso da m e s m a maneira c o m que m e u filho", disse ela e m o -
cionada. "É m e l h o r fazer algo do que esperar que eles venham à
noite e levem seus filhos para onde n i n g u é m sabe. Os federais são
tropas de ocupação e as gangues de Kadirov são colaboradoras b r u -
tais. Não falamos abertamente sobre isso, mas t o d o m u n d o sabe. Os
adultos simplesmente se calam, mas os jovens se recusam a aceitar a
srtuaçào. Um dia, m e u filho desapareceu. Fiquei em pânico. Achei
que tivesse sido raptado e escrevi u m a declaração para a polícia.
Depois fiquei sabendo que ele e seus companheiros tinham fugido
Para as montanhas, para lutar por nós, seus pais. C o n c o r d o plena-
m < ?
n t e com ele."
Liudmila Kalachnikova é a mãe de Ivan Koroliov, um bolche-
V l
q u e nacional. Ela é moscovita e pesquisadora do Instituto de
170 A N N A POLITKOVSKAYA

Estudos Orientais da Academia Russa de Ciências e disse exata-


m e n t e a mesma coisa:
"Pelo que m e u Ivan está lutando? Por nós, pelos seus pais."
D e v o dizer q u e Liudmila não é b o l c h e v i q u e nacional, n e m
comunista. E u m a mulher c o m u m , metropolitana e instruída. Na
década de 1990, apoiava o Iabloko.
" D i g a - m e , L i m o n o v é um ídolo para Ivan?"
" E u não diria isso. Ivan é um rapaz inteligente, mas a posição
de não concordar c o m o mal tem m u i t o apelo para ele."
Eu havia p e r g u n t a d o à mãe tchetchena:
"Seu filho idolatra Basaev?"
" N ã o , nunca ouvi dele nada deste gênero, mas foi para Basaev
que ele foi. Para o n d e mais poderia ir? Os rapazes idealistas como ele
são levados, pelos longos anos de vida nas circunstâncias que temos
aqui, em m e i o a todas as mentiras, aos derramamentos de sangue,
sequestros e assassinatos, a reconhecer Basaev c o m o comandante."
L i m o n o v e Basaev tornaram-se os líderes dos jovens que não
conseguem aceitar a existência oferecida p o r Putin, uma vida em
condições de total injustiça e desrespeito catastrófico pela vida
humana. São Liminov e Basaev que m a n t ê m viva a esperança em
nossos filhos, de q u e algum dia eles p o d e r ã o sentir que são seres
humanos decentes. E espantoso, mas é assim que as coisas estão.
As pessoas ficam escandalizadas q u a n d o c o m e ç o a falar assim.
Elas dizem que é tolice, falam para eu calar a boca e que irei atrair
o olho do mal. Q u a n d o escrevi sobre este assunto para m e u jornal,
o editor-chefe c o r t o u o parágrafo porque, e m b o r a pudesse concor-
dar c o m o que eu estava dizendo, não poderia imprimir aquilo.
Este é nosso estilo, fechar os olhos à realidade até que ela nos
atinja c o m o um tufão. C o m o a maioria das pessoas, acho assustador
que nossos filhos t e n h a m sido reduzidos a isto, mas sei c o m o as coi-
sas estão hoje. Mas o que querem nossas autoridades? Será que são
suicidas? Será q u e estão esperando c a l m a m e n t e pela aparição de
novos Kaliaevs, Zasulitches e Savinkovs, aqueles terroristas cujo
advento foi provocado pelos czares?
Ou será q u e eles são simplesmente estúpidos, vivendo para o
m o m e n t o ? H o j e , e n q u a n t o estão no poder, estão se enchendo de
dinheiro e não pensam no amanhã. Então o m e l h o r a fazer é agar-
rar-se à mina de o u r o pelo máximo de t e m p o possível? Estar no
u M DIÁRIO RUSSO 171

poder na Rússia nada mais significa do que tirar o m á x i m o possí-


vel de dinheiro? A c h o que eles são estúpidos.

9 de agosto
Está reunido em M o s c o u o que há de m e l h o r do m o v i m e n t o russo
pelos direitos h u m a n o s , a fina flor da nação, congregada no C e n t r o
Andrei Sakharov. Alguns anos atrás, eles f o r m a r a m um g r u p o de
trabalho d e n o m i n a d o Ação Conjunta para se reunir e, em tempos
de crise nacional, tentar chegar a u m a posição c o m u m .
Hoje não estão discutindo o protesto dos bolcheviques nacio-
nais, n e m por q u e ele ocorreu; a reunião é para analisar por que a
culpa está sendo atribuída ao m o v i m e n t o pelos direitos humanos,
um exercício de olhar para o próprio u m b i g o m u i t o típico da nossa
sociedade civil.
Em t o r n o da mesa, estão muitas das pessoas a q u e m Putin cri-
ticou em seu Discurso à Assembléia Federal em 26 de maio, cha-
mando-as de quinta coluna que c o m e da m ã o do Ocidente, acu-
sando-as de estarem mais preocupadas c o m a obtenção de fundos
do Ocidente do q u e c o m ajudar pessoas. O debate foi longo, mas
não chegou a n e n h u m a conclusão. U m a n o t a alarmante foi que
alguns dos participantes imaginam q u e P u t i n está sendo enganado,
que não lhe passaram o verdadeiro quadro. O czar é b o m , mas seus
assessores são maus. U m a velha história russa.
E u m a pena. Os ativistas não mais estão ativos. R e s t o u neles
pouca paixão. Eles aprenderam demais c o m experiências amargas e
tem pouco desejo de ir em frente. Isso vale para a maioria, mas não
para todos.
Além de discutir sua desagradável situação, eles decidiram que
o movimento pelos direitos humanos deveria boicotar as próximas
eleições presidenciais na Tchetchênia, o q u e significa que eles não
iriam atuar c o m o observadores.
(Apesar da resolução, tomada p o r votação, alguns dos presentes
a
reunião c o m p a r e c e r a m às eleições na Tchetchênia, viram o que
aconteceu e fizeram suas declarações.)
Aliás, 9 de agosto é o quinto aniversário da proclamação, p o r
leltsin, de P u t i n c o m o primeiro-ministro em exercício — isto é, seu
sucessor. U m a guerra estava em fermentação no Daguestão. Basaev
172 A N N A POLITKOVSKAYA

estava p r o m o v e n d o tumultos nas aldeias das montanhas e as tropas


russas permitiram q u e ele entrasse no Daguestão e saísse de novo.
Milhares de refugiados deixaram as m o n t a n h a s , mas n e n h u m dos
assessores de Ieltsin concordava c o m o início de operações milita-
res em escala total — u m a Segunda Guerra T c h e t c h e n a . A primeira
havia lhes custado m u i t o caro.
B e m , n a v e r d a d e , havia u m h o m e m q u e teria c o n c o r d a d o :
Putin. Então diretor do FSB, sob cuja gestão Basaev havia conse-
guido escapar e H a t t a b (um militante saudita de o r i g e m palestina)
havia sido d e i x a d o livre na T c h e t c h ê n i a para ensinar a todos os
jovens que v i n h a m para ouvi-lo. Putin ficava em Moscou, via tudo
— não podia deixar de ver — e nada dizia. Ele permitiu o amadure-
cimento dos frutos do mal.
Em agosto de 1999, ele decidiu que estava na hora de destruir
os resultados das suas atividades antes que elas fossem descobertas.
Acredito que esta seja a única razão pela qual ele concordou em
iniciar a S e g u n d a G u e r r a T c h e t c h e n a . Foi assim que Ieltsin, em
rápida deterioração, veio a nomear P u t i n inicialmente primeiro-
ministro em exercício, depois primeiro-ministro e finalmente pre-
sidente da Rússia. Desde agosto de 1999, P u t i n não t e m deixado de
a t o r m e n t a r seus concidadãos n e m de d e r r a m a r o sangue não só
daqueles que vivem na Tchetchênia.
E m e i o - d i a e o sol brilha em Verkhni Tagil, u m a pequena e
silenciosa cidade na província de Sverdlovsk, nos Urais. Além dela,
fica a impenetrável floresta da taiga. Aqui é o coração da Rússia.
Um velho m e i o cego e andrajoso está na entrada de um prédio
alto. E Vladimir K u z m i t c h K h o m e n k o , cujo filho Igor, oficial do
R e g i m e n t o d e Pára-quedistas que m o r r e u n a T c h e t c h ê n i a , foi
declarado H e r ó i da Rússia. A p o r t a do a p a r t a m e n t o térreo de
Vladimir está aberta. "Entre, por favor, e n t r e " , diz ele, c o m o se fôs-
semos velhos amigos. Ou Vladimir está m u i t o satisfeito em nos ver
ou é muito solitário. No corredor, Liudmila Alexeievna, sua mulher
e mãe do H e r ó i , beija_ todos c o m calor e nos c o n d u z à sala. Um
canto inteiro dela está cheio de retratos, flores, imagens e velas. E
um memorial ao filho deles. O capitão Igor K h o m e n k o foi um dos
primeiros enviados ao n o r t e do Cáucaso sob o decreto assinado
pelo r e c é m - n o m e a d o primeiro-ministro em exercício, V. V. Putin.
Seu r e g i m e n t o abriu as hostilidades da S e g u n d a G u e r r a T c h e t -
UM DIÁRIO R U S S O 173

chena, q u e , na ocasião, ainda estava l i m i t a d a à fronteira e n t r e


Tchetchênia e o Daguestão. Q u a n d o chegaram, eles entraram em
combate imediatamente e, em 19 de agosto, Igor K h o m e n k o reali-
u um feito notável. Para localizar as posições de fogo dos rebel-
z 0

des, ele conduziu um g r u p o de r e c o n h e c i m e n t o a uma montanha


das proximidades.
K h o m e n k o descobriu as posições, passou a informação ao seu
regimento e p e r m a n e c e u , j u n t a m e n t e c o m seu sargento, para dar
cobertura à retirada do grupo e travar u m a batalha que ele sabia
que seria desigual. Foi lá que os dois m o r r e r a m , tendo salvado a
vida de muitos h o m e n s . Seu corpo foi e n c o n t r a d o pelos camaradas
três dias depois, mas eles não conseguiram se aproximar dele devi-
do ao tiroteio intenso. A pátria do capitão r e c o n h e c e u seu ato, c o n -
cedendo-lhe o título de Herói da Rússia. No m o m e n t o da m o r t e
do filho, seus pais t i n h a m acabado de se t o r n a r cidadãos da Ucrânia.
Eles viviam n u m a casa modesta na província de Dnepropetrovsk.
A história deles é de uma família soviética típica. Até hoje cos-
tuma ser difícil d e t e r m i n a r a cidadania pós-soviética de uma pes-
soa. Igor cresceu em Iakutia, no e x t r e m o n o r t e russo, para o n d e
seus pais haviam sido enviados depois de formados para construir
uma usina de e n r i q u e c i m e n t o de minério. A conclusão do período
prescrito de serviço em Iakutia lhes deu o direito a u m a pensão
antecipada e eles decidiram retornar ao calor do sul, c o m o faziam
quase todos na sua situação. Eles escolheram a Ucrânia, c o m seu
clima maravilhoso. Q u a n d o deixou a escola, Igor m u d o u - s e da
Ucrânia soviética para o Cazaquistão soviético, o n d e havia u m a
prestigiosa academia militar. Tendo se f o r m a d o em 1988, c o m a
U R S S ainda intacta, ele foi enviado a vários pontos de conflito. Ele
era para-quedista e os problemas estavam sempre surgindo. Logo a
U R S S se fragmentou e os pais de Igor se t o r n a r a m cidadãos da
Ucrânia, e n q u a n t o ele se tornava cidadão da Rússia, porque, no
m o m e n t o da fragmentação, ele estava ligado a u m a unidade militar
cujo quartel-general ficava em território russo. O capitão m o r r e u
com a região de Stavropol (Rússia), registrada c o m o local de nasci-
mento. Seu t ú m u l o fica lá, perto da unidade militar.
Depois do funeral do filho, Liudmila e Vladimir decidiram se
mudar para p e r t o do t ú m u l o do filho, na Rússia. Venderam sua
cabana pelo m e l h o r preço que p u d e r a m conseguir, o que era m u i t o
174 A N N A POLITKOVSKAYA

pouco, mas, q u a n d o chegaram a Stavropol, as autoridades se recu-


saram até m e s m o a registrá-los c o m o candidatos à residência per-
manente. Eles insistiram, escreveram petições e durante meses fize-
ram a r o n d a diária dos escritórios da a d m i n i s t r a ç ã o distrital.
Finalmente, o dinheiro da venda da cabana acabou e eles ficaram na
miséria. Os pais do Herói foram a Verkhni Tagil, nos Urais, onde
Liudmila fora criada e ainda tinha alguns parentes, ainda que dis-
tantes. Eles foram b e m recebidos, mas seus parentes também eram
muito pobres, c o m o t o d o m u n d o na província de Sverdlovsk, e lá
não havia lugar para eles viverem.
"Estamos sem teto. Aqui só nos p e r m i t e m viver da bondade das
pessoas." Liudmila nos mostra o apartamento. " N ã o temos nada,
não temos o n d e viver. Só tenho este ferro de passar roupa e esta
máquina de costura. E a televisão. Os jovens são bondosos, eles nos
ajudam muito. S e m eles, já teríamos m o r r i d o . Eles cuidam de nós
por causa de Igor, apesar de nunca o t e r e m conhecido."
Os "jovens" em fila j u n t o à parede o l h a m para o chão e nada
dizem. São " t c h e t c h e n o s " de Berkhni Tagil, soldados e oficiais que
combateram na Tchetchênia, e eles formaram u m a associação local
de ex-combatentes.
" N o s s o objetivo é muito simples", c o n t o u - m e Ievgeni B o z -
makov, presidente da associação. "E ajudar uns aos outros a sobrevi-
ver. Essa é nossa única missão e é por isso q u e ajudamos os pais do
Herói Khomenko."
" F o r a m eles q u e conseguiram a cidadania russa para n ó s " ,
prossegue Liudmila. "Eles visitaram todos os escritórios por nós,
caso contrário n ã o teríamos uma pensão." Assim são as regras da
vida russa. U m a pessoa que não seja cidadã russa, mesmo que tenha
trabalhado a vida inteira na U R S S , não t e m direito a pensão.
Liudmila c o m e ç a a chorar, silenciosa e tristemente. Vladimir
abraça seus o m b r o s e ela diz, agora falando c o m ele: " N ã o , não, está
tudo b e m , eu sei.Vou parar de chorar. Só quero contar a ela. O que
será de nós?"
Ela nos mostra u m a pilha de papéis, a correspondência entre os
pais de um H e r ó i da Rússia e várias organizações oficiais e com o
Ministério da Defesa. As cartas dos funcionários estão cheias de
desdém.
UM DIÁRIO RUSSO 175

" C o m o parentes de um Herói da Federação Russa m o r t o na


R e g i ã o N o r t e d o Cáucaso d a F e d e r a ç ã o Russa, vocês t ê m
direito a u m a melhoria nas suas condições de vida através de
recursos do F u n d o Militar Nacional. Ao m e s m o tempo, devo
informá-los de que, em conseqüência da falta de contribuições
voluntárias, o programa ' H a b i t a ç õ e s para C o m b a t e n t e s ' está
suspenso. V. Zvezdilin, Diretor em Exercício da Diretoria de
B e m - E s t a r dos Militares do C o n s e l h o C e n t r a l das Forças
Armadas da Federação Russa."

Enviamos pessoas ao campo de batalha, depois as enterramos


com p o m p a e cerimônia, c o n c e d e m o s medalhas póstumas — e nos
esquecemos delas. E uma tradição russa evitar a responsabilidade
por nossas dívidas. N u n c a ocorreu a P u t i n — pelo menos nunca o
ouvimos admitir — q u e ele é responsável p o r aqueles que pagaram
com a vida pela decisão dele de iniciar a Segunda Guerra T c h e t -
chena.
Fui a Verkhni Tagil c o m Liudmila Leonidovna Polimova, m ã e
de o u t r o s o l d a d o m o r t o na T c h e t c h ê n i a , o u t r a m ã e a q u e m o
Estado esqueceu depois de tirar a vida do seu filho. Ela passou mal
ao ver a cena na casa dos K h o m e n k o . " M e u rapaz m o r r e u p r o t e -
gendo um oficial c o m seu corpo. Eles lhe deram postumamente a
Ordem do M é r i t o . " Ela diz que todos precisam unir seus esforços.
Em Iekaterinburg, o n d e mora, Liudmila já criou u m a associação
chamada Mães C o n t r a aViolência.
No dia seguinte,Viacheslav Zikov, presidente da Associação de
E x - c o m b a t e n t e s d e Iekaterinburg, o u t r o soldado " t c h e t c h e n o " ,
leva Liudmila até Bolchaia R e t c h k a , u m a cidadezinha nos a r r e d o -
res de Iekaterinburg o n d e fica o c e m i t é r i o militar. Lá estão e n t e r -
rados os restos do seu filho, o soldado Ievgeni Polimov, q u e ela
mesma precisou encontrar numa m o n t a n h a de corpos de soldados
e m R o s t o v - o n - D o n . O s generais n ã o vão procurá-lo p o r v o c ê ,
nem qualquer outra pessoa. Os pais precisam viajar pessoalmente
a c
e R o s t o v - o n - D o n e procurar os cadáveres dos seus filhos no
necrotério do Distrito Militar do N o r t e do Cáucaso.
Um cortejo funerário avança em nossa direção, deixando o c e -
mitério. Eles acabaram de e n t e r r a r um oficial m o r t o na T c h e t -
ehênia. Pelas janelas do ônibus, vemos mulheres de preto.
176 A N N A POLITKOVSKAY.

"O ú l t i m o " , comenta Liudmila, q u e segue sozinha até o t ú m u -


lo do filho. Ela não pede que nos j u n t e m o s a ela. Carrega seu sofri-
m e n t o sozinha e procura ajudar outros na mesma situação.
M u i t o s jovens foram levados da província de Sverdlovsk para
lutar na T c h e t c h ê n i a e mais de 20 mil ex-combatentes "tchetche-
n o s " vivem lá hoje. A região está pontilhada de placas e m o n u m e n -
tos em m e m ó r i a daqueles que lá m o r r e r a m . Ao lado do Clube dos
Oficiais, na praça central de Iekaterinburg, eles já acrescentaram
uma seção tchetchena ao memorial Tulipa N e g r a , uma espécie de
anexo ao m o n u m e n t o aos h o m e n s dos Urais que m o r r e r a m no
Afeganistão na última guerra da era soviética. Esta nova seção já
t e m 412 n o m e s gravados em ouro. Há obeliscos em branco para
aqueles q u e c e r t a m e n t e irão morrer.
Q u a n t o s mais desses caixões iremos tolerar? Q u a n t o s novos
aleijados, sem pernas e braços? Cada soldado m o r t o ou mutilado na
S e g u n d a G u e r r a T c h e t c h e n a a u m e n t a a responsabilidade d o
Estado, q u a n d o este ainda não está pagando suas dívidas existentes.
C o m o entidade falida, ele começa a atrasar os pagamentos, tentan-
do ocultar sua falência c o m medidas c o m o a desprezível reforma
nos benefícios. Ele tira até m e s m o os p e q u e n o s privilégios dos
incapacitados, dos "tchetchenos", das mães de soldados que foram
mortos, privilégios estes que eram um gesto de compensação pela
sua aventura no n o r t e do Cáucaso.
O n ú m e r o daqueles para q u e m o E s t a d o t e m dívidas é de
milhões, m o t i v o pelo qual vimos Putin e Z u r a b o v dizendo que o
n ú m e r o de pessoas c o m privilégios na Rússia é artificialmente alto.
N e n h u m o u t r o país tem tantos requerentes; assim sendo, "alguma
coisa precisa ser feita". É claro que o n ú m e r o é artificialmente alto,
devido às constantes políticas agressivas do nosso Estado, que p r o -
d u z e m baixas de guerra c o m o cogumelos depois da chuva.
"Muitas pessoas do nosso povo acabam na cadeia", diz Vitali
Volkov. Ele preside a Associação Verkhniaia Salda de E x - c o m b a t e n -
tes da T c h e t c h ê n i a , que tem 200 m e m b r o s . "Estamos sem um c e n -
tavo. N ã o c o n s e g u i m o s e m p r e g o . M u i t o s dos q u e voltam d a
T c h e t c h ê n i a c o m e ç a m a roubar e a etapa seguinte é a prisão. E
q u e m sai de nossas prisões ainda c o m o ser h u m a n o ? Se antes da
prisão você esteve na Tchetchênia e antes da Tchetchênia você era
criança?"
UM DIÁRIO RUSSO 177

Essas associações dirigidas por Liudmila Polimova,VitaliVolkov


eViatcheslav Z i k o v foram fundadas q u a n d o o infortúnio atingiu
pessoalmente seus fundadores. Eles a d m i t e m que nunca imagina-
ram que a c a b a r i a m se e n v o l v e n d o em atividades de b e m - e s t a r
social, n e m q u e começariam a combater a máquina do Estado. Suas
organizações n ã o t ê m objetivos p o l í t i c o s . São u m p r o d u t o d o
desespero e existem puramente para ajudar pessoas a sobreviver. A
sobrevivência é tão difícil que não deixa t e m p o para mais nada.
Por q u a n t o t e m p o o povo agüentará isso? Essa é a pergunta
decisiva para a Rússia, c o m o é para a Ucrânia.

29 de agosto
Na T c h e t c h ê n i a , prosseguia a eleição do p r ó x i m o presidente de
Putin. N ã o é preciso dizer q u e o c a n d i d a t o do Kremlin teve a
maioria esmagadora dos votos. Alu A l k h a n o v p o d e ser n o m i n a l -
mente o novo presidente, mas o verdadeiro chefe é o perturbado
Ramzan Kadirov, o filho de 27 anos do antecessor assassinado de
Alkhanov q u e , p o r sua vez, t a m b é m havia sido eleito c o m u m a
"esmagadora maioria dos votos".
Q u e m é R a m z a n ? Durante o ú l t i m o ano e meio, ele cuidou da
segurança do pai. Depois do assassinato do presidente, talvez sur-
preendentemente, ele não foi d e m i t i d o p o r seu lapso, mas p r o m o -
vido pessoalmente por Putin ao alto posto de primeiro v i c e - p r i -
m e i r o - m i n i s t r o d o G o v e r n o T c h e t c h e n o , c o m responsabilidade
especial pela segurança. Hoje ele está encarregado da polícia, de
todas as subdivisões de Operações Especiais e da O M O N t c h e t -
chena. Apesar de não ter instrução, ele t e m o posto de capitão da
polícia. Isto é surpreendente, p o r q u e ele não é policial e na Rússia,
para ser capitão, é exigida educação superior. De qualquer m a n e i -
ra, hoje ele t e m o direito de dar ordens a coronéis e generais de car-
reira. E eles o b e d e c e m , porque sabem q u e ele é o favorito de Putin.
Q u e espécie de pessoa é R a m z a n ? De q u e tipo de qualificações
voce necessita para ser um favorito de P u t i n ? Ter e s m a g a d o a
Tchetchênia sob seus pés e forçado a R e p ú b l i c a inteira a lhe pres-
tar tributo c o m o a um bei asiático é c e r t a m e n t e meritório.
R a m z a n raramente é visto fora da sua aldeia de Tsentoroi, u m a
das mais feias da T c h e t c h ê n i a , hostil e repleta de mal-encarados
A N N A POLITKOVSKAYA

armados. A aldeia é um conjunto de ruas estreitas e empoeiradas,


confinadas p o r cercas enormes. Atrás da maioria delas, vivem m e m -
bros da família Kadirov e as famílias dos guarda-costas e soldados
do "Serviço de Segurança Presidencial".
Há cerca de dois anos, os habitantes de Tsentoroi em q u e m
Kadirov n ã o confiava foram s i m p l e s m e n t e expulsos e suas casas
dadas aos b r u t a m o n t e s do Serviço de Segurança, que é ilegal, mas
b e m e q u i p a d o c o m a r m a m e n t o federal. C o m o não está formal-
m e n t e ligado a n e n h u m dos ministérios de segurança, ele é u m a
"formação armada ilegal"; sua situação não difere daquela das t r o -
pas de Basaev, exceto pelo fato de ser c o m a n d a d o por um favorito
de Putin. Então, t u d o bem.
Os h o m e n s de Kadirov participam de operações de combate
c o m o se fossem soldados do M i n i s t é r i o da Defesa; p r e n d e m e
i n t e r r o g a m pessoas c o m o se fossem a g e n t e s do M i n i s t é r i o do
I n t e r i o r . E m a n t ê m pessoas p r i s i o n e i r a s nos seus p o r õ e s em
Tsentoroi e as torturam c o m o se fossem gángsteres.
N e n h u m procurador questiona nada disso.Tudo é abafado. Eles
sabem o n d e não devem meter o nariz. Tsentoroi está acima da lei,
por vontade de Putin. As regras que se aplicam às outras pessoas não
se aplicam a R a m z a n . Ele pode fazer o q u e quiser, porque dizem
que c o m b a t e terroristas usando seus próprios métodos. Na verda-
de, ele não está c o m b a t e n d o n i n g u é m . Está no ramo de r o u b o e
extorsão, disfarçado de "luta contra o t e r r o r i s m o " .
A capital da T c h e t c h ê n i a foi efetivamente transferida para a
propriedade de R a m z a n . Funcionários tchetchenos pró-russos vão
até lá para se curvar diante desse tolo degenerado, para pedir qual-
quer permissão de que necessitam ou q u a n d o são convocados. E
todos v ê m , inclusive Sergei Abramov, o j o v e m primeiro-ministro
da T c h e t c h ê n i a que supostamente é subordinado direto do p r i m e i -
ro-ministro da Rússia e não de R a m z a n Kadirov.
Na realidade, p o r é m , é em Tsentoroi q u e as decisões são t o m a -
das. Lá foi t o m a d a a decisão de indicar Alkharov para a Presidência
e hoje ele é o presidente.
R a m z a n raramente viaja até Grozni, p o r q u e teme ser assassina-
do. A viagem leva u m a hora e meia. É p o r isso que Tsentoroi é a
fortaleza q u e é, c o m um sistema de segurança em seus acessos que
faria inveja ao Kremlin: uma série de postos de controle, um depois
UM DIÁRIO RUSSO 179

do outro. Passo p o r todos eles e me vejo naquela que os h o m e n s


armados q u e me cercam descrevem c o m o "casa de hóspedes". Sou
detida aqui p o r seis ou sete horas. Cai a tarde. Na Tchetchênia, isso
significa q u e n ã o se deve p e r d e r t e m p o para e n c o n t r a r a b r i g o .
Q u e m quiser ficar vivo se esconde na sua toca.
" O n d e está R a m z a n ? " , pergunto. Ele concordou em me ver.
"Logo, l o g o " , resmunga o guardião da casa de hóspedes e agora
meu guardião.
Sempre há alguém comigo. Vakha Visaev se apresenta c o m o
diretor da Iugoilprodukt, a nova refinaria de petróleo em G u d e r -
mes, a segunda maior cidade da T c h e t c h ê n i a . Ele se oferece para me
mostrar a casa de hóspedes. Ela n ã o está mal montada. Há u m a
fonte no pátio, feia, mas ainda assim u m a fonte. Móveis de b a m b u
adornam um terraço aberto c o m pilares. Vakha faz muita questão
de mostrar as etiquetas, que indicam q u e os móveis v ê m de H o n g
Kong. E m u i t o provável que tenha pago p o r eles. As pessoas não
medem esforços para presentear R a m z a n , para suborná-lo.Todos se
l e m b r a m de q u e o chefe da r e g i ã o v i z i n h a de C h a l i , A k h m e d
Gutiev, não pagou o tributo exigido a R a m z a n . Ele foi seqüestra-
do, t o r t u r a d o e sua família p r e c i s o u pagar um resgate de
US$100.000. A k h m e d emigrou p r o n t a m e n t e e um novo candidato
ao suicídio foi indicado para governar a região de Chali. C o n h e c i
Gutiev. Era um j o v e m promissor, q u e respeitava Putin e achava q u e
a escolha de R a m z a n era certa nas circunstâncias, uma vez q u e a
maior prioridade deveria ser eliminar os Wahhabis.* P e r g u n t o - m e
se ele ainda pensa assim.
Mas voltemos à propriedade de R a m z a n . Na parede oposta à
entrada principal, há uma lareira de m á r m o r e cinza-esverdeado. A
direita, fica u m a sauna, u m a banheira de hidromassagem e u m a pis-
cina. Mas o destaque fica para os dois e n o r m e s quartos, equipados
com camas tamanho estádio. Um é azul, o outro rosa.
Por toda parte, há móveis pesados, escuros e opressivos, todos
com as etiquetas de preço à vista, em milhares de "unidades c o n -
vencionais" (isto é, dólares). Há u m a etiqueta de preço no espelho
do banheiro, no vaso sanitário, no porta-toalhas. E v i d e n t e m e n t e ,
e s t
a é a moda emTsentoroi.
A excursão inclui uma visita ao m o d e s t o escritório de R a m -
Z a
n , m u i t o escuro, ao lado de um dos quartos. Sua principal peça de
180 ANNAP O L 1 T K O V S K A Y A

decoração é um tapete de parede daguestani mostrando, ao estilo


do realismo socialista, o falecido A k h m e d Kadirov vestindo um
chapéu de astracã contra um fundo preto. Ele é retratado c o m uma
expressão angelical no rosto, seu queixo apontando para a frente.
D e p o i s q u e escurece, surge R a m z a n , r o d e a d o p o r h o m e n s
armados. Eles estão por toda parte: no pátio, no balcão, nas salas.
P o u c o depois, alguns se envolvem em nossa conversa, c o m e n t a n d o
em voz alta e de forma agressiva. R a m z a n se esparrama n u m a p o l -
trona e cruza as pernas.
" Q u e r e m o s restaurar a o r d e m não só na Tchetchênia, mas em
todo o n o r t e do Cáucaso", começa R a m z a n . " P a r a que possamos ir
a qualquer m o m e n t o até Stavropol ou Leningrado. C o m b a t e r e m o s
em qualquer parte da Rússia. Tenho u m a diretiva para operar em
todo o n o r t e do Cáucaso. Contra os bandidos."
" Q u e m o senhor chama de bandidos?"
"Maskhadov, Basaev e outros c o m o eles."
"O s e n h o r acredita que a missão de suas tropas é encontrar
Maskhadov e Basaev?"
"Sim. Isto é o principal: destruí-los."
" T u d o o q u e foi feito em seu n o m e até agora é destruir e liqui-
dar. N ã o acha que já houve combates demais?"
"E claro que sim. Setecentas pessoas já se renderam a nós e hoje
t ê m u m a vida n o r m a l . Pedimos aos outros que desistam dessa resis-
tência insensata, mas eles continuam lutando. E por isso que preci-
samos exterminá-los. Hoje pegamos três. Matamos dois. Um deles
era um grande emir, N a c h k h o , do g r u p o de D o k u Umarov. Ele era
i m p o r t a n t e lá. Mas nós o m a t a m o s . Na Inguchétia. Todos estão
enterrados lá."
" M a s q u e direito vocês têm de matar alguém? Ainda mais na
Inguchétia, q u a n d o formalmente vocês são o Serviço de Segurança
do presidente da Tchetchênia?"
" T e m o s t o d o direito. Realizamos essa operação em conjunto
c o m o FSB da Inguchétia.Temos todas as permissões oficiais neces-
sárias." (Mais tarde foi provado que isso era u m a mentira.)
" A t u a l m e n t e , dentro da Tchetchênia, além das suas tropas, há
em operação tropas de Kokiev, de Iamadev etc."
"Você não deve chamar essas tropas pelos nomes de seus líderes.'
" P o r q u e não? O senhor não acha q u e há muitos deles?"
u M DIÁRIO RUSSO 181

" O q u ê , d e tropas? O O M O N t c h e t c h e n o tem somente t r e -


zentos h o m e n s . Em outras regiões, o O M O N chega a setecentos
ou oitocentos. Os homens de Kokiev são do exército. Logo serão
retirados."
" E m março, p o u c o antes de P u t i n ser reeleito, K h a m b i e v (o
ministro da Defesa da Itchkeria) rendeu-se ao senhor. O q u e ele
está fazendo agora? T a m b é m está recrutando tropas?"
"Você quer que eu o traga aqui? Se eu der a ordem, ele será
trazido."
" N ã o é um p o u c o tarde? Ele deve estar dormindo."
"Se eu der a ordem, ele será despertado. N ó s o usamos c o m o
negociador c o m os bandidos. Eles o c o n h e c e m . Ele era b o m nisso
anteriormente, p o r exemplo, c o m Turlaev. Você quer que eu t a m -
bém m a n d e trazer Turlaev? [Chaa Turlaev era o chefe da guarda
pessoal de Maskhdov. T a m b é m se r e n d e u quando foi gravemente
ferido.] K h a m b i e v também não terá mais homens. N ó s seremos os
únicos c o m tropas."
" N a imprensa, Khambiev admitiu q u e era um traidor."
"Isso é mentira. Apenas escreveram isso. Ele não é um traidor."
" C o m o descreve pessoalmente a rendição de Maskhadov? Ele
virá ao senhor e dirá:'Aqui estou e u ' ? "
"Sim."
"Ele não p o d e fazer isso. A diferença de idade entre vocês é
grande demais. O senhor é um garoto, comparado c o m ele."
"Talvez. Q u e escolha ele tem? Se não vier por conta própria,
nos iremos buscá-lo. Vamos colocá-lo n u m a jaula."
" R e c e n t e m e n t e o senhor publicou um ultimato para aqueles
que ainda não tinham se rendido. Era dirigido a Maskhadov?"
' N ã o , esse foi para garotos de dezessete e dezoito anos q u e não
sabem de nada. Eles foram enganados p o r Maskhadov e foram para
as florestas. Suas mães estão c h o r a n d o e me implorando: ' A j u d e -
nos, R a m z a n , a ter nossos filhos de volta.' Elas a m a l d i ç o a m
Maskhadov. Portanto, este é um ultimato para as mulheres vigiarem
seus filhos mais de perto. Estou dizendo a elas que e n c o n t r e m seus
filhos depressa ou não nos c u l p e m depois...Aqueles que não se r e n -
derem serão exterminados. É claro."
Mas talvez esteja na hora de parar de exterminar pessoas e
sentar p a r a negociar."
\H2 A N N A POLITKOVSKAYA

" C o m quem?"
" C o m todos os tchetchenos q u e estão lutando."
" C o m Maskhadov? Ele não é n i n g u é m aqui. N i n g u é m o b e d e -
ce a suas ordens. A figura principal é Basaev. Ele é um guerreiro
poderoso, sabe combater, é um b o m estrategista. E um b o m tchet-
cheno. Mas Maskhadov é um velho ridículo, incapaz de fazer qual-
quer coisa." (Ele gargalha, relinchando c o m o um cavalo. Todos os
presentes o imitam.) "Ele t e m s o m e n t e dois garotos que o seguem.
Posso provar isso e escrevo. Atualmente, Maskhadov t e m mulheres.
Eu as c o n h e ç o . Elas me disseram: 'Se nos recusássemos, seríamos
mortas. N ã o tínhamos emprego e ele nos deu dinheiro.'"
"Está dizendo que Maskhadov t e m um batalhão de mulheres?"
" N ã o . N ó s quebramos Maskhadov. Agora ele tem outras pessoas."
" P e r c e b o um desrespeito p o r Maskhadov em suas palavras, mas
um claro respeito por Basaev."
" R e s p e i t o Basaev c o m o guerreiro. Ele não é covarde. R e z o a
Alá para q u e possamos nos e n c o n t r a r e m c o m b a t e a b e r t o . U m
h o m e m sonha em ser presidente, o u t r o em ser piloto, um outro em
ser motorista de trator - mas m e u s o n h o é lutar contra Basaev em
c a m p o aberto. Minhas tropas contra as dele. Ele no c o m a n d o , eu no
comando."
"E se ele vencer?"
"Impossível. Em batalha, eu sempre venço."
" N a T c h e t c h è n i a , falam m u i t o de sua rivalidade c o m a família
Iamadev." (Irmãos de Gudermes. Khalid é deputado na D u m a pelo
R ú s s i a U n i d a e Salim é s u b c o m a n d a n t e militar da R e p ú b l i c a
T c h e t c h e n a . Eles controlam tropas poderosas. D i z e m que R a m z a n
trabalha para o FSB, ao passo q u e os Iamadev trabalham para a
Diretoria Central de Inteligência do Exército.)
" N ã o é u m a boa idéia ser m e u rival. Faz mal à saúde."
" Q u e aspecto de sua personalidade o senhor considera mais
importante?"
"O q u e você quer dizer? N ã o entendi a pergunta."
" Q u a i s são seus pontos fortes? E seus pontos fracos?"
" N ã o t e n h o pontos fracos. Sou forte. Alu Alkhanov foi eleito
presidente p o r q u e eu o considero forte e confio totalmente nele.
Você acha q u e o Kremlin decide isso? As pessoas escolhem. Esta e
UM DIÁRIO RUSSO 183

a primeira vez que me d i z e m q u e o Kremlin t e m voz ativa em


alguma coisa."
Estranho, mas foi o que ele disse.
M e n o s de uma hora depois, R a m z a n estava dizendo q u e abso-
lutamente t u d o era decidido pelo Kremlin, que as pessoas eram
apenas gado e a presidência da T c h e t c h ê n i a lhe havia sido ofereci-
da no Kremlin imediatamente depois do assassinato do seu pai, mas
ele tinha recusado porque queria combater.
"Se vocês nos deixassem em paz, nós, tchetchenos, teríamos
nos reunido há muito tempo."
" O que você quer dizer c o m 'vocês'?"
"Jornalistas, pessoas c o m o você. Políticos russos.Vocês não nos
deixam escolher as coisas. Vocês nos dividem.Vocês ficam entre os
tchetchenos.Vocês são o inimigo.Vocês são piores do q u e Basaev."
"Quais são seus outros inimigos?"
" N ã o tenho inimigos. Só bandidos para combater."
"O senhor pretende ser presidente da Tchetchênia?"
"Não."
"O que o senhor mais gosta de fazer?"
"Lutar. Sou um guerreiro."
"Já matou alguém?"
" N ã o . Sempre estive no c o m a n d o . "
" M a s o s e n h o r é j o v e m d e m a i s para sempre ter estado no
comando. Alguém deve ter lhe dado ordens um dia."
" S o m e n t e m e u pai. Mais n i n g u é m me deu ordens, n e m dará."
"Já deu ordens para matar?"
"Sim."
"Isso não é horrível?"
" N ã o sou eu, é Alá. O Profeta disse que osWahhabis devem ser
destruídos."
" E l e disse isso r e a l m e n t e ? E q u a n d o n ã o h o u v e r mais
Wahhabis, q u e m o senhor irá c o m b a t e r ? "
Criarei abelhas. Já t e n h o abelhas, gado de c o r t e e cães de
briga."
N ã o fica triste q u a n d o os cães se matam?"
N ã o . Gosto de ver. R e s p e i t o m e u cão Tarzan c o m o a um ser
h u m a n o . Ele é um cão pastor caucasiano. São os cães de m e l h o r
cabeça que existem."
184 A N N A POLITKOVSKAYA

" Q u e outros passatempos o senhor tem? Cães, abelhas, lutar... e?"


" G o s t o m u i t o de mulheres."
"Sua m u l h e r não se importa?"
" E u não conto a ela."
" Q u e nível de instrução o senhor t e m ? "
"Superior, advocacia. Estou terminando. Estou fazendo exames."
" Q u e exames?"
" C o m o assim, que exames? Os exames, é isso."
" Q u a l é a faculdade em que o senhor estuda?"
"E u m a filial do Instituto de Administração de M o s c o u . Em
G u d e r m e s . E u m a escola de direito."
" E m que está se especializando?"
"Direito."
" M a s q u e tipo de direito? Criminal? Civil?"
" N ã o me lembro. Alguém escreveu o tópico para m i m n u m
pedaço de papel, mas esqueci. A n d o m u i t o ocupado."
N a q u e l e m o m e n t o , Chaa Turlaev é trazido até R a m z a n , o e x -
c o m a n d a n t e da segurança de Maskhadov, um major da Guarda
Presidencial que havia recebido as ordens tchetchenas " O r g u l h o da
N a ç ã o " e " H e r ó i da N a ç ã o " . E um h o m e m completamente grisa-
lho aos 32 anos, a perna esquerda amputada até a coxa. É m a n t i d o
sob guarda e m T s e n t o r o i , c o m o refém, mas não está sendo espanca-
d o n e m t o r t u r a d o . Mais tarde, t a m b é m aparece M a h o m e d
Khambiev. M a h o m e d fala c o m i g o em russo, mas Chaa aparente-
m e n t e foi proibido de falar em russo c o m jornalistas. R a m z a n diz
que ele não fala russo, mas mais tarde pessoas que conheciam Chaa
me disseram que ele falava um russo excelente.
K h a m b i e v é insolente e orgulhoso, ao passo que Chaa parece
assustado, mas d i g n o . K h a m b i e v c o n t i n u a c o n c o r d a n d o c o m
R a m z a n , e n q u a n t o Chaa permanece orgulhosamente em silêncio.
Suas palavras, traduzidas, são: "Lutei desde 1991. Até 2 0 0 3 , eu esta-
va na força de segurança de Maskhadov. Faz um ano e m e i o que
n ã o o vejo. Fiquei c o m um f e r i m e n t o na perna p o r dois anos.
Havia um m é d i c o lá. Eu poderia ter ficado, mas não quis, m e s m o
antes de ser ferido, porque R a m z a n e eu havíamos lutado j u n t o s no
passado. Q u a n d o R a m z a n enviou a m i m pessoas da m i n h a aldeia,
elas disseram: 'Siga R a m z a n . O c a m i n h o dele é certo. Maskhadov é
DIÁRIO RUSSO 185

fraco N ã o se vê força nele. Ele está só.Tem somente vinte ou t r i n -


ta pessoas'."
"Ele tem um batalhão de mulheres?"
Chaa não responde. Ele abaixa a cabeça e a sacode. N ã o está
claro se aquilo significa sim ou não. A conversa é tensa. P o u c o
depois da chegada de Chaa, aparece u m a pessoa mais velha c o m um
boné r e d o n d o e senta-se à direita de R a m z a n . Ele se apresenta
como Nikolai Ivanovitch, p r o v o c a n d o sorrisos gerais, i n d i c a n d o
que, q u a l q u e r q u e seja seu n o m e , n ã o é N i k o l a i I v a n o v i t c h .
Ramzan ordena-lhe que traduza as palavras de Chaa para o russo.
Logo fica claro que, quando Chaa diz duas ou três palavras,"Nicolai
Ivanovitch" as desdobra em várias frases a respeito de c o m o Chaa
reconhecia a natureza ruinosa da guerra de Maskhadov.
R e c l a m o indignada da " i n t e r p r e t a ç ã o " e Nicolai Ivanovitch,
como um cão sem coleira, ataca-me e me insulta. N i n g u é m o d e -
tém. R a m z a n ri. Seu verdadeiro passatempo é colocar as pessoas
uma contra a outra e n i n g u é m na mesa p o d e rivalizar c o m ele, c o m
seu entusiasmo por lutas de cães.
A conversa fica mais animada. "Você está defendendo os b a n -
didos", "Você é um inimigo do povo t c h e t c h e n o " , "Você deveria
ter uma resposta para isto" — t u d o dirigido a m i m . R a m z a n está g r i -
tando, pulando na sua poltrona, e Nicolai Ivanovitch o está incitan-
do. Estamos sentados em t o r n o de u m a grande mesa oval e a cena
se parece cada vez mais c o m u m a convenção de ladrões. R a m z a n se
comporta de forma cada vez mais estranha, c o m o se fosse a pessoa
mais velha na casa, embora seja de fato a mais j o v e m . Ele ri em
momentos inadequados e se coça. Ele ordena aos seus seguranças
que lhe c o c e m as costas. Ele se curva, balança e continua fazendo
observações irritantes e sem sentido.
Tento falar c o m Chaa, mas R a m z a n realmente não gosta que
Chaa ouça mais perguntas que ele e o proíbe de falar mais. Está na
ora de terminar. Faço u m a última pergunta e é a única que Chaa
responde sozinho.
, Qual foi a melhor época da sua vida?"
N ã o existiu essa época."
R a m z a n interrompe até isto: "Você sabia que Khambiev votou
e
m Putin?"
186 ANNAP O L I T K O V S K A Y A

Khambiev acena concordando, c o m o sorriso zombeteiro de


um mentiroso. "Sim. Ele é durão e quer o r d e m na Tchetchênia."
" O q u e está f a l t a n d o " , p e r g u n t o a K h a m b i e v , " p a r a haver
o r d e m completa na T c h e t c h ê n i a ? "
" M u i t o pouco. Iandarbiev foi eliminado. Se Berezovski e os
h o m e n s de Maskhadov, Z a k a e v * e U d u g o v , forem eliminados
haverá o r d e m . Eles estão p u x a n d o os cordões. Basaev executa seu
desejos. Basaev não está lutando pelo b e m do povo tchetcheno."
"Pelo que vocês estão lutando e vivendo?"
" P o r nós mesmos. Pelo povo."
" E m que o senhor se vê servindo ao povo?"
" N o que R a m z a n decidir."
" P o r que R a m z a n é q u e m decide?"
"Ele é o primeiro entre os tchetchenos. R a m z a n está p r o m e -
t e n d o me fazer presidente da Federação de Luta Livre."
" Q u a n t o s anos o senhor t e m ? "
" Q u a r e n t a e dois."
" C o m o se sente a respeito do fato de o pessoal de R a m z a n ter
seqüestrado seus parentes para forçá-lo a se render?"
" N e n h u m problema. M e u s parentes estavam errados e foram
capturados."
" D e q u e eles eram culpados?"
"Eles me trouxeram mensagens de Maskhadov em fitas cassete
e pão."
R a m z a n , satisfeito, ri de forma insolente. Ele se inclina para trás
e decide assistir à televisão. Ele está muito satisfeito e c o m e n t a sobre
a maneira de andar de Putin: "Ele t e m m e s m o classe!" Ele declara
q u e P u t i n caminha c o m o u m montanhês.
Lá fora é noite. A temperatura está subindo aqui e está na hora
de eu ir embora. R a m z a n ordena para que eu seja levada de volta
Grozni. Musa, um ex-lutador de Zakan-Iurt, senta-se à direção e há
dois guarda-costas. Entro no veículo e penso que em algum lugar
do c a m i n h o , c o m postos de controle por toda parte, serei obvia-
m e n t e morta. Mas o ex-lutador de Zakan-Iurt está apenas esperan-
do q u e R a m z a n saia. Ele quer expor sua alma e, q u a n d o começa a
me contar a história da sua vida, de c o m o havia sido um lutador,
p o r q u e j u n t o u - s e a R a m z a n , sei que ele não irá me matar. Ele que
q u e o m u n d o ouça sua história.
187
R 1 R U S S O
u M DIÁ °

Entendi isso, mas sentei-me lá c h o r a n d o de m e d o e ódio. " N ã o


chore", disse-me o lutador de Z a k a n - I u r t . " V o c ê é forte."
Q u a n d o a conversa t e r m i n a , e em T s e n t o r o i eles n ã o c o m -
preendem o significado da palavra, t u d o o que resta são lágrimas.
Lágrimas de desespero p o r alguém assim poder existir, pelo fato de
os caprichos da história terem criado, de todas as pessoas, R a m z a n
Kadirov. Ele tem realmente p o d e r e governa de acordo c o m suas
idéias e habilidades. N i n g u é m , n e n h u m dos homens presentes em
Tsentoroi, ousou detê-lo. Foi R a m z a n Kadirov q u e recebeu um
telefonema do Kremlin, de "Vladislav I u r i e v i t c h " - em outras pala-
vras, do subchefe da Administração de Putin, Vladislav Surkov. Foi
essa a única vez em que R a m z a n parou de se c o m p o r t a r mal, de se
coçar, gritar, assobiar e rir.
Este é um velho enredo, repetido muitas vezes em nossa histó-
ria: o Kremlin promove um filhote de dragão, que depois precisa ali-
mentar para impedi-lo de p ô r fogo em tudo. H o u v e um total fracas-
so dos serviços de inteligência russos na Tchetchênia, algo que eles
tentam apresentar c o m o u m a vitória e u m a "restauração da vida
civil". Mas e quanto ao povo da Tchetchênia? Eles têm q u e viver
com o filhote de dragão. P r i m e i r o o Kremlin tentou mostrar aos
tchetchenos que era inútil resistir a Putin. Isso funcionou mais ou
menos; a maioria deles desistiu. Então foi a vez do resto da Rússia.

1° de setembro
A censura e a a u t o c e n s u r a na m í d i a de massa a t i n g i r a m novos
extremos e aumentaram a probabilidade de que centenas de adul-
tos e crianças na Escola n° 1 em Beslan, que foi tomada p o r t e r r o -
ristas, viessem a morrer.
A autocensura hoje significa tentar adivinhar o q u e se deve
dizer e o que não deve ser m e n c i o n a d o . A finalidade da autocensu-
ra e manter suas mãos em um salário muito alto. A o p ç ã o não é
entre ter emprego ou ficar desempregado, mas entre ganhar u m a
fbituna e uma ninharia. Q u a l q u e r jornalista tem a opção de passar
Para publicações na Internet, as quais são mais ou m e n o s livres para
dizer o que querem, e ainda há alguns jornais que t a m b é m gozam
188 A N N A POLITKOVSKAYA

de relativa liberdade. P o r é m , o n d e há liberdade há salários baixos e


pagos de forma irregular. Q u e m paga b e m é a mídia de massa, que
se entende c o m o Kremlin.
Os apresentadores de televisão que insistem em mentir, que
m a n t ê m fora do ar qualquer coisa que possa irritar as autoridades
do Estado, fazem isso p o r m e d o de perder um salário de vários
milhares de dólares p o r mês. Eles enfrentam a opção entre conti-
nuar a vestir Gucci eVersace ou usar roupas velhas. A questão não
é de compromisso ideológico: o único compromisso deles é com o
p r ó p r i o bem-estar financeiro. N e n h u m jornalista t e m fé em Putin
há m u i t o tempo.
O resultado é que a emissora N T V transmite cerca de 70% de
mentiras. Nas emissoras oficiais, R T R e Ostankino, a proporção '
de 90%. O mesmo vale para a rádio estatal.
Se durante a tomada de reféns em Nord-Ost a televisão mostro"
metade da verdade, durante Beslan ela nada transmitiu a não ser men
tiras oficiais, a maior das quais foi a afirmação de que havia soment
354 reféns na escola. [O n ú m e r o real estava próximo de 1.200.] Iss
enfureceu tanto os terroristas que eles pararam de permitir que
crianças fossem ao banheiro ou bebessem qualquer coisa.
Na N T V , sabiam perfeitamente que o n ú m e r o era falso. O
diretores da empresa suprimiram um relato do seu p r ó p r i o corres
p o n d e n t e na cena, que havia sido informado de fonte confiáve
s o b r e o verdadeiro n ú m e r o de reféns. C o m o disse mais tarde
o
Leonid Parfionov, demitido da N T V em I de j u n h o , s o m e n t e ui
:
palavra verdadeira foi dita na N T V durante a crise de Beslan. Fo
depois de iniciado o ataque, q u a n d o crianças mortas e feridas esta
v a m sendo levadas para fora e pedaços de carne h u m a n a eram vis
tos p o r t o d o o lugar; o r e p ó r t e r q u e falava à c â m e r a n a q u e l
m o m e n t o disse um sonoro palavrão russo, que caracterizou com
precisão o que estava acontecendo.
Beslan foi o p o n t o mais baixo desta autocensura traiçoeira.
Traiçoeira porque traiu pessoas que pagaram c o m a vida pelas m e n -
tiras. Moradores de Beslan atacaram repórteres da televisão estatal
p o r q u e suas mentiras, hoje habituais na era Putin, haviam começa-
do a custar a vida de m u l h e r e s e crianças q u e eles c o n h e c i a m .
A n t e s , isso fora vivido s o m e n t e p o r pessoas q u e m o r a v a m na
Tchetchênia. Agora estava na hora de os outros e n t e n d e r e m .
UM DIÁRIO RUSSO 189

3 de setembro
Há 331 mortos em conseqüência da tomada de reféns em Beslan.

4 de setembro
Raf Tchakirov, editor-chefe do Izvestia, foi demitido. Ele era um
carreirista: não era u m revolucionário, n e m dissidente, n e m u m
defensor dos direitos h u m a n o s . Foi demitido p o r ter deixado, em
apenas uma ocasião, de intuir a nova ideologia do Estado, uma coisa
que supostamente não se precisa enunciar. O Izvestia publicou uma
reportagem fotográfica b r u t a l m e n t e honesta de Beslan, a respeito
do ataque à escola. As autoridades reclamaram que a matéria era
demasiadamente chocante.
O Izvestia não é um j o r n a l estatal - ele p e r t e n c e ao oligarca
Potanin -, mas nuvens de t e m p o r a l estavam se a g r u p a n d o sobre
Potanin, c o m o aquelas q u e haviam se reunido sobre Khodorkovski.
Demitindo Tchakirov, Potanin espera ter se reconciliado c o m Putin
e com o Kremlin.
*
Depois de Beslan, h o u v e finalmente movimentos de oposição ao
regime de mentiras e covardia das autoridades. Entre dezembro de
2003 e setembro de 2004, só o que se percebia era u m a dissidência
relutante, meio abafada, mas, depois do massacre, c o m e ç o u a surgir
o
algum tipo de protesto público. Até I de setembro, n i n g u é m q u e -
ria reconhecer que os serviços de inteligência só estavam interessa-
dos em dividir os despojos da nação. Depois do b a n h o de sangue de
3 de setembro em Beslan, muitas pessoas finalmente perceberam
que estavam desprotegidas. Elas podiam continuar fingindo que o
presidente tinha um alto índice de aprovação ou p o d i a m ter segu-
rança para seus filhos.

10 de setembro
O que está emergindo na Rússia não é u m a classe média estabili-
zadora, mas u m a nova classe composta por pais cujos filhos m o r r e -
190 A N N A POLITKOVSKAYA

ram em atos terroristas. Eles já quase constituem um partido polí-


tico, cujo manifesto é exigir um inquérito rigoroso sobre a tragédia
ocorrida na Escola n° 1.
Os primeiros a chegar a Beslan depois da catástrofe foram os
pais dos reféns que m o r r e r a m em Nord-Ost. O moscovita Drnitri
Milovidov estava entre eles. Em outubro de 2002, ele perdeu Nina,
a filha de 14 anos, no Teatro Dubrovka. Ele levou a Beslan um
p u n h a d o de terra de Nord-Ost e trouxe cinzas da escola. Ele me
mostrou a mistura n u m a caixa transparente.
"Peguei um p o u c o daquilo que ainda está no piso da escola.
Você p o d e ver cápsulas e balas d u m - d u m , apesar de serem proibi-
das, um lápis cuidadosamente apontado, as páginas carbonizadas de
um livro. Tudo isso está c o b e r t o por uma cinza verde-escura e é
m e l h o r não perguntar do que p o d e ser aquela cinza."
" P o r que os pais de Nord-Ost foram lá? Deve ter sido muito
difícil para vocês."
" N ó s j u n t a m o s d i n h e i r o e decidimos levá-lo pessoalmente.
A c h a m o s que nossa triste experiência de c o m o sobreviver à morte
dos filhos p o d e r i a ser útil. N ó s mal sobrevivemos, d e p e n d e n d o
exclusivamente de nossos p r ó p r i o s recursos, a b a n d o n a d o s pele
Estado.
" H á outro motivo: há p o u c o mais de um ano eu estava conver-
sando c o m Tânia Khazieva - seu marido era um músico que parti-
cipava do musical Nord-Ost e morreu, deixando-a c o m as filhinhas
Sônia e Tânia. Ela foi a primeira a ganhar uma indenização n u m tri-
bunal.Tânia disse, em j u n h o de 2003:'Preciso saber se amanhã ur
de minhas filhas for tomada c o m o refém numa escola, sua vida cus-
tará tão caro que n e m o FSB n e m o Estado poderão me pagar por
tê-la deixado morrer.' Sabe de uma coisa, hoje sentimos que não
conseguimos evitar Beslan. Eu o vejo c o m o um final alternativo
para Nord-Ost: 'Olha, veja o que lhe teria acontecido se você esti-
vesse trancada naquele teatro e nós não tivéssemos usado o gás.' Foi
c o m o se eles quisessem ensinar u m a lição à Rússia. F o m o s a Beslan
para dizer às pessoas: ' N o s p e r d o e m por não fazer o suficiente par
evitar sua tragédia.'"
" D e que você acha que as pessoas mais precisam em Beslan?
Dinheiro?"
" N ã o . Compreensão."
PJÁRJO R U S S O 191

"Existem tão poucos psiquiatras?"


"Existem em n ú m e r o suficiente nos hospitais, mas em geral são
os jovens recém-formados que vão à casa das pessoas. É difícil abrir
seu coração a eles. O problema das pessoas em Beslan é o mesmo
que enfrentamos. M u i t a g e n t e não quer conselhos. Q u e r sofrer
sozinha."
"Mas acha que, c o m o pessoas que passaram p o r um sofrimen-
to semelhante, vocês estavam mais próximas delas do que os psi-
quiatras?"
"É claro. Elas q u e r i a m conversar conosco, mas não para chorar
conosco. Elas perguntavam a que conclusões c h e g o u o inquérito
sobre Nord-Ost. H o u v e u m a resposta adequada à pergunta de c o m o
uma coisa daquelas podia ter acontecido? Já é óbvio que essa tragé-
dia não irá s i m p l e s m e n t e desaparecer. Há p i c h a ç õ e s nas cercas:
"Morte dos inguches" e mais fortes que isso. N i n g u é m as apaga.
Em toda parte vi pessoas j u r a n d o vingança. H o u v e u m a reunião de
jovens enquanto estávamos lá e esse era claramente o tema. Eles
tinham as piores coisas a dizer a respeito do seu p r e s i d e n t e ,
Dzasokhov, e o que eles disseram a respeito de P u t i n não dá para
repetir."
"E verdade q u e os s e n t i m e n t o s c o m relação aos jornalistas
também são ruins?"
"Sim. N ó s tivemos os mesmos. N o s primeiros meses depois de
Dubrovka, a o v e r m o s u m j o r n a l i s t a , nós d i z í a m o s : 'Lá v ê m o s
abutres.' Só muito t e m p o depois foi que c o m e ç a m o s a vê-los não
como abutres, mas c o m o dissecadores, sem os quais nunca teríamos
ouvido a verdade a respeito do afundamento do submarino Kursk
ou a realidade de Nord-Ost!'
Q u e m as pessoas em Beslan esperam q u e irá realizar um
inquérito adequado?"
Elas só confiam em suas famílias. Elas esperam que haja um
inquérito mas, c o m o muitas dizem, ele 'virá da Rússia' - em outras
palavras, do Estado. M a s nós já passamos p o r Nord-Ost. Sabemos
que nada irá acontecer."
Qual foi a principal impressão que você trouxe de Beslan?"
Estávamos em M o s c o u , u m a grande cidade. Beslan é u m a
cidade inteira de luto."
192 A N N A POLITKOVSKAYA

13 de setembro
Depois de Beslan, os órgãos de segurança do n o r t e do Cáucaso,
t e n d o deixado de evitar o ultraje terrorista, estão agora fazendo
uma grande demonstração de combate ao terrorismo. Estão matan-
do ou prendendo qualquer pessoa que, para eles, p o d e estar envol-
vida com terrorismo.
C o m o fazem? O sucesso ou fracasso da caçada h u m a n a é
m e d i d o principalmente p o r quantos "terroristas" são apanhados.
Direitos humanos e respeito pela lei saíram pela janela. U m a con-
fissão é prova de culpa e, se um suspeito foi m o r t o , n e m isso é
necessário. E uma repetição exata do que aconteceu q u a n d o uma
"operação antiterrorista" foi lançada depois do assassinato de Sergei
o
Kirov, o líder do Partido Comunista, em I de d e z e m b r o de 1934.
Assim c o m o naquela ocasião, qualquer tentativa de sugerir que
alguma coisa está errada e que talvez deva haver mais respeito pela
lei é tratada pelos partidários dos " m é t o d o s radicais e eficazes"
c o m o o desejo de proteger criminosos.
Os representantes do C o m i t ê Internacional da C r u z Vermelha
não p o d e m visitar as celas da prisão onde os "terroristas" estão deti-
dos. N ã o há supervisão legal pelo procurador e certamente não há
um j u d i c i á r i o i n d e p e n d e n t e para cuidar desses casos rápidos de
"antiterrorismo". N i n g u é m investigará se u m a unidade de Opera-
ções Especiais tinha justificativas para matar alguém. Essa é uma
área c o m p l e t a m e n t e fora da lei, incapaz de p u n i r os culpados e
absolver os inocentes. A principal onda de " a n t i t e r r o r i s m o " pós-
Beslan abateu-se sobre a Inguchétia, porque havia muitos inguches
no g r u p o que t o m o u de assalto a escola. E, n e m é preciso dizer,
sobre a Tchetchênia.
O resultado previsível foi que, d u r a n t e o o u t o n o , reagindo
c o n t r a este " a n t i t e r r o r i s m o " , o verdadeiro s u b m u n d o terrorista
ficou muito fortalecido. O assassinato ou a condenação rápida dos
inocentes deixa os verdadeiros criminosos livres para planejar novos
crimes, precisando apenas aperfeiçoar seus métodos de conspiração.
Além disso, o s u b m u n d o está repleto de pessoas que sofreram injus-
tamente ou que p r o c u r a m vingar seus parentes. Para outros, pegar
em armas é um protesto pessoal contra a ilegalidade das forças d
segurança.
D I A R10 RUSSO 193

Chame isso do que você quiser, mas não de operação antiter-


j o . Ela reúne as formas mais monstruosas de terror. O quadro
r o r s m

verdadeiro é que, depois q u e os rebeldes t o m a r a m a Inguchétia por


uma noite em j u n h o de 2004, as forças de segurança e n l o u q u e c e -
ram, assassinando e aprisionando u m a multidão de pessoas inocen-
e
tes q u lhes caíam nas mãos, e o resultado foi Beslan.
Enquanto isso, as autoridades tchetchenas estão c o m e m o r a n d o .
A algumas dezenas de quilômetros de distância estão enterrando as
vítimas de Beslan, mas Alu Alkhanov, o presidente "recém-eleito",
decidiu comemorar o nascimento de um filho do p r i m e i r o - m i n i s -
tro com um dia de corrida de cavalos.
Em T s e n t o r o i , p o r trás de u m a intensa segurança, os atuais
favoritos tchetchenos de P u t i n estão gozando a vida. Seus seguido-
res satisfazem todos os seus desejos. R a r a m e n t e se passa um dia sem
algum tipo de e n t r e t e n i m e n t o para demonstrar que a paz voltou à
Tchetchênia. N e m m e s m o Beslan pode estragar a diversão, n e m a
morte de todas aquelas crianças, que está na consciência da nada
sagrada trindade de Kadirov, Alkharov e Abramov. Afinal, foram eles
o
que garantiram a Putin e a todos, até I de setembro, que praticamen-
te não havia mais bandidos na Tchetchênia e que Basaev seria apanha-
do a qualquer m o m e n t o . Beslan nos mostrou a verdadeira situação.
U m a das razões para os males sociais da Rússia é este diabóli-
co cinismo por parte das autoridades, que v e n d e m u m a realidade
completamente falsa. Os cidadãos russos não se insurgem contra esse
cinismo. Eles se r e c o l h e m às suas conchas, t o r n a n d o - s e indefesos,
mudos e inertes. Putin sabe disso e utiliza o cinismo insolente como
a técnica anti-revolucionária que melhor funciona na Rússia.
Os funerais não acabaram, mas Putin já está o c u p a d o . Ele infor-
mou ao governo e ao país que, no futuro, os líderes regionais não
serão eleitos, mas indicados p o r ele. A indicação precisará ser ratifi-
cada pelos parlamentos regionais, mas se por duas vezes os deputa-
dos locais deixarem de aprovar seu candidato, o p r ó p r i o parlamen-
to estará sujeito à dissolução.
^ Houve por algum t e m p o boatos a respeito do desejo de Putin
e
abolir a eleição direta de governadores, alguns dos quais t ê m
°Piniões próprias. Um dos métodos para a oposição permanecer
c a
z era alcançar um e n t e n d i m e n t o nas regiões, caso isso se m o s -
casse impossível c o m a administração presidencial em Moscou.
194 A N N A POLITKOVSKAYA

Putin afirma que a razão para a abolição da eleição dos gover-


nadores é a ameaça do terrorismo. Esta exploração cínica do cata-
clisma de Beslan para resolver suas dificuldades puramente políticas
e práticas é inesperada, mesmo de Putin. Praticamente não houve
protestos.

16 de setembro
A única reação veio do C o m i t ê 2 0 0 8 , q u e p u b l i c o u a seguinte
declaração,"A Ameaça de um Golpe de Estado na Rússia":

O Presidente da Federação Russa, Vladimir Putin, anunciou


que p r e t e n d e realizar um golpe de Estado na Rússia. Seu dis-
curso de 13 de setembro de 2004, n u m a sessão prolongada do
governo, c o n t é m uma proposta detalhada para desmantelar ins-
tituições fundamentais da democracia na Rússia.
"A Rússia é um Estado democrático, federal, regido pela
lei...", de acordo c o m o primeiro artigo da Constituição. Agora
o Kremlin pretende liquidar as três bases do Estado russo.
A Rússia de Putin não será um Estado democrático, uma
vez q u e seus cidadãos serão privados do direito a eleições livres
que, de a c o r d o c o m a Constituição, são a "mais alta e direta
expressão do p o d e r do povo". A Rússia de Putin não será um
Estado federalista, u m a vez que suas regiões serão governadas
p o r f u n c i o n á r i o s n o m e a d o s pelo c e n t r o q u e se subordinam
somente a ele. A Rússia de Putin não será um Estado regido pela
lei, p o r q u e o T r i b u n a l C o n s t i t u c i o n a l da Federação Russa
t o m o u u m a decisão, há oitenta anos, que proíbe explicitamente
qualquer "reforma" como essa, a qual estará sendo desprezada.
Pedimos ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, que de
o
atenção especial ao artigo 3 , inciso IV, da Constituição, que
diz: " N i n g u é m deverá se apropriar do p o d e r na Federação
Russa. A t o m a d a do poder ou a apropriação da autoridade do
G o v e r n o será processada de acordo c o m a lei federal."

O Estado e as autoridades ignoraram t u d o isso. N i n g u é m pro-


testou.
DIÁRIO R U S S O 195

27 de setembro
As autoridades estão m u i t o preocupadas c o m a possibilidade de os
defensores dos direitos h u m a n o s mais u m a vez se t o r n a r e m dissi-
dentes, uma vez q u e é deles, e não dos políticos da oposição, que
vem o perigo. Assim sendo, elas estão construindo um m o v i m e n t o
paralelo pelos direitos h u m a n o s para operar sob um rígido c o n t r o -
le do Estado. Putin está assinando uma diretiva para criar um " c e n -
tro internacional dos direitos h u m a n o s " . A diretiva é caracteristica-
mente intitulada " M e d i d a s Adicionais d e A p o i o d o Estado a o
Movimento pelos Direitos H u m a n o s na Federação Russa".
A força motriz p o r trás desta diretiva é Ella Pamfüova, presi-
dente da Comissão Presidencial sobre Direitos H u m a n o s . Ela insiste
para todos que estiverem dispostos a o u v i r : " R e j e i t o c o m p l e t a m e n -
te as alegações grosseiras de q u e u m a das tarefas do C e n t r o
Internacional de Direitos H u m a n o s é introduzir o controle centra-
lizado do movimentos pelos direitos h u m a n o s . Essa diretiva é de
grande ajuda para nós. Será mais fácil, para os líderes de organiza-
ções de direitos h u m a n o s , se c o n h e c e r e m (no Kremlin? - AP).
Seremos capazes de ampliar o alcance de nossos conhecimentos.
Essa idéia é u m a iniciativa dos p r ó p r i o s defensores dos direitos
humanos. Tenho recebido telefonemas dos representantes de m u i -
tas associações de direitos h u m a n o s , de pessoas q u e ligaram das
regiões. Todos são a favor. Eles dizem que esta é u m a pequena vitó-
ria para nós. Acima de t u d o , precisamos garantir os direitos dos p r ó -
prios defensores dos direitos h u m a n o s de ajudar as pessoas de
forma eficaz."
Dificilmente a l g u é m acredita nos invariáveis protestos de
Pamfüova, da natureza benévola e das credenciais democráticas de
Putin.
lelena B o n n e r teve isto a dizer n u m a entrevista ao Iejenedelni
Jurnal:

Existem a filosofia e o p o n t o de vista dos defensores dos direi-


tos humanos e existem a filosofia e o p o n t o de vista daqueles
que representam o p o d e r do governo. Eles t ê m objetivos e mis-
sões diferentes. O objetivo do m o v i m e n t o pelos direitos h u m a -
nos e defender a sociedade das autoridades do Estado e formar
U r n a
sociedade civil. O objetivo d e q u a l q u e r autoridade d o
A N N A POLITKOVSKAY

Estado é consolidar seu próprio poder. Estou preocupada e¡


ver tantos conhecidos defensores dos direitos humanos aderin-
do ao Estado. Se o fizerem, eles deixarão efetivamente de se
defensores dos direitos humanos. Eles q u e r e m se unir às auto-
ridades do Estado. Isso testifica u m a crise no m o v i m e n t o pelos
direitos h u m a n o s .
Aquele que hoje na Rússia é chamado de movimento pelos
direitos h u m a n o s , assim como os políticos a q u e m chamamos de
oposição e q u e p o r muitos anos vacilaram entre dois cursos de
ação, perderam o barco. Perdemos a oportunidade de agir por
meios legais. Hoje, explorando a tragédia de Beslan, estão send~
feitas tentativas para destruir a independência dos tribunais. O
que isso deixa para a sociedade? Somente revolta e rebelião.
N ã o estou incitando à revolução. N ã o vejo líderes capaze
de liderá-la, n e m preparo para ela no país. Assim, a Rússia
seguirá o c a m i n h o para ela traçado pelo sr. Putin. O que mais
ela p o d e fazer? As eleições locais foram eliminadas, o direito
referendo foi tirado, a responsabilidade das instituições eleito-
rais perante a população t e r m i n o u há m u i t o . Vejo essa diretiva
c o m o o u t r o t r u q u e . O Estado está c r i a n d o um m o v i m e n t o
paralelo p o r direitos humanos.
N o p r e s e n t e , n ã o vejo c o m o r e t o r n a r a u m c a m i n h o
democrático. N ã o estou dizendo que tivemos u m a democra-
cia, mas havia u m a tendência nessa direção que poderia ter se
desenvolvido se existisse uma mídia de massa livre. Precisa
vamos de um sistema eleitoral adequado; a última coisa de que
precisávamos era da sua destruição. As eleições há muito for;
transformadas em fraude e eleições são a instituição fundamen
tal para qualquer democracia.
"Todos os três ramos do poder na Rússia, o executivo, o
judiciário e o legislativo, foram alterados para que se adequas
sem ao presidente. Deixamos de ser u m a democracia ou, diri
eu, até m e s m o um Estado republicano. Formalmente, as elei
ções presidenciais devem acontecer (em 2008). Isso, é claro, s
o país que está sendo construído p o r P u t i n sobreviver até lá-
Todos os canais para uma alteração legal e pacífica da situação
foram eliminados. Assim, esta caldeira lacrada irá se aquecer ate
explodir. Isso p o d e ocorrer de várias maneiras diferentes."
u M DIÁRIO RUSSO 197

O "Centro Internacional pelos Direitos H u m a n o s " de Putin nunca


saiu do papel. F o r a m alocados fundos do o r ç a m e n t o e alguém sem
dúvida pôs as mãos neles, mas nada mais aconteceu.
A autoridade de P u t i n baseia-se exclusivamente no fato de não
haver alternativa a ele dentro do seu círculo, q u e ele t o r n o u sem
rosto e estúpido. Seus partidários c h a m a m isso de "a solidão de
Putin". N ã o h á n a sua e q u i p e n i n g u é m q u e possa substituí-lo
numa emergência.Todos são pigmeus c o m c o m p l e x o de Napoleão,
ou nem mesmo isso.
Estaria à vista um novo partido p r ó - o c i d e n t e ? Vladimir Rijkov
poderia ser seu líder. Ele amadureceu m u i t o . Esse partido poderia
ter sucesso na conclusão da revolução liberal-democrática. Porém,
o problema de nossa elite política, tanto aqueles que estão no poder
como aqueles da oposição, é que eles preferem deixar que as coisas
continuem c o m o estão.

28 de setembro
Putin não nos fez esperar m u i t o tempo. S e m n e n h u m debate polí-
tico, apresentou à D u m a emendas à lei eleitoral abolindo a eleição
direta de governadores. O eleitorado está sendo bombardeado c o m
garantias de q u e ainda não está suficientemente maduro para esco-
lher o líder local correto. Isso não significa q u e eles também ainda
nao estão maduros o suficiente para eleger Putin?

29 de setembro
Vários deputados da D u m a escreveram ao presidente do Tribunal
Eleitoral, Valeri Z o r k i n , p e d i n d o - l h e q u e reveja os atos do presi-
dente c o m o um assunto de urgência.

Zorkin preferiu não o fazer. Os deputados receberam uma respos-


a
Puramente formal. A sensação de desesperança era tão profunda
quanto nos últimos anos da U R S S .
198 A N N A POLITKOVSKAYA

5 de outubro
Em Grozni, teve lugar a risível cerimónia de posse de Alui Alk-
hanov, o presidente imposto ao povo da T c h e t c h ê n i a pelo Kremlin
Foi erigida u m a marquise dentro do conjunto fortificado do gover-
no e Alkhanov fez lá seu juramento, falando um tchetcheno ruim.
Ele parecia indisposto, c o m grandes olheiras. As medidas de segu-
rança foram sem precedentes, c o m o se eles estivessem esperando
Putin, que não compareceu, mas enviou c u m p r i m e n t o s . No inte-
resse da segurança, três locais haviam sido preparados e até o último
m o m e n t o n i n g u é m sabia exatamente o n d e seria a posse.
Q u e tipo de vida pacífica isto sugere? Alkhanov mostrou a toda
a Tchetchênia c o m o está c o m m e d o de m o r r e r . Agora ninguém o
levará a sério.

6 de outubro
A Ação C o n j u n t a , u m a associação das principais organizações de
direitos h u m a n o s , t a m b é m publicou u m a declaração intitulada
" U m Golpe de Estado na Rússia", p e d i n d o a convocação de um
Congresso dos C i d a d ã o s que evoluiria para um fórum nacional
independente envolvendo os direitos h u m a n o s , ecológicos e outras
associações públicas, sindicatos livres, partidos democráticos, acadê-
micos, advogados e jornalistas.
E u m a peculiaridade da Rússia que os defensores dos direitos
h u m a n o s - dos quais vários, c o m o L i u d m i l a Alexeieva, Sergei
Kovaliov e I u r i Samodurov, são antigos dissidentes soviéticos —
sejam m u i t o mais resolutos e progressistas do que os partidos e os
políticos. Eles estão encorajando os políticos: pelo amor de Deus,
façam alguma coisa!
U m a psicologia servil domina mais u m a vez o país e cerca
qualquer um q u e seja menos servil. C o m q u e malevolencia a tele-
visão russa ataca q u a n d o Iuschenko c o m e t e um erro na Ucrânia e,
assim c o m o Saakachvili, ele é a besta negra do Kremlin. A Geórgia
é nosso maior inimigo entre os países da antiga U R S S .
DIÁRIO R U S S O 199

7 de outubro
Em Vladimir, o p r i m e i r o caso c r i m i n a l foi levantado contra os
Comitês de Mães de Soldados. A presidente do C o m i t ê Vladimir,
Liudmila Iarilina, é acusada de "cumplicidade na evasão ao serviço
militar", uma acusação que pode implicar u m a sentença de três a
sete anos de prisão.
Qual é a base da acusação? Por m e i o da persistente defesa de
recrutas e soldados, Liudmila t o r n o u - s e m u i t o impopular c o m o
Comissariado Militar e c o m o Gabinete do Procurador Militar. Ela
concorda c o m que, na província de Vladimir, muitos soldados são
considerados inadequados para o serviço militar. A área é conheci-
da pelo alcoolismo. É um lugar o n d e as pessoas b e b e m mais do que
trabalham; assim, a saúde dos seus filhos é r u i m . Metade deles é de
inválidos, mas o Comissariado Militar t o m a medidas extraordiná-
rias para conseguir sua cota de recrutas, falsificando atestados de
saúde e enganando os jovens de outras maneiras.
Entre quatrocentas e quinhentas pessoas consultam o C o m i t ê a
cada ano: recrutas, soldados e seus pais. Em sua maioria, eles q u e -
rem ser salvos das brutalidades dos "avós", os soldados mais velhos;
da morte; das doenças e de u m a máquina estatal que não se interes-
sa por investigar maus-tratos.
Q u a n d o D m i t r i Iepifanov veio ao C o m i t ê , eleja havia servido
varios meses na T c h e t c h ê n i a e tinha sido ferido e queimado dentro
de um tanque. Ele recebeu u m a licença e, de volta aVladimir, q u e i -
xou-se aos seus pais de constantes dores de estômago. Ele sofria
delas antes de ir para o exército, mas a comissão de recrutamento
decidiu que n ã o representavam n e n h u m problema e ele foi envia-
do para combater na Tchetchênia.
Dmitri veio perguntar c o m o p o d e r i a ir a um hospital durante
sua licença. Isso foi tudo. O sistema na Rússia é absurdo: se um sol-
dado em licença estiver doente, não será admitido para diagnóstico
no
hospital militar mais p r ó x i m o ; ele precisará voltar à sua unidade,
°nde um servente ou médico militar decidirá se ele será hospitali-
zado ou está fingindo u m a doença. P o r é m , se um soldado p u d e r
apresentar um diagnóstico por escrito, p o d e r á ser admitido no h o s -
pital local.
2i «i
A N N A POLITKOVSKAY

Liudmila c o m e ç o u a telefonar para os médicos que conhecia e


um deles, um endoscopista da Clínica de C â n c e r de Vladimir, con
cordou em examinar Dmitri e, se necessário, realizar urna gastros-
copia. Esta r e v e l o u u m a úlcera e ele foi hospitalizado. D e p o i s
D m i t r i foi enviado de Vladimir para um hospital em Moscou e de
lá para u m a comissão do exército. Os médicos militares na capital
dispensaram o soldado Iepifanov do exército porque ele tinha uma
úlcera no d u o d e n o .
Isto está apresentado no processo da seguinte forma:

L. A. Iarilina, sendo presidente da seção regional de Vladimir do


C o m i t ê de Mães de Soldados, c o m o pretexto de prover assis-
tência para conseguir isenção do serviço militar, com a assis-
tência de médicos de varios hospitais na cidade de Vladimir,
c o n s p i r o u para criar, em cidadãos sujeitos ao r e c r u t a m e n t o
para o serviço militar e t a m b é m em pessoal já de serviço, uma
doença fictícia (falsa), uma úlcera duodenal, pelo que recebeu
remuneração.

E claro q u e nunca apresentaram qualquer evidência para cor-


roborar a alegação a respeito de receber dinheiro, que era totalmen
te falsa, mas o processo continuou m e s m o assim e a imaginação dos
investigadores do Gabinete do Procurador Militar mostrou-se ili-
mitada. O c a p i t ã o G o l o v k i n , p r o c u r a d o r militar assistente d
G u a r n i ç ã o de Vladimir, descreveu o processo pelo qual a úlcera
d u o d e n a l "falsa" havia sido p r o d u z i d a c o m a c u m p l i c i d a d e de
Iarilina:

C o m a assistência de um endoscopista, Iarilina ajudou na reali-


zação de u m a biópsia no bulbo do intestino duodenal, c o m a
subseqüente termocoagulação do local c o m o objetivo de la
criar u m a cicatriz, que uma criteriosa investigação endoscópi-
ca subseqüente avaliou como pós-ulcerosa — isto é, uma doen
ça fictícia, u m a condição ulcerosa do intestino duodenal.

E a Conspiração dos Médicos de Stalin novamente, c o m dissi-


dentes c o m o seus cúmplices.
"O processo parece indicar que você assistiu o endoscopista.
"É claro q u e não. Só pedi por telefone que ele examinasse
rapaz", responde Liudmila.
DIÁRIO R U S S O 201

Então Iepifanov estava se fingindo de doente? N i n g u é m o está


acusando de evasão ao serviço militar. O m é d i c o o feriu delibera-
damente? N i n g u é m está t e n t a n d o acusá-lo. A única pessoa sob
investigação criminal é a defensora dos direitos humanos Liudmila
larüina. Produzir casos criminais contra aqueles que causam p r o -
blemas ou são apenas demasiadamente ativos faz parte da vida sob
Putin, tanto em M o s c o u , onde Khodorkovski e Lebedev estão na
prisão, quanto em províncias c o m o Vladimir.
Os " b o n s " defensores dos direitos h u m a n o s são aqueles q u e
tentam ajudar as pessoas, colaborando c o m as autoridades em vez
de através de confrontos constantes, pessoas c o m o Pamfilova. Para
os mais defensores, a técnica é procurar marginalizá-los e, se neces-
sário, usar " t e r m o c o a g u l a ç ã o " para destruí-los.
O m é t o d o de termocoagulação c o m e ç a c o m u m a investigação
enervante e questionável. Esta leva a um j u l g a m e n t o seguido, para
os mais rebeldes, pela prisão.

20 de outubro
Dmitri Kozak, representante de P u t i n no sul da Rússia, indicou
Ramzan Kadirov seu conselheiro de segurança para todo o Distrito
Federal Sul. Se, antes disso, Kadirov J ú n i o r era capaz de atropelar a
lei e a Constituição somente n a T c h e t c h ê n i a e na Inguchétia, agora
ele poderá dividir sua experiência e dar conselhos aos diretores dos
Serviços de Segurança em toda a região n o r t e do Cáucaso a respei-
to de c o m o se c o m p o r t a r e m da mesma maneira e irá supervisionar
as atrocidades que eles c o m e t e m em n o m e do sr. Kozak.
Isso custará muitas vidas. R a m z a n quase não tem miolos e está
em seu elemento somente onde há guerra, terror e caos. Sem eles,
ele literalmente não sabe o que fazer.
A p r o m o ç ã o de R a m z a n dá seqüência à política suicida q u e
conduz inexoravelmente a futuros atos terroristas e à consolidação
de poder nas mãos de pessoas q u e p a r e c e m querer fazer o q u e
podem para garantir q u e o a t e n t a d o ao m e t r ô seja seguido p o r
e
questros de aviões e depois disso pelo assalto a uma escola.
„ ^ ã o há n e n h u m significado especial neste ato de Putin. Ele
n a t e m
° idéia d o que precisa ser feito a seguir. É uma tragédia
c
° n h e c i d a da Rússia ter altos líderes políticos incompetentes, q u e
202
A N N A POLITKOVSKAYA

chegaram a seus cargos por acaso e p o r sua vez promovem pessoas


sem expressão a posições de grande poder.

23 de outubro
Em M o s c o u , ocorreu uma grande manifestação de protesto contra
a guerra na Tchetchênia e em h o m e n a g e m às vítimas dos atos ter-
roristas. A reunião aconteceu às 17:00 e desde as 10:00 havia uma
fila de manifestantes na praça P u c h k i n . As pessoas que sofreram o
cerco em Nord-Ost lá estavam pela primeira vez, porque hoje é o
segundo aniversário da tomada de reféns.
A r e u n i ã o não foi "oficial". D e p o i s de Beslan, u m a onda de
reuniões antiterrorismo, oficialmente organizadas, rolou sobre o
país p o r iniciativa da administração presidencial. As autoridades de
M o s c o u haviam concordado c o m u m a manifestação de até qui-
nhentas pessoas, mas apareceram cerca de 3 mil e as autoridades
alertaram q u e esse número era superior ao permitido. O segundo
motivo era q u e os slogans nas bandeiras não eram somente contra
a guerra, mas t a m b é m contra o governo. Mas q u e m está conduzin-
do a guerra?
M u i t o s dos q u e c o m p a r e c e r a m c h e g a r a m em carros caros,
m e m b r o s da classe média que n o r m a l m e n t e não comparecem a
reuniões. Caía u m a chuva fria e pesada, mas as pessoas vieram e
p e r m a n e c e r a m , o que é importante. C o m o disse Bóris Nadejdin,
m e m b r o do C o m i t ê 2008 e co-presidente da União de Forças de
Direita: "Esta é u m a manifestação de pessoas que não querem ser
mantidas reféns de um m e d o gerado ideologicamente, que lhes esta
sendo i m p o s t o depois de Beslan (...). A Tchetchênia é uma ferida
terrível, q u e causou Nord-Ost e Beslan. Em 1999, foi oferecido a
Rússia um m é d i c o que prometeu curar o país e ele foi eleito pre-
sidente. Ele não teve sucesso. Hoje, q u a n d o não temos u m a mídia
de massa livre n e m p a r l a m e n t o na R ú s s i a , resta s o m e n t e uma
maneira de pressionar as autoridades; q u e os bons saiam às ruas para
fazer manifestações."
Os b o n s permaneceram na praça debaixo de chuva, carregan-
do cartazes q u e diziam "Somos a Q u i n t a C o l u n a do Ocidente ,
n u m a alusão à entrevista dada p o r V l a d i s l a v Surkov ao Kornso-
molskaia Pravda, na qual ele teve a ousadia de dizer que a oposição
ü M DIÁRIO RUSSO 203

era um segmento da sociedade "irremediavelmente perdido c o m o


rceiro"; q u e a Rússia estava sitiada; q u e os liberais e nacionalistas
eram uma quinta coluna financiada pelo O c i d e n t e ; que não havia
urna Rússia de Putin, mas "somente a Rússia", e q u e m não acredi-
tasse nisso era um inimigo.
Esta não é mais uma ideologia neo-soviética: é o regime sovié-
tico puro e simples. Logo q u e se livrou de obstáculos c o m o o
decaído C o m i t ê Central do Partido e conseguiram oportunidades
ilimitadas de enriquecimento, a elite comunista começou a ressus-
citar as estruturas ideológicas do passado. Surkov é visto hoje c o m o
o principal ideólogo de Putin.
Estamos no o u t o n o de 2004, mas um inverno político já se ins-
talou e deixa seu sangue frio.

25 de outubro
A revista Itogi p e r g u n t a à g o v e r n a d o r a de São P e t e r s b u r g o : "A
Rússia p o d e r i a ser u m a república parlamentar sem presidente?"
Valentina M a t v i e n k o , u m a aliada p r ó x i m a de P u t i n , r e s p o n d e :
"Não, isso não daria certo para nós. A mentalidade russa prefere um
mestre, u m czar, u m presidente. E m outras palavras, u m líder."
Matvienko só é capaz de repetir aquilo q u e ouve no círculo i m e -
diato de Putin.
A Associação de Direitos H u m a n o s respondeu:

Estamos ultrajados c o m este p r o n u n c i a m e n t o , que é um insul-


to à dignidade nacional do povo russo. O sentido dessas pala-
vras é claramente de que o povo russo é constituído p o r servos
que não p o d e m viver sem um mestre, criaturas covardes q u e
nao sobrevivem sem um czar. A adição da palavra "presidente"
somente deixa claro que a nova elite d o m i n a n t e vê o chefe de
Estado, não c o m o um líder democrático, mas c o m o um p o t e n -
tado autoritário. Esta afirmação do servilismo inato do p o v o
russo e racista. Na realidade, a governadora de São Petersburgo
expressou sua discordância c o m as premissas da Constituição
das liberdades democráticas invioláveis (...). A idéia de nossa
mferioridade nacional e do servilismo inato do povo russo está
n c e r
° n e das principais teorias russofóbicas. Foram doutrinas
2<H A N N A POLITKOVSKAYj

c o m o essas que os ideólogos do nazismo alemão usaram para


sustentar sua atitude agressiva c o m relação à Rússia. E particu-
l a r m e n t e repreensível o fato de essas opiniões partirem da pes-
soa responsável pela Heróica Cidade de Leningrado. Exigimos
a exoneração imediata de Valentina Matvienko.

N i n g u é m achou necessário responder. A nova elite dominante


não mais considera necessário ocultar sua verdadeira atitude com
relação à maioria de seus compatriotas e aos princípios da demo-
cracia constitucional.

28 de outubro
U m a divisão pública no partido Iabloko. A ala j o v e m p o d e ser vista
nas principais estações de televisão discordando de Iavlinski.
R e u n i õ e s em apoio a Putin, organizadas pelo R U , estão ocor-
r e n d o em muitos lugares. A maior é em Moscou e foi lá que falou
o líder da ala j o v e m .
Estudantes e aposentados f o r m a m a principal sustentação das
reuniões de protesto organizadas pela oposição. Pela primeira vez,
o P a r t i d o C o m u n i s t a , o Iabloko e a U n i ã o de Forças de Direita
estão se u n i n d o para realizar protestos anti-Putin.

29 de outubro
As autoridades do Estado p e r m a n e c e m no curso para o abismo,
levando-nos a todos c o m elas. O procurador-geral, Vladimir Usti-
nov, a n u n c i o u na D u m a que, na opinião da principal instituição
encarregada de supervisionar os direitos dos cidadãos e na opinião
dele, é u r g e n t e m e n t e necessário adotar u m a lei que regulamente as
medidas a serem tomadas em caso de ataques terroristas. Suas pro-
postas mais importantes são que sejam introduzidos procedimentos
judiciais sumários para suspeitos de terrorismo; que os parentes de
terroristas sejam detidos c o m o contra-reféns; que os bens de terro-
ristas sejam confiscados.
Parece improvável que a possibilidade de ter um gravador
vídeo, um televisor ou mesmo um carro confiscado detenha aqueles
que estão dispostos a cometer suicídio e assassinar outras pessoas.
DIÁRIO RUSSO 205

idéia do p r o c u r a d o r - g e r a l , de i n t r o d u z i r p r o c e d i m e n t o s
A

sumários para suspeitos de t e r r o r i s m o , é u m a r e p e t i ç ã o direta


daqueles q u e sob Stalin e r a m c o n h e c i d o s c o m o " e x p u r g o s em
massa"; ou, mais recentemente, para usar a linguagem da "operação
antiterrorismo", "limpezas".Todos esses procedimentos simplifica-
dos são muito conhecidos na T c h e t c h ê n i a e na Inguchétia, o n d e
têm estado em uso há mais de cinco anos. Os órgãos de segurança
(todos eles: Ministério do Interior, FSB, a Diretoria C e n t r a l de
Inteligência do Exército e outros) p r e n d e m q u e m querem, algumas
vezes depois de receber informações operacionais, mas na m a i o r
parte dos casos sem elas. Elas espancam, incapacitam e t o r t u r a m
como q u e r e m , extraindo confissões de atividades terroristas ou
pelo menos de simpatia pelos terroristas, embora, na realidade, n e m
precisem das confissões.
Há dois resultados possíveis: se a vítima ficou seriamente m u t i -
lada, ela é morta e enterrada, o u , se a família conseguiu pagar su-
borno, ela vai a julgamento. N i n g u é m se interessa por provas. Na
"zona da operação a n t i t e r r o r i s m o " , os casos de p r o c e d i m e n t o s
judiciais sumários são a única alternativa possível. Acusação:Você é
membro de um grupo armado ilegal: de 15 a 20 anos. A presença de
um advogado e um promotor no j u l g a m e n t o é puramente decorati-
va, para dar um verniz de legalidade às estatísticas de terroristas c o n -
denados e atos terroristas evitados. Os advogados em geral nada mais
fazem do que persuadir o acusado a confessar tudo; a tarefa do p r o -
motor é dizer à família que reclamar só irá piorar as coisas.
Os planos declarados do nosso procurador-geral iriam efetiva-
mente abolir a presunção de inocência. Na "zona da operação anti-
terrorismo" na Tchetchênia e na Inguchétia, tem p r e d o m i n a d o a
Presunção de culpa há vários anos, q u e se estenderá ao restante da
Rússia. N o s últimos cinco anos, a maioria das pessoas supôs que o
error da ilegalidade extrajudicial p o r p a r t e das instituições do
ado afetava s o m e n t e rebeldes distantes, o q u e não constituía
motivo para preocupação; o resto da Rússia estava de algum m o d o
miune a isso. Infelizmente, milagres não a c o n t e c e m . Em a l g u m
m
o m e n t o , a prática iria se generalizar.
i D r o s t
tra ^ P ° a do procurador-geral, de deter parentes c o m o c o n -
a
reféns, é sem dúvida inovadora. Ele explicou aos deputados da
UUma n A - '
que deteríamos os parentes dos terroristas, mostraríamos o
306
A N N A POLITKOVSRAY4

os manifestantes, p o r q u e eles só se p r e o c u p a m com n r o t - P „ . .


lu
F / c . i F cestos de
massa. Se os manifestantes sao poucos, eles r i e m e vão cuidar <U
vida.

16 de julho

D é c i m o p r i m e i r o dia da greve de fome. Os participantes estão


m u i t o fracos. O que irá acontecer? O regime está em silêncio. Será
q u e é preciso q u e algumas pessoas m o r r a m ? Em sua maioria os
grevistas são idosos, incapacitados ou doentes. N e m um único polí-
tico veio falar c o m eles.

18 de julho

Os Heróis da greve de fome estão n u m b e c o sem saída. As autori-


dades ignoram todas as suas sugestões.
" Q u a l é o p r o b l e m a ? " , p e r g u n t o a t o r d o a d a a Svetlana
Gannuchkina. Estamos conversando p o u c o antes de uma reunião,
da qual P u t i n irá participar, da C o m i s s ã o Presidencial para o
Desenvolvimento da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos, da
qual Svetlana é m e m b r o . "Por que não p o d e m apenas ouvir? Por
que eles sempre insistem em fazer t u d o da p i o r maneira possível?
Por que forçam um b e c o sem saída após o o u t r o ? "
" P o r quê? P o r q u e eles querem criar um país no qual é impos-
sível viver", responde tristemente Svetlana. Ela é o único membro
da Comissão de Direitos H u m a n o s c o m coragem para entregar o
apelo dos Heróis a Putin.
Esta tarde, um j ú r i no Tribunal da Cidade de Moscou absolveu
Viatcheslav Ivankov, t a m b é m conhecido c o m o Iapontchik, da acu-
sação de assassinato a tiros de dois cidadãos turcos em um restau-
rante de M o s c o u em 1992.Todas as emissoras de televisão mostram
o j u l g a m e n t o ao vivo. Elas t a m b é m dizem que Ivankov pretende
escrever um livro. A greve de fome não é mencionada e o julga
m e n t o dos bolcheviques nacionais recebe apenas algumas palavras.
N ã o ouvimos nada a respeito do que eles p o d e m estar planejan
fazer se saírem da prisão.
1
C o m o p o d e m o s continuar vivendo u m a mentira dessas? Fmg
mos que foi feita justiça no caso de Iapontchik, alegramo-nos p
206 ANNAP O L I T K O V S K A Y A

que poderia lhes acontecer e em seguida os terroristas libertariam


seus reféns e se entregariam.
Esse m é t o d o t a m b é m foi usado na T c h e t c h ê n i a , particular-
m e n t e durante a Segunda Guerra Tchetchena, q u a n d o as forças de
Kadirov se t o r n a r a m poderosas. Torturar parentes para que as pes-
soas procuradas se entregassem passou a ser sua marca registrada
Porém, a tomada de reféns ao estilo de Kadirov t a m b é m era prati-
cada e m n o m e d o Estado c o m a b ê n ç ã o d o G a b i n e t e d o
Procurador-geral no n o r t e do Cáucaso e c o m completo desprezo
pela lei e pela Constituição por parte dos procuradores.
Agora nos vemos n u m a situação desastrosa. Por cinco anos, o
Gabinete do Procurador-geral tem estimulado u m a onda de terro-
rismo no n o r t e do Cáucaso, executada de acordo c o m os desejos
do presidente da Rússia. C o m freqüência, os procuradores estavam
presentes d u r a n t e as sessões de tortura e execuções, publicando
depois garantias de que tudo ocorrera de acordo c o m a lei.
Q u e tipo de argumentos poderão agora ser encontrados para
convencer pessoas c o m o ele? C o m o p o d e alguém que é, na reali-
dade, um antiprocurador-geral, ser convencido a retirar da Duma
suas propostas de inovações sedentas de sangue? O Gabinete do
Procurador-geral está interessado exclusivamente na sua sobrevi-
vência institucional, em promoções e recompensas, em ocultar a
verdade a respeito dos atos de que foi cúmplice. As autoridades do
Estado se agarram ao poder ao preço de nossas vidas. E simples.
O discurso do procurador-geral à D u m a foi interrompido -
p o r aplausos. Nosso Parlamento considerou a idéia ótima. O presi-
dente Putin, que j u r o u proteger a Constituição, não exonerou um
procurador-geral q u e propôs enormes violações à lei.
O ano de 1937 m a r c o u o auge do t e r r o r de Stalin. Hoje, o
1937 da T c h e t c h ê n i a está se transformando em o u t r o 1937 para os
russos em geral, q u e r c o m p a r e ç a m o s ou n ã o a e n c o n t r o s no
memorial das vítimas de Stalin em Solovi R o c k . Agora qualquer
um de nós p o d e sair para comprar pão e não voltar ou voltar vinte
anos depois. Na Tchetchênia, por via das dúvidas, as pessoas dão
adeus antes de ir ao mercado.
Em 29 de o u t u b r o de 2004, c o m o sempre, o povo russo per-
maneceu em silêncio, esperando que q u e m seria apanhado fosse o
vizinho.
DIÁRIO RUSSO 207
u M

3 de novembro
O Soviet da Federação aprovou a abolição das eleições locais de
governadores.

6 de novembro
Mikhail Iuriev, um ex-jornalista q u e agora trabalha no Kremlin,
publicou u m artigo e m n o m e d a administração presidencial n a
Kotnsomolskaia gazeta, d a n d o c o n s e l h o s sobre c o m o diferenciar
entre q u e m é útil para o p r e s i d e n t e e q u e m é um i n i m i g o da
Rússia. A falsa antítese é g r i t a n t e e deliberada. De a c o r d o c o m
Iuriev, qualquer pessoa que critique Putin é um inimigo da Rússia.
Aqueles que falaram em favor de negociações durante Beslan, ou
contra o uso de armas químicas no ataque em Nord-Ost, são i n i m i -
gos; assim c o m o aqueles q u e c o m p a r e c e m a reuniões de protesto
contra a guerra n a T c h e t c h ê n i a ou as organizam. Da mesma forma,
aqueles que p e d e m p o r conversações de paz sobre a T c h e t c h ê n i a e
a cessação da guerra civil.
Os Comitês de Mães de Soldados formaram seu p r ó p r i o parti-
do político. O congresso de fundação do partido não é um a c o n t e -
cimento acidental. Ele resulta da c o m p l e t a destruição de nosso
cenário político depois das eleições à D u m a , q u a n d o t o d o s os
deputados em q u e m elas p o d e r i a m confiar para fazer lobby p o r
reformas militares e pelos interesses dos recrutas p e r d e r a m seus
assentos. C o m o presidente do partido, Valentina Melnikova disse:
O p r o g r a m a do nosso p a r t i d o estabelece c o m o m e t a s básicas
garantir que o Estado assuma u m a atitude responsável c o m relação
a seres humanos e crie u m a estrutura segura para a vida na Rússia.
Provocar u m a transformação democrática das forças armadas russas
e
somente uma parte dessa tarefa maior. Em termos de economia,
somos um partido que tende para o liberalismo e, no q u e diz res-
peito às responsabilidades do Estado perante a sociedade, nós t e n -
demos ao socialismo."
O Partido das Mães de Soldados é a primeira organização poli-
da na Rússia a declarar q u e lutará para proteger nossa vida. Os
feitores russos não c o n t a m c o m opções tão boas. Nossos políticos
P°dem nos dar cem rublos antes do dia das eleições, mas não têm
208 A N N A POLITKOVSKAY

t e m p o para lutar pelas questões que nos afetam de forma vital. El


estão ocupados demais lutando por seu próprio lugar ao sol.
O congresso de fundação teve lugar a b o r d o do navio Koi
tantin Fedin, ancorado para o inverno no Porto Fluvial N o r t e d
M o s c o u . Por que um navio? Porque n i n g u é m cederia um auditó
rio p o r m e d o da reação do regime.
O partido foi criado p o r 154 representantes de mais de cin
q ü e n t a regiões, todas m e m b r o s de um m o v i m e n t o q u e salvou
vida de milhares de recrutas desde sua fundação em 1 9 8 9 . 0 movi
m e n t o c o m e ç o u na U R S S . No final dos anos 1980, as mulhere
q u e tentavam proteger seus filhos da brutalidade dos veteranos d
exército e do recrutamento universal começaram a se organizar e
comitês. Em 1989, elas conseguiram convencer Gorbatchov a di
pensar antecipadamente 176 mil soldados do exército para que el
continuassem os estudos. Em 1990, ele t a m b é m publicou diretiv
" S o b r e a I m p l a n t a ç ã o de Propostas do C o m i t ê de Mães d
Soldados" e sobre os benefícios do seguro estatal para os recrutas
E m 1 9 9 1 , o s C o m i t ê s c o n s e g u i r a m que Ieltsin concedesse u m
anistia aos soldados desertores e em 1993-4 sua persistência garan
tiu a instauração de um inquérito sobre a morte, de fome, doenç
e torturas, de mais de duzentos marinheiros na ilha de Russkoi
Entre 1994 e 1998, elas foram a primeira organização de direit
h u m a n o s da Rússia a e x i g i r a cessação i m e d i a t a da g u e r r a n
T c h e t c h ê n i a , conseguiram q u e o presidente Ieltsin perdoasse qui
n h e n t o s soldados que haviam conscientemente se oposto a partici
par da P r i m e i r a G u e r r a T c h e t c h e n a , forçaram u m a anistia pa
todos os participantes - de ambos os lados - da Guerra T c h e t c h e
e c o n s e g u i r a m incluir no o r ç a m e n t o do Estado um i t e m para
busca e identificação dos restos mortais dos soldados falecidos
T c h e t c h ê n i a . Desde 1999, os Comitês de Mães de Soldados têm s
manifestado contra a Segunda Guerra Tchetchena, realizando u
c a m p a n h a pública contra a falsificação do verdadeiro n ú m e r o
baixas e compilando e publicando listas dos mortos e dos que desa
pareceram sem deixar rastro.

O principal objetivo dos C o m i t ê s passou a ser acabar com


escravidão do recrutamento universal e substituí-lo p o r um e x e r c
to totalmente profissional. Todos os partidos democráticos apoia
ram e, c o m o passar do t e m p o , a idéia de um exército profission
2(19
u M DIÁRIO RUSSO

foi aceita por altos oficiais e p o r sucessivos ministros da Defesa,


cujos discursos eram f r e q ü e n t e m e n t e tirados palavra p o r palavra
dos seus folhetos. Mas na implantação, tudo foi distorcido: os c o n -
tratos eram assinados de forma "compulsória voluntária", os salá-
rios não eram pagos e os recrutas eram enviados diretamente para
a T c h e t c h ê n i a . D e p o i s das eleições em d e z e m b r o ú l t i m o , n ã o
sobrou n i n g u é m no P a r l a m e n t o para falar em favor de projetos
legislativos democráticos.
No final de janeiro de 2004, os Comitês de Mães de Soldados
decidiram q u e estava na h o r a de criar seu p r ó p r i o partido. D e z
meses se passaram, p o r q u e a criação de um novo partido envolve
um volume e n o r m e de burocracia e é extremamente dispendiosa.
Durante esse período, elas foram estigmatizadas c o m o u m a quinta
coluna, apoiada pelo O c i d e n t e para solapar a capacidade de c o m -
bate da Rússia. Isto é, elas eram "inimigas internas" n u m p e r í o d o de
tensão militar.
A força política das mães, q u e irá assegurar sua sobrevivência, é
que suas políticas vêm do coração. Até agora, as pessoas aqui se tor-
naram políticas pela vontade de suas mentes. As paixões partidárias
ferviam principalmente sobre q u e m iria comandar e não sobre o que
poderia ser feito pelo eleitorado. Em 2003, as autoridades do Estado
usaram isto c o m muito sucesso e concessões sórdidas solaparam qual-
quer confiança que o povo ainda tinha na oposição. No fim, n e n h u m
democrata ou liberal conseguiu ser eleito para a D u m a .
A maior força do Partido das Mães de Soldados é a paixão que
elas têm para defender seus filhos e nossa confiança de que o farão
com toda a sua capacidade. Elas não t ê m n e n h u m o u t r o capital
político. Sua compulsão maternal varre tudo que está à frente, c o m o
ficou evidente depois de conversar m e n o s de dois m i n u t o s c o m
qualquer uma das delegadas fora e dentro do auditório. Em pouco
tempo, nos vimos discutindo o destino de algum soldado que neces-
sitava de ajuda: "Veja o que está acontecendo em nossa região", disse
mdmila Bogatenkova, de Budionnovsk, puxando da sua mala uma
pilha de testemunhos de soldados a respeito de maus-tratos. Ela os
tr
o u x e para entregar ao Gabinete do Procurador Militar.
Porque desde que existe o serviço obrigatório, o soldado no
e x e
r c i t o é um n i n g u é m " , diz Liudmila indignada. "Ele p o d e ser
0
para qualquer coisa. P o d e ser usado c o m o trabalhador não
210 ANNAP O L I T K O V S K A Y A

r e m u n e r a d o . Milhões de nossos concidadãos são hoje escravos e


nossa missão é abolir essa escravidão. N ã o p o d e haver concessões a
este respeito!"
A principal discussão no Congresso dizia respeito à redação do
manifesto. Deveriam elas fazer campanha pela abolição do serviço
militar obrigatório ou deixá-la de lado por algum t e m p o ? Em ter-
m o s mais gerais, deveria o novo partido seguir o habitual caminho
russo de desafiar q u a n d o n i n g u é m está olhando, d i z e n d o que é
contra o serviço militar obrigatório, mas deixando isso fora do seu
programa para não irritar a administração presidencial e facilitar o
registro do partido? Ou elas devem ser completamente honestas e
se preocupar somente de conquistar o respeito do povo russo?
Nessa i m p o r t a n t e q u e s t ã o de p r i n c í p i o , v e n c e u a segunda
abordagem. U m a convicção apaixonada não é possível sem a total
honestidade. A abolição do serviço militar obrigatório entrou para
o manifesto. Elas lutarão p o r ela e graças a Deus p o r isto, porque a
confiança do eleitorado será seu maior ativo. Se começassem ten-
tando conseguir " m e i o s - t e r m o s sensatos", seriam enganadas pelas
autoridades, que sabem c o m o manipular negociantes de meios-ter-
m o s , e os eleitores as abandonariam.
"Sim, é importante que nossas mulheres e n t r e m para a D u m a " ,
explica Liudmila B o g a t e n k o v a . "Caso contrário, será impossível
forçar a abolição do serviço militar obrigatório. Se estivermos na
D u m a , t a m b é m será mais simples ajudar soldados e recrutas em
determinadas situações e evitar que as autoridades obstruam vota-
ções q u a n d o um crime foi cometido."
U m a das poucas maneiras de exercer influência, depois do res-
surgimento da burocracia, é a questão parlamentar. O questiona-
m e n t o de um deputado p o d e produzir resultados rápidos e signifi-
cativos e a velocidade costuma ser essencial. A maior parte dos casos
em que soldados foram salvos exigiu investigações e ações imedia-
tas. Q u a n d o uma história ganha notoriedade e um deputado chega
ao Gabinete do Procurador-geral, alguém no m u n d o fechado do
exército t e m uma chance de sobreviver. A ausência dessa oportuni-
dade em geral significa m o r t e . Um dos primeiros brindes levanta-
dos depois da criação do partido foi: "A 2007! C u i d a d o D u m a , aqui
vamos nós!"
UM D I Á R I O R U S S O 211

O Partido das Mães de Soldados tem uma lição para ensinar ao


mundo. Ele terá de criar seu p r ó p r i o futuro c o m a paixão sincera
ela qual vivem as mulheres em seus Comitês. Por m u i t o tempo,
ouvimos que quanto mais esperto é um político democrático, mais
eficaz ele é. Isso se mostrou u m a inverdade. Nosso povo não liga
para esperteza, n e m para q u e m carece de paixão. Essa é a espécie de
povo que somos. P r i m e i r o a paixão, depois o raciocínio claro e
direto. N u n c a o contrário.

9 de novembro
O diretório do partido Iabloko em Kaluga exigiu um referendo
sobre a retenção de benefícios em espécie para trabalhadores apo-
sentados, vítimas da repressão soviética e aqueles que trabalharam
em casa durante a S e g u n d a G u e r r a M u n d i a l . Os benefícios em
questão são o direito de andar de graça nos ônibus suburbanos e
assistência médica gratuita. As autoridades da província de Kaluga
pretendiam abolir todos os benefícios em espécie em troca de um
ridículo suplemento mensal às pensões de 2 0 0 - 3 0 0 rublos [US$8-
10]. Até agora, as autoridades não deram atenção aos protestos, mas
um referendo poderá forçá-las a repensar o assunto. Este tema é
muito sensível. Q u e m terá direito a benefícios d e p o i s de 1° de
janeiro de 2005? A " m o n e t a r i z a ç ã o " dos benefícios pretendia redu-
zir o número de requerentes, q u e nos dizem chegar à metade dos
habitantes do país. C e r t a m e n t e há espaço para u m a racionalização.

A idéia do referendo não deu em nada. Os democratas a abandona-


ram porque sentiram q u e a resistência era grande demais.

11 de novembro
Crise em Karatchevo-Tcherkessia. U m a multidão o c u p o u o gabi-
n e
t e de Mustafa Batdiev, o presidente, e exige sua exoneração. O
rnotivo é um caso envolvendo o seqüestro, assassinato e destruição
s c
^ o r p o s de sete jovens h o m e n s de negócios c o m q u e m o cunha-
0
de Batdiev estava envolvido. Ele já foi preso.
As a u t o r i d a d e s estão n u m a situação p o u c o invejável. Se
l e v r
f ° exonerado, poderá haver u m a reação e m cadeia. O p r ó -
212 A N N A POLITKOVSKA

x i m o será certamente M u r a t Ziazikov, na Inguchétia. Batdiev es


p o u dos p r o b l e m a s , assim c o m o Ziazikov meses antes, mas
devolvido a eles p o r Kozak, representante de P u t i n no Distri
Federal Sul. Kozak veio para falar c o m as pessoas em Tcherkessk
horas depois, as emissoras de televisão estavam anunciando a b
notícia: o " g o l p e " havia fracassado. Kozak havia persuadido a m
tidão a deixar o gabinete de Batdiev, este voltaria e seu gover
continuaria c o m o antes.
Foi o u t r o desastre para a política de r e c u r s o s h u m a n o s
Putin. Os líderes locais, controlados pelo Kremlin, são incapazes
liderar ou de assumir qualquer responsabilidade. Ao m e n o r sinal
perigo, correm para salvar a própria vida. As autoridades, por s
vez, reagem a multidões. Kozak não teria ido a lugar n e n h u m s
multidão não tivesse t o m a d o o gabinete de Batdiev pela força. Se
pessoas tivessem solicitado um encontro c o m ele, teriam de espe
uns seis meses, p o r mais sério que fosse o assunto.

26 de novembro
Faz um ano que Khodorkovski foi preso. As autoridades ignoram
data. N o s tempos da U n i ã o Soviética, o mediador entre a socieda-
de e o Estado era a K G B , que fornecia às autoridades informações
distorcidas a respeito do q u e estava a c o n t e c e n d o , e isso acabou
levando ao colapso da U R S S .
H o j e o FSB t a m b é m distorce seriamente as informações que
vão para cima, mas P u t i n desconfia de todas as outras fontes. A
aorta será d e v i d a m e n t e b l o q u e a d a n o v a m e n t e . E s p e r a m o s que,
desta vez, não t e n h a m o s de aguardar setenta anos.

11 de dezembro
Q u e velocidade! O presidente já assinou a lei abolindo a eleição de
governadores. Esta foi a aprovação mais rápida de u m a lei neste pais
o
e, a partir de I de janeiro, Putin não terá que discutir assuntos com
os governadores, n e m se preocupar c o m a possibilidade de eles
serem p o u c o cooperativos. Um czar deve ter servos, não parceiros.
Algumas das crianças massacradas em Beslan ainda precisam ser
identificadas e enterradas, mas isto não é prioridade. Cada vez mais,
u M DIÁRIO RUSSO 213

cabe aos pais t o m a r esta decisão sozinhos. O q u e é r e a l m e n t e


o r t a n t e
irnp ^ t r a n s f o r m a r a estrutura do E s t a d o em algo mais
cômodo para Putin.
Quanto a Beslan, a cidade está e n l o u q u e c e n d o rapidamente. O
o
outono que c o m e ç o u em I de setembro já t e r m i n o u e a chegada
do inverno c e r t a m e n t e n ã o fez n i n g u é m se sentir melhor. Sem
dúvida as famílias cujas crianças ainda não foram encontradas, que
não têm filho, não t ê m funeral n e m sepultura o n d e possam pran-
tear. Jorik Agaev, Asían Kisiev, Zarina N o r m a t o v a , todos nascidos
em 1997, e Aza Gumetsova, de onze anos, ainda não foram e n c o n -
trados. Zifa, a mãe de J o r i k Agaev, quase nunca sai de casa. Ela per-
manece lá à espera dele.
"E se ele voltar e eu não estiver aqui? Q u e recepção terá ele?",
diz Zifa. Sua boca está torta, pois ela foi ferida na escola. "Sei que
as pessoas nesta cidade p e n s a m que estou louca, mas não estou.
Apenas estou certa de q u e m e u Jorik está vivo. Ele está detido em
algum lugar."
As famílias cujas crianças estão na lista de desaparecidos se divi-
dem em dois g r u p o s . Algumas, c o m o Zifa, acreditam que estão
detidas como reféns. Outras acreditam que estão mortas e que seus
corpos foram enterrados p o r engano.
A estranheza de Zifa t e m várias causas, q u e p e ç o a Deus que
voce nunca experimente. Ela é a refém que d e i x o u que as crianças
no ginásio mamassem no seu próprio peito. Ela o deu a todas que
estavam sentadas p o r perto. Mais tarde, ela espremeu o líquido vital
gota a gota n u m a colher, que foi passada entre as crianças.
Jorik voltará e t u d o será c o m o antes. Sabe, em 3 de setembro,
o saguão estava silencioso. Quase todos os terroristas haviam saído,
somente uns poucos estavam conosco. Já estávamos nos arrastando
para onde não devíamos, sem nos importar c o m eles.Tive uma alu-
cinação; imaginei que estava em um caixão. A seguir, imaginei que
unha ouvido um terrorista chamar: 'Agaeva, trouxeram água para
v°ce; tome-a.' D e v o ter assustado Jorik, p o r q u e ele se arrastou para
l o n
g e d e mim."
. Subitamente Agaeva foi atirada pela janela devido a u m a explo-
\T ^ ^ ° ^ OC OS S u e e s t a v a m
sentados perto dela m o r r e r a m queimados.
e
de do seu rosto foi mutilado; ela passou p o r várias cirurgias e
ra o u
t a s . Q u a t r o fragmentos não p o d e m ser removidos.
214 A N N A POLITKOVS

"As cicatrizes e os fragmentos não importam. O importante


Jorik. Q u a n d o ele voltar, vamos c o m e m o r a r seu renascimento" ¿j»
ela repetidamente. "E c o m o irei gritar: "Vejam todos! J o r i k voltou''
N u n c a mais deixarei que ele se afaste...Jorik está vivo!"A esta altu-
ra ela está desesperada. "Jorik dentro de um saco? N u n c a . "
Em Beslan, um " s a c o " significa restos h u m a n o s trazidos do
necrotério militar de R o s t o v - o n - D o n após a identificação. Os res-
tos de Jorik não foram identificados, embora haja restos de meni-
nos da idade dele. O que está acontecendo?
Agora Zifa fala baixo e está calma; sua voz é a de u m a mãe
devastada pela perda do filho: " Q u a n d o Jorik voltar, eu o levarei ao
presidente Dzasokov e ao presidente Putin e direi: 'Vejam. Este é o
anjo q u e vocês n e m tentaram salvar!'"
Depois, n u m sussurro: " N u n c a mais comerei geléia de fram-
b o e s a . N a s primeiras duas h o r a s , estávamos c o m m u i t o medo.
Q u a n d o Jorik gritou 'Ele o matou!', eu disse: 'E só um filme que
eles estão fazendo' e Jorik p e r g u n t o u 'Mas porque parece tão real?
E o q u e é isso que está escorrendo pelo chão?' Eu respondi: 'E só
geléia de framboesa.'"
M a r i n a Kisieva tem 31 anos e vive na aldeia de Khumalag, a
meia hora de carro de Beslan. Ela perdeu o marido A r t u r e o filho
Asían na atrocidade. Asian t i n h a sete anos e estava na Classe 2.
Agora Marina só tem a filha Milena, de cinco anos, que nunca per-
gunta para onde foi o irmão. Ela se recusa a ir para a creche e cos-
tumava desmaiar sempre que as mulheres no seu bloco de aparta-
m e n t o s começavam a se lamentar.
Raisa Dzaragasova-Kibizova, professora de Asian, disse mais
tarde q u e Artur "era o m e l h o r pai da classe". Foi ele q u e insistiu
para q u e Asian fosse para a m e l h o r escola de Beslan e era ele que o
levava para a escola, apesar de ter seu emprego e t a m b é m estudar
d i r e i t o no c a m p u s de P i a t i g o r s k da U n i v e r s i d a d e R u s s a de
o
C o m é r c i o e Economia. Na véspera de I de setembro, A r t u r voltou
de Piatigorsk para levar ele m e s m o o filho à escola. Marina também
pretendia ir e ficou em casa p o r acaso.
" P o r que não fui? Eu o teria tirado do ginásio! Asian era um
garotinho magro e engraçado. Todos gostavam dele. Ele era muito
t í m i d o " , diz Marina, tentando não chorar na frente de Milena.
DIÁRIO RUSSO 215
M

o
Artur foi m o r t o quase imediatamente. Atiraram nele em I de
ternbro, quando os terroristas levaram os h o m e n s para trabalhar
fortificação do p r é d i o e pendurar explosivos. Aparentemente,
r teria dito "Vocês acham que vou matar crianças c o m minhas
róprias mãos?", e eles o mataram.
Aslan foi deixado no ginásio sem seu pai. Ele se arrastou até a
rofessora, Raisa Kibizova, e ficou perto dela quase até o fim, per-
u a n d o constantemente: " O n d e está A r t u r ? "
o
Raisa Kibizova t e m 62 anos. Em I de s e t e m b r o , ela havia
ompletado quarenta anos de magistério."Como poderia ter imagi-
do que passaria aquela data sem receber flores, mas sob uma chuva
e balas?" C o m o m u i t o s professores experientes, Raisa Kibizova
senta-se ereta e m a n t é m a cabeça erguida, m e s m o agora que c o m e -
çou uma campanha em Beslan - fomentada deliberadamente pelos
-rviços de inteligência e por agentes do Gabinete do Procurador-
ral - para buscar "os matadores" entre os professores sobreviventes.
"Sim, estão t e n t a n d o jogar a culpa em nós, c o m o se dissessem:
les não p o d e m ter c u m p r i d o seu dever para c o m as crianças se
obreviveram e as crianças, não.' N ã o imaginei q u e alguém pudesse
ter feito q u a l q u e r coisa para salvar a l g u é m , antes ou depois da
explosão. N ã o havia nada a ser feito. O dever dos professores que lá
estavam era de ser um amigo mais velho, dar e x e m p l o e dar força às
crianças. Foi exatamente o que eles fizeram até a explosão. Depois
ela, nada mais havia a fazer. Em 3 de s e t e m b r o , todos estavam
completamente confusos, tendo alucinações. Esforcei-me para p r o -
teger Aslan, mas no fim não fui capaz de fazê-lo.
o
Em I de setembro, estávamos entre os primeiros a ser m a n -
dos para o ginásio p o r q u e nossa classe, a 2A, ficava perto das p o r -
da escola. Fiquei sentada no saguão na frente da minha turma.
Atrás de mim, estavam os alunos e seus pais. Os explosivos estavam
pendurados acima da m i n h a cabeça. A r t u r Kisiev estava c o m seu
1 0
- Os terroristas disseram: 'Todos os pais v e n h a m para a frente,
Por favor.' C i n c o minutos depois, eles atiraram nos pais no corre-
o r
- Foi assim q u e dois alunos meus p e r d e r a m os pais, Misikov e
S 1
ç v . Eu disse aos m e u s alunos: 'Eles não vão atirar em crianças.'
Aslan estava d e i t a d o aos meus pés e disse q u e estava c o m
m
e . Fiz o q u e p u d e para alimentá-lo. Na primeira noite, havia
a
Jovem mãe p e r t o de nós, c o m um filhinho que não parava de
216 ANNA P O L I T K O V S K A Y A

chorar. Ela o estava embalando, mas a criança não parava. No hú


cio, um terrorista apontou seu fuzil para ela, c o m o que ordenandc
que mantivesse a criança quieta. A seguir, ele deu um profundo sus-
piro e p e g o u uma garrafa de água. 'Esta é minha água. Dê para ;
criança. E aqui estão duas barras de chocolate. Dê para ele chupar
através de um pedaço de pano.' A mãe teve m e d o de ser veneno
mas eu lhe disse: ' D e qualquer maneira, não sairemos daqui vivas.
Pelo m e n o s deixe que a criança se aquiete.' Ela quebrou um peda-
ço de u m a das barras e deu ao filho através de um pedaço de pano.
O restante, u m a barra e meia, eu escondi atrás de mim. Q u e b r e i um
p e d a c i n h o para Aslan e dei o restante às crianças da minha classe.
" N a segunda noite, quando todos estavam c o m u m a sede ter-
rível e eles não estavam deixando q u e as crianças fossem ao banhei-
ro, eu disse: 'Façam simplesmente no chão.' Elas relaxaram e c o m e -
çaram a fazer o que sugeri. Os garotos receberam garrafas cortadas
para urinar. Eu lhes disse que bebessem a urina. As crianças não
queriam, então bebi um p o u c o da urina do aluno mais velho. N e m
tampei o nariz, para que elas vissem que não era tão ruim. Depois
disso, elas começaram a beber e t a m b é m Aslan. Na m a n h ã de 3 de
setembro, Karina Melikova, u m a aluna do quinto ano, pediu ines-
p e r a d a m e n t e para ir ao banheiro. Eles permitiram e sua mãe, que
t a m b é m é professora, disse-lhe q u e arrancasse algumas folhas das
plantas do escritório, p o r q u e p e r m i t i r a m que ela fizesse lá suas
necessidades, pois tinham aberto um buraco no piso. Karina conse-
guiu trazer algumas folhas, ocultas entre as páginas de um caderno.
D e m o s as folhas às crianças. Karina e sua mãe foram mortas. De
q u e m é a culpa? Perdi Aslan no ú l t i m o m o m e n t o .
" I m e d i a t a m e n t e antes do ataque, muitas pessoas estavam se
sentindo m u i t o mal. Algumas jaziam inconscientes e estavam sendo
pisoteadas. Taisia Khetagurova, o u t r a professora, não estava b e m .
Arrastei-me para empurrá-la para a parede, para que não fosse piso-
teada, e deixei Aslan p o r um m o m e n t o . E foi isso. N ã o o u v i a
explosão, n e m o tiroteio. O m u n d o simplesmente desapareceu.
Voltei a m i m quando homens de Operações Especiais pisaram em
m i m . C o m e c e i a sentir as coisas n o v a m e n t e e me arrastei para fora.
Havia corpos ao m e u lado, empilhados um sobre o outro. Por que
eu sobrevivi e eles não? Por que sete dos meus alunos m o r r e r a m
q u a n d o eu, que tenho 62 anos, não morri? E onde está Aslan? Eu o
PIÁRIO RUSSO 217

• m minha frente todas as noites, arrastando-se na minha dire-


ye]0
- como um ratinho. Sei que sua mãe está m e i o m o r t a . Eu a vi."
n a
^ M a r i mexe nos livros escolares de Aslan.Tem sido sua prin-
cipal ocupação neste o u t o n o . Ela foi até a escola e encontrou os
livros de Aslan do p r i m e i r o ano e t a m b é m a q u e l e s q u e Raisa
ICibizova havia preparado para os alunos que estavam entrando no
ensino médio. D u r a n t e horas Marina lê e relê as cinco linhas da
única prova de ditado q u e seu filho estava destinado a fazer: "E 18
de maio. No jardim, u m a rosa silvestre está crescendo. O jardim tem
lindas flores..." Atrás de Marina, há uma cama sobre a qual estão as
coisas favoritas de Artur: um maço de cigarros, seu histórico esco-
lar, o cartão de registro, seus trabalhos. E sua foto. Ele parece muito
severo, mas t e m um o l h a r pensativo. M i l e n a fica em c o m p l e t o
silêncio quando se m o v e diante do retrato.
"Nos primeiros dois meses, eu fiquei c o m p l e t a m e n t e paralisa-
da. Não saía. N ã o cuidava da casa. N ã o q u e r i a fazer nada c o m
minha filha. Eu estava totalmente isolada. N ã o suportava abrir a
torneira, não suportava ouvir o som de água corrente. Por que eles
não deixaram que as crianças bebessem? Eu ficava irritada pelo fato
o
de as pessoas c o n t i n u a r e m a c o m e r e beber depois de I de setem-
bro. Eu estava ficando louca; ainda estou."
Marina m o s t r a - m e u m a carta que foi levada à sua casa j u n t a -
mente com u m a nova mochila, um presente " d o s alunos de São
Petersburgo".
Por que fizeram isso, q u a n d o todos s a b e m q u e nosso filho
morreu?"
Há uma carta " d e Irucha, 14 anos". Ela diz: "Você sobreviveu
aqueles dias terríveis. Você é u m a heroína!" Segue-se um convite
para a troca de cartas.
C o m o nosso e n d e r e ç o foi parar na lista errada?", pergunta
Marina, c h o r a n d o pela d o r causada p o r a q u e l e terrível ato de
m
^sensibilidade. ° c h i l a foi insuportável. Era e x a t a m e n t e o
°posto do que precisávamos. C o m p r e e n d o agora q u e n i n g u é m irá
e
k ajudar. O n d e está esse Putin? O c u p a d o demais c o m alguma
eira de ordenar q u e todos os corpos sejam identificados o mais
^Pido possível, aqueles que puderem ser. Pelo m e n o s assim, alguns
Pais poderão ter paz e um túmulo para cuidar."
218 ANNA P O L I T K O V S K A 1

Sacha G u m e t s o v e R i m m a T o r t c h i n o v a são os pais de


Gumetsova. Sacha está fora de si de tristeza. N ã o consegue dorr
noite, culpando-se p o r não ter conseguido salvar a filha. Ele ter
olheiras escuras e não se barbeia há muitos dias. Sacha e R i m m a est
indo heroicamente de casa em casa em Beslan, tentando convenc
mães e pais que enterraram seus filhos a exumar seus corpos.
" N o início, acreditávamos que Aza estava detida como refér
Aos poucos tivemos que reconhecer q u e não era isso que acont
cia. Em 4 de setembro, os pais estavam identificando seus filhe
pelas calças q u e estavam usando, p o r q u e não era possível identific
los por mais nada. Eles levaram corpos queimados para identifica
ção do D N A no laboratório legista em Rostov, mas eram tante
que muitos foram simplesmente deixados lá, sem identificação, i
pessoas os l e v a r a m de volta para suas casas. Esta é u m a cidad
p e q u e n a , n ã o t e m o s b u t i q u e s elegantes e m u i t a s das criança
tinham roupas iguais, compradas no mercado. Foi assim que tud
ficou confuso. V i m o s isso quando fomos aos necrotérios, olhand
dentro de cada saco, examinando cada dedo."
" C o m o vocês agüentaram fazer isso?"
N e m u m m ú s c u l o s e mexe n o rosto d e R i m m a .
" E u disse a m i m mesma: nada poderá ser pior do que aquile
pelo que as crianças passaram naquela escola. N ã o tenho direito a
a u t o p i e d a d e . A g o r a a única pergunta para nós é c o m o enterrar
nossa filha, c o m o cumprir nosso último dever para c o m Aza. No
necrotério, há o c o r p o de uma menina não identificada com idade
semelhante à da nossa filha, mas não é ela. Isso quer dizer que outra
pessoa t e m nossa filha em um túmulo. P o d e m ser os pais da meni-
ninha que está no necrotério. É claro que entendemos que a cor-
rente de q u e m pertence a q u e m poderá se mostrar muito longa-
Sabemos m u i t o b e m disso."
"A corrente de exumações?"
"É claro. Na lista que recebemos do Gabinete do Procurador,
há 38 e n d e r e ç o s de pessoas que p o d e m ter e n t e r r a d o a criança
errada. Trinta e oito meninas mais ou m e n o s da mesma idade e
constituição. O principal é que estamos no c a m i n h o certo: se o
n ú m e r o total de restos mortais em R o s t o v for igual ao número de
10 R U S S O 219
u M DiAP-

as u e
crianÇ 1 então trata-se simplesmente d e erros d e iden-
tificação. Todos foram encontrados, só que foram misturados."
Em 1° de setembro, Aza foi sozinha à escola pela primeira vez,
como suas melhores amigas de t u r m a e ela, q u e estavam c o m e ç a n -
do a crescer, t i n h a m c o n c o r d a d o em fazer. U m a delas era Sveta
Tsoy, uma garota coreana, que foi identificada somente em 27 de
setembro pela análise do D N A , p o r q u e suas pernas haviam sido
explodidas e seu c o r p o não podia ser identificado.
Outra amiga, E m m a Khaeva, era cheia de energia. Q u a n d o
estava c o r r e n d o para a escola pela m a n h ã , s e m p r e e n c o n t r a v a
tempo para dizer b o m dia a todos os vizinhos e perguntar às s e n h o -
ras idosas do c a m i n h o c o m o estavam se sentindo. Seus pais tiveram
sorte. Ela t a m b é m foi morta, mas p ô d e ser enterrada n u m caixão
aberto.
E havia Aza, a filha única e adorada de R i m m a e Sacha. R i m m a
deu a Aza todas as o p o r t u n i d a d e s q u e Beslan tinha a oferecer:
dança, canto, idiomas. " E u costumava dizer a m i m mesma que as
três eram pessoas do século X X I " , prossegue R i m m a . " N ã o eram
como nós. T i n h a m u m a atitude positiva perante a vida. Elas q u e -
riam muito. Aza tinha opinião própria a respeito de tudo. Era u m a
filósofa."
Tudo que sabemos é que E m m a , Sveta e Aza foram inicialmen-
te separadas no ginásio, mas no terceiro dia conseguiram se reunir.
Elas decidiram c o m e m o r a r o aniversário de M a d i n a Sazanova,
outra colega, e da última vez em que foram vistas estavam sentadas
sob a janela cuja parede foi detonada para criar um buraco p o r
onde as crianças escapassem.
' N ã o ouvi falar de n i n g u é m que estivesse perto daquela pare-
de e tenha s o b r e v i v i d o " , conclui R i m m a . " T u d o q u e nos resta
a
gora e enterrar Aza. Percorremos os endereços da lista c o m o se
fosse um trabalho. Tentamos fazer c o m q u e as pessoas concordem."
Q u e respeito se pode ter por u m a m á q u i n a estatal que r e p r o -
uz l o u c a m e n t e esses eventos cataclísmicos p o r seus cidadãos?
Pri
meiro Nord-Ost, depois Beslan. O Estado se recusa a admitir res-
ponsabilidade p o r qualquer coisa e furtivamente t a m b é m se esqui-
Va
de todos os seus outros deveres. D e v e haver exumações? D e i x e
U e 0s m a
^ i s vulneráveis s e p r e o c u p e m c o m isso. Vamos colocá-los
contra os o u t r o s , as famílias q u e e n t e r r a r a m seus m o r t o s e
220 ANNA POLITKOVSKAYA

aquelas q u e não t ê m mortos para enterrar, e assim todos se e s q Ue

cerão de protestar contra Dzasokhov e Putin. Por muito tempo s 0

pais não exigirão um inquérito verdadeiro. Eles terão outras coisas


c o m que se preocupar.
O E s t a d o se distanciou de t u d o q u e a c o n t e c e u em Beslan
a b a n d o n a n d o a cidade à loucura em seu isolamento. Mais ninguém
na Rússia quer saber do assunto.

12 de novembro
Em M o s c o u , o Congresso Nacional de Cidadãos reuniu delegados
de todas as partes da Rússia. Havia esperanças de que ele se trans-
formasse n u m a frente de salvação nacional, mas isso não funcionou.
A razão é simples: Georgi Satarov e Liudmila Alexeieva, que orga-
nizaram o evento, não querem pisar nos calos do Kremlin. Assim,
sentados na mesa diretora, eles r e p r i m e m as críticas "excessivas" a
Putin e, em conseqüência disso, no final das sessões, não há quase
n i n g u é m no auditório. Q u a n d o Gary Kasparov, o líder da oposição
que está c o m e ç a n d o a deixar sua marca, subiu ao pódio para falar,
as pessoas gritaram: "Kasparov para presidente!" Os organizadores
ficaram tão i r r i t a d o s c o m aquilo, q u e marginalizaram Kasparov
pelo resto do Congresso.
O centro do palco foi tomado pelas mesmas velhas figuras, que
r e d u z i r a m t u d o a u m a conversa e n t r e a m i g o s , m o l d a n d o o
Congresso à sua própria imagem.
A p e r g u n t a é: p o d e existir uma oposição democrática extrapar-
lamentar no presente? Caso venha a existir, ela será capaz de man-
ter a cabeça acima da água numa sociedade corrupta onde somen-
te aqueles q u e p o d e m intermediar j u n t o às autoridades conseguem
levantar fundos dos "patrocinadores"?
De qualquer maneira, quem poderia apadrinhá-la? Somente os
oligarcas e, c o m o está aberta a t e m p o r a d a de caça aos oligarcas,
n e n h u m deles o faria, exceto Berezovski. Um elo financeiro com
ele enviaria eleitores para a direção oposta.
Há o u t r o problema. O ódio não funciona c o m o plataforma
para eleições parlamentares e luta política na Rússia. Os democra-
tas não p o d e m construir sua campanha c o m base no ódio.
221
u M DIÁRIO RUSSO

C o m base em q u e eles p o d e m construir, se não têm n e n h u m a


déia positiva? B e m , eles precisam tê-las! A expectativa média de
vida na Rússia é de 58 anos e seis meses. P o r q u e não tornar o item
' ipal d nossa plataforma eleitoral a exigência de fazer c o m
a

que as pessoas vivam pelo menos até os setenta anos?


Os liberais e os democratas estão c h e g a n d o ao ano novo de
2005 como sonâmbulos políticos. Neste ano q u e se passou, desde
que foram massacrados nas eleições parlamentares, eles n e m m e s m o
conseguiram u m a avaliação realista das razões pelas quais foram
derrotados.
Dissidentes e democratas t e n t a r a m p o r t e m p o demais fazer
com que o povo acreditasse que Ieltsin era um verdadeiro d e m o -
crata. Chegou um m o m e n t o em que esse c o n t o de fadas tornou-se
insustentável e " d e m o c r a t a " virou literalmente um palavrão: as pes-
soas mudavam a palavra "demokrat" para "dermokrat" (merdocrata).
Isso tornou-se c o m u m não só entre comunistas e stalinistas fanáti-
cos, mas t a m b é m entre a maioria da população. Os " d e r m o k r a t s "
haviam dado à Rússia a hiperinflação, fizeram o povo perder as
economias trazidas dos tempos da U R S S . E levaram o país a u m a
crise monetária.
As pessoas não elegeram Ieltsin em 1996 porque acreditavam
nele, mas simplesmente c o m o o m e n o r de dois males; não p o r q u e
acreditassem em sua receita para levar o país adiante, mas p o r q u e
temiam o q u e p o d e r i a acontecer se os comunistas voltassem ao
poder. Os recursos do governo foram desavergonhadamente e x p l o -
rados, as emissoras nacionais de televisão transmitiam somente em
favor de Ieltsin e eram, na verdade, suas chefes de torcida. As pessoas
se
afastaram desgostosas quando viram c o m o os partidos " d e m o c r á -
ticos silenciavam a respeito daquele simulacro de democracia.
Muitos democratas chegaram a dizer a b e r t a m e n t e que era razoável
sacrificar a verdade para salvar a democracia.
Esse entusiasmo para sacrificar a democracia pegou e t o r n o u -
a
Principal força que levou P u t i n ao p o d e r depois que Ieltsin
Proclamou-o seu sucessor. O Kremlin assumiu o controle de toda
e r t u
j.
t e s r a d e notícias pela televisão, c o m emissoras i n d e p e n d e n -
C e n c i a c a s
do ^ somente para prover e n t r e t e n i m e n t o , mesmo q u a n -
ce
n t e n a s de pessoas estavam sendo m o r t a s na Tchetchênia.
222 A N N A POLITKOVSKAY

E esse foi o fim. A eleição foi baseada em trapaça, fraude


coerção pelo Estado. Os democratas se mantiveram em silêncio
t e n t a n d o se agarrar aos seus vestígios de p o d e r localmente e na
D u m a . Eles perderam o que restava de sua autoridade e o povo
russo é hoje indiferente a tudo que é político. Esse é o terrível lega-
do de 13 anos de democracia russa.

110 - 14 de dezembro
Um incidente em Blagoveschensk envolvendo três policiais masca-
rados e os proprietários de um cassino local, dos quais o prefeito
tinha rancor, levaram a uma reação grotescamente exagerada quan-
do o vice-ministro do Interior da Bachkiria enviou uma unidade
de O p e r a ç õ e s Especiais composta p o r quarenta homens. Armados
de cassetetes e fuzis, eles desceram na rua principal e começaram a
arrastar e p r e n d e r todos os homens que encontravam nos cafés e
estabelecimentos de jogo. Os presos foram fotografados, tiveram
suas impressões digitais tiradas, foram espancados e forçados a assi-
nar declarações em branco.
As m u l h e r e s , depois de revistadas em público, foram levadas
para urna sala no primeiro andar da Diretoria de Assuntos Internos
da cidade. Os h o m e n s de Operações Especiais fizeram fila na porta
e testemunhas afirmam que meio balde de camisinhas usadas foi
r e t i r a d o , d e p o i s , da sala. N o s q u a t r o dias subseqüentes, muitos
h o m e n s foram espancados e muitas mulheres estupradas. Os m o t o -
ristas de táxi locais contam que os milicianos mandaram que eles
fossem buscar vodca e que os gritos das garotas podiam ser ouvidos
da piscina local. Mais tarde, os ataques se espalharam pelas aldeias da
vizinhança.
Seguiu-se uma maciça tentativa oficial de intimidar testemu-
nhas e ocultar a realidade do que aconteceu.]

14 de dezembro
U m g r u p o d e estudantes p e r t e n c e n t e s a o Partido Bolcheviqm
Nacional entrou na área de recepção da administração presidência
naTravessa Bolshoi Cherkasski,fez u n i a barricada num dos gabine-
tes do andar térreo e começou a gritar slogans pela janela. "Putin
u M DIARIO RUSSO 223

você sai!", " P u t i n , afunde c o m o K u r s k ! " e assim p o r d i a n t e .


Quarenta e cinco minutos depois, m e d i a n t e os esforços conjuntos
do O M O N e do Serviço Federal de Segurança, todos foram b r u -
talmente reprimidos. Lira Guskova, 22 anos, acabou em um h o s p i -
tal-prisão c o m u m a concussão grave; Ievgeni Taranenko, 2 3 , teve o
nariz quebrado pelos soldados, e Vladimir Lindu, 2 3 , que tem dupla
cidadania, holandesa e russa, sofreu ferimentos nas pernas.
PARTE TRÊS

Nossos invernos
e verões de insatisfação

De janeiro a agosto de 2005


A Rússia atrás da Ucrânia,
através da Kirghizia

A Revolução Laranja Ucraniana* de d e z e m b r o de 2004 pôs um


fim na Grande Depressão política russa. A sociedade foi arrancada
de seu torpor: todos invejaram os ucranianos. " E m n o m e de D e u s ,
por que não somos c o m o os ucranianos?", perguntavam as pessoas.
"Eles são c o m o nós, só que..."
Cada um tinha seus próprios argumentos para provar que nós
e os ucranianos somos muito parecidos. Muitas pessoas que vivem
na Rússia são ucranianas puras, m e i o ou um quarto ucranianas. Na
União Soviética, não havia cidade mais próxima de M o s c o u q u e
Kiev e tudo em nossa maneira de viver estava tão misturado, q u e
não havia c o m o separar. M e s m o depois do colapso da U R S S , os
russos, em sua maioria, tinham certeza de que a Ucrânia p e r m a n e -
ceria um Estado adjunto e u m a semicolônia e que M o s c o u decidi-
ria o que era melhor para Kiev.
Só que t u d o ocorreu de forma diferente. E n q u a n t o a antiga
capital imperial continuava se i l u d i n d o ao acreditar que sua e x -
colônia iria permanecer na linha, os ex-colonos passaram p o r u m a
notável transformação e desenvolveram u m a nação.
R~>rém, as paixões políticas da R e v o l u ç ã o Laranja não se espa-
a r a m
c o m o f o g o pela Rússia; elas deram impulso a o espírito d e
protesto.Tiraram as pessoas dos seus sofás para ao menos pensar em
rnanif ç- . -
e s t : a ^y,.^
e s m am e n t e até j a n e i r o d e 2 0 0 5 .
s s s o S O

°es participaram de manifestações contra a lei para substituir o


xt
e n s o sistema de benefícios em espécie p o r uma compensação
o
monetária que entrou em vigor em I de janeiro. Havia esperanças
U f
n renascimento da oposição democrática.
228 ANNA POLITKOVSKAYA


Em janeiro houve protestos gerais. Os doentes perderam o direi
à assistência médica gratuita. Os soldados perderam o direito de
enviar cartas para casa sem pagar a postagem, uma perda monstruo-
sa p o r q u e eles quase não t ê m dinheiro. Se seus pais não puderem
lhes dar o dinheiro, não haverá cartas em casa. As grávidas perderam
o direito à licença remunerada, u m a péssima solução para elevar
nossa reduzida taxa de natalidade.
[ N o verão de 2004, q u a n d o a reforma foi aprovada pela Duma,
A n n a estava em Ekaterinburgo, nos Urais. Ela escreveu o seguinte:]

A q u i na província de Sverdlovsk, vivem 20 mil ex-soldados que


c o m b a t e r a m na Guerra da Tchetchênia. Quase todos t ê m direito a
benefícios em espécie c o m o antigos participantes da "operação
antiterrorismo". Eles v ê e m a reforma nos benefícios do governo
c o m o u m a cruzada contra eles.
Os " t c h e t c h e n o s " aqui nos Urais mal conseguem se sustentar.
N i n g u é m q u e r e m p r e g á - l o s ou treiná-los e m u i t o s se t o r n a m
alcoólatras, drogados ou ladrões e acabam na prisão. Na aldeia de
R e p i n o , eles formaram u m a Associação de E x - c o m b a t e n t e s das
Guerras Tchetchenas dentro da prisão. Ela tem duzentos membros.
Eles não são b e m recebidos em instituições e hospitais gratuitos
e em geral não t ê m dinheiro para pagar pelos serviços de que neces-
sitam. Eles são expulsos c o m o leprosos dos albergues, transformam-
se em párias e gravitam em seus próprios grupos, comunidades e
associações "tchetchenas". Em sua maioria, eles vêem os privilégios
materiais c o m o sinal de algum respeito e gratidão da sociedade,
c o m o compensação por vidas interrompidas no seu início. A aboli-
ção desses privilégios e sua substituição p o r u m a n i n h a r i a em
dinheiro é vista c o m o um chute final pelo Estado por m e i o do qual
seus camaradas sacrificaram a vida e eles sacrificaram a saúde.
Os feridos e incapacitados simplesmente irão morrer. Muitos
p e r d e r ã o empregos que mal c o n s e g u e m manter. Os poucos que,
apesar de tudo, estão estudando perderão os privilégios educacio-
nais arrancados do Estado c o m um esforço imenso.


D I Á R I O RUSSO 229

p^uslan Mironov é um j o v e m c o m incapacidade de Categoria 2.


£le tem um sorriso simpático e aberto, p o u c o típico de um e x -
combatente " t c h e t c h e n o " . Ele se c o m p o r t a de forma discreta, não
usa medalhas no peito. Seria um rapaz c o m u m , n ã o fossem as
óbvias conseqüências de um sério ferimento na cabeça. M e t a d e do
seu rosto está retorcida e ele t e m problemas c o m os braços, q u e
tiveram de ser reconstituídos depois que ele foi ferido.
Estamos sentados n u m a p e q u e n a sala nas instalações de
Ekaterinburgo do Arsenal 32, u m a das maiores associações para e x -
combatentes incapacitados em Sverdlovsk.
"Ruslan, você é auto-suficiente. C o m o conseguiu? O q u e p e r -
derá em conseqüência da reforma?"
"Perderei t u d o " , responde ele,"e isso dói. Sou incapaz, mas não
me limitei a receber minha pensão e aborrecer os outros c o m meus
problemas. Faço alguns negócios e g a n h o em t o r n o de c e m mil
rublos (US$3.800) p o r a n o . L u t e i para c o n s e g u i r a i s e n ç ã o de
impostos à qual os ex-combatentes t ê m direito, mas agora terei de
abrir m ã o de 4 8 , 5 % da m i n h a r e n d a . E u m a perda de 4 8 . 5 0 0
rublos, quase a metade. M e u n e g ó c i o deixa de ter sentido c o m e r -
cial. Ficarei pobre."
Além disso, Ruslan teve um incentivo financeiro para contra-
tar trabalhadores i n c a p a c i t a d o s , para sustentar seus camaradas
tchetchenos" que outros empregadores relutam em contratar. Eles
tem fama de trabalhar mal e criar problemas.
'Se um trabalhador i n c a p a c i t a d o recebesse, d i g a m o s , 8.300
rublos [US$320] por m ê s " , explica Ruslan,"ele nao pagaria i m p o s -
tos. Este privilégio t a m b é m está sendo tirado. Ele terá que dar ao
Estado quatro mil rublos em i m p o s t o ; em outras palavras, duas
v
ezes os dois mil rublos que irá receber através da monetarização.
sta não é uma política sensata c o m relação a pessoas incapacitadas
que não querem ser um peso para a sociedade. Eles deveriam fazer
o possível para nos apoiar, para q u e consigamos nos desenvolver
P°r iniciativa própria, para não ficarmos em casa sem fazer nada ou
«Parramados bêbados nos portões. Mas agora eles estão nos for-
çando a ir para o lixo."
us
tr ^ " l a n continua: " E u tinha o direito de viajar de avião e de
^ern p l metade do preço no o u t o n o e no inverno. Isso era m u i t o
e a

° m , porque meus pais vivem em Anapa, no mar N e g r o , e m i n h a


230 A N N A POLITKOVSKA

sogra em Novosibirsk. Usei m u i t o esse privilégio. E o direito a


dentes artificiais foi retirado. Quase todos nós voltamos da Tchet-
chênia sem dentes. Há u m a fila e n o r m e no hospital. E agora? Q
'pacote social' para um incapacitado é de dois mil rublos [US$80]-
para aqueles que participaram de combates é de 1.500 [US$58]; as
famílias daqueles q u e m o r r e r a m r e c e b e m u m total d e 650
[US$25]. Será impossível repor os dentes."
Sergei Domratchev, nascido em 1976, t e m um p u l m ã o perfu-
rado. Parte do seu crânio foi substituída por uma placa de titânio.
Apesar disso, Sergei é hoje um representante típico da classe média
de Ekaterinburgo. Ele dirige confiante pelas ruas em seu modesto
Zhiguli, vestindo um t e r n o elegante e uma gravata cuidadosamen-
te escolhida. Ele é b e m - c u i d a d o , esbelto e autoconfiante. E um pra-
zer olhar para ele e escutá-lo. Ele é casado c o m u m a mulher de
m e n t e i n d e p e n d e n t e , culta e bela. Sergei gosta do seu trabalho,
concluiu o primeiro grau e está se preparando para o segundo.
" D e todas as pessoas que c o n h e ç o que participaram de opera-
ções de combate, somente u m a em cada dez conseguiu se aprumar
depois da guerra. As outras b e b e m ou não fazem nada. M o r a m com
os pais e vivem à custa deles. N ó s assustamos as pessoas. É por isso
q u e a maioria dos 'tchetchenos' trabalha c o m o guardas de seguran-
ça. Eles são c o n t r a t a d o s p r i n c i p a l m e n t e p o r e x - c o m b a t e n t e s
'afegãos' em empresas de segurança privada. Os afegãos nos contra-
tam, mas n e m eles se entusiasmam conosco."
" M a s muitos 'tchetchenos' que não encontram lugar na vida
civil voltam à T c h e t c h ê n i a sob contrato. Você não t e m vontade de
fazer isso?"
"Posso viver sem voltar lá", responde ele rindo.
" M a s p o r que outros o fazem?"
"O motivo é perfeitamente claro.Você p o d e fazer o que quiser.
P o d e atirar em q u e m quiser. N ã o há leis. E disso que eles gostam.
" C o m o você conseguiu não afundar a esse nível?"
Ele ri novamente: "Declarei independência do Estado. Houve
um m o m e n t o , depois que voltei do massacre na Tchetchênia, em
que me dei conta de que poderia afundar c o m todos os outros ou
c o m e ç a r t u d o de novo. N u n c a uso minha medalha da O r d e m do
Valor. Sobrevivi somente p o r q u e fingi esquecer t u d o e comecei a
viver c o m o se nada daquilo tivesse acontecido."
DIÁRIO RUSSO 231

Ele teria atingido a frente de u m a fila acelerada para a c o m o d a -


ções do Estado em 2005, mas agora o privilégio foi abolido.
"Eu sempre soube que não se p o d e confiar em nossas a u t o r i -
dades. Elas sempre e n g a n a m " , diz Sergei. "É claro que é u m a ver-
gonha perder todos esses benefícios, especialmente a p r i o r i d a d e
para uma habitação. Será u m a pena se t u d o desabar." Sergei me
mostra o minúsculo a p a r t a m e n t o alugado por ele e sua mulher.
"Ainda não posso comprar um apartamento. Trabalho m u i t o , mas
reconheço que não consigo ter vários empregos ao m e s m o t e m p o .
T a m b é m n ã o espero c o n s e g u i - l o n o futuro. N o m o m e n t o , a o
menos estou trabalhando, mas a placa em minha cabeça precisa ser
trocada. Preciso de dinheiro, preciso ganhá-lo e guardá-lo para o
período posterior à operação."
Vivemos em um Estado m u i t o i n c o m u m . Ele gosta de levar as
pessoas a um beco sem saída, m e s m o aquelas que são capazes e q u e -
rem realmente fazer seu p r ó p r i o caminho. A pergunta é: q u e espé-
cie de cidadãos esse Estado prefere? U m a massa de ociosos bêbados
ou pessoas que procuram ter u m a vida ativa? H o j e o Estado está
empobrecendo deliberadamente aqueles que deveria estar ajudan-
do a se levantar. Ele obriga à p e n ú r i a até aqueles que conseguiram
se erguer, ao mesmo t e m p o q u e proclama que o c o m b a t e à p o b r e -
za é a nova p r i o r i d a d e do presidente. A reforma dos benefícios
pode ser a gota d'água para pessoas cuja vida foi interrompida p o r
essas mesmas autoridades. M u i t o s dos " t c h e t c h e n o s " d i z e m q u e
será difícil engolir esta reforma. "Sobrevivência dos mais aptos?"
Esta não é a abordagem ideal ao bem-estar social. Os mais fracos
devem simplesmente morrer?
Nadejda Suzdalova tranca seu filho em casa q u a n d o vai traba-
lhar na casa de caldeiras da aldeia. O filho t e m 28 anos e é um e x -
combatente c o m incapacidade da Categoria 1: paralisado do tórax
para baixo; u m a cabeça falante c o m braços, os cotovelos c o m o
nnico apoio do c o r p o . Eles v i v e m na r e m o t a aldeia de K a r p u -
chikha, na densa floresta dos Urais. O centro regional é Kirovgrad,
a
38 quilômetros através de u m a trilha na floresta. É de lugares
como este que os rapazes são mandados para lutar no Cáucaso. Suas
maes não se atiram nos trilhos para salvar os filhos.
^ E para esses lugares h o r r í v e i s q u e eles v o l t a m da g u e r r a .
ar
p u c h i k h a é hoje o refúgio para todos os elementos anti-sociais
232 A N N A POLITKOVSKAYA

que, incapazes de se adaptar aos novos tempos, foram expulsos de


Ekaterinburgo por atraso de vários anos no pagamento de aluguéis
Na entrada do prédio de apartamentos onde vivem os Suzdalov, há
u m a massa de bêbados, vagabundos e drogados. Eles ficam por lá
gritando, xingando, agarrando-se uns aos outros pelas pernas e chu-
tando. Eles roubam o que h o u v e r para roubar: bacias, escovas, bules
jarros. É por causa dos "vizinhos" que Nadejda precisa trancarTolia.
Ele não seria capaz de impedir que eles roubassem.
Há muito p o u c o ali, mas, se eles roubassem u m a bacia ou uma
torneira, não haveria c o m o substituí-la. Tolia e sua m ã e vivem com
o benefício para incapacitados de 1.200 rublos [US$46] mensais.
Nadejda não recebe seu salário há mais de seis meses.
A história de Tolia é típica: "Ele chora à noite." Ao me contar
isso, Nadejda t a m b é m começa a chorar. Ela está exausta de cuidar
do seu filho paralítico. " M a s o que se p o d e dizer? Eu costumava
falar a Tolia para reagir, deixar de beber, mas agora é tarde demais.
T u d o isso ficou para trás."
Tolia deixou a escola e foi imediatamente enviado à T c h e t -
chênia. Voltou u m a completa ruína mental, c o m o todos eles. Sem
q u a l q u e r tipo de reabilitação, foi enviado de volta diretamente a
K a r p u c h i k h a , o n d e a única reabilitação é o alcoolismo e o vício em
drogas.
P o u c o depois ToHa ficou furioso e destruiu uma barraca de feira
em Levikha, a aldeia vizinha. No tribunal, os comerciantes disseram
estranhar o fato de que ele nada roubou, n e m atingiu ninguém.
Assim ele foi parar na cadeia, c o m o mais da metade dos "tchetche-
n o s " na província de Sverdlovsk. Ele foi libertado p o r u m a anistia e
r e c o m e ç o u a beber. Em p o u c o tempo, estava paralisado. Os médicos
disseram à mãe que não criasse confusão. Ele não iria durar cinco
dias. O diagnóstico deles foi "infecção neurológica grave".
" N a verdade, ele está vivo há mais de um a n o " , diz sua mãe,
sentada em um banco baixo ao lado da cama. Há felicidade nos
olhos dela. " N o começo, só eu podia alimentá-lo, mas ele começou
a c o m e r sozinho."
N ã o obstante, a doença de Tolia é grave e incurável. O diagnos-
tico foi H I V O n d e ele a contraiu, em Karpuchikha ou no hospital,
n i n g u é m sabe. A única coisa que seu país é obrigado a fazer é per-
mitir q u e ele viva sua vida c o m dignidade. O quarto em que ele
DIÁRIO RUSSO 233
u M

fica é limpo, mas o cheiro de quarto de doente não sai. A urina flui
um saco preso à cama.Toha está coberto de feridas e infecções,
e seu sistema imunológico não consegue combater.
" Q u e fazer? O que comer? Seus cateteres são trazidos p o r u m a
ex-colega de escola. Ela trabalha na clínica de câncer e os furta para
el e N ã o podemos comprá-los", diz Nadejda.
Um veterano inválido só p o d e contar c o m u m a seleção ridícu-
la de medicamentos irrelevantes; pelos medicamentos essenciais, ele
precisa pagar. O custo dos m e d i c a m e n t o s de que Tolia necessita
excede muitas vezes o "pacote social"."E há os cateteres. Eles e n t o -
pem constantemente. Ele precisa de um colchão para não ficar c o m
feridas. N ã o sei o que fazer."
" N e n h u m dinheiro chegará até nós, porque nunca chega", diz
Tolia. " N ã o acredito n u m a palavra do que o governo diz." Em seus
olhos calmos, vê-se que ele está preparado para morrer.
É difícil acreditar q u e K a r p u c h i k h a está no m e s m o país de
Moscou, o u m e s m o E k a t e r i n b u r g o . N e m u m ú n i c o assistente
social visitou Tolia no ano e m e i o em que ele está preso ao leito. A
cadeira de rodas dada a ele no hospital de ex-combatentes incapa-
citados em Ekaterinburgo está n u m canto e não é usada. N ã o há
ninguém para ajudá-lo a descer do seu quarto no p r i m e i r o andar
para tomar ar.
E b o m escrever histórias edificantes a respeito de pessoas que
lutaram para ter um futuro decente, apesar da desesperança e da
brutalidade da vida na Rússia; mas a verdade é que há m u i t o mais
histórias como a de Tolia, pessoas fracas no fundo da pilha, que só
podem sobreviver no r e m o t o cenário provinciano dos seus últimos
dias se receberem apoio social. R e t e r o custo integral do tratamen-
to médico de pessoas c o m o Tolia equivale a sentenciá-las à m o r t e .
A máquina do Estado torna-se um agente de seleção natural.
Estamos no meio do dia. Um bêbado c o m um o l h o preto e as
calças arriadas agarra u m a m u l h e r corpulenta e desgrenhada c o m
u
m a saia curta o suficiente para revelar suas coxas inchadas. U m a
Multidão de espectadores gargalha sob a janela de Tolia, mas n i n -
guém olha para cima. A q u i ou você é um colega b ê b a d o ou não
em lnt
e r e s s e para n i n g u é m . Aqui, nas florestas remotas d a Rússia.
e v c a e u m a
É .^ ^ cidadezinha n a rodovia E k a t e r i n b u r g o - M o s c o u .
mcil gostar do lugar. É um t e r r i t ó r i o de política extremada,
234 A N N A POLITKOVSKA

o n d e o ídolo é Jirinovski, o espertalhão que ganha dinheiro expl


r a n d o os perdedores saudosos dos bons e velhos dias da U n i à 0

Soviética. Poeira, bebedeira e drogas. As prostitutas ficam nas mar-


gens da estrada, c o m idades que variam de 12 a 56 anos, e custam
de 50 a 300 rublos [US$2 a 12], de acordo c o m um h o m e m com-
bativo. E Andrei Baranov, vice-presidente da Seção de Revda do
Sindicato Provincial de Sverdlovsk de E x - c o m b a t e n t e s de Confli-
tos Locais. Baranov não é n e n h u m Tolia.
" E u c u i d o da m i n h a v i d a " , jacta-se B a r a n o v . "Joguei fora
m i n h a carteira de t r a b a l h o . Para q u e serve? N i n g u é m nos dá
emprego. Muitos de nós t ê m ferimentos na cabeça; somos imprevi-
síveis. As pessoas t ê m m e d o de nós."
"Provavelmente não sem razão.Você é agressivo?"
" N ã o , apenas vemos a injustiça antes das outras pessoas. Metade
de nós está na prisão p o r isso. Setenta e cinco p o r cento se torna-
ram alcoólatras. É preciso uma esposa heróica para suportar nossos
rapazes, mas algumas o fazem. N ã o confio n e m um p o u c o no
Estado. Confio em Jirinovski."
" C o m o você ganha a vida?"
" N ó s nos organizamos e fazemos escolta de cargas. Diretamen-
te, sem carteira de trabalho."
"Então você está no r a m o de venda de proteção?"
" P o r que você pensa nisso imediatamente? E só que o governo
é totalmente inútil. Por que trabalhar para ele? De qualquer forma,
v e n d e r p r o t e ç ã o é u m a coisa antiga. A j u d a m o s pessoas a fazer
negócios."
Baranov e os " t c h e t c h e n o s " em R e v d a criaram um departa-
m e n t o privado de tributação ilegal. Entre seus "clientes", esta a
e m p r e s a local de táxis. Estamos c o n v e r s a n d o no seu decrépito
escritório perto da estação ferroviária de R e v d a . O apito das loco-
motivas enfatiza a agudeza da nossa conversa, a confusão nas men-
tes danificadas dos " t c h e t c h e n o s " sentados à nossa volta, a ira de
Baranov c o m relação ao resto do m u n d o e o fato de ele acreditar
q u e está lutando p o r justiça em seus próprios t e r m o s .
"Você usa os benefícios do bem-estar social?"
" N u n c a . C u i d a m o s de nós mesmos. No t r e m para Ekaterin-
b u r g o , organizo m i n h a v i a g e m gratuita. S u b o n o t r e m , mostro
m i n h a carteira de militar, o que deixa claro q u e participo de ope-
u M DIÁRIO RUSSO 235

es
r a ç õ de combate, e o inspetor de bilhetes vai em frente. Eles ficam
longe de mim."
" N ã o valeria a pena conseguir educação formal?"
"Para quê? N ã o , obrigado."
Peço-lhes que e n c o n t r e m um " t c h e t c h e n o " sóbrio para c o n -
versar. O tempo passa. No fim da tarde, em R e v d a , não há n e n h u m .
Valeri Mokrousov, um amigo de Baranov que lutou na Guerra do
Afeganistão e é presidente da Associação de E x - c o m b a t e n t e s , entra
e sai. Ele é c o n s t a n t e m e n t e distraído p o r telefonemas. Q u a n d o
nossa conversa na estação ferroviária está t e r m i n a n d o , ele m e n c i o -
na: "Acabei de tentar falar c o m O l e g Donetskov, mas a mulher dele
me xingou. Ele está caído de bêbado. Ele c o m b a t e u em ambas as
guerras na Tchetchênia e sofreu u m a concussão."
"Concussão? Ele n ã o deveria beber!"
"Bem, o que você espera?" Baranov retorna à discussão, atiran-
do suas palavras diretamente para m i m . "Você t e m u m a opção: ou
toma vodca ou volta para a Tchetchênia. Eu voltei sob contrato."
"Para quê?"
"Para tirar férias. Para fugir do seu m o d o de vida civil. Aqui, eu
sei onde estou. Aqui não há nada senão problemas.Todos os nossos
rapazes estão em busca da verdade e não a e n c o n t r a m . Q u a n d o
volta de lá, você vê as coisas c o m clareza.Tudo aqui é podre. Irmão
abandona irmão. E u m a merda completa. Lá todos são honestos:
estamos aqui, o inimigo está lá - lute e atire!"
Viatcheslav Zikov, presidente da Associação de E x - c o m b a t e n -
tes da Província de Sverdlovsk, serviu c o m o motorista de ambulân-
cia na atual guerra. Ele confirma o que Baranov está dizendo.
Setenta p o r c e n t o dos nossos rapazes t e n t a m voltar para lutar
novamente. Por desespero. Mas somente uns 3 0 % são selecionados
como soldados contratados."
Você ouviu falar q u e os benefícios estão sendo abolidos?"
Q u e m se importa? Isso não irá salvá-los." Esse prognóstico
v
e m de outro indivíduo. " S o m o s a favor de Jirinovski.Teremos um
m
o v i m e n t o patriótico em a n d a m e n t o ; tirar os garotos das ruas e
colocá-los em clubes de soldados patriotas. Se lhes mostrarmos o
caminho, as coisas p o d e r ã o dar certo."
'Dar certo c o m o ? "
C o m u m a monarquia."
236 A N N A POLITKOVSKAYA

"Mas c o m o vocês p o d e m ensinar alguém se vocês não estão


bem?"
"Perdi 360 rapazes no ataque a Grozni. Só q u e não podemos
escrever sobre isso."
"Por que n ã o ? "
"Porque u m a coisa dessas 'não pode acontecer'.Todos mentem
sobre a T c h e t c h ê n i a . Participei das 'limpezas' depois do ataque a
Komsomolskoie, sabe o que quero dizer? Mas nós somos os únicos
que precisam lidar c o m isso. E por isso que estamos lutando por
justiça."
" P o r que você voltou à Tchetchênia, se sabe que isso só piora
as coisas, para vocês e para todos os outros?"
Felizmente ele não respondeu à pergunta. Se alguém na Rússia
conseguir transformar esta comunidade de " t c h e t c h e n o s " em ação
política, será o fim.

o
I de janeiro de 2005
Na cidade tchetchena de Urus-Martan, três garotos fugiram para
lutar na Resistência. Eles deixaram bilhetes para os pais, explicando
q u e n ã o p o d i a m mais a g ü e n t a r a ilegalidade e n ã o v i a m outra
maneira de punir os malfeitores.

9 de janeiro
O u t r o s quatro jovens de U r u s - M a r t a n , c o m idades entre 25 e trin-
ta anos, fugiram para se j u n t a r à Resistência. Em janeiro, houve um
n ú m e r o recorde de recrutas. Isso é uma resposta às brutais limpezas
em grande larga escala dos seis últimos meses.

12 de janeiro
Em 12 de j a n e i r o , R a m z a n Kadirov, o l u n á t i c o v i c e - p r i m e i r o -
ministro da T c h e t c h ê n i a , partiu c o m u m a c o l u n a de cem a 150
jipes para atacar os daguestanis. Q u a n d o chegaram à fronteira entre
a Tchetchênia e o Daguestão, os policiais em serviço fugiram ater-
0
rorizados. As tropas de Kadirov detiveram e depois libertaram
chefe de polícia regional.
DIÁRIO R U S S O 237

poi uma típica bravata em retaliação à breve detenção da irmã


je Kadirov.

14 de j a n e i r o

Aslan Maskhadov, p r e s i d e n t e da R e p ú b l i c a T c h e t c h e n a de
Itchkeria, anunciou um cessar-fogo unilateral de um mês. Ele orde-
nou que todos os seus grupos armados cessem as hostilidades até 22
de fevereiro.
O que isso significa? Desgaste de inverno? U m a tentativa de
ganhar a boa vontade p o r q u e ambos os lados estão cansados da car-
nificina e devem parar? Ou ele está testando sua autoridade? E pre-
ciso supor que haja um p o u c o das três alternativas. Ao anunciar o
cessar-fogo, Maskhadov está, antes de mais nada, se testando e c o m
muita coragem, p o r q u e está agindo publicamente. N ã o é segredo
que muitas pessoas d ã o de o m b r o s q u a n d o o u v e m falar em
Maskhadov e p e r g u n t a m q u e m ele de fato controla.
Os motivos para esta falta de confiança são óbvios; Maskhadov
se mantém nas sombras. Por muitos anos, ele t e m se recusado a ver
jornalistas, t e m e n d o ter o destino de A h m a d - C h a k h Masud, do
Afeganistão, m o r t o p o r jornalistas especialmente enviados para este
propósito. Por e n q u a n t o , o a u t o - e x a m e de M a s k h a d o v não está
indo bem. O uso de minas terrestres contra os federais não está
diminuindo e, seja lá q u e m o estiver planejando, n ã o está dando
atenção ao cessar-fogo.
Esse também é um teste para um Kremlin q u e não é notável
por suas respostas corajosas.
O primeiro a levantar a voz contra o cessar-fogo foi, natural-
m e
n t e , A l Alkharnov, o "presidente da T c h e t c h ê n i a " indicado pelo
u

Kremlin. Ele anunciou que não iria negociar c o m Maskhadov, mas


estava preparado para negociar c o m os rebeldes a respeito de uma
ent
r e g a unilateral de armas. O Kremlin simplesmente se recusou a rea-
a
° cessar-fogo. Se você não é a favor da paz, é a favor da guerra.
Para enfatizar sua estupidez, o Kremlin decidiu anunciar que,
guando pusesse as mãos em Maskhadov e Basaev, prenderia ambos.
a c u s a
• Ç Õ e s contra Maskhadov incluem "evidências de que Basaev
s
truiu os terroristas de Beslan para que incluíssem entre suas exi-
238 A N N A POLITKOVSKA-

gências a a b e r t u r a de n e g o c i a ç õ e s c o m M a s k h a d o v " (Niko


Chepel, vice-procurador-geral).

15 de janeiro
As mães dos soldados m o r t o s na Tchetchênia enviaram de volta I
Putin sua " c o m p e n s a ç ã o " mensal de 150 rublos [US$6] em protes-
to contra a retirada dos benefícios em espécie.
Antes de 1° de janeiro, as mães cujos filhos haviam sido sacrifi-
cados no n o r t e do Cáucaso tinham direito a tratamento médico
gratuito, viagens gratuitas em transportes públicos, u m a passagem
de trem, avião ou navio pela metade do preço p o r ano; elas também
pagavam a metade do preço pelos serviços de telefone e televisão e
t i n h a m direito a um empréstimo em condições preferenciais e a
um lote grátis de terreno.
Isso era inteiramente justo. Na maior parte dos casos, o Estado
usa os filhos das famílias mais p o b r e s para c o m b a t e r na
Tchetchênia. Muitas vezes a mãe é solteira. As pessoas que estão
b e m de vida e t ê m alguma influência resgatam seus filhos da infe-
licidade do s e r v i ç o no e x é r c i t o e c e r t a m e n t e do serviço na
Tchetchênia.
As manifestações contra a monetarização estão crescendo.Todos
os dias as pessoas devolvem os pagamentos. Causas políticas não pro-
d u z e m nada c o m o a reação a uma política que atinge o bolso das
pessoas e Putin p o u c o t e m a temer. Ele lhes atirará algum dinheiro,
o povo russo não conseguirá tirá-lo do poder e suas agressões serão
dirigidas contra qualquer estranho que esteja na vizinhança.

17 de janeiro
O primeiro referendo da Rússia via Internet está em andamento
no site www.skaji.net [Skaji net! significa " D i g a n ã o ! " em russo].
Essa é u m a iniciativa clássica. Alguns e s t u d a n t e s do Instituto
Superior de E c o n o m i a se reuniram e decidiram convidar os cida-
dãos a votar na N e t sobre duas questões:

1. Lei 122 (abolindo os benefícios em espécie);


2. Falta de confiança no governo.
UM DIÁRIO R U S S O 239

R e c e b i um t e l e f o n e m a de A l e x a n d e r K o r s u n o v , o líder da
equipe, que solicitou apoio.
"Mas q u e m é você?", perguntei. " D e que partido é você?"
" N ã o sou n i n g u é m . Estamos apenas fazendo o referendo."
Os estudantes q u e c o n c e b e r a m o projeto n ã o p e r t e n c e m a
nenhum partido político em especial, embora sua iniciativa tenha
posteriormente recebido apoio formal do Iabloko, do R o d i n a e do
Partido Comunista.
Os estudantes escreveram:

Consideramos a Lei 122 um insulto aos nossos idosos no ano


em que c o m e m o r a m o s o sexagésimo aniversário da vitória na
Segunda G u e r r a M u n d i a l . O g o v e r n o p ô s em descrédito a
idéia saudável da monetarização dos benefícios. O único meio
legal de proteger nossos direitos hoje é um referendo no qual
possamos expressar nosso protesto. Os estudantes t ê m sido a
parte socialmente mais ativa da população, reagindo efetiva-
m e n t e aos a c o n t e c i m e n t o s na Rússia. C o n v o c a m o s t o d o s
vocês para que se j u n t e m a nós.

Milhões de pessoas votaram on-line contra a lei e a política do


governo, mas o n d e estes e outros milhões desaparecem q u a n d o não
podem se esconder p o r trás do anonimato? O m e d o os torna invi-
síveis.
As manifestações de protesto são p a r t i c u l a r m e n t e fortes em
São Petersburgo, T v e r , T i u m e n , Samara, P e r m e em K h i m k i , na
província de M o s c o u . As pessoas estão saindo às ruas, bloqueando
as estradas, fazendo piquetes em prédios e a m e a ç a n d o as autorida-
des com mais protestos. O motivo é que a Lei 122 está começando
a
doer nos bolsos.
Em São P e t e r s b u r g o , a polícia t e n t o u p r e n d e r m e m b r o s do
Iabloko e do Partido Bolchevique Nacional. D e p o i s da reunião, um
Pensionista idoso foi preso e brutalmente espancado em um posto
da polícia. Pela m a n h ã , a polícia p r e n d e u V l a d i m i r Soloveitchik,
m e
m b r o do C o m i t ê de Ação Conjunta, que v e m coordenando as
"manifestações d e p r o t e s t o . T a m b é m p r e n d e u o i t o m e m b r o s d o
artido Bolchevique Nacional que haviam t o m a d o parte na m a n i -
tes
t a ç à o em Gatchma.
240 A N N A POLITKOVSKAYA

19 de Janeiro
Se os protestos contra a Lei 122 continuarem no nível atual, está
claro que haverá u m a crescente coincidencia entre os interesses dos
manifestantes e aqueles da polícia enviada para pacificá-los.
Em sua maioria, os q u e trabalham para os órgãos de segurança
t a m b é m estão p e r d e n d o benefícios. Seus salários são tradicional-
m e n t e baixos — eles não g a n h a m mais de 3.000 rublos p o r mês
(menos de US$120). Esses protestos estão tendo lugar em grandes
cidades e a maioria dos policiais vive nos subúrbios. Até este mês,
eles t i n h a m transporte público de graça. Surgiram relatos de pedi-
dos de demissão em massa na polícia de M o s c o u . Um policial se
m a t o u quando estava de serviço no centro de M o s c o u , guardando
os escritórios da Diretoria para a Luta Contra o C r i m e Organizado;
ele havia c o n t a d o aos colegas que não podia mais alimentar sua
família. O Ministério da Defesa notificou oficialmente o Soviet da
Federação de que u m a pesquisa realizada este mês mostrou que 80%
dos oficiais estão insatisfeitos c o m a lei sobre benefícios e somente
5% dos oficiais consideram satisfatória sua situação material.
Suspeito q u e as a u t o r i d a d e s do Estado estão c o m e ç a n d o a
prestar atenção p o r q u e elas sabem que, além das forças de seguran-
ça, n i n g u é m as apoia. Elas começaram a oferecer subsídios e com-
pensações para reduzir a inquietação. Elas viram policiais se recu-
sando a espancar manifestantes e isso as fez lembrar da Revolução
Laranja da Ucrânia, o n d e as forças de segurança se recusaram a ati-
rar no próprio povo e m u d a r a m de lado. Aquele foi o m o m e n t o
decisivo.
E m M o s c o u , foi m o n t a d a u m a coalizão d e organizações
voluntárias: a Solidariedade Social (SOS). Ela c o n v o c o u pronta-
m e n t e manifestações em toda a Rússia em 10 e 12 de fevereiro,
"Dias Nacionais de Ação C o n j u n t a " contra a política anti-social
das autoridades. A S O S é u m a organização p r ó - c o m u n i s t a e os
democratas mais u m a vez perderam o barco. Ela está exigindo o
r e p ú d i o à Lei 122, o a u m e n t o das pensões em 100%, a reforma do
sistema fiscal em favor das regiões e dos grupos de baixa renda da
população, a demissão de todos os deputados do RU e dos m e m -
bros do governo.
N i n g u é m queria fazer confusão a respeito do verão e do o u t o -
no últimos. Foi somente q u a n d o os benefícios foram de fato retira-
u M DIÁWO RUSSO 241

os
dos e pensionistas ficaram impossibilitados de usar o transporte
público com suas carteiras que os protestos decolaram.

22 de janeiro
Neste sábado, t a m b é m h o u v e manifestações. O u t r a s pesquisas de
opinião realizadas em janeiro dizem que 58% dos que antes goza-
vam dos benefícios em espécie apoiam os manifestantes. A pesqui-
sa foi feita pela emissora estatal de televisão Canal U m .
Em Krasnoiarsk, mais de 3.000 pessoas protestaram contra um
aumento nos preços da eletricidade. A partir de 1° de janeiro, um
cliente pode usar s o m e n t e 50 quilowatts-hora p o r mês; qualquer
valor acima deste será cobrado pelo dobro da tarifa. Na maior parte
dos prédios residenciais em Krasnoiarsk, o a q u e c i m e n t o central é
extremamente ineficiente e, c o m o a Sibéria é m u i t o fria no inver-
no, as pessoas não t ê m opção a não ser deixar seus aquecedores elé-
tricos ligados. N ã o há c o m o usar somente 50 quilowatts-hora p o r
mês - as pesquisas sugerem que um cidadão m é d i o usa duas a três
vezes mais que isso.
Em Ufa, quase 5.000 pessoas compareceram a uma reunião no
centro da cidade para exigir que o presidente Murtaza R a k h i m o v
repelisse a monetarização na Bachkiria até 20 de fevereiro ou então
pedisse exoneração. Depois da reunião, pensionistas vestindo roupas
laranja bloquearam u m a das ruas principais. Desfraldando as b a n -
deiras laranja da revolução ucraniana, eles c o m e ç a r a m a colher assi-
naturas para um referendo sobre a eleição direta de prefeitos nas
cidades da Bachkiria.
Em Moscou, dez ativistas da Vanguarda da Juventude Vermelha
foram presos p o r " t e n t a r marchar até o p r é d i o da administração
presidencial", e m b o r a eles t e n h a m sido presos p e r t o da Estação
le
orusski, situada a dois ou três quilômetros de distância. Tinha
Klo uma manifestação contra a monetarização na estação, orga-
n i z
a d a pelos comunistas, à qual c o m p a r e c e r a m de 3.000 a 4.000
Pisoas. Muitos jovens e o Partido Bolchevique Nacional t a m b é m
'ciparam. Seus slogans eram "Viagens de graça para os policiais
ados , " P a r e m de roubar os pensionistas", "Fora c o m a lei
para ex A
uc
~ o m b a t e n t e s " , " A b a i x o o regime Putin!","Abaixo a claque
de
E l Puta!"
242 A N N A POLITKOVSKAYA

O motivo formal para a detenção dos vanguardistas é que havia


sido dada a permissão para o e n c o n t r o dos comunistas, mas não
para u m a marcha posterior. Todos aqueles que foram presos foram
espancados.
O protesto nas ruas está se t o r n a n d o cada vez mais esquerdista
e nacionalista. Os democratas c o m p a r e c e m aos encontros de pro-
testo, mas se c o m p o r t a m como se estivessem fazendo um favor a
todos. Eles não são populares.
De acordo c o m a pesquisa social de janeiro realizada pelo ser-
viço de pesquisas de opinião T s I O M , do Kremlin, o slogan "Rússia
para os russos" recebe total apoio de 16% da população, que consi-
deram que "isto deveria ter sido feito há m u i t o t e m p o " ; 37% con-
sideram que " n ã o deve ser ruim implantar isso, mas dentro de limi-
tes razoáveis". 16 + 37 = 5 3 % de fascismo, p o r q u e essa política não
p o d e ser implantada "dentro de limites razoáveis".
O único raio de esperança é que 2 5 % se o p õ e m à idéia. Eles
acreditam q u e "Rússia para os russos" é u m a idéia fascista.
A mesma pesquisa mostra um motivo m u i t o russo para quere-
rem expulsar as minorias étnicas. E p o r q u e , na opinião de 39% dos
entrevistados, eles vivem melhor do q u e os russos. Somente três
regiões da Federação - Moscou, a província de T i u m e n e Tatarstan
— têm um padrão de vida comparável ao da Europa.

23 de janeiro
As autoridades estão despertando para o fato de que precisam fazer
alguma coisa a respeito desses protestos. Os canais de televisão esta-
tais c o m e ç a r a m a veicular propaganda para explicar por que a nova
lei de monetarização é boa e pensionistas idosos dizem como estão
satisfeitos c o m t u d o .
Alexander Jukov, o primeiro vice-primeiro-ministro, é o prin-
cipal defensor da lei. Aqui está um exemplo: " H á protestos onde os
pagamentos recebidos dos orçamentos regionais são inferiores ao
custo real dos benefícios abolidos. P o r é m , q u a n d o esta lei foi apro-
vada, foi acordado que as regiões c o m recursos suficientes podem
fazer pagamentos mais altos, caso o queiram."
Este é o principal objetivo das autoridades do governo central-
transferir a culpa para as autoridades regionais, apesar de oitenta das
243
u M DIÁRIO RUSSO

es s e r e m
g9 regi° totalmente dependentes dos subsídios que rece-
bem do orçamento federal. Jukov se baseia no fato de que a m a i o -
ia das pessoas simplesmente não sabe c o m o funciona o financia-
mento.
Mikhail Zurabov, o ministro da Saúde e do Desenvolvimento
Social, está sempre dizendo para as pessoas n ã o se preocuparem.
"Quantias adicionais estão sendo alocadas do orçamento federal.
Em 2004, a despesa c o m benefícios foi de 100 bilhões de rublos
[US$3,84 bilhões], mas, em 2005, estamos alocando 300 bilhões de
rublos [US$11,6 bilhões]. Estamos apenas t e r m i n a n d o os detalhes.
A decisão será tomada hoje ou na segunda-feira."
Zurabov afirma que a Lei 122 foi introduzida para regularizar
a entrega de benefícios. Ele diz que, apesar de as pessoas t e r e m
benefícios em espécie, não era alocado n e n h u m recurso financeiro
para eles. "Precisamos tornar as pessoas livres e independentes do
Estado e para isso precisamos melhorar sua situação financeira."
Isto é b o b a g e m : o novo sistema é tão oneroso e administrado
em excesso, q u e falar de liberdade é casuísmo. Os idosos precisam
ficar em filas p o r quatro horas para receber o dinheiro para um mês
de ônibus! No mês seguinte, eles t ê m de fazer t u d o de novo. N ã o
há dúvida de q u e o velho sistema de b e m - e s t a r social era i n c ô m o -
do e tinha muitos defeitos, mas o novo sistema é pior e, além disso,
está causando grandes dificuldades financeiras a milhões de pessoas.
Outra alegação constante na televisão é q u e as manifestações
de protesto estão sendo organizadas pela máfia que controla as far-
mácias e o sistema de transportes. D i z e m q u e a oposição está
explorando a situação para marcar p o n t o s políticos. A oposição
democrática, ao contrário, não está t e n t a n d o marcar pontos, e m b o -
ra pudesse e devesse fazê-lo.

25 de janeiro

O Comitê Diretor do Congresso dos Cidadãos Nacionais realiza


U m a
reunião n o C l u b e dos Jornalistas d e M o s c o u .
Neste festival de democracia, t u d o se degenera numa discussão
lri
frutífera a respeito de q u e m é a pessoa mais importante.
Bóris Nadejdin está tentando m o n t a r u m a proposta para assu-
11111
o controle da U n i ã o de Forças de Direita. Os partidários do
244 A N N A POLITKOVSRA

Iabloko p r o c u r a m se comportar c o m o proprietários do empree


dimento. Há muita gritaria, mas nada de ação. Liudmila Alexeie
na presidência, faz oposição. Gary Kasparov diz que está cansado d<
t u d o e, c o m razão, aponta irregularidades no procedimento para a

adoção de resoluções.
Kasparov sai antes do fim da reunião. Ele fica no corredor por
muito t e m p o , reclamando que os democratas mais uma vez estão
perdendo o barco. O barco já está transportando o povo da Rússia
para um estágio diferente e a orquestra à espera para saudá-lo lá não
é o Congresso dos Cidadãos.
Só São Petersburgo conseguiu reunir todos os partidos e movi-
m e n t o s d e o p o s i ç ã o n u m a assembléia consultiva denominada
Resistência dos Cidadãos de Petersburgo. Ainda mais surpreenden-
te é o fato de ela estar em ação todos os dias.
As manifestações em São Petersburgo são as mais vigorosas e
abertas do país; Putin é menos apreciado em sua cidade natal. A
Resistência dos Cidadãos de Petersburgo está exigindo a restaura-
ção das eleições de governadores, a dissolução da D u m a , a abolição
da Lei 122, a exoneração do presidente e do governo, o aumento
das pensões e a abolição da censura na televisão estatal.

27 de janeiro
Os manifestantes de São Petersburgo formaram um corredor vivo
na entrada da Assembléia Legislativa da cidade na praça Santo Isaac.
Q u a n d o os deputados chegavam, t i n h a m de passar pelo corredor e
ouvir os gritos de "Vergonha do Rússia U n i d a " , "Vergonha desta
D u m a " , " F o r a Putin!" U m a das manifestantes queimou sua cartei-
ra de m e m b r o do RU diante da porta da Assembléia.

28 de janeiro
Estamos d i s c u t i n d o o que está a c o n t e c e n d o no Congresso dos
Cidadãos c o m Liudmila Alexeia. Ela admite que não t e m muita
esperança a respeito do Congresso.
" E n t ã o p o r que perder t e m p o ? "
" Q u e m sabe — pode ser que funcione!", responde ela.
DIÁRIO RUSSO 245
U M

30 de janeiro
pa Internet: "E agora, Camaradas D e p u t a d o s , todos aqueles q u e
votaram a favor da eleição de Vladimir Vladimirovitch para czar
dem abaixar as mãos e sair de perto da parede."
^ Há um a n o , n e n h u m a piada c o m o esta estava circulando.
Estávamos na era da Grande Depressão política. As pessoas tinham
medo do poderoso Putin, que havia acabado c o m a oposição.
Sempre q u e há u m a crise aguda, P u t i n se recolhe e só q u a n d o
a poeira assenta é q u e ele sai para fazer u m a declaração neutra.
Agora ele é visto c o m o u m a piada? Ou será que estão resignados
com ele, prevendo um retorno ao Período de Estagnação, e c o m o
riso, como fizeram na época de Brejnev, na privacidade das suas
cozinhas? Parece q u e preferimos u m a revolução vinda de cima,
quando alguma coisa impede os que estão no t o p o de continuar à
velha maneira.

o
I de fevereiro
Uma pesquisa de opinião feita pelo C e n t r o Analítico Iuri Levada,
encomendada pela Fundação Veredicto do Povo, constata que 7 0 %
dos entrevistados não confiam nos órgãos de c u m p r i m e n t o da lei e
os vêem c o m apreensão. Setenta e dois p o r cento acreditam que
podem sofrer em conseqüência da falta de responsabilidade desses
órgãos. S o m e n t e 2% declararam que não há problemas de arbitra-
riedade nos órgãos.

2 de fevereiro
A Duma deu permissão ao exército para realizar operações dentro
do país. Q u e esforços foram feitos no p e r í o d o de Ieltsin para garan-
to que as Forças Armadas não pudessem se voltar contra cidadãos
russos! Agora estamos de volta à situação da U R S S . U m a e m e n d a
ao artigo 10 da lei federal "Sobre Defesa" diz: "As Forças Armadas
a Federação Russa p o d e m ser empregadas para neutralizar ativida-
es te
r r o r i s t a s u s a n d o recursos m i l i t a r e s " ( A d e n d o à lei " S o b r e
sa
). Ela está incluída no c h a m a d o " p a c o t e Beslan de leis anti-
errorismo". O único g r u p o a expressar preocupação c o m o uso do
246 A N N A POL1TKOVSKAYA

exército de forma imprópria, caso esta emenda fosse aprovada, foi 0

dos comunistas. Eles foram postos de lado.


O governo sufocou a onda de protestos antimonetarização
dando dinheiro às regiões.
P o r é m , o m o v i m e n t o islâmico c l a n d e s t i n o está ganhando
força. O Islã extra-oficial está se t o r n a n d o cada vez mais atraente
para os jovens, devido às políticas religiosas m í o p e s do Kremlin.
Depois de Beslan, o Kremlin decidiu reviver os m é t o d o s soviéticos
de contenção do Islã. O FSB assumiu a responsabilidade para lidar
c o m ele assim c o m o sua encarnação anterior, a K G B , fizera nos dias
da U n i ã o Soviética. Os serviços de inteligência p r o m o v e r ã o os
muçulmanos " d o m a d o s " e colocarão os outros na cadeia. O resul-
tado será o m e s m o q u e foi sob o comunismo: a formação de gru-
pos religiosos clandestinos.
Nesta manhã, I e r m a k Tegaev, 48 anos, diretor do Centro de
C u l t u r a Islâmica de Vladikavkaz (capital da Ossétia do N o r t e , a
cerca de 20 quilômetros de Beslan), viu-se na prisão p o r ter infrin-
g i d o o artigo 222 do C ó d i g o C r i m i n a l , p o r " g u a r d a r materiais
explosivos e c o m p o n e n t e s afins".
"Por volta das seis da manhã, soldados invadiram nosso aparta-
m e n t o " , c o n t a - m e Albina, sua mulher. " M e u m a r i d o estava lendo o
Alcorão e eu estava no banheiro. Q u a n d o ouvi ruídos, abri parcial-
m e n t e a porta e vi um fuzil apontado para m i m . Havia pessoas mas-
caradas e c o m capacetes p o r toda parte, cerca de vinte. Eles me
arrastaram para fora do banheiro quase nua e p o r m u i t o t e m p o não
d e i x a r a m q u e me vestisse. Para nós, isso não é p e r m i t i d o . Meu
m a r i d o estava no chão c o m três pessoas sentadas nele. C o m e c e i a
gritar para chamar os vizinhos - pensei q u e os h o m e n s fossem
ladrões -, mas eles não p e r m i t i r a m que os vizinhos entrassem e
começaram sua busca. M e u marido lhes disse que não podiam efe-
tuar u m a busca sem um advogado, mas eles haviam trazido suas
próprias ' t e s t e m u n h a s ' e c o m e ç a r a m pelo b a n h e i r o . P o r três ou
quatro vezes, eles olharam exatamente no m e s m o lugar e suspeitei
de algo ruim. Nossa casa foi revistada várias vezes recentemente e
temíamos aquilo.
"Procurei ficar de o l h o neles o t e m p o t o d o , para evitar que
plantassem alguma coisa, mas então eles pegaram as chaves do nosso
carro e foram até o n d e estava estacionado. M a n d a r a m que meu
DIÁRIO RUSSO 247

parido se vestisse e fosse para fora. N ó s nos recusamos a nos a p r o -


ximar porque sabíamos que eles já t i n h a m plantado o que queriam,
gles abriram o porta-malas e disseram q u e havia explosivos lá.
Então telefonaram a apareceu u m a pessoa c o m u m a câmera de
vídeo que c o m e ç o u a nos filmar. D e p o i s eles levaram e m b o r a m e u
marido."
A família e os amigos dele, mais Suleiman Marniev, o imã da
mesquita central de Vladikavkaz, estão c o n v e n c i d o s de q u e os
explosivos foram plantados. As autoridades q u e r e m encarcerar o
presidente do Centro Cultural Islâmico, de preferência p o r m u i t o
tempo, para neutralizar um l í d e r não-oficial da c o m u n i d a d e
muçulmana cuja existência não lhes agrada. Seu único c r i m e é sua
popularidade entre os c o m p a n h e i r o s de crença, em especial os
jovens, e o fato de ele não colaborar c o m a Diretoria R e p u b l i c a n a
do FSB.
De q u e tipo de colaboração estamos falando? E o q u e é o
Centro de C u l t u r a Islâmica de Vladikavkaz, para q u e seu líder
enfrente tantos dissabores?
Formalmente, o centro é s o m e n t e u m a das associações públicas
da Ossétia do N o r t e . E um clube religioso cujo status é idêntico,
por e x e m p l o , a o d o C o n s e l h o R e l i g i o s o dos M u ç u l m a n o s d a
Ossétia do N o r t e . No papel, o centro e o conselho são exatamente
a mesma coisa, mas não na prática. O conselho tem o apoio finan-
ceiro das autoridades do Estado e admite abertamente q u e c o l a b o -
ra com o FSB. O centro se m a n t é m à distância. Essa é a o r i g e m de
seus problemas.
" D e pois de Beslan, as a u t o r i d a d e s , ou mais p r e c i s a m e n t e a
Diretoria do FSB que hoje d e t é m o p o d e r na República, quiseram
a subordinação completa dos m u ç u l m a n o s " , conta Artur Besolov,
vrce-presidente do Centro. "O FSB controla a vida dos m u ç u l m a -
n
° s por intermédio do C o n s e l h o Religioso e de seu presidente,
RuslanValgasov, que é um mufti oficial da República. Temos certe-
za de queValgasov foi n o m e a d o mufti pelos órgãos de segurança, o
U e e
^ categoricamente proibido no Islã. O único lugar em q u e esse
l l
p o de coisa a c o n t e c e u foi na U n i ã o Soviética. A m a i o r i a dos
mu
Ç u l r n a n o s da Ossétia do N o r t e (que constituem 3 0 % da p o p u -
Çao da República) se o p õ e a essa nomeação de líderes religiosos,
ereceram a Tegaev a posição de mufti, mas ele recusou, precisa-
248 A N N A POLITKOVSKA

m e n t e p o r q u e temia a pressão do regime. Apesar disso, éTegaev q


t e m m a i o r autoridade.Valgasov, p o r outro lado, tem somente ido
à sua volta. As autoridades simplesmente decidiram resolver a si
ção p r e n d e n d o Tegaev."
Todos p o d e m ver que é necessária u m a acomodação com
m u n d o m u ç u l m a n o , mas n i n g u é m na Rússia está abrindo negoci
ções. As autoridades estão pressionando c o m os velhos m é t o d
soviéticos: se não se pode abolir o Alcorão, então pelo menos tu
deve estar sob controle; se muftis e emires são inevitáveis n u m p
c o m 20 milhões de muçulmanos, então é melhor que eles esteja
do nosso lado.
H o j e , toda essa manipulação está embutida na abordagem
Estado à luta contra o t e r r o r i s m o , q u e está acima da lei. O q
a c o n t e c e u a Tegaev é simplesmente u m a das suas manifestaçõ
Eles o p r e n d e m , enviam seu relatório e pensam que o problema foi
resolvido. Na realidade, ele piorou. A perseguição ao Islã na Rússia
t e m levado a u m a previsível reação islâmica que vimos em 2004 e
2005 no n o r t e do Cáucaso.
Em janeiro, as forças de segurança invadiram um apartamento
em um prédio c o m u m de cinco andares em Naltchik, na Kabar-
dino-Balkaria. Elas acreditavam q u e um grupo terrorista estava lá
dentro, ou ao menos foi o que alegaram depois. Porém, os ocupan-
tes d o a p a r t a m e n t o eram s i m p l e s m e n t e m u ç u l m a n o s q u e "não
estavam do nosso lado". Entre eles, estavam Muslim Ataev e sua
m u l h e r Sakinat Katsieva, um j o v e m casal envolvido c o m o sub-
m u n d o islâmico. Eles e seus amigos, outra jovem família islâmica
q u e não estava sob o controle do Estado, foram mortos a tiros.
M u s l i m e Sakinat t i n h a m u m a filha de seis meses, Leila. Os
corpos dos adultos foram devolvidos às suas famílias depois do ata-
que, mas Leila havia desaparecido. N ã o havia corpo, n e m bebê, nem
i n f o r m a ç õ e s ; todas as tentativas dos avós para e n c o n t r a r a neta
foram em vão.
É claro que também haviam matado o bebê. Pessoas na vizi-
nhança viram os soldados levando um p e q u e n o corpo enrolado em
um c o b e r t o r , mas, c o m o o assassinato de uma criança teria sido
demasiado chocante para o público, eles não devolveram seus res-
tos m o r t a i s . Em que o assassinato de Leila difere da m o r t e das
crianças durante o ataque à escola em Beslan?
D I Á W O RUSSO
249
U M

Q u a n d o mais intensa a pressão, mais comprometidos se t o r n a m


s partidários do Islã extra-oficial. As comunidades islâmicas que
elutarn em existir dentro de um sistema de "conselhos religiosos"
- s n s e t o r n a n d o ainda mais isoladas, fechando-se
estau ^ ao mundo exte-
rior e c o m isso se tornando m e n o s compreensíveis. N ã o é preciso
dizer que os cristãos o r t o d o x o s ou católicos, ou qualquer o u t r a
comunidade, iriam se comportar da mesma maneira sob as mesmas
circunstâncias. A situação não é diferente na Tchetchênia, o n d e os
"muçulmanos do F S B " c o m b a t e m os m u ç u l m a n o s que não g o z a m
da sanção oficial, explorando os antigos conselhos religiosos ou
"departamentos de assuntos religiosos", c o m o eles eram chamados
na U R S S . Estes eram encontrados até m e s m o no C o m i t ê Central
do Partido Comunista e nos comitês provinciais e distritais.
Hoje, muitos funcionários da era soviética ainda estão nos m e s -
mos cargos. R u d n i k Dudaev, um general da K G B e hoje do FSB,
foi por m u i t o s anos d i r e t o r do C o n s e l h o de S e g u r a n ç a da
Tchetchênia sob Kadirov e, antes disso, t a m b é m foi p o r m u i t o
tempo um dos dirigentes dos conselhos religiosos de m u ç u l m a n o s
nos tempos da U R S S .
D u d a e v " d i r i g i u " K a d i r o v desde o m o m e n t o e m q u e este
entrou n u m a escola religiosa islâmica na década de 1 9 7 0 .
Trabalhando para a KGB, ele m o n i t o r o u Kadirov, Djohar D u d a e v e
Maskhadov e hoje está de olho em Kadirov Júnior. E que b e m isso
fez? E x i s t e m m e n o s m o v i m e n t o s fundamentalistas h o j e na
Tchetchênia? Ou emires c o m idades entre 15 e 17 anos c o m p l e t a -
mente fora de controle? Q u e b e m veio dos conselhos religiosos? A
autoridade do mufti oficial da T c h e t c h ê n i a aumentou? Ou a a u t o -
ridade dos emires que "não estão do nosso lado" diminuiu?
O mufti Valgasov irá se beneficiar precisamente na m e s m a
extensão q u e C h a m a e v , o a n t i g o mufti da T c h e t c h ê n i a , e q u e
Miezaev, que o substituiu. As autoridades do Estado p o d e m gostar
jja maleabilidade deles, mas o carisma e o respeito de que gozam os
eres religiosos não provêm da sua intimidade c o m o FSB. A luta
Cor
i t r a o Islã, usando métodos soviéticos, leva ao oposto do q u e se
Pretende. N a T c h e t c h ê n i a , n o D a g u e s t ã o , n a I n g u c h é t i a , e m
a ar
d i n o - B a l k a r i a e em Karatchaevo-Tcherkessia, o Islã está se
o r n a n d o clandestino.
250 A N N A I'OLITKOVSKAYiV

3 de fevereiro
A administração presidencial entra em ação. Em Tula, os
organizaram um encontro em apoio à Lei 122. Esta é a nova ab
d a g e m da administração presidencial: reuniões às quais comp
c e m " s e u " pessoal. Pessoas idosas são pagas para comparecer -
quantia d e p e n d e das circunstâncias, mas dinheiro m u d a de mãos.
c o r r u p ç ã o do nosso povo continua e nosso povo está totalmen
disposto a ser corrompido.
As reuniões são organizadas pelas autoridades locais depois
um telefonema de coordenação do Kremlin. A "gerência de li-
de P u t i n está viva e vai b e m . Nesses " e n c o n t r o s antiprotestos
governadores que enriqueceram c o m propinas s o b e m aos pala
ques acompanhados por seu séquito de burocratas. Eles promete
c o m o lhes foi mandado, que os pagamentos do bem-estar so
estão prestes a ser aumentados e que tudo voltará a ser exatame
c o m o antes da aprovação da lei. Dia após dia, esses encontros são
i t e m principal nos noticiários da televisão.
T a m b é m em Tula, vemos o governador no palanque c o m
b a n d o de subordinados. O e n c o n t r o foi organizado pelo RU.
governador anuncia que toda pessoa que recebe u m a pensão infi
rior a 1.650 rublos [US$64] receberá bilhetes gratuitos para o s'
t e m a de transporte público da cidade (do qual não resta pratic
o
m e n t e nada). Por outro lado, a partir de I de fevereiro, um bilh
no sistema de transporte de Tula passou de seis para sete rublos.
;
Estranhamente, as pessoas se alegram e agradecem pelos b
tes gratuitos.

10 de fevereiro
Até agora, as pessoas na periferia do império não estão ceden
Em Abakan, Sibéria, a 36 graus abaixo de zero, cerca de trinta p
soas fazem piquete diante do prédio da administração c o m cart
q u e dizem: " N ã o à política anti-social." Na cidade de Kizil, capi
de Tiva, a 45 graus abaixo de zero, 56 pessoas comparecem a
manifestação contra a política de Putin. Em Kharabovsk, al L

pessoas se m a n t ê m na praça central c o m uma bandeira que diz:


RU desgraça a Rússia!"
251
u M DIÁRIO RUSSO

2 de fevereiro
n lujno-Sakhalinsk, a Associação pelos Direitos H u m a n o s local
épresentou u m a peça de teatro de rua chamada "O Funeral da
democracia". E m u m b o n e c o e m t a m a n h o natural, representando
jovem democracia, os manifestantes penduraram 15 cartazes acu-
l

atórios a respeito dos recentes atos inconstitucionais das a u t o r i d a -


des do Estado, a Lei 122 e a abolição da eleição de governadores.
Finalmente, sob o peso dessas desgraças, a democracia d e s m o r o n o u
foi posta em um caixão c o b e r t o c o m adesivos que proclamavam
sua morte. Levando coroas de flores, ao som de música fúnebre, os
manifestantes pregaram a t a m p a do caixão e o levaram em um
carro fúnebre. A manifestação a c o n t e c e u ao lado do p r é d i o da
administração provincial e foi observada c o m interesse p o r b u r o -
cratas nas janelas.
E m Tula, u m e n c o n t r o o r g a n i z a d o pelos c o m u n i s t a s atraiu
cerca de mil manifestantes. T a m b é m em Abakan houve um e n c o n -
tro, ao qual compareceram quase trezentas pessoas: não estava tão
frio. Foi um b o m resultado, mas o Dia Nacional de Ação C o n j u n t a ,
pretendido pela Solidariedade Social (SOS), não aconteceu. N ã o há
nenhum protesto de âmbito nacional.

15 de fevereiro
Os democratas (o Iabloko e a U n i ã o de Forças de Direita) tentaram
novamente chegar a um acordo. Até agora, seu campo de batalha
ainda está em escritórios em M o s c o u e não nas ruas da Rússia.
Iodos estão cansados dos funcionários democratas, até m e s m o seus
Partidários.
Hoje eles quase conseguiram se unir n u m a reunião do C o m i t ê
-008, porém, mais uma vez, t u d o foi p o r terra no último m o m e n -
to- Resolveram prosseguir c o m as discussões. O grande problema
permanece o mesmo: Q u e m será o primeiro entre iguais? C o m o
Pode lavlinsk ter certeza de q u e Kasparov e Rijkov não o tirarão da
Primeira fila? E n q u a n t o isso, Kasparov e Rijkov decidiram formar
U r r n o v o
?, Partido democrático c o m a n d a d o por eles mesmos, c o m o
'ticos democratas que não levam o ódio da derrota nas eleições
Parlamentares.
252 A N N A POLITKOVSKAYA

E n c o n t r e i - m e c o m Kasparov esta m a n h ã n u m a sessão


C o m i t ê Diretor do enfermo Congresso Nacional de Cidadãos. ]
estava m u i t o determinado e c o m e n t o u que as regiões estavam poli
ticamente muito à frente de M o s c o u . "Você acreditaria que, nu
das reuniões, fui chamado - eu, Kasparov - de h o m e m de conce
soes! Q u e mudança de h u m o r em apenas duas semanas", conti
n u o u ele, referindo-se à onda de protestos. Kasparov está recomen
d a n d o que o C o m i t ê realize um congresso do novo partido nu
das cidades provinciais da Rússia.

16 de fevereiro
G a r y Kasparov foi hoje a São Petersburgo para um encontro cor
tra a monetarização organizado pela Resistência dos Cidadãos
Petersburgo, que reúne vários partidos e grupos democráticos.
P r i m e i r o Kasparov disse q u e queria fundar u m a nova organiz
ção política em São Petersburgo. Ele disse: " A g o r a a capital
protesto é São Petersburgo e é aqui que precisamos estabelecer i
m o v i m e n t o político que possa lançar um desafio aos poderes est
belecidos. E por isso que estou aqui." A seguir, vários dos partici-
p a n t e s da r e u n i ã o b l o q u e a r a m a rua A n t o n e n k o , p r ó x i m a da
Assembléia Legislativa, exigindo o direito de transmissão ao vivo na
televisão de São Petersburgo. N a d a aconteceu. A única coisa que as
autoridades não lhes darão é t e m p o ao vivo no ar.
O Gabinete do Procurador em M o s c o u retirou a acusação de
t o m a d a violenta do poder contra os membros do Partido Bolche-
v i q u e Nacional que ocuparam u m a sala de recepção no prédio da
Administração Nacional. Em vez disso, eles foram acusados de uma
nova transgressão: "organizar d e s o r d e m em massa" (artigo 212).
Trinta e nove partidários de L i m o n o v estão presos em Moscou.

21 de fevereiro
Sergei Schadrin, o vice-ministro do Interior, visitou Blagoveschensk,
o n d e h o u v e u m a brutal operação de "limpeza" em dezembro, na
qual cerca de mil pessoas foram feridas. O Ministério do Interior
continua a se referir a esse ultraje c o m o "a dita l i m p e z a " . Em Ufa
Schadrin chamou as vítimas de "caçadores da verdade", somente para ?ara
DIÁRIO RUSSO 253
U M

rnar numa entrevista coletiva no dia seguinte, que "as ações da


-lícia foram justificadas, embora muitos as considerassem excessiva-
ente rigorosas". Essa foi sua avaliação da distribuição de pontos de
aragem, S O de gás l a c r i m o g ê n e o e da violência física em
U

embro. Schadrin chamou a operação de " u m excesso", acrescen-


do que "cada sociedade t e m a polícia que merece".
Ele está certo. Porque, e n q u a n t o as pessoas de Blagoveschensk
utarem s o m e n t e p o r seus p r ó p r i o s direitos, o p o v o de São
etersburgo pelos direitos dele e assim por diante, episódios c o m o
se irão ocorrer.

3 de f e v e r e i r o

askhadov aparece na Internet e p r o p õ e u m a ampliação do cessar-


ogo que declarou. C o m o sempre, n e n h u m a resposta oficial.
N e m haverá. O governo parece ter encontrado u m a maneira
de explicar ao Ocidente o q u e está acontecendo na Rússia. Putin,
em entrevista dada à imprensa eslovaca antes do seu e n c o n t r o c o m
ush em Bratislava, disse: " O s princípios fundamentais da d e m o -
raria, as instituições da democracia, devem ser adaptados à realida-
de na Rússia de hoje, às nossas tradições e à nossa história. E fare-
os isso sozinhos."
Assim nasce a teoria da "democracia tradicional" (isto é, d e m o -
cracia que está de acordo c o m as tradições nacionais). T a m b é m
uvimos falar de "democracia soberana" e "democracia adaptada",
que significam: "Nossa democracia será da maneira que queremos
e nao precisamos que n i n g u é m nos dê aulas sobre o assunto. Assim,
"ocês p o d e m dar o fora!"
Putin foi questionado a respeito de sua atitude c o m relação às
revoluções nos países da antiga C o m u n i d a d e de Estados I n d e -
pendentes: "Eles não nos i n c o m o d a m de maneira n e n h u m a . C a b e
os
povos desses países decidir c o m o irão construir sua vida, p o r
eio de revoluções ou de acordo c o m a lei." Ele está i n c o m o d a d o .

4 de f e v e r e i r o
Puri
> u t l
n encontra-se .
n
encontra-se c o m Bush em Bratislava. Na Rússia, as pessoas
ta
v a n i ansiosas para ouvir o q u e Bush teria a dizer a P u t i n . Todos
254
ANNA POLITKOVSKAYA

sabiam que, no dia anterior, n u m encontro em Bruxelas corn o» 1


líderes da O t a n e da C o m u n i d a d e Européia, sob pressões óbvias dr^
Estados bálticos e dos Estados da Europa Oriental, Bush promete
q u e levantaria o assunto do afastamento de Putin da democracia
Pensamos que seria um grande avanço, mas Bush não conse-
guiu questioná-lo. O petróleo e a amizade em n o m e do petróle
venceram. Os russos que esperam por ajuda do O c i d e n t e p r e c ^ f a -
finalmente reconhecer que a reconquista das liberdades democráti
cas depende da qualidade do nosso povo e não pode vir por intermé
_
dio de pressões externas. Somente uns poucos indivíduos em no
m o v i m e n t o democrático e n t e n d e m isso. A maior parte das reuniõ
dos democratas termina c o m a frase mágica: "Vamos nos queixar à
Europa." Infelizmente, a Europa está cansada de ouvir c o m o Putin é
mau. Ela preferiria ser enganada e ouvir como ele é b o m .
De acordo até m e s m o c o m os resultados oficiais da R o m i r
M o n i t o r i n g , um terço do p ú b l i c o considera os e n c o n t r o s ent--
P u t i n e Bush uma perda de t e m p o .

26 de fevereiro
E x p i r o u o ultimato para q u e M u r t a z a R a k h i m o v , presidente da
Baskhiria, restaure os benefícios ou se exonere. Ele não fez uma
coisa n e m outra, mas os líderes da oposição desapareceram. As pes
soas estão certas de que R a k h i m o v simplesmente os c o m p r o .
dando-lhes u m a pequena participação na indústria p e t r o q u í m i c :
da B a c h k i r i a . Parece ser o fim da revolução na B a c h k i r i a , p - "
e n q u a n t o . D e v i d o aos longos anos de pobreza, tudo t e m seu pre
e, até que todos t e n h a m o que comer, as pessoas não se incomoda
rão demais c o m a democracia. O q u e elas não c o m p r e e n d e m é qu
s e m um sistema social b a s e a d o em p r i n c í p i o s d e m o c r á t i c o s , e
p o u c o provável que se tenha o suficiente para comer.

27 de fevereiro
D u r a n t e t o d o o mês de fevereiro, a mídia oficial russa t e m n=-=
garantido, de forma m u i t o persuasiva, sobre a impossibilidade de
u m a revolução na Kirghizia: o presidente Akaev estava se esforçan-
do sinceramente para introduzir a democracia para o b e m de seu
U M DIÁRIO RUSSO 255

• ele estava convidando seu povo a abrir empresas, e m b o r a apa-


3
rentemente P o
° queiram; sugestão geral parecia ser de que
u c o s

1 V , T I I Í 7 não estavam muito interessados e que, se u m a revolução


1
o s Kirb "* . . . . . . j ,
começasse, seria p o r instigação de criminosos q u e r e n d o d e p o r
Akaev e não p o r a l g u m e r r o dele. Alexei S i m o n o v , d i r e t o r da
Fundação para a Defesa da Glasnost, c o m e n t o u que "a imprensa
está traindo a sociedade e a sociedade está traindo a imprensa. Há
uma falta generalizada de profissionalismo e honestidade".
Porém, hoje houve eleições parlamentares na Kirghizia e a cor-
tina se fechou para Akaev.

Akaev passou a viver n u m a das dashas da administração presidencial


em Moscou. Depois das eleições parlamentares e presidencial, o
povo kirghiz passou a receber apoio mundial p o r seus esforços para
construir uma nova sociedade. A Rússia criticou as novas regras p o r
algum tempo, mas depois decidiu viver c o m elas.

8 de m a r ç o

Aslan Maskhadov, eleito d e m o c r a t i c a m e n t e p r e s i d e n t e d a R e -


pública T c h e t c h e n a de Itchkeria em 1997 e mais tarde líder da
Resistência Tchetchena, foi m o r t o na aldeia de Tolstoi-Iurt.
Seu c o r p o nu foi m o s t r a d o o dia i n t e i r o na televisão. Na
Tchetchênia, até os que não o apoiavam disseram que aquela era a
coisa mais vil que M o s c o u poderia ter feito. A era Maskhadov ter-
minou, mas c o m e ç o u a era de quem?
O novo Maskhadov será Basaev, o que significa o fim do ces-
sar-fogo e das negociações. A T c h e t c h ê n i a teve quatro presidentes e
a t
e agora três deles tiveram m o r t e violenta. A legitimidade do quar-
to- o ainda vivo Alu Alkhanov, é altamente questionável. N ã o há
n e n h u m outro t e r r i t ó r i o na E u r o p a de hoje c o m u m a situação
militar e política tão caótica e mergulhado n u m b a n h o de sangue
assim contínuo.
D i z e m que M a s k h a d o v m o r r e u , c o m o milhares d e o u t r o s
o r
n e n s e mulheres tchetchenos, em conseqüência de informações
de um tchetcheno. A tortura t e m sido o m é t o d o mais c o m u m de
mterrogatório e investigação de casos criminais durante a Primeira
256 ANNAP O L I T K O V S K A Y A

e a Segunda das Guerras Tchetchenas. É provável que ele seja l e n


b r a d o n a T c h e t c h ê n i a c o m o u m g r a n d e mártir, quaisquer n u

t e n h a m sido seus atos anteriores.


Maskhadov foi m o r t o e n q u a n t o estava em vigor seu cessar
fogo unilateral que, se não estava sendo plenamente respeitado foj
ainda assim o p r i m e i r o a t o do g ê n e r o na S e g u n d a Guerra
T c h e t c h e n a . Foi um gesto de boa vontade, uma m ã o estendida para
o K r e m l i n , i n d i c a n d o disposição para iniciar negociações, para
parar de atirar, para p r o m o v e r a desmilitarização e a extradição
m ú t u a de criminosos de guerra.
Maskhadov, quase sozinho e usando o m á x i m o da sua habilida-
de, restringiu os extremistas do seu lado que acreditavam que se
deve fazer oposição à Rússia por todos os meios disponíveis, inclu-
sive aqueles demonstrados em Beslan. Agora não há n i n g u é m para
c o n t ê - l o s . A liderança da Resistência T c h e t c h e n a , a despeito de
q u e m quer que seja o indicado pelo clandestino comitê de Defesa
de Itchkeria, irá se voltar para o m a i o r o p o n e n t e dos métodos
m o d e r a d o s de M a s k h a d o v : C h a m i l Basaev. O resultado final da
o p e r a ç ã o para assassinar Maskhadov, que, afirmam agora oficial-
m e n t e , foi organizada pela unidade de Operações Especiais do FSB
russo, será a entrega das rédeas do governo a Basaev, q u e não é o
m e n o s interessado na legitimidade política.
Fomos deixados na T c h e t c h ê n i a c o m duas figuras igualmente
sedentas de sangue, repulsivas e bárbaras: Basaev e Kadirov Júnior.
Todos os outros, inclusive t o d o m u n d o em toda a Rússia, serão apa-
nhados no meio.
Desta maneira, a era de Maskhadov, um antigo comunista e
coronel soviético que se converteu ao Islã somente nos seus últi-
m o s anos, e a persistentemente idiota campanha disparada contra
e
ele pessoalmente trouxeram à vida u m a geração mais j o v e m q u
n ã o está mais interessada em um Islã moderado. Eles preferem ser
extremistas c o m as autoridades que destroem moderados.
O h e r ó i desse s u b m u n d o é Basaev. P o r m u i t o tempo»
Maskhadov esteve no seu caminho, mas agora a estrada está livre.
Basaev obteve aquilo c o m que sonhava há quase u m a década. Nao
i m p o r t a mais o fato de ele não ter a legitimidade política de Mas-
khadov. Ele só está interessado nos aspectos técnicos da preparação
de atos terroristas contra a Rússia e em causar o m á x i m o de dor
R U S S O
u M DlAWO 257

ssível A m o r t e de M a s k h a d o v prova, de forma irrefutável para


^asaev a exatidão de sua conhecida visão de que não p o d e haver
egociações e que todos os m é t o d o s são justificados na guerra c o n -
tra Rússia.a

Nesta noite, os canais estatais levaram ao ar o lunático Kadirov


T' nior que nos informou q u e o assassinato de Maskhadov era um
resente às mulheres em 8 de m a r ç o , Dia Internacional da Mulher.

15 de março
O FSB afirma ter pago U S $ 1 0 milhões a alguém pelas informações
sobre os movimentos de Aslan Maskhadov.
Seu corpo não foi devolvido aos parentes. D u r a n t e toda essa
barbaridade medieval, P u t i n p e r m a n e c e em silêncio, o q u e signifi-
ca que ela está acontecendo sob suas ordens pessoais. Eu n ã o fica-
ria surpresa se ele tivesse e x i g i d o a cabeça de M a s k h a d o v n u m a
bandeja, c o m o era o costume dos czares da M o s c o u medieval. Por
alguma razão, o c o r p o de M a s k h a d o v foi trazido secretamente para
Moscou, embora n i n g u é m acredite q u e t e n h a sido para alguma
autópsia suplementar. A c h a m q u e foi para P u t i n ficar tranqüilo.
Essa é a moralidade no alto p o d e r da Rússia.
Mais uma vez, soldados desertaram de um posto de fronteira,
desta vez a Unidade de Fronteira do FSB na província de Tchita. As
duas da manhã, quatro deles atiraram no oficial c o m a n d a n t e , no
subcomandante e em outro oficial. Ao fugir, os soldados levaram
quatro fuzis K a l a s h n i k o v c o m 5 0 0 c a r t u c h o s d e m u n i ç ã o .
Deserções p o r tropas de fronteira o c o r r e m pelo m e n o s u m a vez
por mês.
Em Hasaviurt, no Daguestão, a cidade i m p o r t a n t e mais p r ó x i -
ma da Tchetchênia e o n d e v i v e m muitos tchetchenos, t e m havido
tentativas de capturar rebeldes. U m a casa em que se acreditava que
e
les estavam foi cercada e reduzida a entulho, mas os rebeldes apa-
rentemente escaparam através de um cordão triplo de policiais c o m
tQ
d a s as suas armas.
O Ministério da Defesa a n u n c i o u que, em 2 0 0 5 , n ã o corrigirá
0s
salários dos seus oficiais de acordo c o m a inflação. Isto t a m b é m
°correu em 2004. A previsão dos aumentos de preços em 2005 está
P°r volta de 25%.
258 A N N A POLITKOVSKAYA

16 de março
Em Chali, na Tchetchênia, parentes de pessoas seqüestradas recen-
t e m e n t e estão fazendo piquetes diante da administração municipal
pelo terceiro dia consecutivo. Os manifestantes estão exigindo sua
libertação, ou pelo m e n o s informações a respeito delas.
Entre elas, está a família de T i m u r Rachidov, 28 anos, um invá-
lido da Categoria 1 da aldeia de Serjen-Iurt, que foi seqüestrado de
sua casa p o r soldados russos. A mãe, Khalipat Rachidova, relata que
os soldados chegaram em um carro blindado, invadiram a casa, vira-
r a m t u d o de pernas para o ar sem n e n h u m a explicação e despiram
a filha Polina, de 18 anos, para verificar "se tinha marcas provenien-
tes do p o r t e de armas" em seu corpo. A seguir, pegaram T i m u r e se
d i r i g i r a m para a periferia de C h a l i , o n d e fica a Divisão de
O p e r a ç õ e s Especiais n° 2 do Ministério do Interior.
A família de Ruslan Usaev, de Novie Atagi, t a m b é m está fora
do prédio da administração. Ele t e m 21 anos e está no terceiro ano
da U n i v e r s i d a d e de G r o z n i . Em 13 de m a r ç o , ele t a m b é m foi
seqüestrado p o r soldados russos e levado na direção de Chali e
desde então nada mais se soube dele.
O protesto garantiu a libertação de um aldeão de Serjen-Iurt e
de quatro homens da aldeia de Avturi.Todos eles haviam sido tor-
turados e brutalmente espancados. Tudo se passou sem comentário
n e n h u m dos democratas de M o s c o u .
Agora, no início de 2 0 0 5 , a Guerra Tchetchena finalmente foi
a l é m das fronteiras da T c h e t c h ê n i a , i n d o para regiões vizinhas
c o m o I n g u c h é t i a , D a g u e s t ã o , Ossétia d o N o r t e e K a b a r d i n o -
Balkaria. Em cada república, as pessoas protestam à sua maneira. Lá
n ã o existem associações de farnílias cujos membros foram seqüestra-
dos. A Tchetchênia continua a viver c o m o um Estado separado; nin-
g u é m viaja para lá das outras repúblicas, n e m mesmo da Inguchétia,
e depois de Beslan ninguém simpatiza c o m os tchetchenos.

19 de março
N e s t a m a n h ã , A d a m K a r n a k a e v foi seqüestrado em G r o z n i por
h o m e n s armados não identificados. Estava a caminho da mesquita.
DIÁRIO RUSSO 259
u M

5 de abril, o Gabinete do Procurador-geral pediu q u e a famí-


lia* de A d a m buscasse seu c o r p o no n e c r o t é r i o da c i d a d e de
]vlozdok, na Ossétia do N o r t e . É u m a história conhecida.

23 de março
Por volta das cinco desta m a n h ã , soldados mascarados derrubaram
a porta da frente de u m a casa na rua Nekrasov, em A t c h k h o i -
Jvlartan. Eles levaram Ismail Viskhnov, 31 anos, e seu s o b r i n h o
RustamViskhnov, 2 3 . Os seqüestradores chegaram em veículos sem
placa e eram uma mistura de tchetchenos e russos. N e n h u m órgão
de segurança da T c h e t c h ê n i a admite estar envolvido. N e n h u m dos
homens jamais havia sido rebelde.
Às 5:23, o m e s m o g r u p o de 25 a trinta pessoas invadiu outra
casa em Atchkhoy-Martan, na rua Naberejnaia, o n d e vive a família
Masaev. Eles tiraram S a i d - M a h o m e d Masaev, 31 anos, da cama. Ele
é motorista de um ô n i b u s regular e n t r e G r o z n i e A t c h k h o y -
Martan. Levaram-no sem permitir que ele se vestisse. Desde então,
ninguém soube dele.
Em Moscou, t u d o continua c o m o sempre. O clube de discus-
sões do Congresso Nacional de Cidadãos debate o tópico " R e f e -
rendos: devem ser realizados e sobre quais assuntos?" E t u d o incri-
velmente tedioso, sem n e n h u m a iniciativa. Um p u n h a d o de d e m o -
cratas anônimos que lá estão e claramente não terão importância
em coisa n e n h u m a . Os jornalistas presentes r i e m b a i x i n h o . Os
democratas da capital n ã o se interessam n e m m e s m o p o r seus p r ó -
prios assuntos, para não m e n c i o n a r a Tchetchênia, o n d e os expur-
gos e sequestros estão em ascensão.

25 de março
m a
^ grande manifestação é realizada sobre a questão dos benefí-
1 0 s n o s
^ confins da nossa terra em Iujno-Sakhalinsk, embora a onda
Protestos esteja quase terminada. N ã o obstante, aqui está u m a
r e s o i u ç o e s
Sakl^ a d o t a d a s pelos manifestantes e m I u j n o -
260 A N N A POLITKOVSKAYA

N ó s , veteranos de guerra e de trabalho, trabalhadores de vária


organizações, inválidos, pensionistas e jovens, viemos expressa
nossa indignação diante do contínuo enfraquecimento, pelos
órgãos do governo, dos direitos sociais e políticos de todos os
cidadãos russos, em especial os do n o r t e e do extremo oriente.
Protestamos contra a redução das liberdades democráticas bási-
cas garantidas pela C o n s t i t u i ç ã o ; c o n t r a a u s u r p a ç ã o , pela
autoridades do Estado, da liberdade da mídia de massa; cont
ataques ao b e m - e s t a r social, à independência dos tribunais, à
autogestão local e aos direitos do povo de eleger as instituições
de p o d e r do Estado. O p o m o - n o s à m o n e t a r i z a ç ã o , que não
cobre as despesas reais n e m daqueles que r e c e b e m benefícios,
n e m dos que a eles prestam serviços. O p o m o - n o s à divisão i
pessoas em negras e brancas, aos obstáculos colocados no cami-
n h o da empresa privada honesta, à abolição do adiamento do
recrutamento para estudantes e à militarização do país, à explo-
ração política do a n t i t e r r o r i s m o , à v u l g a r i z a ç ã o dos ideais
sagrados da Pátria e da democracia. E x i g i m o s respeito pelos
nossos interesses, nossos desejos, nossas petições às autoridades,
nosso direito de dialogar c o m os líderes do Estado para que
levem em conta as opiniões daqueles que se o p õ e m a eles por
ocasião da tomada de decisões importantes.

Um c o n j u n t o detalhado, abrangente e racional de proposta


aprovadas pelos manifestantes foi p u b l i c a d o no j o r n a l local,
Sovetsky Sakhalin, mas não houve resposta, apesar de a resolução ser
um plano de ação elegante e realista proposto às autoridades dc
Estado. Nosso povo p o d e viver nas regiões mais remotas e mesmc
assim pensar c o m o estadista de uma forma q u e gostaríamos que
fosse imitada pelos ocupantes do Kremlin. C o n t u d o , mais uma ve
as autoridades não se abalaram.
Sabemos do q u e necessitamos, mas carecemos de tenacidade
para lutar p o r isso. Desistimos quase imediatamente. A vida pass;
e n q u a n t o esperamos q u e nossas aspirações nos sejam concedidas de
cima para baixo, c o m o em 1991, quando um golpe dentro da elite
foi mais tarde apoiado pelo povo. Mas a elite aprendeu c o m a expe-
riência de 1991 e não t e m o m e n o r desejo de ser envolvida em
qualquer outro golpe. Ela prefere fazer acordos discretamente em
gabinetes e seus acordos não são do interesse do povo.
PIAR' 0
RUSSO 261
u M

26 de março
Na aldeia t c h e t c h e n a de Samachki, às 5:00 da manhã, soldados
mascarados falando russo seqüestraram Ibrahim Chichkanov, 21
anos. N ã o p e r m i t i r a m que ele vestisse os sapatos, dizendo: "Para
onde você vai, não precisará deles." O seqüestro foi realizado p o r
cerca de vinte pessoas, que estavam em quatro carros sem placa.
*
Vinte e quatro horas depois, a família descobriu o que estava a c o n -
tecendo no posto policial de A t c h k h o y - M a r t a n . Ibrahim havia sido
seqüestrado sob o esquema de se fazerem "contra-reféns", conside-
rado pelo procurador-geral da Rússia u m a medida aceitável depois
de Beslan. A família Chichkanov recebeu o r d e m de entregar Said-
Khasan Musostov, m e m b r o da Resistência e p r i m o de Ibrahim.
Ele não se entregou e nada mais se sabe a respeito do destino
de Ibrahim.

Hoje, sábado, é dia de manifestações. Há um piquete em Khabarovsk,


exigindo "independência dos tribunais na região de Khabarovsk".
Os manifestantes sofriam c o m os tribunais " d e p e n d e n t e s " e decidi-
ram enviar u m a carta aberta a Putin:

Nossa experiência ao longo de m u i t o s anos mostra que os j u í -


zes da região de Khabarovsk não p r o t e g e m os direitos dos cida-
dãos em seus julgamentos, c o m o m a n d a a Constituição, mas
sim os interesses dos burocratas. Muitas das decisões dos t r i b u -
nais n ã o estão de a c o r d o n e m c o m a lei, n e m c o m o b o m
senso, n e m c o m a lógica elementar.
Os juízes estão violando, de forma r u d e e cínica, direitos
fundamentais dos cidadãos a u m a audiência, sem a qual não se
pode falar em observar e proteger outros direitos. Os jornalis-
tas são excluídos das sessões abertas dos tribunais, registros de
audiências são falsificados, assim c o m o provas: veredictos "sob
medida" passaram a ser n o r m a na região de Khabarovsk. N ã o
sao fornecidos julgamentos p o r escrito, evidências desfavorá-
veis são ignoradas. Os argumentos q u e refutam os veredictos e
as decisões de um tribunal desaparecem dos arquivos do caso;
262 A N N A POLITKOVSKAY

Os recursos ao Colégio de Qualificação de Juízes relati VOs

à violação de direitos legais são enviados de volta aos mesmo


tribunais e revisados pelas mesmas pessoas responsáveis p l e a s

violações originais;
As q u e i x a s de c o m p o r t a m e n t o ilegal pelos juízes do
Colégio de Qualificação de Juízes não são aceitas para exame
pelos tribunais. A determinação da responsabilidade pública
dos juízes, c o m o manda a lei "Sobre as Instituições da Profissão
Legal", t o r n o u - s e u m a farsa em K h a b a r o v s k . Seis dos sete
representantes do povo no Colégio de Qualificação de Juízes
são indicados pelas autoridades ou pelas instituições judiciais.

N ã o h o u v e reação a essa carta. O presidente Putin não exigiu


a demissão ( c o m o só ele tem o direito de exigir) do presidente do
Tribunal R e g i o n a l de Khabarovsk, o juiz Vdovenkov, n e m do vice-
presidente, o juizVolochin, c o m o principais responsáveis pelo esta-
do fora do c o m u m da justiça.
Em Ufa, capital da Bachkiria, entre 5 mil e 10 mil pessoas com-
parecem a u m a manifestação de protesto na praça Lenin. Elas vie-
ram de 14 cidades da república para exigir a demissão do presiden-
te R a k h i m o v . Os slogans são: " D e m i t a m M u r t a z a Rakhimov!",
" N ã o ao n e p o t i s m o no governo." As empresas do Complexo de
C o m b u s t í v e l e E n e r g i a de Bachkiria são controladas por Ural
Rakhimov, filho de Murtaza.
Eles exigem q u e as ações das empresas petrolíferas de Bachkiria
sejam devolvidas ao Estado e uma compensação por danos morais
e materiais para os habitantes de Blagovestchensk, que sofrera
uma brutal "limpeza da cidade" por parte da polícia e suas unida-
des de Operações Especiais em dezembro. A organização do pro-
testo é de um c o m i t ê de coordenação da O p o s i ç ã o Unida, que
inclui os r a m o s locais do P a r t i d o C o m u n i s t a , do Iabloko, do
Vontade do Povo, do Partido dos Pensionistas Russos, da Fundação
para o D e s e n v o l v i m e n t o do G o v e r n o Local, da U n i ã o de Asso-
ciações Tártaras e da Sociedade R u s .
O g r u p o aprovou uma resolução exigindo a revogação da le
da m o n e t a r i z a ç ã o dos benefícios e o afastamento do presiç
1
Rakhimov, do inspetor-chefe federal da Bachkiria, do ministro u -
Interior da R e p ú b l i c a , Rafail Divaev, que afirmou que a operaça
Ü M DIÁRIO Russo 263

em
"limpeza" Blagoveschensk havia sido justificada, e d e outras
autoridades.
pepois de p e r m a n e c e r u m a hora na praça Lenin, a e n o r m e
ultidão marchou nove quilômetros até a sede da Administração
o ikhimov, mas foi i m p e d i d a de se aproximar do prédio p o r uma
^ ^ S i c a d a de ônibus e um cordão de muitos milhares de homens,
rangendo a p a r e n t e m e n t e toda a polícia de Bachkiria. R a k h i m o v
não apareceu. Q u e m saiu foram R a d i K h a b i r o v , d i r e t o r d a
administração, e A l e x a n d e r C h a b r i n , secretário do C o n s e l h o de
egurança da Bachkiria, que receberam a resolução, e o povo se
:
spersou.
Em Moscou, o C o m i t ê 2008 tenta mais u m a vez criar um par-
do democrático u n i d o e fracassa. Kasparov p r o p õ e que sejam c o n -
dados a vir a M o s c o u representantes regionais da oposição para
ue eles decidam q u e m deve encabeçar a lista de candidatos d e m o -
cráticos. Os líderes de M o s c o u t e m e m reunir a oposição provincial,
uorque quase certamente eles não irão encabeçar a lista. Impasse.
Em Pskov, trezentas pessoas se r e ú n e m na praça Lenin para
testar a respeito do novo C ó d i g o de A c o m o d a ç ã o Residencial,
reunião foi convocada pelos comunistas de Pskov, em conjunto
om o diretório local do Iabloko e os sindicatos trabalhistas. N e -
"uma das emissoras de televisão da cidade c o n c o r d o u em cobrir a
união, que considerou criminosa a idéia p o r trás do novo C ó d i g o
esidencial, em vigor desde 1° de março: " N a s últimas décadas o
do deixou de c u m p r i r c o m sua obrigação de reparar e m o d e r -
zar os imóveis residenciais, mas dirigiu efetivamente recursos
acionais para a criação de u m a classe de proprietários de imóveis
tre as fileiras dos ocupantes do poder."
Eles exigem que:

O Código de A c o m o d a ç ã o Residencial deverá ser suspenso até


que o nível das pensões e dos salários na região seja suficiente
para igualar o c u s t o de m e r c a d o do q u e é f o r n e c i d o pelo
Escritório C o m u n a l de Serviços R e s i d e n c i a i s e t a m b é m os
custos de saúde, educação, cultura, transporte, comunicações,
alimentação e outros itens essenciais; deve haver total transpa-
rência na fixação de preços e tarifas para os serviços prestados
Pelo Escritório C o m u n a l de Serviços Residenciais; aqueles
que criaram o deplorável C ó d i g o de A c o m o d a ç ã o Residencial,
264 A N N A POLITKOVSKA

isto é, o G o v e r n o da Rússia, deverão ser demitidos; a Di


deverá ser dissolvida por deixar de representar os interesses
povo, j u n t a m e n t e c o m os funcionários do Partido da R/
U n i d a e do Partido Liberal-demócrata da Rússia, que vo
a favor da a d o ç ã o do C ó d i g o ; toda a responsabilidade pe
a u m e n t o das tensões sociais na sociedade deve ser atribuída
presidente Putin.

27 de março
Hoje, d o m i n g o , é dia de referendos regionais.
Em Saratov, há um referendo a respeito de c o m o o prefeit
deve ser eleito. S o m e n t e p o u c o mais de 7% da população compa-
recem para votar. Eles não parecem se i m p o r t a r se o elegem direta-
mente ou se o prefeito é n o m e a d o pelo governador indicado pelo
K r e m l i n . A F r e n t e Popular da Província de Saratov, associação
regional de todos os partidos de oposição, recusou-se a participar.
Em Bachkiria, foi convocado um referendo pela Sociedade
para a R e f o r m a do G o v e r n o Local, p o r q u e o novo sistema de indi-
cação de líderes cívicos e regionais na R e p ú b l i c a contraria a Carta
Européia de Direitos sobre Governo Local, ratificada pela Rússia
e m 1998.
T a m b é m aqui o comparecimento foi m u i t o baixo, apesar de a
questão afetar todos os cidadãos. A o r i g e m dessa apatia é a crença
firme em que as eleições são fraudulentas e continuarão assim; deste
m o d o , por que votar? De qualquer maneira, 9 0 % dos que compa-
receram votaram a favor da eleição direta dos prefeitos.
M o s c o u está se tornando a cidade politicamente menos ativa
de todas. Se h o u v e r u m a revolução, ela terá de vir das províncias.
A manifestação do Iabloko em M o s c o u diante da sede do
governo, protestando contra a reforma do Escritório Comunal de
Serviços Residenciais, conseguiu reunir somente duzentos manifes-
tantes. O governo está insistindo para que todas as regiões tornem
esses serviços totalmente autofinanciados até o final de 2005 e, num
país c o m tantas pessoas pobres c o m o o nosso, isto estará acima das
posses da maioria. A visão do Iabloko é de q u e o governo não tem
o direito de estimular mais um aumento de preços; ele deveria estar
combatendo a mentalidade monopolista desses escritórios, encora-
piÁR'O Russo 265
ü M

¿0 as pessoas q u e possuem acomodação a formarem cooperati-


a n
J ^ jeveria encorajar as pequenas empresas a oferecerem serviços
v a S
e n t e s . Elevando os preços, o governo está p r o p o n d o levan-
c o r r

c n
° i l h ã o de rublos [US$20 bilhões] e investi-los no atual sis-
u i l l tr

tema podre de provisão de serviços residenciais.


As propostas do Iabloko são muito sensatas, mas o baixo c o m -
arecimento indica o q u a n t o as pessoas levam a sério o partido. Os
líderes não estão buscando o apoio das pessoas, mas sim assentos na
Duma através de negociações c o m a Administração Presidencial.

28 de março
Na Inguchétia, as tentativas de exigir o afastamento do presidente
Murat Ziazikov foram frustradas. Tendo em m e n t e a maneira pela
qual os eventos se desenrolaram em Kirghizia, os organizadores
pensaram que, o n d e há r o u b o , p o d e - s e esperar u m a revolução.
Todos estão se p e r g u n t a n d o se a Rússia p o d e seguir a Kirghizia.
As autoridades acabaram c o m a reunião antes que ela começas-
se. O Memorial para as Vítimas de Repressão Política, na periferia
de Nazran, foi cercado a u m a grande distância p o r veículos arma-
dos, soldados e policiais. Bóris Arsamakov, o líder da Akhki-Iurt,
que organizou a manifestação, foi detido até o final do dia. Na vés-
pera do protesto, o presidente Ziazikov d e i x o u a Inguchétia, por via
das dúvidas - ele nunca está presente q u a n d o fareja problemas —, e só
voltou quando t u d o havia se acalmado.
Embora não tenha sido possível realizar a reunião, a multidão
nao recorreu à violência. Q u a n d o Arsamakov foi preso, os manifes-
tantes quiseram invadir a sede da polícia, mas foram contidos p o r
Musa O z d o e v , d e p u t a d o da Assembléia do P o v o e i m p o r t a n t e
representante da oposição na Inguchétia. Ele entrou no prédio para
negociar a libertação de Arsamakov e, a seguir, convocou as pessoas
que estavam lá fora para que adotassem u m a resolução exigindo o
afastamento i m e d i a t o do p r e s i d e n t e Z i a z i k o v e a c r e s c e n t o u :
Como as autoridades demonstraram covardia trazendo todas essas
tro
P a s para a R e p ú b l i c a , vamos nos dispersar p o r hoje e aguardar
para ver se nossa resolução será implantada."
SS a c a l m o u os
ch ^ ° â n i m o s . M u r a t Oziev, o respeitado e d i t o r -
c e
fe do Anguchi, o único jornal de oposição na República (fecha-
266 ANNA POLITKOVSKAYA

do por Ziazikov), t a m b é m pediu que a multidão não partisse pjj.


ações diretas. D o i s deputados favoráveis a Ziazikov disseram q U e

tinham vindo para negociar com a oposição e consultar Ziazikov a


respeito da sua renúncia. Eles pediram que a multidão se dispersasse
O que havia por trás desse c o m p o r t a m e n t o pelas autoridades'
Em resumo, m e d o de uma repetição do cenário Kirghiz. A Ingu-
chétia é pobre, ao passo que as autoridades de seu governo são ricas
e estão e n r i q u e c e n d o cada vez mais saqueando o orçamento. O texto
a seguir foi extraído de uma auditoria oficial em busca de apropria-
ção indevida de fundos orçamentários e executada pela Diretoria
Central do Ministério do Interior do Distrito Federal do Sul:

As perdas totais decorrentes da apropriação indevida de recur-


sos do o r ç a m e n t o federal chegaram a 3,9 milhões de rublos
[US$152.000], dos quais 2,8 milhões de rublos foram desvia-
dos em 2 0 0 3 e 1,1 milhão, na primeira metade de 2004. Em
2003 e na primeira metade de 2004, foram descobertas irregu-
laridades financeiras t o t a l i z a n d o 1 8 1 , 4 m i l h õ e s de rublos
[US$7 milhões]. Deste total, aquelas q u e envolveram recursos
do o r ç a m e n t o federal c h e g a m a 7 2 , 5 m i l h õ e s de rublos
[US$2,84 milhões] ou 40%.

A p e q u e n a Inguchétia é ainda m e n o r q u e sua vizinha Tchet-


chênia; c o n t u d o , no ano e m e i o da gestão de Ziazikov, milhões
foram roubados. De o n d e eles vieram?
A Inguchétia t e m muitos problemas grandes. O primeiro são
os refugiados: o governo federal lhes fornece ajuda e para a cons-
trução de novas habitações para aqueles q u e perderam suas casas na
inundação de 2 0 0 2 . O segundo problema é o campo petrolífero de
Malgobek, a principal fonte de riqueza na república: todas as auto-
ridades locais estão constantemente t e n t a n d o controlá-lo e uma
corrupção sem fim o cerca. Finalmente há a agricultura, uma vez
que a república é essencialmente agrícola.
A auditoria prossegue:

Sem fazer a necessária provisão orçamentária, o governo


república c o n c e d e u ilegalmente um crédito orçamentário de
30 m i l h õ e s de rublos [US$1.180] à empresa Inguchnefte-
gazprom. S e m que houvesse as necessárias alterações legislati-
u M DIÁRIO RUSSO 267

vas, a verba alocada para subsídios habitacionais foi reduzida no


mesmo valor.

A empresa de gás e p e t r ó l e o I n g u c h n e f t e g a z p r o m é a mais


importante da república e sustenta financeiramente as autoridades.
Infelizmente, na gestão de Ziazilov, ter u m a empresa de petróleo
está se m o s t r a n d o d i s p e n d i o s o para as pessoas q u e v i v e m na
Inguchétia. Existe u m a crise habitacional aguda, em parte devida
aos milhares de refugiados; assim, cortar subsídios habitacionais e
entregar o dinheiro à petrolífera é o ato mais ultrajante que se p o d e
imaginar, mas foi o q u e aconteceu.

Em 2003, a Inguchneftegazprom recebeu um empréstimo de


27 milhões de rublos [US$1.060.000] para implantar um p r o -
grama de estabilização e desenvolvimento do complexo petro-
lífero. S o m e n t e 10,5 milhões de rublos foram pagos no prazo.
O prazo de pagamento foi ampliado. De acordo c o m as estatís-
ticas fornecidas, a extração de petróleo está declinando ano a
ano. P o r é m , foi descoberto que, desde 2 0 0 2 , a Inguchnefte-
gazprom v e m extraindo petróleo sem permissão e ocultando
da auditoria a verdadeira quantidade obtida...
Em 15 de agosto de 2003, a Inguchneftegazprom assinou
um contrato, garantido pelo governo da Inguchétia, c o m u m a
empresa norueguesa para o f o r n e c i m e n t o de tecnologias para
aumentar a p r o d u ç ã o de petróleo. Pelo trabalho executado, a
I n g u c h n e f t e g a z p r o m deveria transferir fundos no valor de
US$775.000, fornecidos pela república, para a conta corrente
da empresa. O dinheiro foi transferido através de duas ordens
de pagamento, em 19 de dezembro de 2 0 0 3 e 10 de março de
2004, respectivamente, mas as c o n d i ç õ e s do contrato n u n c a
foram satisfeitas.

Em resumo:

Em conseqüência da falta de correção p o r parte da gerência da


Inguchneftegazprom, a empresa e o Estado sofreram perdas
materiais superiores a 25 milhões de rublos [US$980.000]. No
decorrer da atual auditoria, o procurador-geral da República
favoreceu procedimentos criminais sob os artigos 171, 199 e
201 do C ó d i g o Criminal da Federação Russa (...).
268 A N N A POLITKOV

A inspeção do uso dos recursos alocados para neutra]


conseqüências de desastres naturais nos distritos de N
Sunza e M a l g o b e k revelou que, em 2 0 0 3 , pagamentos
zando 9,5 m i l h õ e s de rublos [US$372.000] foram reo
i n d e v i d a m e n t e p o r cidadãos não registrados e m end
fixos na época da inundação. Foram abertos quatro prc
criminais p o r irregularidades financeiras q u e totalizavs
m i l h õ e s d e r u b l o s [ U S $ 1 2 2 . 0 0 0 ] (...). N o Ministé
Construção, devido a um exagero no custo das usinas d<
mento de esgoto no distrito de Malgobek [para repor ;
destruídas pelas enchentes], foi descoberta u m a aprot
indevida de fundos no valor de 546.600 rublos [US$2
(...). Em 2 0 0 3 e na primeira metade de 2 0 0 4 , a auditi
253,9 milhões de rublos [US$9,96] recebidos do orç:
federal para implantar o programa de ajuda ao sul da Rj
qual é p r i m o r d i a l m e n t e habitacional) revelou irregula
financeiras no valor de 48,9 milhões de rublos [US$1.9
ou 2 0 % do total alocado. Para o p e r í o d o 2 0 0 3 - 2 0 0 4
levantadas 185 acusações criminais c o m relação ao ro
fundos orçamentários. Entre elas, estão 38 casos de ap
ções indevidas m u i t o sérias de recursos. A maior parte
peito a apropriações indevidas de recursos alocados pai
rar as conseqüências da inundação de j u n h o de 2 0 0 2 . '
três casos se relacionam c o m perdas que totalizam 17,7
de rublos [US$694.000].

Os processos criminais por apropriação foram de fato


mas desde então foram congelados. Esta é a principal técn
garantir a lealdade das autoridades na Rússia. Primeiro, obt<
rial c o m p r o m e t e d o r sobre eles e, depois, observar enquant
apressam a entrar para o partido da Rússia U n i d a .
Q u a n d o p u b l i q u e i essas i n f o r m a ç õ e s e essas cifras
publicação foi proibida na Inguchétia - Ziazikov ameaçou
cessar. N ã o p o r tê-lo difamado, mas por ter supostamente
d o c u m e n t o s oficiais. Fui levada ao Gabinete do Procurac
para interrogatório. Depois fui deixada em paz. N ã o são dc
tos secretos; assim, p o r que alguém precisaria roubá-los? I
var o roubo, eles precisariam de minhas impressões digitais
de alguém. Q u a n t a falta de senso!
269
u M DIÁRIO RUSSO

Hão é preciso dizer que o general Napalkov, o funcionário do


jvlinistério do Interior encarregado dessa auditoria e por q u e m ela
, • i n a d a , foi d e m i t i d o . O M i n i s t é r i o do Interior sofreu u m a
ass

pressão tão grande da administração presidencial que decidiu sacri-


ficá-lo.

11 de abril
As últimas palavras de Mikhail Khodorkovski antes de ser senten-
ciado: " N ã o sou culpado dos crimes dos quais sou acusado e, assim,
não pretendo pedir clemência. É u m a desgraça para m i m e para
meu país o fato de ser considerado perfeitamente legal o procura-
dor enganar o tribunal de forma direta e aberta. Fiquei chocado
quando o tribunal e os advogados me explicaram isto. E um estado
de coisas m u i t o infeliz se t o d o o país está convencido de que o t r i -
bunal está agindo sob a influência de autoridades do Kremlin ou
do Gabinete do Procurador-geral.
"De fato, o tribunal está sendo solicitado a decidir que a cria-
ção, o gerenciamento ou a posse de u m a empresa bem-sucedida é
rova de um c r i m e . H o j e não me restam muitas p r o p r i e d a d e s .
Deixei de ser um empresário. N ã o sou mais um dos super-ricos.
Tudo que t e n h o é o c o n h e c i m e n t o de estar c o m razão e m i n h a
determinação para ser um h o m e m livre."
A maioria havia previsto que Khodorkovski pediria clemência.
Ninguém podia acreditar que um oligarca permaneceria um ser
humano decente, a qualquer custo. N i n g u é m confia em oligarcas.
Seus roubos eram demasiadamente públicos e a base da sua r i q u e -
za
e o e m p o b r e c i m e n t o nacional. As pessoas não perdoarão isso,
m a
s poderão sentir pena de Khodorkovski caso ele seja totalmente
esmagado.

15
de abril
Uma segunda sentença foi dada a M i k h a i l Trepachkin, q u e foi
en
q u a d r a d o p o r desertar da K G B e participar de uma investigação
e
p e n d e n t e sobre a explosão de prédios residenciais na Rússia
le
d i a t a m e n t e antes do início da S e g u n d a G u e r r a T c h e t c h e n a .
l n c o a n
° s d e prisão numa colónia penal. O tribunal considerou-
270 A N N A POLITKOVSKAYA

o culpado de u m a acusação ainda mais grave que aquela proposta


pelo procurador. Durante todo o julgamento,Trepachkin foi m a r i

tido sob condições descabidamente severas de detenção. Seu caso


está s e n d o revisto pelo Tribunal E u r o p e u de Direitos Humanos
mas e n q u a n t o isso ele está na prisão.

17 de abril
N u m a de suas aparições em M o s c o u , Gary Kasparov foi atingido
na cabeça c o m um tabuleiro de xadrez. Alguém se aproximou dele
supostamente querendo que ele autografasse o tabuleiro. R e c u p e -
rando-se do golpe, Kasparov foi irônico: "Ainda b e m que os russos
preferem o xadrez ao beisebol."

23 de abril
H o j e P u t i n r e c e b e u M i k h a i l F r i d m a n , d o Alpha G r o u p , n o
Kremlin. A elite dos negócios em M o s c o u o estava considerando
um provável candidato ao tratamento Khodorkovski. A recepção
no Kremlin foi um ato típico de relações públicas por Putin, desta
vez para o benefício da petrolífera T N K - B P . Na linguagem do
Kremlin, eles estavam dando "apoio m o r a l " a Fridman.
F r i d m a n p o r e n q u a n t o está nas boas graças do Kremlin. Ele
teve a o p o r t u n i d a d e de dividir sua riqueza e certamente irá aprovei-
tá-la. A pessoa fica mal se as autoridades não lhe dão n e m mesmo a
chance de agradar-lhes. Lorde B r o w n e , um alto executivo da BP,
t a m b é m foi r e c e b i d o no K r e m l i n . T a m b é m estava lá Viktor
Vekselberg, o h o m e m que deixa ovos Fabergé na cesta do Kremlin.
D u r a n t e toda a reunião, Fridman e Vekselberg irradiavam satisfação.
Sergei Glaziev, um deputado da D u m a do partido R o d i n a que
foi ministro de Assuntos E c o n ô m i c o s Externos no início da déca-
da de 1 9 9 0 e h o j e está na oposição, c o m e n t o u : "Eles preferem
Fridman a Khodorkovski porque ele não financia projetos da o p o -
sição."
u M DIÁRIO RUSSO 271

23-4 de abril
Vladimir R i j k o v e n t r o u para o c o n s e l h o p o l í t i c o do P a r t i d o
Republicano Russo. Ele tem o apoio financeiro da Lukoil e agora
se é seu partido. Rijkov alertou q u e os democratas precisam se
i r antes deste verão, para que t e n h a m u m a chance nas eleições
u n

ara a D u m a em 2007.
Gary Kasparov era aliado de R i j k o v no i n v e r n o , mas n ã o
entrou para o P R R . Eles têm em c o m u m a visão de detentor do
carisma, q u e o atual sistema p o l í t i c o precisa ser e l i m i n a d o . Se
Kasparov tivesse p e r m a n e c i d o c o m R i j k o v , p o d e r i a ter sido o
detentor do carisma, c o m R i j k o v s e n d o o c o m b a t e n t e político
iais esperto. Rijkov está dizendo q u e a porta ainda está aberta e
ue o P R R ainda espera dar boas-vindas a Kasparov.

25 de abril
O discurso anual de P u t i n à Assembléia Federal foi, ao m e s m o
tempo, sensacional e cômico. Foi um verdadeiro manifesto de libe-
ralismo, mas pelos seus frutos vocês irão conhecê-los!
Seu tema foi " U m país livre, de gente livre", mas c o m o é p o s -
sível ser livre sem um judiciário i n d e p e n d e n t e ? Ou sem direitos
eleitorais democráticos? C o m u m G a b i n e t e d o Procurador-geral
dirigido politicamente e uma sociedade civil reprimida?

28 de abril
O governo decidiu que os agraciados c o m o título de H e r ó i da
Rússia, da U R S S ou do Trabalhismo Socialista receberão um paga-
mento extra [2.000 rublos, US$78] p o r mês no lugar dos seus p r i -
vilégios.

Assim c o m e ç o u o maior escândalo político do verão de 2005: u m a


greve de fome de três semanas pelos Heróis, chamada de chanta-
gem pela administração de Putin.
272 ANNAP O L I T K O V S K A Y A

1° de maio
o
Na Rússia, o dia I de maio é tradicionalmente um dia de encontros
e paradas. Neste ano, a oposição estava em grupos de seis ou sete.
Eles se r e u n i r a m na praça T u r g e n e v , m a r c h a r a m pela rua
Miasnitskaia até além dos edifícios do FSB e fizeram u m a manifes-
tação na praça Lubianka na Pedra Solovi, que homenageia as víti-
mas da era comunista. Seus cartazes diziam: "Por liberdade, vida e
democracia! C o n t r a a violação de direitos civis, políticos, sociais,
e c o n ô m i c o s e culturais na Rússia!"
Havia cerca de mil pessoas. N ã o tão ruim, não um desastre. Na
véspera, em Minsk, 14 de nossos cidadãos haviam sido libertados.
Eles haviam viajado até a Bielorrússia para tomar parte de u m a pro-
cissão organizada pela oposição local. ília Iachin, líder da ala jovem
do Iabloko, voltou a M o s c o u esta manhã. De um púlpito ao lado da
Pedra Solovki, ele nos deu sua visão da prisão Lukachenko,* e nos
disse que, em Minsk, os manifestantes ucranianos foram espancados
c o m mais violência do que os russos.
Q u a n d o os d e m o c r a t a s estavam t e r m i n a n d o , a U n i ã o das
Forças de Direita iniciou seu e n c o n t r o ao lado, na praça Lubianka.
As autoridades devem ter gostado de ver que liberais e democratas
não d e i x a m de brigar n e m m e s m o em feriados.
O principal protesto foi organizado pela ala esquerda, que con-
g r e g o u quase nove mil pessoas. A maior parte dos jovens estava lá.
O P a r t i d o C o m u n i s t a , os B o l c h e v i q u e s Nacionais, o R o d i n a , o
Trabalhista na Capital, a U n i ã o de Oficiais Soviéticos e outros
t i n h a m c o n c o r d a d o em realizar u m a manifestação conjunta. Pela
primeira vez em quatro anos, Eduard Limonov conseguiu liderar a
coluna dos Bolcheviques Nacionais, agora que expirou sua senten-
ça suspensa.
I e v g e n i Baranovski, Lev D m i t r i e v e A l e x a n d e r Tchepaliga
c o m e ç a r a m u m a greve de fome na sede do Partido Bolchevique
N a c i o n a l em Moscou. Eles exigem a libertação de seus colegas de
partido q u e ainda estão na prisão.
Em toda a Rússia, a esquerda trouxe para as ruas um milhão e
o
m e i o de manifestantes no I de maio.
f
Na Inguchétia, as comemorações de maio foram marcadas p o
prisões. Musa Ozdoev, o líder da campanha pela demissão do pre-
Á R I 0 R U S S
273
u M D I °

sidente Ziazikov, foi preso durante a noite. No dia anterior, ele esta-
va numa praça o n d e seria realizada u m a manifestação anti-Ziazikov
e foi preso pela polícia. A meia-noite, o juiz R a m a z a n Tutaev foi
levado à sede da polícia em Nazran; ele distribuiu justiça na cela de
detenção, dando assim expressão simbólica da fusão do judiciário
com as instituições de c u m p r i m e n t o da lei em um único mecanis-
mo estatal de repressão.
Tutaev sentenciou O z d o e v a 72 horas de prisão, oficialmente
por'"vandalismo insignificante". Alegou-se falsamente q u e ele q u e -
brou uma banqueta. C o m o d e p u t a d o do Parlamento R e p u b l i c a n o ,
Musa não p o d e ser preso legalmente sem a sanção da Assembléia do
Povo, mas, c o m o esta é difícil à noite, a formalidade foi dispensada.
Na prisão, Musa iniciou i m e d i a t a m e n t e uma greve de fome
para protestar. Ele descobriu q u e seus companheiros de cela esta-
vam presos p o r tentativa coletiva de suicídio.

2 de m a i o

Ozdoev foi libertado inesperadamente um dia antes. A decisão foi


tomada pelo juiz Alikhan Iarijev, do Tribunal Distrital de Nazran.
Ozdoev considerou aquilo um insulto. " E u disse ao j u i z Iarijev",
contou-me Musa, " q u e não iria sair. N ã o precisava de concessões
deles." Porém, os policiais puseram o oposicionista na rua e fecha-
ram b e m a porta atrás dele.
O verdadeiro motivo era, evidentemente, que ele havia entra-
do em um m u n d o que as autoridades queriam manter secreto. Na
cela, ele c o n h e c e u pessoas q u e haviam sido torturadas para q u e
confessassem " v o l u n t a r i a m e n t e " q u e eram organizadoras e partici-
pantes de um ato terrorista contra M u r a t Ziazikov. O z d o e v soube
que a tortura empregada pelos agentes do Ministério do Interior
contra aqueles prisioneiros era tão extrema que a Diretoria do FSB
da Ossétia do N o r t e r e c u s o u - s e a aceitar alguns deles para um
interrogatório posterior devido à gravidade dos seus ferimentos.
O z d o e v t a m b é m c o n h e c e u B e k k h a n Gireiev, c h a m a d o p e l o
Ministério do Interior de "a m e n t e p o r trás do c o m p l ô terrorista".
Suas rótulas estavam quebradas e ele não tinha n e n h u m a u n h a nas
m a
o s . T i n h a m sido arrancadas durante o interrogatório.
274 A N N A POLITKOVSKAYA

" F i q u e i sabendo de coisas nas quais nunca havia acreditado


a n t e s " , c o n t o u Musa, "se n ã o tivesse visto c o m m e u s próprios
olhos. E claro que, depois desse tipo de coisa, essas pessoas e seus
parentes correrão para se j u n t a r à Resistência." O deputado consi-
dera sua desventura totalmente c o m u m .

3 de maio
De Israel, Leonid Nevzlin fez u m a oferta à administração presiden-
cial para vender as ações do G r u p o M e n a t e p na Iukos em troca da
liberdade de Khodorkovski e Lebedev.
P o r i n t e r m é d i o de seus advogados, Khodorkovski, da prisão
Matrosskaia Tichina, recusou a oferta do seu amigo e antigo parcei-
ro de negócios. Khodorkovski declarou que não se considerava cul-
pado e não tinha n e n h u m a intenção de permitir que fosse resgata-
do. Ele lutaria p o r sua liberdade p o r meios legais.
N e v z l i n passou a ter u m a p a r t i c i p a ç ã o c o n t r o l a d o r a na
M e n a t e p depois que Khodorkovski transferiu 59,5% da empresa
para ele para se "concentrar na criação de uma sociedade civil na
Rússia". Essa concentração de esforços foi o início de todos os seus
problemas, pois o Kremlin decidiu que ele era o seu pior inimigo.
Caso ele tivesse pago devidamente a parte do Kremlin, não teria
sofrido n e n h u m dano.
Os acionistas da Iukos anunciaram que não v ê e m razões para
continuar tentando salvar a empresa.
As autoridades estão insinuando ainda mais, na televisão e em
discursos de suas figuras mais proeminentes, que Stalin na realidade
não era tão m a u c o m o disseram. A inauguração de novos m o n u -
m e n t o s a Stalin em r e c o n h e c i m e n t o à sua grande contribuição para
a vitória na Segunda Guerra M u n d i a l é exibida c o m destaque nos
noticiários. A Associação de Direitos H u m a n o s se opôs a essas ten-
tativas de i m p o r a veneração oficial ao Líder. N u m a declaração, ela
comentou:

D e p o i s de t u d o que nosso p o v o ficou sabendo a respeito da


brutalidade sobre-humana e da vileza de Stalin, sua reabilitação
moral e política só p o d e significar que, em nosso país, qualquer
imoralidade política é permitida e qualquer crime c o m e '
u M DIÁRIO RUSSO 275

pelo Estado p o d e ser justificado, se sua e n o r m i d a d e for sufi-


cientemente intensa para e n t o r p e c e r a mente. N u n c a devemos
esquecer que a principal vítima do stalinismo foi o povo russo.

Os democratas perderam o barco novamente. A re-stalinização


é uma realidade.

4 de maio
No Tribunal Distrital de Z a m o s k v o r e t c h i e , em M o s c o u , a juíza
IrinaVasina rejeita um recurso de Svetlana Gubariova. Svetlana foi
refém em Nord-Ost e perdeu na tragédia sua filha de 13 anos e seu
noivo, Sandy Booker, um cidadão americano.
Svetlana exigia que a recusa do procurador a responder às suas
perguntas a respeito de o n d e e q u a n d o sua família m o r r e u deveria
ser considerada ilegal; que as diretivas do Gabinete do Procurador,
recusando-se a rever a prestação de assistência médica d u r a n t e o
cerco de Nord-Ost, deveriam ser consideradas ilegais, e q u e a deci-
são do chefe da investigação, Vladimir Kaltchuk, de não fazer acu-
sações criminais contra os a g e n t e s das unidades de O p e r a ç õ e s
Especiais que realizaram o ataque deveria ser considerada ilegal.
Em voz trêmula, Svetlana leu suas queixas contra o procurador.
Ela observou q u e aqueles q u e m a t a r a m os reféns, inclusive sua
família, receberam prêmios e q u e agora está se tentando de t u d o
para absolvê-los da culpa p o r t e r e m t r a n s f o r m a d o o a u d i t ó r i o
Dubrovka n u m a câmara de gás. A não-responsabilizaçâo dos culpa-
dos conduziu à tragédia de Beslan, ainda maior.
Depois de ouvir p o r cinco minutos, a juíza encerrou abrupta-
mente a audiência. Svetlana esperava criar u m a j u r i s p r u d ê n c i a
fazendo com que o tribunal se pronunciasse sobre a base legal da
J a n e i r a pela qual o inquérito estava sendo conduzido.

9 d e maio

s
aderes de todos os países imagináveis vieram a M o s c o u prestar
^ m e n a g e m a Putin, não à vitória russa na Segunda Guerra M u n -
al- Essa é a interpretação da direita, da esquerda e dos apolíticos.
276 A N N A POLITKOVSKA

Putin seqüestrou esta importante c o m e m o r a ç ã o patriótica


seus próprios fins, para consolidar sua posição c o m o um dos pr
cipais líderes do m u n d o . O m u n d o dos negócios foi forçado a co
tribuir para o F u n d o da Vitória. Todos os funcionários tiveram
pagar uma taxa. N e m mesmo os servidores públicos mais humil
tiveram opção a não ser pagar para c o m e m o r a r a "Vitória de Pu''
U m i d o s o , Pavel Petrovitch S m o l i a n i n o v , escreveu-me
aldeia de P u c h k a r n o i e , o n d e sua m u l h e r é carteira. Ela rece
meros 2.000 rublos [US$80] mensais, mas foi forçada a contribuir.
Nas palavras dele, ela não conseguiu resistir à extorsão porque só
faltam três meses para que se aposente e não queria pôr em risco
sua pensão.

11 de maio
Será estabelecida u m a Câmara Social, c o m p o s t a pelos "melhores
elementos da sociedade civil". Eles serão selecionados por Putin
para criticar decisões das autoridades do Estado, inclusive o próprio
Putin.
O C o m i t ê D i r e t o r do Congresso dos Cidadãos descreveu isso
c o m o " u m a tentativa de manipular a sociedade civil em favor dos
interesses dos ocupantes do poder". Por o u t r o lado, acrescentou o
C o m i t ê , é sensato explorar qualquer o p o r t u n i d a d e para influenciar
as a u t o r i d a d e s "e acreditamos que a p a r t i c i p a ç ã o individual de
membros do Congresso Nacional dos Cidadãos na Câmara Social
deve ser vista c o m o mais uma o p o r t u n i d a d e prática para exercer
essa influência".
Será que eles irão se permitir ser comprados desta maneira?
Pode ter certeza de que sim.

12 de maio
Em Novosibirsk, agentes do FSB p r e n d e r a m dois bolcheviques
nacionais, Nikolai Baluev e Viatcheslav Rusakov. O apartamento de
Baluev foi revistado e os agentes removeram folhetos, edições do
j o r n a l Gcneralnaia Unia, do Partido B o l c h e v i q u e Nacional, vinte
videocassetes e um j a r r o . A m b o s os m e m b r o s do partido estão
sendo acusados de "posse de armas" e " t e r r o r i s m o " .
u M DIÁRIO RUSSO 2"

14 de maio

O "Festival An ti terror". As vítimas de Nord-Ost encenaram um tour


de force denominado " N ã o ao Terror!". Elas c o n t i n u a m a luta por
conta própria, mas c o m p o u c o apoio. A grande sala de concertos do
Cosmos Hotel em M o s c o u está somente c o m m e t a d e da ocupação.
Nos camarotes, estão principalmente as famílias daqueles que
morreram e os sobreviventes de Nord-Ost. De um lado, está uma
delegação de Beslan. O evento é aberto por Tatiana Karpova, a mãe
de Alexander Karpov, m o r t o em Nord-Ost, q u e agora é a força
motriz por trás da associação, defendendo os interesses das pessoas
envolvidas. O tema principal da noite é: o n d e está a preocupação
do Estado c o m as vítimas do terror? O n d e estão as investigações
independentes sobre os atos terroristas? O n d e estão o judiciário
independente e o gabinete do procurador honesto? Está ouvindo,
sr. Presidente?
U m a carta aberta a P u t i n é distribuída. Foi escrita p o r O l e g
Jirov, cidadão holandês cuja m u l h e r m o r r e u t e n t a n d o salvar seu
filho do cerco:

Minha principal razão para escrever esta carta é o n ú m e r o cres-


cente de vítimas de atos de terrorismo e o total desprezo pelos
seus problemas e seu direito a compensação moral e material
por parte da burocracia e das instituições judiciais, inclusive os
tribunais S u p r e m o e Constitucional. A julgar p o r seus veredic-
tos, tudo o que aconteceu na Rússia nos últimos cinco anos de
luta contra o terrorismo está de acordo c o m a Constituição e
as exigências e ações judiciais das vítimas não t ê m justificação
legal. Às vezes, parece que há somente duas partes nesta guer-
ra: as heróicas tropas de Operações Especiais e, no outro lado,
terroristas e separatistas.

Leio a carta de O l e g Jirov juntamente c o m Svetlana Gubariova,


que perdeu a filha e o noivo americano durante o cerco. Seus olhos
Se e
n c h e m de lágrimas enquanto ela tenta conter sua tristeza incon-
solável. Ela não acredita que escrever cartas abertas a Putin vá mudar
qualquer coisa quanto à maneira pela qual as autoridades russas estão
combatendo o terrorismo", quando é Putin o maior instigador de
Políticas em que os que levam a pior são sempre os reféns.
27X A N N A POLITKOVSKAYA

O palco está repleto de rostos conhecidos, partidários insisten-


tes das vítimas do terrorismo: Irina Khakamada, que hoje chefia o
partido Nossa O p ç ã o ; Gary Kasparov, campeão mundial que este
ano deixou de jogar xadrez para trabalhar por mudanças políticas, e
Liudmila Aivar, advogada que há mais de dois anos representa os
interesses das vítimas de Nord-Ost nos tribunais.
Muitas "caras novas" haviam sido convidadas, mas não aparece-
ram. Por exemplo, Alexander Torchin, que lidera a comissão parla-
m e n t a r formada para investigar Beslan. Era ele q u e o pessoal de
Beslan esperava ouvir. Eles acreditam que Torchin conheça todos os
detalhes a respeito do a t a q u e à escola, não p o d e revelá-los por
enquanto, mas contará toda a verdade quando reunir coragem sufi-
ciente. Sua ausência deste festival significa e v i d e n t e m e n t e que ele
ainda não a reuniu.
Putin é incapaz de ver o povo russo c o m o aliado na luta con-
tra o terrorismo. Ele não gosta desse tipo de envolvimento popular
e os lacaios que executam suas ordens m e r a m e n t e i m i t a m o com-
p o r t a m e n t o do presidente.
O Festival de 2005 já é o segundo. Está se t o r n a n d o uma tradi-
ção. N ó s , reféns de um Estado indiferente, só p o d e m o s adivinhar
quantos outros atos terroristas acontecerão em 2006 e esperar que
sejam poucos.

16 de maio
O c o m p o r t a m e n t o p o u c o e d u c a d o dos h o m e n s de O p e r a ç õ e s
Especiais O M O N diante do Tribunal Mestchanski, o n d e o julga-
m e n t o de Khodorkovski e Lebedev está c h e g a n d o ao fim, é um
claro indicador da atitude das autoridades c o m relação à democra-
cia. Eles dissolveram um g r u p o de defensores dos acusados, mas
ignoraram os manifestantes contra a Iukos, que t a m b é m aparece-
ram de algum lugar. No total, 28 pessoas foram presas, c o m os poli-
ciais tirando pessoas da multidão e jogando-as em um ônibus quan-
do t e r m i n o u a manifestação, c o m o se alguém no c o m a n d o tivesse
acabado de acordar. Os manifestantes foram levados para postos da
polícia e lá retidos por sete horas. Entre eles estava Kasparov.
u M DIÁRIO RUSSO 279

21 de maio
Todo ano, desde 1990, a F u n d a ç ã o A n d r e i Sakharov e a Filar-
mônica de Moscou c o m e m o r a m o nascimento de Sakharov reali-
zando um sarau musical no Grande Auditório do Conservatório de
Moscou. Nos últimos 14 anos, o programa tornou-se tradicional: um
concerto clássico c o m discursos breves feitos por importantes figuras
públicas e defensores dos direitos humanos que eram próximos de
Sakharov a respeito dos principais problemas que enfrentamos.
É provável que t e n h a m t e m i d o os discursos, p o r q u e , quando
chegou o m o m e n t o de acertar a décima quinta c o m e m o r a ç ã o este
ano, pela primeira vez, a Filarmônica disse à Fundação q u e o even-
to não seria possível. Sem explicações.
Para m a n t e r intacta a tradição, os admiradores de Sakharov,
recuperando-se da surpresa diante da inesperada manifestação de
democracia gerenciada, realizaram um c o n c e r t o ao ar livre na
pequena praça ao lado do M u s e u e C e n t r o Social Sakharov. O tema
da noite era " E n q u a n t o Corações Ainda Batem pela Vida Honesta".
H o u v e um b o m c o m p a r e c i m e n t o e a n o i t e c o r r e u b e m , à
maneira de Moscou. Trovadores cantaram, poetas recitaram, a can-
tora tchetchena Liza U m a r o v a teve um d e s e m p e n h o perfeito, foi
lida u m a carta de V l a d i m i r , q u e n ã o p ô d e c o m p a r e c e r . Sergei
Kovaliov fez um discurso, assim c o m o Grigori Iavlinski e Vladimir
Lukin, ombudsman da Rússia pelos Direitos H u m a n o s . O concerto
foi apresentado p o r Natella Boltianskaia, u m a excelente composi-
tora, cantora e apresentadora na rádio Eco de M o s c o u , u m a das
ultimas emissoras de rádio livres ainda em operação.
A sensação de derrota, deixada pelo cancelamento do sarau no
conservatório, dissipou-se c o m as primeiras palavras ditas e canta-
das, sendo substituídas p o r u m a grande sensação de solidariedade e
unidade c o m o legado de Sakharov.
Mas os truques ainda não tinham acabado. P e r c e b e n d o que não
haviam conseguido h u m i l h a r o m o v i m e n t o pelos direitos h u m a -
nos, as autoridades voltaram atrás e a Filarmônica c o m e ç o u a a n u n -
C1
a r u m " C o n c e r t o Sakharov" n o Grande A u d i t ó r i o d o Conser-
vatório. Elas m o n t a r a m um concerto paralelo para o qual, natural-
mente, não foram convidados os amigos de Sakharov, n e m os anti-
gos prisioneiros do Gulag, n e m os m e m b r o s do m o v i m e n t o pelos
direitos humanos, n e m os parentes de Sakharov.
280
A N N A POLITKOVSKAYA

As a u t o r i d a d e s p a r e c e m ter d e c i d i d o t e n t a r privatizar
m e s m o a m e m ó r i a de Sakharov. O mais provável é que o obje
fosse jogar areia nos olhos do Ocidente.

22 de maio
E domingo e foram convocadas marchas por toda a nação "pela livre
expressão, contra a censura, a violência e as mentiras na televisão".
Supus que a maioria dos manifestantes seria de membros da
imprensa e que eles iriam liderar o desfile. Na verdade, além dos
jornalistas que c o b r i a m o evento, havia somente dois representan-
tes da imprensa marchando: Ievgenia Albats, que trocou o jornalis-
mo pelo magistério, e eu.
A manifestação fora organizada conjuntamente pelo Iabloko, o
Partido Comunista, a U n i ã o de Forças de Direita, a U n i ã o Russa de
Jornalistas, o G r u p o M o s c o u H e l s i n q u e , o C o n g r e s s o dos Ci-
dadãos, o C o m i t ê 2 0 0 8 , o C o m i t ê pela Defesa dos Moscovitas, o
C o m i t ê pela Defesa dos D i r e i t o s H u m a n o s , a Associação dos
Direitos H u m a n o s , o M o v i m e n t o de Solidariedade e os Bolchevi-
ques Nacionais. L i m o n o v fez um discurso.
Todos se r e u n i r a m no memorial ao A c a d ê m i c o Koroliov, na
avenida dos Cosmonautas, e prosseguiram até o centro de transmis-
são em Ostankino, b l o q u e a n d o a rua.

23 de maio
Os Bolcheviques Nacionais detidos na prisão feminina Petchatniki
pela o c u p a ç ã o , em 14 de d e z e m b r o , de u m a sala no prédio da
administração presidencial, entraram em greve de fome.

24 de maio
A Iukos não mais existe. Seu principal ativo, a Iuganskneftegaz,
comprada c o m auxílio de capital alemão. A holding Iukos-MoscoW
foi liquidada.
u M DIARIO RUSSO 281

28 de maio
Conferência da U n i ã o de Forças de Direita. Nikita Belikh foi elei-
to presidente do c o m i t ê p o l í t i c o e chefe do p a r t i d o . Ele é um
h o m e m do g o v e r n o e v i c e - g o v e r n a d o r da p r o v í n c i a de P e r m ;
assim, a administração conquistou t a m b é m a U n i ã o de Forças de
Direita. Por exemplo, ela d e i x o u prontamente de protestar contra a
abolição das eleições para governadores.
A pedido da administração presidencial, a principal preocupa-
ção da D u m a durante sua sessão de verão t e m sido eliminar os últi-
mos vestígios de democracia na legislação eleitoral. Leis receberam
emendas para garantir q u e as pessoas em desgraça não t e n h a m a
menor chance de c h e g a r ao poder, i n d e p e n d e n t e m e n t e do que
possa pensar o eleitorado. As maiores inovações são:

1. O depósito eleitoral exigido dos partidos políticos foi eleva-


do para U S $ 2 milhões.
2. O q u ó r u m para u m a eleição válida está sendo drasticamente
reduzido para q u e as eleições c o n t i n u e m o c o r r e n d o . O n d e
anteriormente o m í n i m o de c o m p a r e c i m e n t o era de 20%,
agora não mais haverá requisito m í n i m o para eleições locais.
É uma dissimulação completa: m e s m o que 2% do eleitorado
compareçam para votar para prefeito, a eleição será válida.
3. Não haverá mais restrições sobre o n ú m e r o de urnas r e m o -
tas ou p o r t á t e i s n o s centros de votação. As m a q u i n a ç õ e s
envolvendo u r n a s portáteis foram a p r i n c i p a l tática para
fraudes nas últimas eleições, tanto a parlamentar c o m o a p r e -
sidencial. Eles as e n c h e r a m dos votos necessários, longe das
seções eleitorais e, portanto, fora do alcance dos observado-
res. De fato, nas eleições municipais em São Petersburgo, este
sistema mostrou maravilhosamente seu valor, c o m o n ú m e -
ro de cédulas nas urnas remotas superando aquelas dos elei-
tores que votaram pessoalmente nas seções eleitorais.
4. A opção de votação " N e n h u m dos n o m e s anteriores" será
removida das cédulas. R e c e n t e m e n t e , até 2 0 % dos votos
apurados foram para " N e n h u m dos n o m e s anteriores", o
que irritou a administração presidencial. Agora não haverá
como registrar um voto formal de protesto nas eleições.
282 A N N A POLITKOVSKA 1

5. As associações públicas não p o d e m mais fornecer observa-


dores. N ã o serão permitidos observadores independentes
s o m e n t e aqueles indicados p o r partidos políticos. Obser-
vadores internacionais somente serão permitidos se convida-
dos pelas autoridades do Estado. A administração presiden-
cial decidirá quais observadores c o n v i d a r e quais mantei
afastados. M

Será que a administração está desesperadamente amedrontada


c o m as eleições, m e s m o quando elas são tão "gerenciadas" quanto
as mais recentes? Ou ela está apenas cansada de se preocupar com a
possibilidade de suas fraudes não darem certo e quer impor condi-
ções ainda mais favoráveis a si mesma?
Todas essas emendas presidenciais adotadas pela D u m a ainda
não bastam para D m i t r i Mevdvedev, diretor da administração presi-
dencial, q u e disse aos representantes das comissões regionais eleito-
rais que as eleições eram uma "ameaça à estabilidade" na Rússia
Putin não censurou o diretor da sua administração.

Em M o s c o u , o Partido Comunista, o Partido Bolchevique Nacio


nal, o Iabloko e o R o d i n a realizaram u m a manifestação conjunta de
protesto na praça da Revolução em apoio aos prisioneiros p o l i t i
cos. Eles estão mostrando solidariedade para c o m as m u l h e r e s e m
greve de f o m e e e x i g i n d o q u e elas n ã o sejam mantidas p r e s a s
enquanto o caso de 14 de dezembro estiver pendente. Elas querem
que cesse a perseguição à oposição por razões políticas e exigem
uma anistia mais ampla para os prisioneiros sob custódia a c u s a d o s
de infrações banais à lei.
As autoridades não se importam.

30 de maio
As 10 da m a n h ã , três partidários de Limonov que estavam em g r e v
de fome na sede d o Partido Bolchevique Nacional (PBN) s a í r a m e
b l o q u e a r a m a entrada para a praça Vermelha. Eles se prenderam
entre os portões da arcada, perto do M u s e u Histórico. Os m a n i f e S "
tantes vestiam camisetas com a legenda "Greve de fome de 29 dias
e exibiam fotos dos prisioneiros políticos do P B N . Eles exigiam su
JJM DIÁRIO RUSSO 283

libertação e u m a resposta do Estado às mulheres em greve de fome


na prisão feminina de Petchatniki.
E também distribuíam panfletos c o m a seguinte declaração:

Liberdade ou M o r t e ! A quarta semana da nossa greve de fome


c h e g o u ao fim na sede do P a r t i d o B o l c h e v i q u e N a c i o n a l .
Vimos, mais u m a vez, que as autoridades de Estado russas são
indiferentes à vida e à segurança dos seus cidadãos. N ã o houve
n e n h u m a reação à greve de fome p o r parte das autoridades. O
que mais se p o d e esperar de pessoas que, sem hesitação, enve-
nenaram cidadãos do seu país c o m gás em Nord-Ost, atiraram
de tanques contra crianças reféns em Beslan, privam os idosos
de seus benefícios, aprisionam inocentes, expressam admiração
pelo sanguinário ditador Karimov [do Uzbequistão] e decre-
tam u m a insultuosa anistia de meros duzentos prisioneiros para
marcar o sexagésimo aniversário da vitória na Segunda Guerra
Mundial? N ó s , q u e fazemos u m a greve de fome, somos o b r i -
gados a sair às ruas para expressar nosso protesto diante dessa
atitude h o m i c i d a para c o m os cidadãos da Rússia. Dizemos não
ao p o d e r de autoridades impiedosas e carniceiros do Estado
policial! Longa Vida à Rússia Livre!

O p r o t e s t o d u r o u p o u c o mais de m e i a h o r a . As 10:35, os
Bolcheviques N a c i o n a i s foram presos p o r agentes d o Serviço
Federal de Segurança e pagaram u m a multa de 500 rublos [US$20]
por " u m p i q u e t e não autorizado na vizinhança da residência do
presidente".

7 de j u n h o

Na Ossétia do N o r t e , h o u v e uma súbita transferência de poder. O


presidente Alexander Dzasokhov, que n i n g u é m conseguia agüentar
mais, foi rebaixado à posição de senador e m e m b r o do Soviet da
Federação, representando a Ossétia do N o r t e . Ele é totalmente res-
ponsável pela m o r t e de centenas de crianças e adultos em Beslan e
deveria ser julgado. Porém, Putin não m a n d a seus aliados a julga-
mento. Ele substituiu Dzasokhov p o r Teimuraz Mamsurov, u m a
indicação antiterrorista". Mamsurov foi a n t e r i o r m e n t e líder do
Parlamento da Ossétia do N o r t e . Dois dos seus filhos foram reféns
284 A N N A HOLITKOVSKAYA

em Beslan, mas sobreviveram. Porém, t u d o o q u e ele fez posterior


m e n t e foi e n c o b r i r os atos das autoridades.
Em sua fala do t r o n o aos deputados do Parlamento, Mamsurov
declarou: "Procurarei ser merecedor da confiança do presidente"
Os eleitos não precisam mais aspirar à conquista da confiança do
povo.

16 de junho
Representantes da oposição, à esquerda e à direita, assinaram em
Iaroslavl um d o c u m e n t o de aliança, provocando u m a das hoje raras
aparições públicas de Iavlinski. Ele parecia fatigado e deprimido.
Ele c o n t o u aos jornalistas: "Sou convidado periodicamente a
aparecer na televisão apenas para mostrar ao p ú b l i c o que ainda
estou vivo. Ficam satisfeitos em saber disso, mas o interesse pára por
aí. O que fazer nessas circunstâncias? Apenas pedir às autoridades
que lhe c o n c e d a m u m a certa porcentagem dos votos nas eleições.
E c o m o u m a prova esportiva preparada, em q u e o resultado não
reflete a realidade." Atualmente Iavlinski leciona na Escola Superior
de E c o n o m i a em M o s c o u . Ele tem alunos pós-graduados, escreve
livros e faz palestras no exterior.
Nikita B e l i k h , o novo líder da U n i ã o de Forças de Direita,
parece estar p e d i n d o que o Kremlin não persiga seu partido, mas o
veja c o m o útil. " S o m o s uma oposição construtiva. N u n c a dissemos
que somos leais às autoridades, mas ao m e s m o t e m p o não acredita-
mos em oposição pela oposição."
Suas palavras são completamente sem vida. Existe algum inte-
resse em fazer esforços para ressuscitar esses velhos democratas
meramente p o r q u e são rostos conhecidos? Será que eles são capa-
zes de fazer alguma coisa pelo país c o m o líderes democráticos ou
devemos simplesmente aceitar a maneira pela qual a política esta
evoluindo? Se formos realistas, n e n h u m dos m o v i m e n t o s ou parti-
dos no espectro d e m o c r á t i c o m e r e c e o a p o i o de u m a pessoa
honesta que reluta em comprometer sua consciência.
Na ausência de políticas adultas, um papel cada vez maior e
d e s e m p e n h a d o pela política jovem, que não fica se perguntando
qual seria seu papel ou a quem deveria apoiar. Ela não se importa
R I R U S S 2 8 5
ü M DIÁ ° °

n i o que Iavlinski pensa e provavelmente n u n c a ouviu falar de


jjikita Belikh.

20 de j u n h o

já se passaram seis meses desde os horrores em massa cometidos


pela polícia em Blagoveschensk, Baskhiria e nas aldeias vizinhas em
10-14 de dezembro de 2004. E quase dois meses, desde a publica-
ção de instruções secretas e i n c o n s t i t u c i o n a i s preparadas pelo
Ministério do I n t e r i o r da Rússia sobre a p e r m i s s ã o para t o m a r
medidas violentas c o n t r a cidadãos russos, instruções estas muito
adequadas à violência em Blagoveschensk. Agora, finalmente, foi
formada em M o s c o u u m a comissão sob os auspícios do ombudsman
para Direitos H u m a n o s para discutir para o n d e vamos.
Uma reunião dessa comissão é a única reação oficial das a u t o -
ridades do Estado a toda u m a série de "limpezas" semelhantes às de
Blagoveschensk q u e ocorreram, e ainda estão o c o r r e n d o , em m u i -
tos lugares, c o m o Bejetsk, Nefteigansk, a aldeia de Rojdestveno, na
província deTver, e a aldeia de Ivanovskoie, na região de Stavropol.
A extraordinária b r u t a l i d a d e dos serviços de segurança na
Rússia nos últimos seis meses não gerou n e n h u m protesto público
amplo, nem teve repercussões sociais. O presidente continua a se
considerar acima da defesa da Constituição, sem se desculpar n e m
mesmo u m a vez às centenas de pessoas " e x p u r g a d a s " , feridas e
espancadas, p o r sua incapacidade para protegê-las. O Parlamento
esta no bolso do presidente e não dedicou sequer uma sessão aos
extraordinários eventos em Blagoveschensk e suas conseqüências.
O procurador-geral não exigiu publicamente a imediata anulação
das instruções inconstitucionais do Ministério do Interior.
Agora, em 20 de j u n h o , o ombudsman Vladimir Lukin abriu a
pnmeira sessão da comissão. O procurador-geral foi representado
P°r Sergei Gerasimov, vice-procurador-geral do Distrito Federal
de Privoljie. E n t r e os representantes do M i n i s t é r i o do Interior,
^tavam o vice-chefe do D e p a r t a m e n t o de M o n i t o r a m e n t o
r
ganizacional, G e n n a d i Blinov (que foi q u e m mais falou por eles)
^Vladimir Vladimirov, do departamento local do Serviço Federal
e
Controle de Drogas. C o m o a maioria dos policiais presentes, ele
n a d
a tinha a dizer.
286 ANNA POLITKOVSICAYA

Os trabalhos toram iniciados. Lev Ponomariov, da A « n ^ - -


üsuciaç^Q
de Direitos H u m a n o s , m e m b r o da extra-oficial Comissão Públi
para Investigação dos E v e n t o s em Blagoveschensk, pergunto
" Q u a l é a atual situação dos processos criminais ligados aos event
em Blagoveschensk?"
Sergei G e r a s i m o v : " 0 i n q u é r i t o foi concluído. Todos os acusa
dos foram informados das suas constatações. Ramazanov, o chefe
do G a b i n e t e de Assuntos Internos de Blagoveschensk, leu até agora
22 dos 50 volumes. Nossa previsão é de que, se ele continuar a ler
ao r i t m o atual, precisará de cerca de mais um mês. O caso será
então e n c a m i n h a d o ao tribunal."
( Q u a n t o mais tempo ele passar lendo as evidências, menos elas
estarão expostas aos olhos do público. O Gabinete do Procurador
não irá pressionar Ramazanov.)
P o n o m a r i o v : "Alguns funcionários do Ministério do Interior
de B a c h k i r i a foram inicialmente suspensos, mas agora já foram
reintegrados. Por quê?"
Gerasimov: "Eles entraram c o m recursos, dizendo que foram
suspensos injustamente e o tribunal recusou-se a confirmar suas
s u s p e n s õ e s . Em m i n h a o p i n i ã o , o M i n i s t é r i o do Interior de
Bachkiria agiu de forma incorreta. Se funcionários do Gabinete do
P r o c u r a d o r estavam envolvidos c o m algo desse tipo, seria o fim de
seus empregos."
V e r o n i k a C h a k h o v a ( e x - e d i t o r a do j o r n a l Zerkalo, de
Blagoveschensk, demitida p o r ter feito um relato verdadeiro dos
eventos de dezembro): "Mas nosso procurador Izmagilov recusou-
se simplesmente a aceitar declarações das vítimas! Ele não foi puni-
do, m e r a m e n t e desapareceu de vista."
G e r a s i m o v : "Alguns dias depois do evento ele redigiu unia
declaração e foi afastado de seu posto."
C h a k h o v a : "É essa a extensão da punição dele?"
Gerasimov: "Sim."
C h a k h o v a : "Bem, agora ele se candidatou a juiz. O Gabinete
do P r o c u r a d o r passou u m a referência sobre ele ao C o l é g i o
Qualificação de Juízes?"
Gerasimov (constrangido e inseguro c o m a resposta que cia
" N ã o sei. É possível que tenha sido enviada alguma coisa.
DIÁRIO RUSSO
287
Ü M

Sergei Kovaliov (o primeiro ombudsman russo, ex-deputado da


)uma. u m d e m o c r a t a seguro, dissidente n o p e r í o d o soviético,
camarada em armas de Andrei Sakharov): "Mas conte para m i n i ,
ninguém está sequer levantando a questão de ele ter infringido a lei
durante o desempenho de seus deveres?"
Gerasimov:"A demissão é a sanção mais severa. N ã o foi d e s c o -
berta n e n h u m a prova de atividade criminosa."
Vladimir Lukin, ombudsman: " N ã o obstante, este caso t e m tido
repercussões e os problemas c o n t i n u a m . Irregularidades do m e s m o
tipo têm o c o r r i d o desde Blagoveschensk na província de T v e r e há
suspeitas de que na noite de 11-12 de j u n h o um fato semelhante
ocorreu no distrito de Stavropol. C o m o p o d e m o s ter certeza de
que este tipo de coisa acabou? Talvez o fato de os culpados escapa-
rem com total impunidade seja sua causa?"
Gerasimov: " O Ministério d o Interior não pode i m p o r o r d e m
no seu p r ó p r i o departamento. O Ministro do Interior deve ser o
dono de sua casa - ele deve b a t e r o p u n h o na mesa. N e n h u m
grupo de procuradores conseguirá forçar a polícia a colocar a casa
em ordem."
Liudmila Alexeieva (presidente do G r u p o Helsinki de M o s c o u
e membro da Comissão Presidencial para o Desenvolvimento da
Sociedade Civil e dos Direitos H u m a n o s ) : "Inicialmente, q u a n d o
pegamos este caso, p e n s a m o s q u e se tratasse s i m p l e s m e n t e de
gerenciamento incompetente p o r parte do Ministério do Interior
local, mas agora sabemos da O r d e m n° 870DSP. A polícia estava
executando esta ordem. Estamos fazendo campanha pela anulação
da O r d e m 870, mas há outras o r d e n s departamentais relativas a
'pontos de filtração'?"
(As O r d e n s n° 174 D S P e n° 870 DSP, de 10 de setembro de
*W2, assinadas por Bóris Grizlov, na época ministro do Interior, e
0
Apêndice n° 12 à O r d e m n° 870 D S P ("Instruções sobre P l a -
ne
J a m e n t o e Preparação de Forças e Recursos em Circunstâncias
mergenciais") estabeleciam c o m o os funcionários do Ministério
f ° I n t e r i o r d e v e m reagir e m " C i r c u n s t â n c i a s E m e r g e n c i a i s " ,
Situações Emergenciais" e "Estado de Emergência". Eles i n t r o d u -
zem o conceito de "pontos de filtração" e " g r u p o de filtração". De
a c
o r d o c o m esses d o c u m e n t o s , n ã o só p o d e m o s ser espancados
S e
mpr q e u e policial o u agente d o O M O N achar isso a d e q u a -
u m
288 A N N A POLITKOVSKAYA

do, mas t a m b é m p o d e m o s ser submetidos a detenção arbitrária


enviados a um p o n t o de filtração e, caso resistamos, eles também
p o d e m " e x t e r m i n a r criminosos".
Esses d o c u m e n t o s parecem conceder a um policial o direito de
considerar qualquer pessoa um criminoso. H o j e essas ordens, que
equivalem a u m a abolição da presunção de inocência, p o d e m ser
encontradas em todos os postos policiais.)
Gennadi Blinov: " N o que diz respeito à criação do chamado
'ponto de filtração' em Blagoveschensk, aquilo foi apenas incompe-
tência por parte do encarregado local. A O r d e m n° 870 foi aprovada
somente para proteger a população e nosso território em caso de
estado de emergência. Ela se aplica somente a essas circunstâncias."
O l e g O r l o v (vice-presidente do C e n t r o M e m o r i a l dos Direitos
H u m a n o s ) : " M a s na O r d e m n° 870 não é feita referência somente
a um estado de emergência, mas t a m b é m a circunstâncias e situa-
ções de emergência. C o m o é regulada a criação de pontos de filtra-
ção n u m e s t a d o de emergência? E o q u e são 'circunstâncias
emergenciais'? Estes conceitos não existem em n e n h u m lugar em
nossa legislação."
Binov: "O Ministério do Interior t e m mais u m a semana para
responder. N ã o vamos nos apressar demais. U m a grande equipe de
advogados está trabalhando nisso.Vamos esperar."
(Sobre o que estamos falando? No corredor, Sergei Gerasimov,
que estava encarregado da investigação criminal de Blagoveschensk,
admitiu abertamente que a O r d e m n° 870 não havia sido enviada a
ele porque era secreta. Esta ordem, de acordo c o m a qual os cidadãos
eram agrupados n u m p o n t o de filtração, espancados, torturados e
envenenados p o r gás, pode de fato ser fida em muitos websites de
direitos h u m a n o s — Memorial, T h e People's Verdict, a Associação de
Direitos H u m a n o s . Ela foi traduzida para o inglês e está disponível
para organizações internacionais de direitos humanos. De que outra
maneira ela p o d e ser trazida à atenção do vice-procurador-geral?)
Mara Poliakova (presidente da Comissão Legal Independente,
q u e analisou a legalidade da O r d e m n° 8 7 0 ) : "O G a b i n e t e do
Procurador-geral pretende fazer objeção ao fato de a O r d e m n
870 e suas Instruções serem ilegais?"
B l i n o v : "A O r d e m n° 870 foi analisada e aprovada pelo
Ministério da Justiça. Ela é legítima."
M DIÁRIO RUSSO 289

Sergei Chimovolos (defensor dos direitos humanos de Nijni


o v g o r o d ) : " 0 uso de máscaras p o r agentes do O M O N durante as
ipezas' torna impossível trazê-los à justiça. Somente aqueles q u e
ão usavam máscaras foram acusados no caso Blagoveschensk.
orno procedemos?"
Gerasimov: "É impossível agir completamente sem máscaras;
as são essenciais em casos de guarda de criminosos particular-
ente perigosos e captura de bandidos armados durante u m a g u e r -
de guerrilha. C e r t a m e n t e o uso de máscaras deve ser r e g u l a m e n -
do, o que não é o caso no presente. Por enquanto, os agentes do
M O N na Bakhiria escaparam à punição. A posição do Gabinete
o Procurador-geral é de que, o n d e são usadas máscaras, os agentes
evem usar distintivos n u m e r a d o s ; d e p o i s de B l a g o v e s c h e n s k ,
oube-se q u e a polícia de Bakhiria não usava n e n h u m distintivo e
mesmo vale para muitas outras regiões."
IrinaVerchinina (ombudsman de Direitos H u m a n o s para a p r o -
'ncia de Kaliningrad): "Vocês irão rever a situação legal relativa ao
o de máscaras? Há escândalos constantes, mas nada é feito a este
speito."
N ã o h o u v e resposta a essa pergunta.
Sergei Kovaliov:"Não estamos falando apenas dos dez fiincio-
ários acusados em conexão c o m Blagoveschensk, n e m s o m e n t e
o Ministério do Interior da Baskhiria. A questão não é essa — a
tuação é m u i t o pior. De o n d e v i e r a m esses pontos de filtração? Da
chetchênia. Esse tipo de coisa v e m acontecendo lá há mais de dez
os. Eles v ê m sofrendo de p o n t o s de filtração e de um r e g i m e
•íel sob um estado de emergência, e m b o r a este nunca tenha sido
ormalmente declarado. Isso simplesmente cria condições para a
rutalidade. Estamos falando de pessoas de nível muito elevado. Na
erdade, precisamos perguntar se esta não é uma política do Estado,
ê m o que seja."

^ reuniões subseqüentes da Comissão, aqueles a q u e m Lukin se


e n u c o m o "estranhos" foram banidos. Entre eles, estavam vítimas
limpeza" de Blagoveschensk e vários defensores dos direitos
Ur
n a n o s e jornalistas. Na r e u n i ã o seguinte, um ato de suicídio
«letivo p o r prisioneiros na colônia penal de Lgov estava em dis-
290 A N N A POMTKüVSKAYA

cussào q u a n d o , ao mesmo tempo, cerca de mil prisioneiros corta


ram a veia em sinal de protesto contra as torturas às quais estavam
sendo submetidos pelos guardas, mas a discussão foi restrita a o " p e s

soai i n t e r n o " . Pessoal interno, para o defensor oficial de direito


h u m a n o s da Rússia, são autoridades do Ministério da Justiça q u e

dirigem as prisões e colônias penais da Rússia.

29 de junho
No D a g u e s t ã o , G e i d e r J e m a l foi p r e s o . Ele é o presidente do
C o m i t ê Islâmico da Rússia, um dos mais respeitados filósofos islâ-
m i c o s dos dias de hoje. Ele m o r a em M o s c o u . Jemal foi a
Makhatchkala a convite do C o n s e l h o Religioso de Muçulmanos
do Daguestão, u m a instituição inteiramente oficial. Foi preso por
agentes da Diretoria de Makhatchkala do FSB, j u n t a m e n t e com
outras 12 pessoas que haviam se r e u n i d o para discutir c o m o man-
ter a paz na república, onde u m a guerra está fermentando.
A prisão de pessoas desarmadas foi feita de forma muito agres-
siva p o r agentes armados. Jemal foi insultado e espancado e depois
levado ao C e n t r o do Daguestão para a Luta Contra o Terrorismo.
A seguir, todos foram libertados, exceto Abbas Kebedov, mas esse
c o m p o r t a m e n t o é inacreditável. Jemal é u m a figura séria demais no
m u n d o islâmico para ser tratado desta forma.
A razão oficialmente declarada foi suspeita de simpatia pelo
wahhabismo, c o m o qual Jemal não t e m ligação nenhuma. Aquilo
que hoje c h a m a m o s de wahhabismo é na verdade o culto a Basaev.

30 de junho
No Tribunal Distrital de Nikulin, em M o s c o u , c o m e ç o u o julga-
m e n t o dos bolcheviques nacionais q u e ocuparam uma sala no pré-
dio da administração presidencial em 14 de dezembro de 2004. Eles
foram c o n d u z i d o s ao r e c i n t o a l g e m a d o s uns aos outros c o m o
escravos.
O j u l g a m e n t o não tem precedentes. Em primeiro lugar, há 39
acusados e tentar achar uma sala de tribunal suficientemente gran-
de c o m gaiolas para todos é impossível. As gaiolas são uma caracte-
rística invariável dos julgamentos de hoje na Rússia. Em segundo
DIARIO RUSSO 291
u M

as autoridades do Estado estão se esforçando ao m á x i m o para


z a r u e u l a m e n t o é
e nfa" 1 ° J g político.
Inicialmente eles eram acusados de "tomada violenta de p o d e r
Federação Russa" (artigo 278 do C ó d i g o Penal). A acusação foi
s t e r i o r m e n t e reduzida para " o r g a n i z a r d e s o r d e m em massa"
(artigo 212, Parte 2), que p o d e significar de três a oito anos de p r i -
são O processo está sendo tratado especialmente pelo procurador-
geral da Rússia, Vladimir Ustinov, e a investigação foi realizada p o r
unia equipe do Gabinete do P r o c u r a d o r de M o s c o u (cujo líder,
Ievgeni Alimov, foi dispensado em j u l h o devido a uma investigação
corrupta diferente). Por mais de seis meses, 39 dos quarenta b o l c h e -
viques nacionais (Ivan Petrov, de 15 anos, foi libertado) h a v i a m
ficado detidos aguardando j u l g a m e n t o .
Por volta de meio-dia, q u a n d o deveria começar a audiência, o
prédio do tribunal em M i t c h u r i n Prospekt foi cercado por cordões
de segurança concêntricos. Havia agentes do O M O N p o r toda
parte, policiais chegando, cães, pessoas em uniformes de camufla-
gem e agentes em trajes civis p o r todos os cantos. Estavam gravan-
do abertamente em vídeo as pessoas q u e haviam se reunido e até
mesmo olhando por sobre os o m b r o s dos jornalistas para ler o q u e
estavam anotando. N ã o havia liberdade c o m o tinha havido no j u l -
gamento de Khodorkovski. Os bolcheviques nacionais não foram
trazidos ao tribunal em carros elegantes c o m vidros escurecidos e
os pais não p u d e r a m ver c o m o estavam seus filhos.
Os acusados foram transportados em vans sem janelas, que entra-
ram diretamente no subsolo do prédio. Subiram por escadas internas
ate o segundo andar, que estava completamente fechado para qual-
quer pessoa que não estivesse envolvida no julgamento. Para c o m p l e -
tar essas medidas extraordinárias, foram colocados policiais a cada 10
metros nos cordões externos, c o m o se fosse esperada a presença de
Putin. A única pessoa que apareceu foi Eduard Limonov, o líder do
ar
t i d o Bolchevique Nacional, embora n e m ele nem os pais p u d e s -
sem entrar ou mesmo chegar perto do prédio.
Sinto muito, mas foi o que o j u i z decidiu", explicava amiga-
velmente o c o r o n e l e n c a r r e g a d o dos c o r d õ e s . O j u i z é Alexei
-hikh.
inov, que foi trazido do Tribunal Distrital d e T v e r . A s oitivas
^ ei iam ter lugar lá, onde ocorreu a alegada infração, mas o tribu-
nao suficientemente grande.
e
292 ANNA POLITKOV S K A Y A

É preciso dizer que acorrentar e engaiolar pessoas ainda -


condenadas parece um exagero; n e m m e s m o terroristas e estupra
dores em série são trazidos acorrentados ao tribunal. C o m o pode
mos ver, aqueles a q u e m as autoridades t e m e m realmente são o
dissidentes.
Neste primeiro dia, com o público excluído, a defesa tenta con
seguir a libertação dos jovens acusados sob fiança, n e m que seja ape
nas para os três garotos menores de idade e as nove meninas. Isso não
parece radical, u m a vez que o dano de que eles são acusados (um sofá
rasgado, um cofre quebrado e uma porta) é mínimo. Mesmo que seja
acrescentada a acusação de realizar u m a manifestação não autorizada
esta é u m a infração administrativa e não um crime.
P o r é m , o j u i z C h i k h a n o v destaca a gravidade da ofensa e as
preocupações às quais ela dá origem. Ele anunciará sua decisão de
libertar ou não às 19:00, depois que as pessoas envolvidas em outros
processos t e n h a m deixado o prédio, para o caso de os bolcheviques
nacionais ainda em liberdade causarem agitação. Esta é uma clara
indicação de q u e a decisão será negativa.
O j u i z n ã o precisava ficar tão ansioso c o m a possibilidade de
distúrbios. No fim da tarde, c o m a chuva caindo, somente perma-
n e c e m os partidários mais teimosos; mães e pais silenciosos e tristes
encolhidos sob seus guarda-chuvas, cujas únicas armas são as lágri-
mas. Os c o m p a n h e i r o s de partido foram t o m a r chá e Limonov
t a m b é m se foi. N ã o é próprio para líderes permanecer na chuva. A
decisão é anunciada: eles continuarão presos.
As características deste j u l g a m e n t o nos mostram como as auto-
ridades estão c o m m e d o de o p o n e n t e s políticos comprometidos
que acreditam em enfrentar Putin.
Elas precisam de outro julgamento-espetáculo. Primeiro, havia a
Iukos, agora estão tentando esmagar os dissidentes, que é o papel atri-
buído hoje aos bolcheviques nacionais. Seus slogans são: "Parem a
guerra na T c h e t c h ê n i a " , "Abaixo este governo anti-social", "Fora
Putin!" E o que é pior, eles não atacam outras pessoas em portões,
eles lêem livros e t ê m idéias. O que torna sua infração mais odiosa e
que as autoridades não conseguiram quebrá-los, apesar de tê-los
sujeitado a todos os métodos nos quais nossos órgãos de segurança se
destacam em locais de detenção. As autoridades nada conseguiram-
n e n h u m deles pediu clemência, n e n h u m se confessou culpado.
; M p . Á R l O RUSSO 293

Gary Kasparov agora é o líder da Frente Democrática Unida


infelizmente, até agora não conseguiu unir muitos democratas
U,
^ ni das p o u c a s almas de igual p e n s a m e n t o q u e c o s t u m a v a m
União de Forças de Direita. Ele continua suas viagens pelo
ar a

ul da Rússia. Em todos os lugares, ele e sua equipe não conseguem


acomodações em hotéis, não p o d e m c o m e r em restaurantes e não
conseguem salas para suas reuniões. Os proprietários fazem m e n ç ã o
a uma proibição — obviamente apenas verbal — das autoridades do
Distrito Federal Sul. "Vocês voltarão a M o s c o u , mas nós temos de
ficar aqui. Se concordarmos em aceitá-los, é provável que fechem
nosso hotel e nosso restaurante."
Por que Kasparov desperta tanto alarme? Ele só falou c o m as
pessoas, lançando sementes de dúvida a respeito do " b o m P u t i n " na
mente de algumas. Foi só o que ele fez. Sua perseguição é obra do
"bom" D m i t r i Kozak, representante político de P u t i n no sul da
Rússia, um suposto democrata. Muitas pessoas, até mesmo nas filei-
ras democráticas, v ê e m Kozak c o m o a m e l h o r esperança para a
democracia depois de Putin, embora ele pareça b o m somente devi-
do à total falta de alternativas. No governo, a maioria é indolente e
covarde. As pessoas sentiram pena q u a n d o ele foi n o m e a d o repre-
sentante presidencial no Sul, p o r q u e o cargo era considerado um
beco sem saída, mas Kozak mostrou q u e não era covarde. Ele esta-
,va preparado para falar c o m as pessoas de suas insatisfações. Ele as
ajudava a desabafar.
Aos poucos, à medida que passava de um ato de desobediência
civil para outro nas cidades do Sul, Kozak c o m e ç o u a ganhar p o p u -
laridade em outras partes da Rússia. P o r é m , sua verdadeira estatura
Política é vista nesta mesquinha perseguição a Kasparov. Ele está
completamente do lado de Putin.

10
de julho
m
Makhatchkala, no Daguestão, d e z pessoas foram m o r t a s no
a e
duas outras m o r r e r a m no hospital q u a n d o quase sessenta
r u t a S a
Int da 102 Brigada de Operações Especiais do Ministério do
erior sofreram um atentado a b o m b a na frente de u m a casa de
°s a qual iam às sextas-feiras. A b o m b a de fabricação caseira
294
A N N A POLITKOVSKAYA

tinha p o d e r explosivo equivalente a 7 quilos de T N T . Foi o


ato terrorista no Daguestão no último mês.

6 de j u l h o

Em M o s c o u , os Heróis da Rússia entraram em greve de fome. Isso


é inédito para um grupo tradicionalmente considerado o principal
esteio de qualquer regime que ocupa o Kremlin. Eles deveriam ser
heróis para os líderes do Estado, mas alguma coisa saiu errada.
C i n c o Heróis, representando 204 Heróis da Rússia, da União
Soviética e do Trabalhismo Socialista, decidiram que não têm outra
maneira de ajudar a melhorar as relações entre a população russa e
as autoridades do Estado a não ser sujeitando-se a uma automorti-
ficação pública. Eles estão fazendo greve de fome na rua Smolni,
nos arredores de Moscou.
Cada grevista representa um g r u p o de Heróis: um deles repre-
senta aqueles q u e receberam duas vezes o título de Herói da União
Soviética; outro, os cosmonautas da Cidade dos Astros; um terceiro,
os Heróis do Trabalhismo Socialista e os Cavaleiros da O r d e m do
Trabalho Glorioso; um quarto, aqueles que são, ao mesmo tempo,
Heróis da U n i ã o Soviética e da Federação Russa e assim por diante.
Os H e r ó i s p e r d e r a m a paciência. Em 13 de j u n h o , a D u m a
adotou, na primeira leitura, novas emendas antibeneficios, desta vez
relativas aos H e r ó i s . As emendas p r o p õ e m u m a redução não da
renda, mas de sinais de respeito do Estado perante aqueles que o
serviram de forma excepcional; por exemplo, daqui em diante os
Heróis não mais serão enterrados c o m honras: nada de guarda d
honra do Comissariado Militar, n e m salva de artilharia, a menos
que o Estado pague por elas.
Isso representa o mais alto nível de insanidade burocrática. O
Heróis são incensados e sempre s u p u s e r a m q u e o Estado tinha
interesse em honrá-los. Em abril, e n q u a n t o essas emendas estavam
t r a m i t a n d o pela m á q u i n a do g o v e r n o , os H e r ó i s escreveram
Putin, Fradkov e Grizlov. Duzentos e quatro deles pediram que
autoridades recebessem seus representantes, para ouvi-los e com-
preender q u e eles sentiam que aquelas emendas eram humilhantes
e inaceitáveis.
O RUSSO 295

[slão h o u v e reação n e n h u m a , n e m u m vislumbre d e c o m -


ão Os burocratas da administração presidencial, da D u m a e
r
verno cuspiram no rosto deles. Os Heróis então pensaram
H
° ^se aquela era a resposta q u e t i n h a m recebido, qual seria a res-
um
posta para °idadão c o m u m ? Eles decidiram entrar e m greve d e
fome para "atrair atenção para o problema do diálogo entre as a u t o -
ridades do Estado e a sociedade".
"Consideramos que este é o m o m e n t o para iniciar um protes-
to e decidimos ser as 'fagulhas q u e iniciam uma c h a m a ' " , dizValeri
Burkov. "Para que a sociedade siga nossa liderança e seja aprovada
uma lei assegurando que a voz dos cidadãos seja ouvida q u a n d o as
instituições do Estado estiverem preparando leis. Nossa greve de
fome pretende provocar um a m p l o debate público de c o m o são
tomadas as decisões políticas, do direito do cidadão ao seu p r ó p r i o
ponto de vista e de c o m o o Estado deve ser governado. Caso c o n -
trário, a Constituição russa é apenas outra Declaração dos Direitos
Humanos idealista. O n d e está a elite intelectual? O n d e estão os
escritores? Os membros do C o n s e l h o Presidencial? Vamos ouvir o
que eles têm a dizer sobre as questões que nos levaram a agir."

de julho

Atos terroristas em L o n d r e s , e n q u a n t o o G8 se r e ú n e em G l e -
neagles, perto de Glasgow. P u t i n está lá. Feridos e sangue são m o s -
trados na nossa televisão, mas é m e l h o r não ouvir os comentários:
pouca simpatia e muita satisfação maliciosa. E c o m o se nos agra-
se que os britânicos sofram o m e s m o que nós. Eles são particu-
larmente cuidadosos para insinuar q u e a Grã-Bretanha está agora
Preparada para extraditar A k h m e d Zakaev para a Rússia, e m b o r a o
governo britânico nada tenha dito a este respeito.
^ O que há conosco? Estamos sempre prontos para exultar dian-
g do sofrimento dos outros e nunca preparados para ser bondosos.
m
todo o m u n d o , somos considerados pessoas boas e justas. N ã o
S l n t o i s s
o n o presente.
Em M o s c o u , os H e r ó i s c o n t i n u a m a greve de f o m e , mas
u
m canal de televisão noticia o fato.
M
arina K h o d o r k o v s k a i a , m ã e d e M i k h a i l K h o d o r k o v s k i ,
entre
g ° u a nossa Novaya gazeta u m a carta aberta ao c o s m o n a u t a
296 A N N A POLITKOVSKAYA

G e o r g i Gretchko, que assinou u m a n o t ó r i a carta aberta de cin


qüenta atores, escritores, produtores e cosmonautas — pessoas bem
conhecidas em toda a Rússia. Eles escrevem para dizer q u e conde-
n a m Khodorkovski e estão satisfeitos c o m o fato de ele ter recebi-
do u m a sentença severa [nove anos]. A carta corresponde plena-
m e n t e ao espírito da época de Stalin, q u a n d o a população escrevia
exortações empolgadas ao Líder para que ele continuasse destruin-
do seus oponentes, reais ou imaginários.
"Estou magoada e envergonhada p o r vocês", escreve a mãe de
Khodorkovski. " A c h o difícil acreditar que você, u m a pessoa bem
informada e c o m sentimentos, nada soubesse das grandes quantias
q u e m e u filho e sua empresa investiram em projetos educacionais
para jovens e professores em várias regiões da Federação Russa. Se
sabia disso, o n d e está sua consciência? Se você não sabia e está chu-
tando alguém que foi c o n d e n a d o mediante instruções superiores,
e n t ã o o n d e estão sua h o n r a e sua h o m b r i d a d e ? N ã o estou lhe
p e d i n d o que defenda Khodorkovski e critique nosso dito sistema
de justiça — toda pessoa t e m direito à sua opinião —, mas, antes de
caluniar alguém publicamente, você precisa conhecer os fatos e sem
isso n ã o p o d e haver questão de justiça elementar."
Publicamos a carta, mas n ã o h o u v e resposta do cosmonauta
G r e t c h k o que, aliás, t a m b é m se o p õ e à greve de fome de seus cole-
gas. E a opção dele.

8 de julho
C o n t i n u a m as audiências no caso dos 39 bolcheviques nacionais.
Eles estiveram em várias prisões de M o s c o u por sete meses. Foram
instaladas novas gaiolas, duas para os rapazes e uma para as meninas.
As três estão lotadas. Ivan Melnikov, um p r o e m i n e n t e deputado
comunista da D u m a e t a m b é m m e m b r o da Assembléia do C o n -
selho da Europa, não consegue acreditar no que vê: u m a ridícula
e n c e n a ç ã o d e u m j u l g a m e n t o d e prisioneiros políticos. Traba-
l h a n d o na D u m a , nunca se esperaria aquele tipo de coisa. La as
autoridades parecem trabalhar p o r consenso e por acordos; porem,
é clara a atitude impiedosa para c o m "os inimigos do R e i c h ' • O
d e p u t a d o Melnikov t a m b é m leciona na Universidade de Moscou,
a maioria dos bolcheviques nacionais é de estudantes, alguns dos
D . Â R i o RUSSO 297
ü M

da Universidade de M o s c o u , e ele compareceu para atuar


1 t e m u n h a do caráter deles, mas o juiz não permite.
t e s

C N
° Q são acusados d e ter causado danos n o valor d e 472.700
s r e U S

bios [US$18.900]. Se você dividir isso pelos 39 acusados, fica evi-


dente que o procurador-geral está exigindo que cada um seja c o n -
denado a até oito anos por causar danos no valor de 12.000 rublos
rilS$484]- Por que t o d o esse rigor? P o r q u e eles gritaram " F o r a
putin!" e fizeram outras sugestões semelhantes na área pública de
recepção de Putin.
Eles tornaram conhecida sua opinião sobre o presidente e lá
estão, engaiolados c o m o filhotes em um canil. Eles nos o l h a m c o m
uma seriedade de cortar o c o r a ç ã o . Um deles d e i x o u crescer a
barba na prisão e raspou a cabeça. Nas fotos de antes da prisão, ele
está muito diferente. O u t r o ainda é j o v e m demais para deixar cres-
cer a barba, mas foi devorado vivo p o r percevejos; está c o b e r t o de
feridas. Um terceiro não pára de se coçar — sofre de erisipela. Eles
constituem um perigo para a sociedade devido à sua opinião sobre
a vida neste país.
O juiz evidentemente acha q u e t u d o está conforme o planeja-
do, de acordo c o m as instruções q u e recebeu. Ele sabe de q u e lado
está.
Quase todos os liberais e democratas, atuais e antigos, c o m p a -
receram ao julgamento de Khodorkovski e Lebedev. N i n g u é m vai
a esse julgamento. N ã o há piquetes, n e m manifestações, n e m r e u -
niões de protesto, n e m são cantados slogans. E muito estranho, p o r -
que a essa altura está absolutamente claro que esse j u l g a m e n t o é um
espetáculo tanto quanto foi o da Iukos. E um espetáculo para i n t i -
midar um g r u p o etário diferente, pessoas em outra faixa de renda.
^ julgamento da Iukos foi para colocar os super-ricos no banco
os
reus, ao passo que aqui os acusados são jovens de baixa renda,
em s u a
maioria estudantes. P o r é m , a m e n s a g e m é e x a t a m e n t e a
mesma - veja o que lhe acontecerá se você ousar nos desafiar: p r i -
e r c e
°' P v e j o s , erisipela, ficar entre criminosos.
. _ Por muitos anos, tivemos esperança de que o j u l g a m e n t o pelo
u
J n forçaria uma verdadeira independência dos tribunais. As a u t o -
es
do Estado tiveram que p e r m i t i - l o porque, caso não o fizes-
ç, ' P°deriam dizer adeus a qualquer possibilidade de admissão ao
Or a
>selho ^ Europa. D e s d e 2 0 0 3 , o s júris c o m e ç a r a m g r a d u a l -
298 ANNA p
OLITKOVSK A Y A

m e n t e a considerar casos criminais e, se os tribunais convenció


absolviam menos de 1% dos acusados, os julgamentos por jú i ^ r

m e n o s estavam considerando 1 5 % inocentes.


Porém, os absolvidos eram freqüentemente chefes de quadr
lhas e "heróis" da guerra na Tchetchênia, soldados federais q y U e

haviam cometido atrocidades, assassinos c o m circunstâncias agra


vantes. Depois da absolvição de Iapontchik, um criminoso bem
conhecido, o respeito pelos julgamentos por j ú r i aos poucos caiu
para zero.

12 de julho
Más notícias de Blagoveschensk. O último policial acusado de atro-
cidades foi libertado. E n q u a n t o os defensores dos direitos humanos
faziam o n d a em M o s c o u ; na Bachkiria, estavam libertando em
silêncio o oficial Gilvanov, um dos personagens mais brutais de
t o d o o episódio, que espancou rapazes da aldeia de Duvanei. Agora
todas as bestas estão livres de novo. O Tribunal Distrital de Ufa
decidiu que Gilvanov não era um perigo para a sociedade, embora
ele tenha atacado pessoalmente um rapaz com a perna engessada,
sabendo que ele estava c o m p l e t a m e n t e indefeso c o m uma comple-
xa fratura na perna. Ainda pior é o fato de o Ministério do Interior
da Bachkiria ter permitido q u e Gilvanov voltasse ao trabalho de
policial.
A g o r a as a u t o r i d a d e s estão p l a n e j a n d o i g n o r a r a confusão
levantada depois dos escândalos.
O material do processo foi guardado, supostamente em com-
pleta segurança, no D e p a r t a m e n t o para a Investigação de Cnmes
Graves no Gabinete do P r o c u r a d o r - g e r a l da República. Porem,
agora d i z e m q u e desapareceram os pedidos dos advogados para
acusações de detenção ilegal nos chamados pontos de filtração. As
atuais acusações são simplesmente de "abuso de autoridade •
Ao m e s m o tempo, as vítimas das "limpezas" são submetidas^
e
um constrangimento administrativo sem precedentes, demitidas
seus empregos por se recusar a retirar as acusações. Isso está acon
c e n d o c o m as vítimas tratadas c o m maior brutalidade e com
pais, q u e se queixaram a jornalistas de Moscou e a defensores
local i
direitos humanos a respeito da extrema violência da policia
299
U M DIÁRIO RUSSO

QjylON.Também os advogados q u e concordaram em represen-


os interesses das vítimas estão e n c o n t r a n d o dificuldades.
C
- ndo Stanislav Markelov, de M o s c o u , e Vasili Sizganov, de
Vladimir- chegaram a Blagoveschensk p o r solicitação de associações
direitos humanos de M o s c o u e c o n h e c e r a m seus clientes, um
, ^ a d o com uma faca entrou na casa. Os advogados só se salvaram
Vitali Kozakov, o d o n o do apartamento, recebeu os golpes.
ue

O sangue de Kozakov estava p o r t o d o o apartamento e nas escadas,


mas a polícia se recusou a prender o agressor. Aquela altura, o ata-
rante contou a verdade: admitiu que a própria polícia o havia ins-
truído. Ela queria um p r e t e x t o para p r e n d e r os advogados q u e
defendiam as vítimas de sua violência anterior.
As vítimas de Blagoveschensk f o r m a r a m u m a Sociedade de
Vítimas de Filtração, Limpeza e Violência Policial, apelando para
todos os cidadãos que tiveram experiências semelhantes:

Não temos direitos, e x a t a m e n t e c o m o vocês. N a q u e l e s dias


sombrios de dezembro, sabíamos pelo que a população civil da
Tchetchênia havia passado, p o r q u e t a m b é m passamos p o r isso.
A violência policial em nossa cidade marcou o início de ações
opressivas em muitas regiões da Rússia. Elas estão c o m e ç a n d o
em pequenas cidades, mas em p o u c o t e m p o a filtração t a m b é m
será vista nas grandes cidades. N ã o temos mais confiança nas
autoridades do Estado ou nos tribunais. Só p o d e m o s confiar
em nós mesmos e na ajuda m ú t u a de outras pessoas na nossa
situação. P e d i m o s a v o c ê s , n ã o i m p o r t a q u e m sejam, o n d e
vivem ou qual seja sua nacionalidade, que entrem em contato
conosco. Precisamos parar c o m isto agora, antes que sejamos
todos destruídos.

A greve de fome dos Heróis, q u e c o m e ç o u em 6 de j u l h o , pros-


i g u e . Em 12 de julho, o funcionalismo finalmente apareceu, na pes-
s
°a do ombudsman Vladimir Lukin; àquela altura, alguns dos grevistas
a
m sido substituídos. O primeiro ato dele foi pedir a saída dos
rnalistas. Sua visita coincidiu c o m a chegada de uma delegação de
U v a s
de Heróis que vieram prestar sua solidariedade.
O marido de Larisa Golubeva, D m i t r i Golubev, era capitão de
m
a r i n o de primeira classe e H e r ó i da U n i ã o Soviética. Ele
Or
n a n d o u o segundo s u b m a r i n o nuclear construído na U R S S .
300 A N N A POLITKOVSKAYA

" Q u a n d o estava m o r r e n d o , ele me dizia: 'Por que está c h o r a n d o '


Você será b e m cuidada.Você é a m u l h e r de um Herói.' É claro q u e

eu n ã o estava chorando p o r isso, mas ele nunca teria imaginado


c o m o ficariam as coisas."
C o m a n d a r o segundo s u b m a r i n o nuclear construído não era
b o m para a saúde, c o m o sabiam os comandantes daquelas naves
Larisa passou a vida em g u a r n i ç õ e s militares: K a m t c h a r k a
Severomorsk, Sebastopol... Era u m a vida de espera, na esperança de
q u e o m a r i d o voltasse vivo de suas provações.
A q u e t e m direito agora Larisa, q u e dividiu t u d o c o m seu
h e r ó i c o marido? Bem, a nada. Pela nova lei, a viúva de um Herói
não t e m direito a n e n h u m suplemento à pensão. Um Estado que
afundou n u m a corrupção incrível, trazendo uma riqueza igualmen-
te incrível para seus mais altos funcionários, está cortando o orça-
m e n t o . O benefício a ser pago à viúva do Herói é tão baixo que é
m e l h o r renunciar a ele e aceitar a pensão-padrâo para idosos, porque
não se p o d e ter ambos. Foi o que fez Larisa. Ela tem sua pensão e
t a m b é m recebe os 500 rublos [US$20] mensais do presidente como
sobrevivente do cerco de Leningrado. No total, ela recebe 3.200
rublos mensais [US$128]. E o legado de um Herói.
Os grevistas de fome não se arrependem de seu passado e, sim,
do presente e t e m e m pelo futuro. Eles t ê m certeza de que seu pro-
testo terminará c o m a abertura de um diálogo autêntico entre os
cidadãos da Rússia e as autoridades do Estado.
G e n n a d i Kutchkin é um H e r ó i da U n i ã o Soviética de 51 anos;
ele é de Kinel, da província de Samara. C o m o primeiro-tenente, ele
lutou no Afeganistão c o m o C o r p o de Tanques. Participou de 147
batalhas e, em 1983, recebeu o título de Herói da U n i ã o Soviética.
S o m e n t e o n t e m ele partiu de Samara para se juntar à greve dos seus
camaradas.
" E m m i n h a opinião, o objetivo é forçar nossas autoridades a ser
honradas." Apesar das suas 147 batalhas, ele ainda é um inocente. E
um r o m â n t i c o e precisa sê-lo, para ainda sentir-se um herói quan-
do seu país cospe no seu heroísmo. Gennadi teve que esperar dez
anos depois de receber o título para conseguir um apartamento,
vivendo em acomodações de outras pessoas c o m sua família e seus
ferimentos. E levou 12 anos para conseguir um telefone.
DIÁRIO RUSSO 301
u M

"As mentiras geram c i n i s m o " , diz ele. "As vezes faço palestras
escolas. Em q u e as crianças estão interessadas hoje em dia?
p ¿ ipalmente em dinheiro. Elas q u e r e m saber se sou um rebelde,
r nC

jjjfl geral, elas fazem duas perguntas: quantas pessoas matei e q u a n -


eünheiro recebo. Q u a n d o descobrem quanto ganho, elas não me
olham mais c o m o herói. P e r d e m o interesse. E claro q u e é u m a
pergunta fundamental, q u e m constitui hoje a elite na Rússia. A
elite é qualquer pessoa c o m dinheiro ou poder, do chefe de um dis-
trito pequeno c o m o o nosso a nosso primeiro-cidadão."
Pedi pessoalmente a Bóris Nemtsov, da U n i ã o de Forças de
Direita, para que fosse visitar os grevistas de fome: "Vá lá e lhes dê
algum apoio moral!" Ele não ficou m u i t o convencido c o m a idéia
e disse estranhamente: "Eles vão esperar que eu lhes leve alguma
coisa. N ã o posso ir de mãos vazias." N e m t s o v pressupôs que eles
esperariam que ele trouxesse alguma boa notícia do regime, mas
.-les teriam ficado felizes se ele fosse de mãos vazias, só pelo desejo
de estar lá.
Nossa sociedade não é mais u m a sociedade. E u m a coleção de
celas isoladas e sem janelas. N u m a , estão os Heróis, em outra, os
olíticos do Iabloko, n u m a terceira, está Z i u g a n o v , o líder dos
comunistas, e assim p o r diante.
Há milhares que, j u n t o s , p o d e r i a m se somar para constituir o
povo russo, mas as paredes de nossas celas são i m p e r m e á v e i s . Se
uma pessoa está sofrendo, ela se preocupa p o r q u e mais n i n g u é m
parece preocupado. Se em outra cela alguém estiver de fato pensan-
do nela, isso não leva a n e n h u m a ação e eles só se l e m b r a m de que
la estava c o m um problema q u a n d o sua situação se t o r n a c o m p l e -
tamente intolerável.
As autoridades fazem o q u e p o d e m para tornar as celas ainda
m a
i s i m p e r m e á v e i s , s e m e a n d o discórdia, i n c i t a n d o u n s c o n t r a
°utros, dividindo e d o m i n a n d o . E as pessoas caem no e n g o d o . Esse
e 0
verdadeiro problema. É p o r isso q u e a revolução na Rússia,
guando vem, é tão extrema. A barreira entre as celas só cai q u a n d o
e
m o ç õ e s negativas dentro delas estão ingovernáveis.
302 ANNA l'OIITROVS^

13 de julho
Os Heróis foram subitamente convidados para a sessão do So
da Federação, o n d e a legislação relativa a eles será discutida Eles
ficaram alegres c o m o crianças que g a n h a r a m u m a longarnen
esperada bicicleta. B u r k o v continuava a dizer: "O gelo está q U e

brando. Eu lhes disse, as autoridades estão c o m e ç a n d o a se comuni


car conosco. Excelente!"
A delegação p e r m a n e c e u p o r várias h o r a s no Soviet da
Federação, sentindo aos poucos que alguma coisa estava errada A
lei foi posta em votação. Burkov levantou-se e gritou para toda a
sala:"E quanto a nós? N i n g u é m vai ouvir o que temos a dizer?"
C o m relutância, permitiram que eles falassem. Estava claro que
n i n g u é m esperava ter de ouvi-los. Eles haviam sido convidados
m e r a m e n t e para q u e deixassem a greve de fome.
Burkov c o m e ç o u a falar, mas foi r u d e m e n t e interrompido. O
presidente do Soviet da Federação, Sergei Mironov, irritado, colo-
cou a legislação em votação e os senadores a aprovaram. Mironov
convidou os Heróis para seu gabinete e lhes garantiu que o Soviet
c o m p r e e n d i a suas p r e o c u p a ç õ e s , mas q u e aqueles que estavam
acima tinham u m a visão diferente. Ele lhes pediu repetidamente
que deixassem de lado a greve de fome, depois do que "será possí-
vel iniciar um diálogo c o m a administração". Eles saíram sentindo
que haviam sido humilhados e voltaram à sua p e q u e n a cela.

14 de julho
O j u l g a m e n t o dos bolcheviques nacionais c o n t i n u a enquanto
procurador lê a acusação. O Estado decidiu usar o caso para estabe-
lecer o conceito fundamental de culpa coletiva, u m a coisa que nao
se ouvia desde os julgamentos-espetáculo de Stalin. N o s anos pos-
teriores, os p r o c u r a d o r e s e juízes soviéticos e russos sempre si
esforçaram para personalizar a culpa ao m á x i m o , distanciando-se
das práticas totalitárias, mas, em 2005, elas estão novamente cono
co. O procurador Smirnov disse os nomes dos bolcheviques nacio
nais, afirmando q u e todos tinham "participado de distúrbios
massa envolvendo c o m p o r t a m e n t o violento... havia um plano
minoso de infiltração... obstrução de agentes do Serviço Fede
ü M DIÁRIO RUSSO 303

Segurança..- panfletos c o n t e n d o sentimentos antipresidenciais...


demonstração de manifesto desrespeito pela sociedade... gritaram
Jogans ilegais sobre o afastamento de governantes..."
Durante uma interrupção nos trabalhos, o advogado de defesa
Dmitri Agranovski c o m e n t o u : " T e n h o participado de muitos julga-
mentos e invariavelmente a culpa é ligada a indivíduos específicos.
Porém, aqui eles p r e t e n d e m claramente dar um veredicto que esta-
beleça um precedente baseado em culpa coletiva p o r dissidência. È
uma ordem política vinda de cima."
Somos às vezes c h a m a d o s de u m a sociedade de milhões de
escravos com um p u n h a d o de senhores e nos dizem que assim será
por séculos, uma continuação do sistema de propriedade de servos.
Também falamos c o m freqüência a nosso p r ó p r i o respeito dessa
maneira, mas eu nunca o faço.
A coragem dos dissidentes soviéticos provocou o colapso do
sistema soviético e m e s m o hoje, q u a n d o a m u l t i d ã o grita " N ó s
amamos Putin", há pessoas que continuam a pensar p o r si mesmas
e usam todas as oportunidades que surgem para expressar sua o p i -
nião do que está a c o n t e c e n d o na Rússia, m e s m o q u a n d o suas ten-
tativas parecem inúteis.
Um raro exemplo de protesto inteligente, detalhado e articula-
do veio de um m e m b r o da Associação de Direitos H u m a n o s de
Tiumen.Vladimir Grichkevitch enviou ao Tribunal Constitucional
um depoimento suplementar à sua queixa a respeito da natureza
inconstitucional da lei sobre a nomeação dos líderes regionais. Ele
concorda c o m q u e seu d e p o i m e n t o seja analisado em conjunto
com as queixas do C o m i t ê 2 0 0 8 , do Iabloko e de um g r u p o de
deputados i n d e p e n d e n t e s da D u m a . Sua declaração é um fato
muito importante na história do nosso país e mostrará que n e m
todos permaneceram em silêncio em 2005, apesar de não ter ocor-
n
d o n e n h u m a revolução. Além disso, aqueles q u e ergueram suas
vozes não estavam s o m e n t e em Moscou. Depois de u m a longa e
etalhada análise do caráter ilegal do ato de P u t i n para n o m e a r
governadores, ele conclui:

C o m base no acima exposto, solicito que o Tribunal Constitu-


cional da Federação Russa faça u m a avaliação oficial das cir-
cunstâncias aqui descritas, nas quais a lei federal foi adotada e
304 A N N A POLITKOVSKAYA

assinada. R e f i r o - m e à lei "Sobre a Introdução de Alterações e


A d e n d o s à Lei Federal ' S o b r e os P r i n c í p i o s Gerais de
Organização de Órgãos Legislativo e Executivo do Poder de
Estado dos Territórios Constituintes da Federação R u s s a ' e à lei
federal 'Sobre as Garantias Básicas de Direitos Eleitorais e o
Direito de Participar de Referendos de Cidadãos da Federação
Russa'".

O tribunal não respondeu. A sociedade deixou de protestar.

15 de julho
Nosso povo parece acordar somente quando é atingido o n d e dói,
isto é, no bolso. As paixões revolucionárias só crescem quando o
dinheiro está envolvido.
Em Riazan, o sindicato dos funcionários da fábrica K h i m v o l o -
k n o formaram um piquete diante do gabinete do governo provin-
cial. Os trabalhadores não q u e r e m que sua empresa seja fechada.
Eles estão certos de que a fábrica de fibras sintéticas está sendo deli-
b e r a d a m e n t e levada à falência para que alguém a c o m p r e barato.
Inicialmente foi publicada u m a diretiva para cessar a produção por
três meses e a seguir completamente, porque a empresa era defici-
tária.
Foi então que os trabalhadores acordaram. Há m u i t o poucos
empregos na cidade e a gerência da fábrica informou a 25 trabalha-
dores, q u e incluíam m e m b r o s do comitê sindical, que eles passa-
r i a m a receber o salário m í n i m o de 800 rublos [US$32] mensais.
Os trabalhadores de K h i m v o l o k n o não conseguiram apoio, n e m
m e s m o e m R i a z a n , p o r q u e n u n c a haviam apoiado n i n g u é m n o
passado. Ficaram apenas fazendo seu piquete, sem q u e n i n g u é m
lhes desse atenção.
Ulianovsk é uma cidade mais militante. C o m e ç o u lá um p r o -
testo de adesivos: " C h e g a de burocracia, chega de P u t i n ! " Esta
sendo organizado por um m o v i m e n t o nacional de jovens d e n o m i -
n a d o Defesa, em c o n j u n t o c o m as organizações ecológica e da
j u v e n t u d e locais. Os ativistas cobriram a cidade c o m etiquetas c o m
os dizeres: " C h e g a de mentiras!" e "Diga não e reaja!" Eles p e d e m
protestos civis não-violentos contra u m a burocracia que está levan-
DIÁRIO R U S S O 305

ruína sua região e o país. Eles não estão tentando defender seu
a

c o t e de pagamento. Estão promovendo um prólogo à revolução.


Por que Ulianovsk? A província está e n t r e as mais pobres,
ransforniada em m e r a fonte de m a t é r i a - p r i m a para g r a n d e s
npresas sediadas em outros lugares e, pior, em depósito de e n t u -
(10 industrial. Isto graças aos esforços do governador, efetivamente
riposto aos eleitores pela administração presidencial, aquele gran-
je herói da Tchetchênia, o general Vladimir C h a m a n o v . C o m ele
no poder, os chefes do c r i m e vieram para a luz do dia. C h a m a n o v
dependia deles a b e r t a m e n t e e estava cercado de ex-soldados que
foram retreinados c o m o gángsteres, um p e q u e n o m o v i m e n t o na
Lússia. O próprio C h a m a n o v era totalmente estúpido e incapaz de
jovernar civis.
Usando slogans democráticos e brandindo o apoio de Putin,
sses supostos ajudantes do Estado roubaram abertamente - e c o n -
inuam a roubar — a província, apesar de C h a m a n o v ter sido trans-
ferido para a administração presidencial.
O movimento Defesa em Ulianovsk é c o m o um fragmento do
aovimento de protesto ucraniano. Os m e m b r o s do Defesa acredi-
am que, dentro da estrutura da lei, eles p o d e m fazer manifestações
ião-violentas, reuniões de protesto, piquetes e distribuir folhetos e
gora adesivos. O Defesa em Ulianovsk c o o p t o u a ala j o v e m do
Iabloko e da U n i ã o de Forças de Direita, além da organização e c o -
lógica Iabloko Verde.
Em Moscou, o c o r r e u u m a manifestação diante do Ministério
do Interior para protestar contra a brutalidade p o r parte dos órgãos
de cumprimento da lei. C o m p a r e c e r a m cerca de vinte pessoas. Suas
bandeiras tinham os seguintes dizeres: " C h e g a de ordens secretas!
-evantem acusações c o n t r a os culpados de v i o l ê n c i a em
blagoveschensk e outras cidades e aldeias." Os manifestantes exi-
l a
m a demissão de R a c h i d Nurgaliev, ministro do Interior da
^ussia, uma acusação criminal contra Rafail Divaev, ministro do
üterior da Bachkiria, e contra todos os funcionários dos órgãos de
f r a n ç a culpados de atos de violência.
O protesto foi contra as tentativas da polícia de intimidar o
V o ru
j° s s o , mas o povo russo não apareceu. A manifestação durou
U a s
horas. N i n g u é m do Ministério do Interior saiu para falar com
306 A N N A POLITKOVSKAYA

os manifestantes, p o r q u e eles só se p r e o c u p a m c o m protestos de


massa. Se os manifestantes são poucos, eles r i e m e vão cuidar da
vida.

16 de julho
D é c i m o p r i m e i r o dia da greve de fome. Os participantes estão
m u i t o fracos. O que irá acontecer? O regime está em silêncio. Será
q u e é preciso que algumas pessoas m o r r a m ? Em sua maioria, os
grevistas são idosos, incapacitados ou doentes. N e m um único polí-
tico veio falar c o m eles.

18 de julho
Os Heróis da greve de fome estão n u m beco sem saída. As autori-
dades ignoram todas as suas sugestões.
" Q u a l é o p r o b l e m a ? " , p e r g u n t o a t o r d o a d a a Svetlana
G a n n u c h k i n a . Estamos conversando p o u c o antes de uma reunião,
da q u a l P u t i n irá p a r t i c i p a r , da C o m i s s ã o Presidencial para o
Desenvolvimento da Sociedade Civil e dos Direitos H u m a n o s , da
qual Svetlana é m e m b r o . " P o r que não p o d e m apenas ouvir? Por
q u e eles sempre insistem em fazer tudo da pior maneira possível?
Por q u e forçam um b e c o sem saída após o outro?"
" P o r quê? Porque eles q u e r e m criar um país no qual é impos-
sível viver", responde tristemente Svetlana. Ela é o único membro
da Comissão de Direitos H u m a n o s c o m coragem para entregar o
apelo dos Heróis a Putin.
Esta tarde, um j ú r i no Tribunal da Cidade de M o s c o u absolveu
Viatcheslav Ivankov, t a m b é m conhecido c o m o Iapontchik, da acu-
sação de assassinato a tiros de dois cidadãos turcos em um restau-
rante de M o s c o u em 1992.Todas as emissoras de televisão mostram
o j u l g a m e n t o ao vivo. Elas t a m b é m dizem que Ivankov pretende
escrever um livro. A greve de fome não é mencionada e o julga-
m e n t o dos bolcheviques nacionais recebe apenas algumas palavras.
N ã o ouvimos nada a respeito do que eles p o d e m estar planejando
fazer se saírem da prisão.
C o m o p o d e m o s continuar vivendo uma mentira dessas? Fingi-
m o s que foi feita justiça no caso de Iapontchik, alegramo-nos por
DIÁRIO R U S S O 307
U M

não ter sido feita no caso de Khodorskovski. Aplaudimos ambos


es resultados justos. Essa é nossa enigmática alma russa; essa é a
tiga tradição de viver u m a mentira sobre da qual Soljenitsin
reveu há m u i t o t e m p o , misturada c o m u m a preguiçosa recusa
deixar o conforto de u m a cozinha aquecida até que eles a tirem
você. A esta altura você p o d e se unir a u m a revolução, mas nunca

9 de j u l h o

écimo quarto dia da greve de fome. Surkov, o principal ideólogo


e Putin, chama os grevistas de chantagistas: " N ã o permitiremos
ue nos torçam os braços."
Mas o que t e m Surkov a ver c o m isso? Por que esse assunto
eve depender desse manipulador político, q u e só t e m o mérito
elas realizações virtuais da Rússia U n i d a e a sangrenta tchetcheni-
ção da T c h e t c h ê n i a — o m e s m o Surkov que ousa pensar que isso
dele um peso-pesado político -, por que deve depender dele se
04 Heróis do país consigam ou não u m a audiência?

o d e c o r r e r da greve de fome, eles e s c r e v e r a m muitas cartas,


nviando-as p o r fax, e-mail e até m a n u a l m e n t e aos escritórios de
essoas importantes. Eles deram muitas entrevistas m e n c i o n a n d o
sas cartas, embora poucas t e n h a m ido ao ar.
O que esse episódio demonstrou é que muitas de nossas figu-
mais proeminentes, os líderes de partidos na D u m a e fora dela,
c m o v i m e n t o s e alianças e até m e s m o o l í d e r do Soviet da
ederação, Sergei Mironov, que, de acordo c o m a constituição, é o
rceiro h o m e m mais poderoso do país, parecem simpatizar c o m os
evistas, suas exigências, seus sentimentos, seu desejo de servir ao
ais. Porém, eles s o m e n t e o fazem em particular. Publicamente,
ara as câmeras de televisão e as agências de informações, para o
residente, eles p e r m a n e c e m u n i d o s em oposição à greve. Eles
taram a favor das emendas humilhantes q u e provocaram t o d o
Se
confronto, q u e não dá sinais de se concluir em diálogo.
Por que as pessoas de mentalidade i n d e p e n d e n t e da nossa elite
Olít: a tem duas caras? Este é o problema. N ã o é uma questão de
:ic
308 A N N A POLITKOVSKAYA

chantagem direta pela administração: se você não disser aquilo que


queremos que diga, tiraremos suas regalias?
H o j e em dia n i n g u é m q u e r ficar sem suas regalias. Nossa
" e l i t e " política está p r o f u n d a m e n t e contaminada pela covardia e
c o m m e d o de perder seu poder. N ã o de perder o respeito das pes-
soas, apenas de perder o assento.

A t o terrorista na aldeia tchetchena de Znamenskoie. Um veículo


foi visto numa rua transversal, c o m um cadáver no lugar do passa
geiro. A polícia foi chamada, mas, quando se aproximava do veícu
lo, este explodiu, m a t a n d o 14 policiais. U m a criança também foi
m o r t a e muitas pessoas, inclusive crianças, ficaram feridas.
Acontece que, no início da noite de 13 de j u l h o , Alexei Seme-
nenko, 23 anos, foi seqüestrado na aldeia de Novoschedrinskaia. O
seqüestro ocorreu diante das irmãs mais novas. N o s últimos meses,
Alexei e sua mulher v i n h a m p o u p a n d o para deixar a Tchetchênia.
Seus parentes m o r a v a m em Novoschedrinskaia havia 100 anos
sua família era grande, unida e trabalhadora, mas o que eles podiam
fazer? Q u a n t o mais firmemente Kadirov se estabelece, maior a ile
galidade e mais remota a esperança de que a vida seja normal. Foi
isso que Alexei concluiu.
Ele decidiu pegar um emprego sazonal na colheita, que pode
dar m u i t o dinheiro em p o u c o tempo. Alexei r e t o r n o u dos campos
em 13 de j u l h o e e n c o n t r o u quatro homens armados em uniformes
de combate à sua espera. E r a m tchetchenos e haviam chegado em
dois veículos 4 X 4 prateados. Quase todos em Novoschedrinskaia
estão certos de que e r a m h o m e n s de Kadirov. Q u a l q u e r pessoa que
viva na T c h e t c h ê n i a p o d e distinguir os h o m e n s de Kadirov dos
h o m e n s de Iamadaev, os h o m e n s do O M O N daqueles de Baisarov
ou de Kokiev (todos eles paramilitares das " U n i d a d e s Federais de
Segurança T c h e t c h e n a " , c o m o são chamadas) pelos veículos que
dirigem e pelas armas q u e preferem. Os paramilitares falaram com
Alexei, p u s e r a m - n o em um dos veículos e se foram. Os vizinhos
guardaram os n ú m e r o s das placas, mas elas eram falsas. Na manhã
seguinte, a família notificou as autoridades do seqüestro e policiais
locais, que conheciam Alexei desde a infância, passaram dois dias
procurando por ele em todas as subdivisões de segurança, mas não
u M DIÁRIO RUSSO 309

encontraram. A esta altura, o Gabinete do Procurador local fare-


ou perigo e reverteu ao seu habitual estado cataléptico.
Em 19 de j u l h o , a primeira pessoa a se aproximar do veículo foi
um policial. Ele abriu a porta e viu um cadáver no lugar do passa-
geiro, o qual, pelo cheiro e pelo estado de decomposição, estava
morto havia bastante t e m p o . Ele t a m b é m n o t o u q u e o corpo tinha
ferimentos de bala no rosto.
Ele foi chamar reforços e c o m isso salvou sua vida. Q u a n d o um
grupo de seus colegas c h e g o u para i n s p e c i o n a r o veículo, este
explodiu. O botão do detonador foi pressionado p o r alguém que
podia ver o veículo e pretendia matar o m á x i m o possível de poli-
ciais. Depois da explosão, Sergei Abramov, o p r i m e i r o - m i n i s t r o
tchetcheno n o m e a d o p o r M o s c o u , fez algumas observações som-
brias a respeito de Basaev e Umarov, mas não passou perto da cena
da explosão. Foi decretado estado de luto.
E n q u a n t o isso, a família S e m e n e n k o c o n t i n u a v a a procurar
Alexei. Dois dias depois, eles foram visitados e solicitados a ir até
Mozdok, na vizinha Ossétia do N o r t e , para identificar um corpo.
Todas as vítimas de assassinato são levadas para o centro de medici-
na legal de lá, u m a vez que a Tchetchênia não t e m centro próprio.
Tatiana S e m e n e n k o , a mãe de Alexei, ainda sem suspeitar de
qualquer ligação c o m a b o m b a em Z n a m e n s k o i e , e n c o n t r o u as
vítimas da explosão em refrigeradores, c o m exceção de um saco de
restos que havia sido deixado no chão n u m a poça d'água.
Neste saco, q u e estava sendo tratado c o m o se contivesse o
corpo de um terrorista, ela encontrou os restos do seu filho. Ela
somente conseguiu identificá-lo p o r u m a letra L tatuada no braço.
Não havia rosto. A família enterrou o braço e a cabeça. Os policiais
que haviam se aproximado do veículo e visto o c o r p o de Alexei
ainda inteiro disseram que ele vestia roupas de combate. Seus rap-
tores evidentemente o haviam vestido daquela maneira antes de
deixá-lo no veículo m i n a d o .
Esse é o fim da história. A família S e m e n e n k o não tem a q u e m
recorrer. N ã o h o u v e reação pública. N i n g u é m - n e m Kadirov, n e m
khanov ou Kozak — se deu ao trabalho de prestar condolências à
tniha. N i n g u é m se ofereceu para c o m p e n s á - l a pela m o r t e do
no. N i n g u é m t e n t o u pagar para que ficassem quietos. Um p r o -
cesso criminal sobre o seqüestro de Alexei S e m e n e n k o foi aberto e
310 A N N A POLITKOVSKAYA

fechado, mas n e m se deram ao trabalho de abrir um processo por


seu assassinato. Pelo fato de ter matado policiais, S e m e n e n k o é ofi-
cialmente classificado c o m o terrorista. Mas ele estava m o r t o no
m o m e n t o de c o m e t e r esse crime.
Há somente duas possibilidades a respeito do que aconteceu.
Se os seqüestradores de Alexei eram h o m e n s de Kadirov, c o m o
acreditam todos na aldeia, então eles p o d e m ter encenado esse ato
de terrorismo, sabendo que, enquanto houver terrorismo, os para-
militares terão trabalho. Caso retorne a paz, todos irão para a prisão.
A segunda possibilidade é que os paramilitares v e n d e r a m o
corpo de Alexei aos rebeldes, de Basaev ou de outros. Isso também
é plausível, p o r q u e há m u i t o se sabe que a linha divisória entre os
h o m e n s de Kadirov e os de Basaev é cada vez mais permeável, ape-
sar da infindável conversa idiota de c o m o ele sonha em matar
Basaev. Os preferidos pelo regime de Putin são os elementos mais
astutos, cínicos e criminosos da terra.
Q u e m está protestando hoje na T c h e t c h ê n i a sobre a saga de
Alexei Semenenko? N i n g u é m . Sua família t e m m e d o dos parami-
litares de Kadirov, p o r q u e suas irmãs mais novas viram os rostos dos
seqüestradores. É mais p r u d e n t e esquecer o filho do que se arriscar.
Esses são os efeitos da guerra de Putin sobre a maneira de pensar
das pessoas na T c h e t c h ê n i a e este m o d o de pensar está se alastran-
do rapidamente para o resto da Rússia. O m e s m o pânico cego afeta
as famílias dos seqüestrados no norte do Cáucaso, em todas as cida-
des e aldeias em q u e ocorreram as "limpezas" em massa ao estilo da
Tchetchênia.
Q u a n t o mais violentas as atividades dos órgãos de segurança,
mais alto o índice de aprovação a Putin, pelo simples motivo de que
m u i t o poucas pessoas q u e r e m arriscar a vida fazendo oposição a
ele.
Esta é a vida na Rússia hoje. Crimes, ausência de investigações
honestas. O resultado é a repetição infindável de tragédias e do ter-
rorismo.
Pela primeira vez nos últimos anos, m e u j o r n a l recusou-se a
publicar a história de Alexei Semenenko. A Novaya gazeta quer evi-
tar problemas; assim, é m e l h o r não causar m u i t o sofrimento a
R a m z a n Kadirov, u m a vez que ele está nas graças do presidente.
R U S S O 311
u M DIAR'°

20 de julho
Hoje Putin recebeu no Kremlin defensores dos direitos h u m a n o s e
membros da sua Comissão Presidencial sobre Direitos H u m a n o s .
Svetlana G a n n u c h k i n a não teve permissão para falar, mas entregou
a Putin a carta dos Heróis em greve de fome. O assunto t a m b é m foi
levantado p o r Alexander Auzan, o u t r o ativista presente. P u t i n não
gostou. Ele declarou: " T u d o está acertado agora. R e c e b i um relató-
rio." Porém, Auzan foi insistente e repetiu que achava que o presi-
dente precisava conhecer o assunto. Ella Pamfilova, a presidente da
comissão, ficou i m p a c i e n t e e exigiu q u e n ã o se perdesse mais
tempo c o m aquele tópico. A discussão c h e g o u ao fim e Putin c o n -
tinuou a considerar os Heróis u m a parte da oposição inimiga.
Então a discussão passou para assuntos ecológicos. Os defenso-
res dos direitos h u m a n o s p e r d e r a m sua o p o r t u n i d a d e para falar
abertamente c o m ele. M u i t o s t e m e m n ã o ser convidados n o v a -
mente. D e a c o r d o c o m Sviatoslav Z a b e l i n , c o - p r e s i d e n t e d a
Aliança Socioecológica:

Putin levantou três questões: em primeiro lugar, c o m o informar


melhor os cidadãos a respeito das reformas que estão sendo
implantadas; em segundo, c o m o a Câmara Social poderia ser
usada c o m o canal para tornar mais influente a opinião pública;
e terceiro, c o m o o setor voluntário na Rússia poderia ser desen-
volvido c o m menos dependência de recursos ocidentais.
Sobre a segunda questão, a respeito da Câmara Social, os
defensores dos direitos h u m a n o s mantiveram um silêncio c o l e -
tivo. Sobre a terceira, para nossa surpresa, Putin anunciou q u e
estava pessoalmente preparado para forçar o governo a e n c o n -
trar maneiras de delegar poderes a associações de voluntários,
canalizando recursos do Estado e do setor privado. Ele me
parecia g e n u i n a m e n t e p r e o c u p a d o que esse apoio não fosse
visto c o m o tentativa de subornar a sociedade civil e as associa-
ções públicas. Ele estava sendo m u i t o prático.
Sobre ecologia, eu disse a Putin: Precisamos de responsabi-
lidade ecológica pública e de auditorias ecológicas públicas.
Hoje não temos nada disso. Em conseqüência desse fato, temos
coisas extraordinárias a c o n t e c e n d o no estado. Em 2002, o setor
público tinha quatro inspetores ecológicos por distrito, mas,
312 A N N A POLITKOVSKAYA

e m 2 0 0 5 , h á q u a t r o distritos p o r inspetor. C o m o p o d e m o s
esperar evitar violações das diretrizes ecológicas sem a partici-
pação do setor público?
T a m b é m vemos liberdades extraordinárias sendo tomadas
c o m as auditorias ecológicas. Aqui, o problema é que as empre-
sas são obrigadas p o r lei a tomar providências razoáveis para
assegurar q u e os projetos industriais sejam discutidos c o m o
público, para q u e os interesses da s o c i e d a d e e os interesses
gerais do Estado sejam adequadamente considerados. Isto sim-
plesmente não está acontecendo. O mais preocupante é que as
piores transgressoras são as empresas nas quais o Estado tem a
maior participação financeira.
D i z e m q u e u m a empresa b e m conhecida, envolvida c o m o
oleoduto da Sibéria Oriental até o Pacífico, está se comportan-
do de maneira totalmente imprópria. Para obedecer à exigên-
cia de u m a auditoria ecológica pública, ela m o n t o u uma asso-
ciação " p ú b l i c a " própria e a registrou em M o s c o u . Este órgão
tem t o m a d o decisões sobre o que deve ser feito para as pessoas
que vivem na costa, o que deve ser feito para as pessoas em
Irkutsk, o q u e deve ser feito para os Buriats e o n d e seria mais
interessante para eles que passe o oleoduto. Q u a n d o um proje-
to deste tipo está sendo construído na Rússia, há repercussões
i n t e r n a c i o n a i s . O c o m p o r t a m e n t o dessas empresas é b e m
conhecido, há muita confusão e isso só p o d e nos prejudicar. È
preciso dizer a essas empresas, nas quais o Estado tem uma pre-
sença substancial, que este tipo de conduta simplesmente não é
aceitável.
Temos um sistema para avaliar custos ecológicos. Oitenta e
cinco p o r c e n t o das empresas privadas q u e procuramos estavam
preparadas para dar ao público acesso às suas contagens ecoló-
gicas: n e n h u m a empresa estatal quis fazê-lo.
P u t i n respondeu: "Gostaria que você entendesse a lógica
da situação na qual se acham as organizações estatais c o m rela-
ção às auditorias ecológicas.Você acabou de mencionar um dos
nossos projetos mais vitais, comparável em importância c o m a
rodovia Baikal-Amur, que levou décadas para ser construída.
Espero q u e esse projeto não seja tão grande, mas seu valor para
o Estado p o d e r á ser muito maior do que a própria rodovia, que
DIÁRIO R U S S O 313

já está lutando contra as exigências sobre ela. Este oleoduto nos


dá uma saída para nossos recursos energéticos chegarem aos
mercados dos países em rápido d e s e n v o l v i m e n t o da região
Asia-Pacífico, ao mercado chinês, o n d e somos compradores e
vendedores, ao sul da Asia, ao Japão e assim p o r diante.
" D e i x e - m e chamar sua atenção para o fato de que nosso
país perdeu c i n c o portos de mar i m p o r t a n t e s na costa oeste
depois do colapso da União Soviética. De fato, nós nos t o r n a -
mos dependentes dos países através dos quais nossos recursos
energéticos precisam passar e eles abusam de sua situação g e o -
política. Lutamos contra isso o t e m p o t o d o . E extremamente
importante para a Rússia ter u m a saída direta para outros m e r -
cados. Q u a n d o estávamos falando de um o l e o d u t o do leste da
Sibéria diretamente até Datsin, na C h i n a , ao longo da extremi-
dade sul do Lago Baikal, decidimos divergir dessa rota depois
de levar em c o n t a as opiniões de associações ecológicas, de
ecologistas e inspetores. O custo subiu centenas de milhões de
dólares. Foi decidido evitar a costa n o r t e do Lago Baikal e ir
mais além para leste.
" N ã o se d e v e p e r m i t i r q u e essas a u d i t o r i a s ecológicas
d e t e n h a m o d e s e n v o l v i m e n t o do país e da e c o n o m i a . N ã o
questiono aquilo que você acabou de dizer. N ã o há dúvida de
que precisamos analisar a situação m u i t o b e m , mas uma das
maneiras de nos atacarem é invariavelmente levantando ques-
tões ecológicas. Q u a n d o c o m e ç a m o s a construir um p o r t o
adjacente à Finlândia, nossos parceiros nos países vizinhos (e sei
isto de fontes confiáveis) injetaram d i n h e i r o em associações
ecológicas para torpedear o projeto, p o r q u e ele iria criar c o n -
corrência para eles no Báltico. Nossos parceiros, inclusive os da
Finlândia, vieram e inspecionaram dez vezes, mas no fim foram
incapazes de achar qualquer motivo de objeção. Agora os ' p r o -
blemas ambientais' passaram para os estreitos dinamarqueses,
onde há objeções aos navios que estamos usando. N e m m e s m o
são navios russos, são arrendados de empresas internacionais.
N o s estreitos t u r c o s , n o Bosforo, t a m b é m h á ' p r o b l e m a s
ambientais'.
"Por q u e estou m e n c i o n a n d o isto? Porque, é claro, precisa-
mos de mais contato e confiança para interagir de forma ade-
314 ANNA P O L I T K O V S K A YA
^AYA

quada c o m as associações ecológicas nacionais que trabalham


pelos interesses do nosso país e não c o m o agentes que nossos
concorrentes p o d e m usar para obstruir o desenvolvimento d a

nossa economia. É exatamente p o r isso que eu disse que, quan


do este tipo de trabalho ecológico é financiado por outros p í a

ses, ele levanta suspeitas e acaba c o m p r o m e t e n d o todas as asso-


ciações de voluntários. É disso que estou falando. Precisamos

I
de associações que ajudem a resolver nossos problemas para
otimizar as decisões importantes. E claro que para isso precisa-
m o s ter mais contato t a m b é m c o m organizações estatais."
Zabelin: " C e r t a m e n t e as coisas mais importantes são esta-

I
belecer contato e nossos interesses nacionais. Q u a n t o a esse
g r a n d e oleoduto, o principal é q u e ele deve ser construído.
. N e n h u m a associação ecológica de n o m e está dizendo que ele
n ã o é necessário. Estamos falando de questões específicas, de
definir o traçado e a localização do terminal. A atual opção,
baseada exclusivamente na minimização dos danos ecológicos,
é a pior de todas. Há muitas alternativas e estou preparado para
lhe entregar a análise dos cientistas do extremo oriente que
d i z e m q u e há outras opções e c o n ô m i c a , social e ecologica-
m e n t e mais interessantes. Somos parceiros nisto, assim como no
m o n i t o r a m e n t o ambiental público. Q u a n t o às auditorias eco-
lógicas, as pessoas precisam o b e d e c e r à lei. Temos uma legisla-
ção excelente sobre auditoria ecológica, datada de 1995. Ela
deve ser observada."
P u t i n : " E u gostaria de voltar a isto no futuro. Acho que
seria correto criar um m e c a n i s m o mais sensato para interagir
c o m nossas associações ecológicas nacionais, porque não pode-
m o s nos dar ao luxo de c o m e t e r erros e ao mesmo t e m p o nao
p o d e m o s permitir que esta questão seja usada, c o m o eu disse,
c o m o alavanca p o r nossos c o n c o r r e n t e s . Vejam o q u e esta
a c o n t e c e n d o no mar Cáspio: bastou a Lukoil erigir um equi-
p a m e n t o para dizerem que a ecologia não permitia. N e n h u m a
das outras empresas possui tecnologias limpas c o m o as nossas.
Ela é mais dispendiosa, mas levamos isso em conta. O mesmo
está acontecendo agora no Báltico."
DIÁW 0
RUSSO 315
ü M

21 de j u l h o

£m Astrakhan, c o m o em todo o país, as autoridades estão travando


uma guerra c o m o povo por dinheiro e imóveis. A principal arma
e o incêndio criminoso. E uma guerra na qual pessoas m o r r e m ,
saqueadores verificam as ruínas e as pessoas c o m u n s se transformam
em refugiados sem-teto.
A família O s t r o u m o v é a última a ser expulsa da sua parte da
rua Maksakova, o n d e uma luxuosa casa está sendo construída. E claro
que há terrenos em todas as nossas cidades; há pessoas ricas por perto.
As regras para estes casos são que as autoridades locais alocam terras
aos incorporadores e, se alguém vive nelas, muda-se para outro lugar.
Depois disso, o terreno é cercado e começa a construção.
Não é b e m assim que as coisas são feitas em Astrakhan. U m a
empresa d e n o m i n a d a Astsyrprom obteve os direitos sobre um ter-
reno na rua Maksakova. Infelizmente, o t e r r e n o estava coberto de
prédios o n d e as pessoas viviam em seus apartamentos r e c e n t e m e n -
te privatizados. A Astsyrprom trouxe um subempreiteiro, um certo
Nurstroi, para construir a nova casa e expulsar os atuais proprietá-
rios. Inicialmente Nurstroi negociou c o m alguns e comprou seus
apartamentos, mas depois a abordagem m u d o u . Nurstroi c o m e ç o u
a oferecer às pessoas apartamentos totalmente inaceitáveis. A famí-
lia Ostroumov teve a oferta de um a p a r t a m e n t o de um quarto para
os cinco.
Q u a n d o os residentes começaram a fazer exigências, a resposta
foi um ultimato, seguido por ações ao estilo militar. O diretor de
Nurstroi, o sr.Timofeiev, disse a Alexander Merjuev, um dos m o r a -
dores, que incendiaria seu apartamento. P o u c o depois, sua residên-
cia foi de fato consumida pelo fogo. A conclusão da equipe de ins-
Peçao do C o r p o de Bombeiros foi de i n c ê n d i o criminoso, mas as
evidências foram consideradas insuficientes para uma acusação. O
Problema do obstáculo no lado esquerdo da construção de N o r s -
""oi estava resolvido. A família O s t r o u m o v ocupa o lado direito.
O distrito de Kosa, perto do Kremlin de Astrakhan, está cheio
de casas históricas das quais se avista o Volga, o mesmo Volga em
u
4 e , no século X V I I , o bandido Stenka R a z i n afogou sua noiva. No
numero 53 da rua M a x i m Gorki, fica u m a bela vila que m e s m o
°je, depois do incêndio em março, ainda é magnífica.
316
A N N A POLITKOVSKAYA

No ú l t i m o inverno, os investidores, c o m o eles se autodenomi


nam, c o m e ç a r a m a visitar as pessoas q u e lá moravam. Eles diziam-
" V a m o s m u d a r vocês para u m a n o v a casa." As pessoas diziam-
" O b r i g a d o , mas queremos ficar aqui. Estamos acostumados a viver
aqui."
Em 20 de março, Liudmila R o z i n a , de 78 anos, foi visitada por
"investidores" pela última vez. "A velha senhora nos c o n d e n o u "
conta Alexei Glazunov, um aposentado q u e morava no apartamen-
to 7, q u e n ã o mais existe. "Ela disse q u e se mudaria, mas só para
aquele n o v o p r é d i o melhor que estão construindo ao lado."
N a q u e l a noite, a vila foi incendiada pelos quatro lados. Em dois
ou três m i n u t o s , o lugar parecia u m a fornalha. Algumas senhoras
idosas p u l a r a m das janelas, fraturando m e m b r o s , mas outras não
conseguiram fazer n e m isso. Liudmila foi queimada na sua cama
p o r q u e as p a r e d e s do a p a r t a m e n t o h a v i a m sido molhadas c o m
combustível, c o m o revelou a investigação subseqüente.
Alexander R o z i n , 55 anos, filho de Liudmila, sobreviveu e foi
hospitalizado c o m queimaduras graves. Três dias depois, um crimi-
noso não identificado chegou ao hospital, supostamente trazendo
ajuda h u m a n i t á r i a do gabinete do prefeito. A comida que ele trou-
xe estava envenenada, c o m o mostrou u m a investigação posterior, e,
em 12 de abril, R o z i n morreu. Anna Kurianova, 86 anos, que havia
sido retirada viva do prédio em chamas, sucumbiu ao estresse e
m o r r e u p o u c o depois.
A verdade espantosa em Astrakhan é que, nos últimos meses,
seis pessoas m o r r e r a m em incêndios e 17 casas foram destruídas em
ataques criminosos confirmados. H o u v e um total de 43 incêndios,
mas não é fácil obter a rigorosa investigação que poderia levar a um
processo criminal. A maior parte dos casos relacionados com eles e
arquivada imediatamente ou há u m a completa e misteriosa falta de
provas, o q u e significa q u e eles n e m c h e g a m a ser abertos.
E n q u a n t o isso, a construção de casas de luxo, cassinos, restaurantes
e escritórios comerciais nos terrenos liberados pelos incêndios con-
tinua acelerada.
V i k t o r C h m e d k h o v é o chefe do Distrito de Kirov do M i -
nistério do Interior e foi no seu território que ocorreu a maior parte
dos casos conhecidos em Astrakhan c o m o "incêndios comerciais •
1 0 R U S S O 317
ü M DIÁP-

'Eu não diria que o problema é m u i t o sério", opina ele, o l h a n -


do diretamente nos olhos das senhoras idosas que tinham ficado na
rua de camisola. "O Distrito de Kirov está investigando cinco casos
ligados a cinco incêndios criminosos", prossegue ele. " E u não diria
que a polícia não está fazendo t u d o q u e pode. As causas estão sendo
investigadas e todas as possibilidades consideradas..." Os olhos do
policial se abrem de repente e ele diz, baixando a voz: " A t é m e s m o
as mais audaciosas..."
A hipótese "audaciosa" é q u e assessores do prefeito B o j e n o v
estão ligados aos incêndios. Eles t ê m interesse comercial em limpar
a cidade, dividindo propriedades entre os representantes do prefei-
to e as organizações comerciais q u e os apoiam, p a g a n d o assim
"dívidas eleitorais". Afinal, a l g u é m pagou pela campanha eleitoral
do prefeito. Foi um investimento. Agora chegou a hora de auferir
os lucros.
Os chefes da polícia a d m i t e m que nada p o d e m fazer quanto
aos ricos bandidos de Astrakhan, q u e m a n t ê m uma relação inces-
tuosa c o m a administração da cidade. Eles estão impotentes diante
da total criminalização da m a i o r instância do governo. As leis não
funcionam. H o u v e u m a época em q u e a polícia costumava prender
bandidos e sabia que estava fazendo seu trabalho. Agora a pessoa
nomeada para garantir o efetivo funcionamento da lei é um b a n d i -
do. Os incêndios criminosos c o m e ç a r a m há seis meses e não foi
instaurado n e n h u m inquérito para analisar os incêndios. N i n g u é m
quer descobrir a verdade.
" O q u e a c o n t e c e u d e p o i s d o nosso i n c ê n d i o ? " , p e r g u n t a
Alexei Glazunov. Ele é m e m b r o da Sociedade das V í t i m a s de
Incêndio de Astrakhan. "A cronologia é a seguinte: o incêndio na
rua Maxim Gorki, 53, c o m e ç o u às três e meia da m a n h ã " , destaca
Glazunov. " P o r volta das n o v e da m a n h ã chegaram trabalhadores
C o m
malhos e começaram a d e r r u b a r tudo, acabando c o m o que o
fogo não havia destruído, b e m na frente da polícia. D u r a n t e o dia,
as v
U i m a s q u e n ã o f o r a m hospitalizadas foram ver a p o d e r o s a
Madame Svetlana K u d r i a v t s e v a , a czarina de h a b i t a ç õ e s de
astrakhan, a representante do prefeito para construção e arquitetu-
T e
*< ela deixou claro que estava satisfeita c o m a demolição da casa.
a
disse que a cidade precisa se livrar dos prédios antigos e que as
vitim as iriam para um hotel."
318 A N N A POLITKOVS

Q u a l é a moral dessa história? As elites estão interessad


a S
s o m e n t e em p ô r as m ã o s em d i n h e i r o e imóveis, coisa n . , .
A ^ue S Q
p o d e m fazer depois de por as mãos no poder político. Elas vêem
u m a oportunidade e o cidadão deixa até de ser notado. Podem
q u e i m a r cidadãos caso eles fiquem no caminho. Podem-se jogá-los
em um " h o t e l " caso eles não m o r r a m . Existe um vácuo moral no
c e r n e do atual sistema político russo e em Astrakhan ele atingiu o
p o n t o de crise.

27 de julho
O u t r a audiência para os bolcheviques nacionais e começa o inter-
rogatório das testemunhas. O j u i z convida Natalia Kuznetsova a
dizer c o m o os bolcheviques nacionais se comportaram em 14 de
d e z e m b r o . Ela trabalha no E s c r i t ó r i o de Assuntos I n t e r n o s de
Kitai-Gorod, p r ó x i m o do prédio da administração presidencial, de
o n d e observou o que estava acontecendo. Natalia mostra ser uma
m u l h e r sincera e admite que, na verdade, ela só viu a "desordem"
pela televisão. Porém, ela t e m evidências diretas relativas ao detec-
tor de metais que, de acordo c o m a acusação, foi quebrado pelos
jovens e é o item principal da alegação de danos ao gabinete de ser-
viços residenciais do presidente. B e m , testemunha Natalia, o detec-
tor de metais havia sido consertado na manhã de 13 de dezembro
e desde então estava funcionando b e m . O juiz C h i k h a n o v levou
isso em conta? Será que a principal acusação foi autodestruída? Os
acusados p o d e m ser libertados? N ã o . N ã o se p o d e m privar do
direito de ir para a prisão jovens russos que ousaram questionar a
justiça das autoridades. Especialmente se eles estão c o m e ç a n d o a ter
idéias a respeito de política.

28 de julho
Todos t ê m queixas justificadas da polícia, mas ela, depois de procu-
rar p o r mais de um ano, conseguiu pegar Sergei Melnikov, extor
als
sionário e braço direito do chefe da máfia de Togliatti. Os p o l i c i
foram buscar autorização para detê-lo no Gabinete do Procurador
geral de Moscou e Vladimir Iudin, o subprocurador, disse-lhes que
se danassem. Ele se recusou a emitir uma ordem de prisão porque,
U M DIÁRIO RUSSO 319

a ele, M e l n i k o v não representava p e r i g o para a sociedade. O


a r

e n t o escrito por Iudin na solicitação rejeitada foi: " N ã o há


u m

prova indiscutível de culpa."


O gângster ficou livre. Este é o m e s m o Iudin que t r a m o u as
acusações contra os bolcheviques nacionais e insistiu que eles deve-
riam ser mantidos na prisão mês após mês e acorrentados no tribu-
nal, devido ao imenso perigo q u e representam para a sociedade.
Essa é a realidade da justiça seletiva. Os criminosos são libertados
enquanto os prisioneiros políticos são postos a ferros, atirados na
prisão e mantidos em gaiolas. As autoridades se baseiam em ele-
mentos criminosos para sustentar o sistema de poder do Estado.
O fato de que esta é de fato a doutrina delas foi confirmado
mais uma vez quando a administração presidencial criou um clone
para se o p o r aos bolcheviques nacionais. Ele é c h a m a d o N a c h i
(Nosso Povo) e foi criado em fevereiro numa reunião entre Vasili
Iakemenko, líder do clone anterior, Marchando Juntos, e Vladislav
Surkov. I a k e m e n k o é o " c o m i s s á r i o federal" do N a c h i , q u e é o
movimento de rua da administração presidencial para se garantir
contra revoluções. Os soldados do m o v i m e n t o Nachi da j u v e n t u d e
são desordeiros armados c o m socos ingleses e correntes. Até agora
eles se limitaram a atacar os bolcheviques nacionais e as autorida-
des i m p e d e m que os órgãos de investigação levantem acusações
contra eles. Há duas unidades: u m a consiste em b r u t a m o n t e s que
torcem para o time de futebol do C l u b e Esportivo do Exército e a
outra de brutamontes que t o r c e m para o Spartak. Todos eles t ê m
um histórico impecável de brigas de rua. Sob a liderança deVasia e
R o m a , torcedores do Spartak, o N a c h i também formou u m a agên-
cia privada de segurança chamada Escudo Branco. Vasia é um dos
desordeiros mais violentos e são seus seguidores que organizam ata-
ques aos bolcheviques nacionais. Eles ocuparam duas vezes a sede
dos bolcheviques nacionais, de o n d e Vasia deu certa vez u m a entre-
vista coletiva.Vasia (seu verdadeiro n o m e éVasili Stepanov) e R o m a
tinham vários processos criminais pendentes contra eles, que foram
uucialmente arquivados e depois jogados fora.

R o m a chegou a ser visto na famosa reunião de shish-kebab


entre Putin e os "nachistas", q u a n d o nosso presidente lhes falava de
c m
° ° os jovens já são a sociedade civil da Rússia. Q u a n d o esse
e y
e n t o ofensivo, imaginado p o r Surkov, foi exibido na televisão, um
320 A N N A POLITKOVSKAYA

bolchevique nacional que havia sido espancado por "pessoas não


identificadas" r e c o n h e c e u R o m a c o m o seu agressor, conhecido
c o m o R o m a n o Verbitski.
Por q u e Khodorkovski enfrentou problemas? Ele não era dife-
rente do resto daqueles que a c u m u l a r a m fortunas fabulosas em
t e m p o recorde, n e m daqueles que tiveram oportunidade e inclina-
ção. P o r é m , q u a n d o virou um bilionário, ele disse: "Parem! A Iukos
irá se tornar a empresa mais transparente e legítima da Rússia, uti-
lizando m é t o d o s de negócios ocidentais ."Ele c o m e ç o u a criar uma
nova Iukos, mas à sua volta p e r m a n e c e r a m pessoas que não tinham
desejo n e n h u m p o r transparência, pessoas cuja natureza é trabalhar
nas sombras, l o n g e das luzes. Elas se p r e p a r a r a m para devorar a
Iukos, p o r q u e a luz não é bem-vinda em m e i o à escuridão.
Discriminar contra maus prisioneiros políticos em favor dos
bons c r i m i n o s o s t e m raízes históricas profundas na justiça e na
política russas. N ã o é fácil erradicar esta prática, mas seria uma des-
graça aceitá-la. A única pergunta é: q u e m irá protestar? N ã o há reu-
niões diante do Tribunal Nikulin. Há muitos policiais, um grande
n ú m e r o de cães policiais, mas quase n i n g u é m para mostrar solida-
riedade para c o m os prisioneiros políticos detidos ilegalmente: só
u m p u n h a d o d e b o l c h e v i q u e s n a c i o n a i s e , ocasionalmente,
Limonov. É u m a bacanal de indiferença.
Khodorkovski tinha os melhores advogados do país e eles c o n -
seguiram atrair patrocinadores para o oligarca perseguido, mas os
pobres não t ê m quase ninguém. Os bolcheviques nacionais são de
grupos de renda mais baixa, filhos de trabalhadores em pesquisa, de
engenheiros, da empobrecida elite intelectual russa em geral. Eles
são estudantes. O c a s i o n a l m e n t e surge um defensor dos direitos
h u m a n o s , mas essa é a extensão do seu apoio.

3 de a g o s t o

As 4 da m a n h ã em Siktivkat, capital da R e p ú b l i c a de K o m i , no
norte, a redação de um jornal democrático de oposição, o Courier
Plus, foi incendiada. O edifício t a m b é m acomodava dois programas
de televisão oposicionistas, Telemensageiro e Moderação, produzidos
p o r Nikolai Moiseiev, m e m b r o local do Iabloko e vereador.
DIÁRIO RUSSO 321

jvloiseiev era um forte crítico do prefeito de Siktivkat, Sergei


jtatunin, e, em 14 de julho, ele e um g r u p o de outros vereadores
tentaram destituir o prefeito de seus poderes, mas ele os rechaçou,
jsjo Gabinete do Procurador, n ã o havia dúvida de que se tratava de
um incêndio criminoso; r e c e n t e m e n t e Moiseiev tivera incendiados
a porta do seu apartamento e seu carro. O jornal de oposição a n t e -
rior de Siktivkat, o Stefanov Boulevard, deixou de existir em agosto
de 2002, quando t a m b é m foi incendiado.

4 de agosto
Jihad de novo. No início de setembro, será o sexto aniversário da
"operação antiterrorismo" na T c h e t c h ê n i a . De acordo c o m a p r o -
paganda do Kremlin, há m u i t o a vida pacífica voltou às suas cida-
des e aldeias e quase todos os rebeldes que eles q u e r i a m apanhar
foram postos fora de ação pelas forças pró-federais. Mas o que é
isto? Jihad? Contra quem? E este não é o primeiro Jihad declarado
na Tchetchênia nos onze anos desde o início da Primeira Guerra
Tchetchena. Elas foram declaradas, mas foram canceladas.
Desta vez, é um Jihad contra wahhabis e terroristas e a palavra
oficial é de que foi declarado pelo chefe p r ó - M o s c o u dos M u ç u l -
manos da República, o mufti Sultán Mirzaev. Ele reuniu os mulas
de todos os distritos para u m a conversa na qual, na presença dos
comandantes de todas as u n i d a d e s de segurança t c h e t c h e n a s
(Iamadev, Kadirov, Alkhanov, R u s l a n , entre outros), ele leu a direti-
va. Significa que agora os h o m e n s de Iamadev, Kadirov, Kokiev e os
outros e os policiais t c h e t c h e n o s p o d e m c o m consciência limpa
matar outros t c h e t c h e n o s e, é claro, n ã o - t c h e t c h e n o s , caso eles
se
j a m suspeitos de terrorismo ou wahhabismo. N ã o haverá necessi-
dade de procedimentos judiciais ou de investigações. Eles t a m b é m
Podem ter certeza de q u e , c o m o m u ç u l m a n o s , estão fazendo a
coisa certa. Mirzaev c h e g o u a declarar que estava preparado para
e
P gar em armas ele próprio.
Dado que todos esses paramilitares tchetchenos e seus c o m a n -
dantes são tecnicamente soldados federais sujeitos às leis da Rússia,
u e
q não reconhecem o Jihad, isto parece marcar outro estágio na
tc
h e t c h e n i z a ç ã o " da guerra.
322
POLITKOVS;

Mas por que o Jihad foi declarado hoje? Depois dos aconte
m e n t o s na aldeia de Borozdinovskaia, na fronteira da Tchetchena
c o m o Daguestão (uma brutal "limpeza" em 4 de j u n h o , durant
qual as forças de Iamadaev raptaram onze pessoas e executaram
operações de roubo em massa, assassinato e incêndio criminoso)
centenas de habitantes fugiram para o Daguestão. Mas havia umà
g r a n d e consternação entre todas aquelas atrocidades. Na Tchet
chênia, o sistema imposto pelos russos, de justiça extrajudicial e
execuções, parecia estar ameaçado.
D u r a n t e muito t e m p o , o arranjo foi:"Nós matamos quem você
nos diz para matar e em troca você cuida de nós." " N ó s " se refere
aos soldados de infantaria. " V o c ê " se refere p r i n c i p a l m e n t e a
Iamadaev e a R a m z a n Kadirov. Estes são os comandantes de campo
da tchetchenização, os protagonistas de u m a guerra civil que colo
ca tchetchenos contra tchetchenos, para cujo sucesso eles receb
ram dragonas federais, armas e imunidade de acusações.
Depois do incidente de Borozdinovskaia, os soldados subalter-
nos da tchetchenização exigiram u m a indulgência adicional para
trabalhar c o m o assassinos de aluguel. R a m z a n Kadirov acertou isso
c o m o mufti, que c o n c o r d o u em declarar o Jihad. Para alguns assas-
sinos tchetchenos do Estado russo, isto é muito importante. Eles se
sentem m u i t o melhor c o m a proteção do Jihad. M u i t o melhor sig-
nifica m u i t o menos inibidos.
A confirmação não d e m o r o u a chegar. Na mesma noite em
q u e o Jihad foi declarado, os assassinos c o m e m o r a r a m cometendo
um assassinato na aldeia de C h e l k o v s k a i a , no t e r r i t ó r i o de
Iamadaev. Foi um crime de audácia e brutalidade excepcionais.
Por volta das dez da noite, vários carros prateados se dirigiram
até a casa deVakhambi Satikhanov, um professor de árabe e dos fun-
d a m e n t o s do Islã na escola local e pai de u m a g r a n d e farruli
T c h e t c h e n o s armados, vestindo uniformes de camuflagem, leva
r a m - n o até cerca de 100 metros da casa e fizeram um círculo com
seus carros. Os vizinhos e amigos tentaram intervir, mas os pararm
v i r a
litares ameaçaram matá-los. D u r a n t e toda a noite, as pessoas ^
carros saindo e chegando, o u v i r a m gritos e tiros, mas somente
madrugada os carniceiros se foram. O n d e estivera o círculo, encon
traram o corpo deVakhambi c o m dezenas de ferimentos a faca, se
dedos quebrados, as unhas arrancadas.
U M PIAR' 0
RUSSO 323

Os vizinhos deVakhambi estão certos de que ele foi m o r t o por


j j e n s do batalhão Vostok da Diretoria Central de Inteligência do
0 r n

e u
GHQ- S comandante, Sulim Iamadaev, recebeu de P u t i n o título
je Herói da Rússia depois das atrocidades em Borozdinovskaia,
dando assim a mais alta sanção possível àquilo que os paramilitares
de Iamadaev lá haviam feito.
A declaração de Jihad n a T c h e t c h ê n i a é mais u m a prova de que
a República pode viver pela lei costumeira e tomar vidas em desa-
fio às leis russas. Em que isso difere das execuções ilegais do t e m p o
de Maskhadov?
O silêncio e a incapacidade para tomar ações corretivas t a m -
bém constituem o sinal mais seguro de que o Jihad t e m a bênção
tácita do próprio Putin.Trata-se simplesmente de mais um passo ao
longo da estrada sem saída da t c h e t c h e n i z a ç ã o p e r c o r r i d a p o r
Putin. Agora todos os muftis d a T c h e t c h ê n i a estão implicados, assim
como no passado a Igreja O r t o d o x a Russa foi cúmplice ao aben-
çoar os crimes de Stalin e Kruschov.
Agora a vida é selvagem, ainda mais que no período soviético,
mas o povo russo parece não se importar. N i n g u é m c o n v o c o u o
procurador-geral para declarar o Jihad nulo e sem valor.

9 de agosto
Continuam as mortes misteriosas de pessoas m u i t o próximas das
autoridades do Estado. Em Sotchi, Piotr S e m e n e n k o caiu de u m a
janela do décimo quinto andar de um hotel. D u r a n t e os últimos 18
anos, ele havia sido C E O da m a i o r fábrica de máquinas operatrizes
da Rússia, a Kirov, que p r o d u z de tudo, de aparelhos sanitários a
turbinas para submarinos nucleares.
Semenenko era u m a i m p o r t a n t e figura na área industrial. Em
s
ua maioria, as pessoas s u p õ e m que ele tenha sido m o r t o devido a
desacordos a respeito da divisão de ativos industriais sob o sistema
de Putin de capitalismo de Estado. Q u e ele foi auxiliado para cair
do décimo quinto andar, n i n g u é m t e m dúvidas.
E n q u a n t o isso, na prisão Matrosskaia Tichina, Mikhail K h o -
dorkovski foi transferido da cela de detenção n° 4, q u e c o m p o r t a
quatro prisioneiros, para a cela n° 1, que c o m p o r t a onze. Ele não
Pode mais receber j o r n a i s , n e m ver televisão. O m o t i v o é, sem
324 ANNA POLITKOVSK AYA

dúvida, seu artigo "Virada para a Esquerda", escrito na prisão


publicado no j o r n a l Vedomosti. Estas são suas principais idéias-

Apesar de todos os deslizes do Estado, q u e m está à esquer


vencerá no final. A l é m disso, eles vencerão democraticamen
em completo acordo c o m a vontade expressa da maioria d~
eleitores. Haverá u m a virada para a esquerda e aqueles qu
continuarem a buscar a política das autoridades de hoje perd
rão sua legitimidade.
N ã o devemos esquecer o fato de que nossos compatrio
se tornaram m u i t o mais espertos do que dez anos atrás. As p
soas que foram enganadas em mais de u m a ocasião não cairão
em outro blefe, p o r mais engenhoso que seja. Levar a cabo o
projeto Sucessor 2 0 0 8 não será fácil. Os recursos do projeto
autoritário pós-soviético na Rússia estão exauridos.

Temo que não c o m p l e t a m e n t e .


A Novaya gazeta c o n v i d o u nossos leitores a apresentar pergun
tas a K h o d o r k o v s k i p o r e - m a i l e p u b l i c o u as respostas por el
enviadas da prisão.

Sergei Panteleiev, um estudante de M o s c o u : " O s burocratas


decidiram ser donos do Estado, para não ser seus servidores.
Estou certo em acreditar que esta foi a verdadeira razão para i
seqüestro de Iukos?"
Khodorkovski: " C a r o Sergei, eles não q u e r e m possuir
Estado, mas sim ativos tangíveis, e em particular a empresa d
maior sucesso do país, a Iukos. Mais precisamente, eles querem
p ô r as mãos na renda. Você está certo ao achar q u e o seqüestro
e a pilhagem da Iukos estão sendo feitos p o r trás de uma corta
na de fumaça de conversa sobre os interesses do Estado. E claro
q u e não é verdade. A destruição da Iukos causará um dano
colossal aos interesses da Rússia. Esses burocratas estão simples-
m e n t e tentando iludir a sociedade, apresentando seus interesses
pessoais c o m o se fossem do Estado."
P e r g u n t a d e G o b l i n (provavelmente u m p s e u d ô n i m o )
"Você não fica triste c o m o fato de seus amigos terem fugid°
para o exterior, em vez de ignorar todos os riscos e voltar para
se j u n t a r e m a você e Lebedev?"
u M DIÁRIO RUSSO 325

Khodorkovski: " C a r o Goblin, ser j o g a d o na prisão não é


algo que eu não desejaria ao m e u pior inimigo e m u i t o menos
a meus amigos. Assim, estou m u i t o satisfeito pelos amigos que
conseguiram evitar a prisão. O que mais lamento é que alguns
dos meus camaradas e colegas foram presos em ligação c o m o
caso da Iukos, em especial Svetlana Bakhmina, q u e é mãe de
dois filhos pequenos."
P e r g u n t a de Vera, T o m s k : "Você está s e n d o o b r i g a d o a
recomeçar a vida. Será que encontrará forças em si m e s m o ou
o trabalho principal da sua vida já está no passado?"
Khodorkovski: "CaraVera, na prisão c o m p r e e n d i u m a ver-
dade simples, p o r é m difícil: o principal não é ter, mas ser. O
importante é o ser h u m a n o , não as circunstâncias nas quais ele
se encontra. Para m i m os negócios são coisa do passado, mas
não estou c o m e ç a n d o m i n h a nova vida da estaca zero, porque
carrego comigo u m a e n o r m e experiência. Agradeço ao desti-
no pela oportunidade única de viver duas vidas, apesar de ter
pago caro pelo privilégio."

No mesmo dia, 9 de agosto, os advogados de Khodorkovski e


de Lebedev receberam u m a o r d e m fixando um prazo para a c o n -
clusão de seus estudos das gravações das audiências no tribunal.
Foram autorizados a vê-las no Tribunal Distrital de Meschanski a
partir de 27 de j u l h o , mas agora começa a surgir t o d o tipo de difi-
culdades. Em 28 de j u l h o , o advogado Krasnov não recebeu as gra-
vações "por razões técnicas". No mesmo dia, o advogado Lipster
também não p ô d e ver as gravações porque parte delas estava "sendo
estudada pelo p r o m o t o r do Estado".
Entre 29 de j u l h o e 8 de agosto, os advogados p u d e r a m ler
somente as gravações de 2 0 0 4 , p o r q u e as de 2005 estavam c o m o
promotor. Em 5 de agosto, os advogados receberam pelo correio
um " s e g u n d o " aviso (embora não tenha havido o primeiro) ins-
trumdo-os a c o m p a r e c e r ao tribunal em 5 de agosto (isto é, no
mesmo dia), para receber "transcrições das gravações da audição".
Q u a n d o as leram, eles descobriram que elas eram diferentes dos
originais e t a m b é m das gravações em áudio das audições no tribu-
nal. Além disso, as supostas transcrições não haviam sido certificadas
oficialmente, n e m havia n e n h u m a numeração dos volumes, pagina-
326 A N N A POLITKOVSKAY

ção interna ou sumário. Os advogados ficaram indignados e regi


traram queixas e sua recusa oficial a aceitar "cópias" que não cor
respondiam aos originais.
Em 9 de agosto, a permissão para ver os registros originais fo
recusada. Para evitar q u e os a d v o g a d o s p u d e s s e m reclamar
Estrasburgo, o presidente do T r i b u n a l , Kurdiukov, recusou-se
confirmar p o r escrito que eles não t i n h a m tido acesso aos registro
oficiais das audiências e precisavam trabalhar exclusivamente co
as "cópias". Eles tiveram até 25 de agosto para comentá-las.
Por q u e Svetlana Bakhmina, m e n c i o n a d a por Khodorkovs' '
numa de suas respostas, está na prisão?
Os funcionários da Iukos viram a prisão da colega c o m o u
alerta. Era óbvio para praticamente todos na empresa que, c o m
parte da c a m p a n h a contra a Iukos, o procurador-geral estava visan
do a f u n c i o n á r i o s subalternos. De fato, se Khodorkovski estav
sendo acusado de coisas que p o d e r i a m se aplicar à grande maioria
dos m a i o r e s e m p r e s á r i o s russos, e n t ã o as acusações contra
Bakhmina p o d e r i a m se aplicar a quase todos os cidadãos comuns.
Svetlana B a k h m i n a recebeu um salário na Iukos durante o
quase sete anos em que lá trabalhou. De acordo c o m a acusação for-
jada pelo procurador-geral, durante a maior parte desse período, ela
era culpada de um crime previsto no artigo 198, Parte 2 ("não paga-
m e n t o de quantias excepcionalmente altas de imposto por pessoa
física"). Por este artigo, Bakhmina p o d e ser condenada a três anos de
prisão, apesar de não ter infringido qualquer lei, não mais que a Iukos
quando lhe pagava através de um esquema chamado "seguro".
Esses esquemas foram disseminados na Rússia durante o perío-
do em q u e o imposto de renda foi fixado em 35%, com contribui-
ções ainda mais punitivas para o b e m - e s t a r social. A essência do
esquema era de q u e o funcionário fazia um seguro de vida usando
o dinheiro da empresa e depois recebia pagamentos contratuais do
seguro, equivalentes a seu salário. C o m o os pagamentos de seguro
não estavam sujeitos ao imposto de renda e eram permitidos pela
legislação fiscal e n t ã o em vigor, o sistema era usado por muitas
empresas privadas, instituições estatais e ministérios, inclusive o
Ministério da Fazenda.
Hoje dizem que você pode ser preso p o r isso. A grande m a i o -
ria da p o p u l a ç ã o adulta ativa p o d e r i a ser presa exatamente pela
DIÁRIO R U S S O 327

mesma infração. Se o tribunal considerar Bakhmina culpada, os tra-


balhadores do país estarão correndo um sério risco. As autoridades
poderiam levantar acusações contra um grande n ú m e r o de pessoas.
Por mais respeitador da lei que você seja, ainda poderá ser preso pela
política fiscal de seu empregador, mesmo nada sabendo sobre ela.

A esta altura, Putin deveria ter indicado os 42 cidadãos que deseja


para liderar sua Câmara Social. Ele não conseguiu fazê-lo porque as
pessoas que gostaria de ter, em especial aquelas c o m reputação de
mentalidade i n d e p e n d e n t e , não q u e r e m ser envolvidas, ao passo
que as que q u e r e m entrar são p o u c o representativas para atestar as
credenciais democráticas de Putin, ou são tão servis que a câmara
seria objeto de riso.

11 de agosto
Em Urus-Martan, seis paramilitares nâo-identificados seqüestraram
Natasha K h u m a n o v a , 4 5 anos, irmã d o c o m a n d a n t e d e c a m p o
tchetcheno D o k u U m a r o v , o s e g u n d o em c o m a n d o de Basaev.
Nada se sabe do seu destino. Em U r u s - M a r t a n , acham que foi um
trabalho dos h o m e n s de Kadirov.
A captura de c o n t r a - r e f é n s está se t o r n a n d o cada vez mais
comum e esta foi claramente u m a dessas manobras, destinada a for-
çar Umarov a se render às forças federais. Alguns tchetchenos c o n -
sideram isto justo e q u e os m é t o d o s primitivos funcionam melhor
do que os legais. O u t r o s simplesmente estão à espera do m o m e n t o
certo para se vingar da Rússia.

12 de agosto
Em Krasnoiarsk, S i b é r i a , 45 m e m b r o s da U n i ã o da J u v e n t u d e
Comunista realizaram u m a marcha por liberdade e democracia.
Eles marcharam pelo centro da cidade exibindo slogans anti-Putin.
As pessoas na rua gritavam " M u i t o b e m ! Para o inferno c o m o
Putin deles!", mas não se juntavam aos manifestantes. N ã o é que as
Pessoas não se i m p o r t e m c o m a Juventude Comunista. C h e g a m até
a te
m ê - l a , c o m seus retratos de C h e Guevara. Eu não marcharia sob
328 A N N A POLITKOVSKAYA

esses retratos. Aqueles jovens não t ê m n e n h u m a experiência das


conseqüências de uma revolução e nasceram no final do "período
de estagnação", na era de Gorbatchov e início da de Ieltsin; as idéias
do c o m u n i s m o t ê m apelo para eles.
A Frente Civil U n i d a de Kasparov pretende reunir todos: os
Jovens Comunistas, partidários provinciais do R o d i n a , o que resta
da direita democrata, partidários do Iabloko nas regiões que desis-
tiram de Iavlinski, os bolcheviques nacionais e os anarquistas.Todos
unidos contra o regime! Depois que vencermos, poderemos deci-
dir o q u e fazer a seguir. Esse é o m e l h o r programa que os democra-
tas p o d e m conseguir.
H o j e foi o u v i d o um apelo no tribunal de Zamoskvoretchie,
c o m ajuíza Ielena Potapova presidindo, contra a recusa do subpro-
curador Iudin, em 22 de julho, de c o n c e d e r à polícia uma ordem
de prisão para Sergei Melnikov, um "simples empreendedor russo".
Tentar questionar os atos do Gabinete do Procurador é muito
i n c o m u m , se não impossível. T a m b é m é m u i t o raro russos c o n c o r -
darem em testemunhar contra mafiosos, pois a retaliação p o d e ser
brutal e n ã o há apoio das autoridades do Estado. A corrupção, mais
disseminada do que nunca, garante que q u e m não pode pagar não
recebe proteção. Assim sendo, q u a n d o Iudin recusou-se a sancionar
a prisão de Melnikov, as vítimas deste q u e haviam fornecido evi-
dências ficaram em apuros q u a n d o o subprocurador decidiu usar
seus poderes em favor do algoz e não em favor delas.
A j u í z a Potapova estava nervosa e irritada, mas o advogado
Alexei Z a v g o r o d n i pediu que ela se pusesse no lugar das vítimas de
Melnikov, de q u e m ele havia extorquido dinheiro de proteção. E
claro q u e M e l n i k o v não estava presente, mas sua advogada e confi-
dente, Natalia Davidova, estava.
Davidova é u m a mulher grosseira e sarcástica que representa e
assessora cerca de quarenta m e m b r o s da máfia de Togliatti há vários
anos. O G a b i n e t e do Procurador da C i d a d e de Moscou deve ter
dificuldades c o m u m a advogada c o m clientes c o m o estes, mas hoje
seu representante no tribunal é Ielena Levchina. Ela repete ao t r i -
bunal e x a t a m e n t e o que Davidova disse. Parece que estamos o u v i n -
do um d u e t o monstruoso e b e m ensaiado, em que as duas insistem
que é impossível criar um precedente em que o procurador p u d e s -
se parecer n ã o estar certo: ele sempre está certo. Esta é uma r e d u -
M DIÁRIO R U S S O 329

o absurdo do princípio pelo qual o procurador deve ser i n d e -


a

V
~ndente dos tribunais.
Davidova apela para o emocional e pinta um retrato tocante de
ângsteres decentes e c u m p r i d o r e s da lei. M e l n i k o v entregou-se
-luntariamente à polícia, q u e ouviu o que ele tinha a dizer, m a n i -
._stou simpatia e o libertou. Assim, Melnikov havia de fato invali-
do o mandado de busca federal e sua detenção em 22 de j u l h o
i ilegal: o s u b p r o c u r a d o r I u d i n havia m e r a m e n t e restaurado o
rincípio da legalidade q u e havia sido violado. E claro que isto é
onversa fiada. No p r o n t u á r i o de M e l n i k o v n ã o existe m e n ç ã o
enhuma a ele ter se entregado voluntariamente a alguém.
Ajuíza Potapova retirou-se para considerar seu veredicto e logo
ltou para declarar q u e o procurador sempre t e m razão e t a m b é m
tinha naquele caso q u a n d o decidiu não sancionar a prisão de
elnikov, apesar de ter sido realizada u m a caçada nacional para
encontrá-lo. Ela rejeitou a queixa e achou que os atos do subpro-
curador não infringiram os direitos constitucionais das vítimas de
elnikov. Exceto, é claro, o importante direito à vida.
"Os arranjos sociais e políticos da Rússia são profundamente
íjustos", diz Vladimir R i j k o v a t o d o m u n d o . Ele é u m a das espe-
ranças de um renascimento democrático, j o v e m e das províncias,
que se sai b e m c o m o público.
Porém, são e x a t a m e n t e esses "arranjos injustos" q u e reforçam
a apatia social e fazem c o m q u e as pessoas r e l u t e m em p ô r a cabe-
ça para fora. O hábito de considerar-se c o m o u m a "pessoa p e q u e -
*" é c o m o o b o t ã o v e r m e l h o na maleta nuclear do presidente —
asta ele apertá-lo e o país está em suas mãos. Estou certa de que
Putin e sua corte c o m b a t e m a corrupção exclusivamente para fins
de relações públicas. Na verdade, a c o r r u p ç ã o lhes é proveitosa; ela
desempenha um papel i m p o r t a n t e em condicionar as pessoas para
que se m a n t e n h a m quietas. E n q u a n t o os tribunais são puxados de
u
m lado para o u t r o pelos criminosos e pelos políticos, ele nada
t e r
n a temer.
Hoje é a terceira vez em que poloneses foram espancados em
t o s c o u e isto não p o d e ser coincidência. Funcionários da embai-
a
d a e um jornalista polonês foram atacados no decorrer de p o u -
°s dias.
330
A N N A POLITKOVSKAYA

Esta é a resposta do Nachi ao tato de, em 31 de julho, os filh


de diplomatas russos em Varsóvia terem sido espancados na saída d
uma discoteca: u m a explosão de xenofobia eslava c o m um subtex
to político, m u i t o ao estilo da Rússia de Putin. Os poloneses anda
ram se e x c e d e n d o ultimamente, c o m e ç a m a dizer as pessoas, inclu
sive algumas perfeitamente decentes e educadas. Aquilo que Lenin
chamava de " c h a u v i n i s m o vulgar de g r a n d e potência", do qual
Putin sofre, está de novo na moda. Assim, se você espancar três dos
nossos, nós espancaremos três dos seus. O fato de a resposta do
governo ter sido demorada e formal só mostra sua aprovação.
O Iabloko exigiu que Putin intervenha pessoalmente e dê pro
teção especial à embaixada polonesa. O problema é que tudo o que
os liberais e democratas p o d e m fazer hoje é apelar para Putin; i
fazer isto e, ao m e s m o t e m p o , exigir sua demissão simplesmente
não é sensato.
Nikita Belikh, o líder da U n i ã o de Forças de Direita, declarou
que " n o coração da maioria dos russos está um desejo de ser uma
pessoa m e l h o r . Nossa tarefa é d e i x a r isto claro para todos".
Infelizmente, no coração da maioria dos russos está um desejo d
não aparecer, particularmente hoje em dia. N ã o queremos atrair
olhar maligno das instituições repressivas. Q u e r e m o s permanece
nas sombras. O q u e você faz nas sombras, d e p e n d e da sua persona
lidade. M u i t o s não q u e r e m sair sob n e n h u m a circunstância; é ciar
que existe um impulso para melhorar, mas manter-se nas s o m b r
está muito mais fundo no coração de t o d o russo. Afinal, depois d
tudo que aconteceu aqui somente no século X X , talvez isso na
constitua surpresa.
U m a pesquisa oficial pôs a Rússia em sétimo lugar no mund
em termos do uso que faz de seu potencial h u m a n o .

13 de agosto
A mais recente tentativa de dar a Putin um terceiro mandato vei
de Adam Imadaev, deputado da Assembléia Legislativa da região i
Primorski e fisiológico b e m conhecido. Ele anuncia que descobri
u m a brecha na legislação que permitiria q u e P u t i n fosse eleito pe
terceira vez. O C o m i t ê Legal do Parlamento de Primorski deci
de imediato examinar o assunto em setembro.
u M DIÁRIO RUSSO 331

16 de agosto
A. Suprema C o r t e causou sensação ao rescindir a proibição, pelo
Tribunal Provincial de M o s c o u , do f u n c i o n a m e n t o do Partido
Bolchevique Nacional. Limonov ficou tão e m o c i o n a d o que disse,
o deixar o prédio do tribunal, que quase tivera restaurada sua fé
a

na Rússia. O p r o c u r a d o r - g e r a l está m u i t o i r r i t a d o e p r o m e t e u
entrar c o m um recurso contra essa decisão j u n t o ao presidente da
Suprema C o r t e .
Os b o l c h e v i q u e s nacionais c o m e m o r a r a m infiltrando-se na
inauguração da prestigiosa Mostra Aeroespacial de M o s c o u 2005,
motivo de o r g u l h o para Putin. C o m p a r e c e r a m todos os tipos de
xeques árabes, b e m c o m o representantes do c o m p l e x o industrial-
militar indiano e o rei Abdullah II da Jordânia, um descendente do
Profeta. Apesar das incríveis medidas de segurança, tão logo Putin
começou seu discurso de a b e r t u r a da m o s t r a , os b o l c h e v i q u e s
nacionais (Deus sabe c o m o conseguiram entrar) começaram a g r i -
tar a apenas 30 metros de distância dele: " A b a i x o Putin!" e alguma
coisa a respeito de ele ser responsável p o r Beslan. Foram imediata-
mente detidos e levados para o posto policial na cidade vizinha de
Jukovskoie.
Três horas mais tarde, foram libertados sem n e m mesmo pagar
uma multa. Eles ficaram totalmente surpresos, pois esperavam aca-
bar na prisão. E possível que os policiais de Jukovskoie não liguem
para Putin. Coisas estranhas acontecem.
Putin e m b a r c o u em um bombardeiro n u m a pista próxima da
Mostra Aeroespacial e seguiu até a província de M u r m a n s k . O pes-
soal da defesa estava preocupado; aquilo podia ser b o m para Putin
em termos de relações públicas, mas para eles era u m a dor de cabe-
ça em termos de segurança. Porém, nossos generais são b e m treina-
dos e sabem q u a n d o não responder. Eles ordenaram que Putin fosse
posto na cabine de c o m a n d o , embora seja contra todos os regula-
mentos. Ele pilotou brevemente o avião e n q u a n t o este estava em
y
elocidade de cruzeiro. A mídia de massa estatal foi ao delírio: Putin
es
tava inspecionando pessoalmente nossa aviação militar! Mas por
u
q e? Talvez para a u m e n t a r seu índice de popularidade?
Naquela noite, mais u m a vez os nachistas espancaram os b o l -
cheviques nacionais. N ã o vale a pena n e m tentar conversar c o m os
332 ANNA P O L I T K O V S R A

Nachi; n e n h u m deles consegue explicar d e forma coerente por n u

entrou para a organização. Os b o l c h e v i q u e s nacionais e outros


jovens de esquerda são completamente diferentes e muito motiva
dos. Os pobres de esquerda p o d e m ser a força revolucionária mais
dinâmica da Rússia. A classe média aspira somente a um modo de
vida burguês e só lamenta que, até agora, não obteve os meios para
sustentar esse nível de consumo.
Entre as organizações de esquerda está a ala j o v e m do Iabloko
que se t o r n o u a espinha dorsal do Defesa, o equivalente russo do
m o v i m e n t o P o r á , q u e foi tão i m p o r t a n t e para o sucesso da
R e v o l u ç ã o Laranja U c r a n i a n a . O Defesa t a m b é m inclui as alas
jovens da U n i ã o de Forças de Direita, da Marchar sem Putin, da
Ação Coletiva e da Nossa O p ç ã o . O c o o r d e n a d o r é ília Iachin,
líder da ala j o v e m do Iabloko, que t e m cerca de 2.000 membros. O
Defesa está t e n d e n d o cada vez mais para a esquerda e seus protes-
tos são cada vez mais parecidos c o m os dos bolcheviques nacionais.
Por sua vez, estes estão evoluindo para as políticas democráticas
predominantes.
Os grupos q u e mais aparecem são os bolcheviques nacionais,
embora seu n ú c l e o tenha sido esvaziado pelas prisões; a Vanguarda
da Juventude Vermelha e a U n i ã o da J u v e n t u d e Comunista. Eles se
algemaram às grades do Gabinete do Procurador-geral, exigindo
u m a reunião. Mas não a conseguiram.
A ideologia do N a c h i foi elaborada p o r profissionais como
Sergei Markov. Ele declarou: "As organizações de jovens com a ideo-
logia da soberania russa, c o m o o Nachi, são u m a panaceia contra a
Praga Laranja." É interessante notar que n e n h u m movimento anti-
Laranja apareceu espontaneamente. M u i t o s t e m e m os Nachi, mas
acho que eles irão simplesmente se esfacelar daqui a algum tempo.

18 de agosto
Ainda há controvérsias a respeito do que irá provocar a queda deste
regime. C o m o irá ruir? A atual oposição é fraca demais e carente de
propósito para derrubá-lo. Um protesto espontâneo do povo russo
parece ainda m e n o s provável.
U m a possibilidade é que, se Putin construir um sistema neo
soviético, ele poderá cair, c o m o antes, pela ineficiência econômica-
DIÁRIO R U S S O 333

A marca registrada do governo Putin é construir o capitalismo de


Estado, criar u m a oligarquia burocrática leal assumindo o controle
j todas a s principais receitas nacionais (que são, e m sua maioria,
e

delegadas a m e m b r o s da Administração Presidencial). Para este fim,


eles precisam renacionalizar empresas que funcionam c o m sucesso,
transformando-as em conglomerados industriais financeiros ou em
empresas holding.
Isto está a c o n t e c e n d o r a p i d a m e n t e . C o n g l o m e r a d o s c o m o
Vnechekonombank,Vnechtorgbank e M e j p r o m b a n k (as chamadas
holdings financeiras "russas" para contrabalançar holdings de aparên-
cia mais ocidental, c o m o o Alfa Group e outros) engolem parcelas
cada vez maiores de empresas de sucesso nascidas depois do colap-
so soviético.
N a t u r a l m e n t e , isto é facilitado p e l o g o v e r n o . E n g o l i r elas
podem, mas não c o n s e g u e m digeri-las, u m a vez que não contam
com gerentes a l t a m e n t e qualificados em n ú m e r o suficiente. Os
conglomerados não conseguem lidar c o m o q u e já t ê m em mãos e
as empresas c o m e ç a m a ficar para trás depois de serem assumidas.
Em c o n s e q ü ê n c i a disso, o c r e s c i m e n t o e c o n ô m i c o no ú l t i m o
semestre caiu para 5,3%, as exportações de capital foram superiores
a 900 bilhões de rublos [US$36 bilhões] e a taxa de crescimento da
renda caiu à metade. Estes dados foram fornecidos pelo Governo
do Povo, formado c o m o alternativa àquele q u e temos, por Gennadi
Semigin, um d e p u t a d o independente da D u m a .
Oleg Chuliakovski está renunciando. Ele gerenciou a Fábrica
Báltica, o mais i m p o r t a n t e estaleiro de superfície no noroeste da
Rússia, desde 1 9 9 1 . Chuliakovski era u m a figura tão importante
que foi m a n t i d o p o r t o d o s os vários p r o p r i e t á r i o s da empresa
depois da sua privatização no início dos anos 90. Está saindo agora
devido ao m o d e l o de desprivatização imposto à empresa em 2005,
depois de sua c o m p r a pela corporação Industrial Unida, controla-
da pelo M e j p r o m b a n k . Ela está sendo fundida c o m três escritórios
de projetos e algumas outras empresas, c o m u m a óbvia perda de
e
ficiência. N ã o se sabe o q u e a a d m i n i s t r a ç ã o presidencial fará
agora sem Chuliakovski no c o m a n d o (e o M e j p r o m b a n k só conse-
guiu engolir a empresa de 150 anos devido aos seus contatos c o m
a
administração).
334 A N N A POLITKOVSKA

Chuliakovski era um pilar da indústria da construção nav


mas até ele desistiu porque o M e j p r o m b a n k está criando u m a h
dind de capitalismo estatal da c o n s t r u ç ã o naval. As empresas
defesa Almaz-Antei e Milia Helicópteros foram ambas despriva
zadas de maneira semelhante. O M e j p r o m b a n k é controlado p
Sergei Pugatchev que, apesar de ser senador e assim não qualific
do para dirigir um banco, continua de fato a fazê-lo. Ele é um dos
chamados oligarcas ortodoxos, um camarada de armas de Putin na
criação de u m a oligarquia de Estado.
O ú n i c o problema c o m o sistema de Putin é que ele levará
décadas para ruir pela estagnação. N i n g u é m duvida do destino que
aguarda a fábrica báltica, m e s m o q u e P u t i n consiga evitar que
estrangeiros e membros de outras tribos avancem mais um centí-
metro no t e r r i t ó r i o russo. Para preservar seu sistema, eles começa-
rão a passar a presidência de um sucessor inútil para outro. Sua
principal característica será a ausência de um rosto e eles irão assu-
mir depois de eleições fraudadas ao estilo soviético.
O m a i o r problema é que, e m b o r a o colapso seja inevitável, nós
não estaremos vivos para vê-lo. E u m a pena, porque gostaríamos
de ver.

19 de agosto
A audiência de hoje do j u l g a m e n t o dos bolcheviques nacionais cai
para o c a m p o da farsa.
" E m 14 de dezembro, olhei e vi u m a agitação. Eu estava ao
lado da sala 14.Vi tudo o que aconteceu. Então, quando vi a estru-
tura do detector de metais caída n u m a posição horizontal..." C o m
a determinação de um detetive provincial, Ievgeni Posadnev apre-
senta esta condenável prova do banco das testemunhas. Ele era dire-
tor de u m a instituição trabalhista corretiva soviética e agora traba-
lha para a administração presidencial c o m o "conselheiro de recep-
ção", o q u e significa que é um m e d i a d o r entre Putin e seu sofrido
pessoal. A fisionomia de Posadnev é e x t r e m a m e n t e grave. Ele esta
denunciando inimigos.
" E m q u e condições estava o d e t e c t o r de metais depois que
esses jovens o derrubaram?", pergunta o promotor.
UM DIÁRIO RUSSO 335

"Ele estava deitado c o m o u m a letra L", explica Posadnev,"mas


deveria estar em pé c o m o uma letra H . "
Até o j u i z C h i k h a n o v está rindo.
" O s rapazes da nossa unidade de segurança", prossegue a teste-
munha, c o m o se estivesse contando ao professor queVasia tinha r o u -
bado maçãs n o v a m e n t e , " b l o q u e a r a m o c a m i n h o deles c o m este
detector, para que aquele grupo de pessoas fosse impedido de se dis-
persar p o r t o d o o prédio da administração. Os rapazes bloquearam o
corredor c o m aquele L e assim desviaram a multidão para a sala 14!"
O p r o m o t o r fica h o r r o r i z a d o . O q u e sua t e s t e m u n h a está
dizendo?
"Isto é, a multidão foi dirigida para a sala 14?", interrompe i m e -
diatamente a defesa. "Eles não entraram lá por vontade própria?"
A acusação, em apoio da qual Posadnev supostamente está tes-
t e m u n h a n d o , diz claramente que a infração grave cometida pelos
39 acusados foi que eles invadiram a sala 14. Esta impertinência é a
razão oficial para eles terem sido mantidos presos por quase nove
meses.
" N ã o , eles não entraram lá p o r vontade própria", insiste a tes-
temunha, t e n t a n d o mostrar c o m q u e bravura o Serviço Federal de
Segurança havia agido e supondo q u e está expondo toda a gravida-
de da ofensa dos invasores. "Eles q u e r i a m correr por todo o prédio,
mas foram forçados para dentro da sala c o m a estrutura do detector
de metais."
"E as portas da sala estavam trancadas?", pergunta a defesa.
" N ã o , estavam abertas'."
" M a s então eles trancaram a sala?"
" N ã o , a porta externa p e r m a n e c e u aberta."
" E n t ã o p o r q u e ela estava q u e b r a d a ? " A total destruição d a q u e -
la porta é o segundo item mais sério dos danos materiais dos quais
os réus são acusados.
" E u vi tudo, eu os vi b l o q u e a n d o a segunda porta c o m um
cofre. Eles estavam se trancando p o r dentro:"
" M a s a porta externa não estava trancada! Por que então eles a
quebraram? E o n d e ela está agora?"
" F o i consertada. Estava arranhada."
P o d e r i a m perguntar q u e m a arranhou. Os promotores se dão
c o n t a disso. Eles estão o l h a n d o para " s u a " t e s t e m u n h a c o m ar
336 A N N A POLITKOVSKAYA

ameaçador e seus lábios estão se m o v e n d o . Poderiam estar prague-


jando? O nível de todas as suas testemunhas foi tão baixo que p r o -
vocou risos.
" N ã o obstante, você t e s t e m u n h o u pessoalmente qualquer uma
dessas pessoas criando tumulto?", pergunta a defesa, inflexível. Este
é o p o n t o principal da acusação.
" N ã o " , m u r m u r a a testemunha desapontada. " N ã o houve
tumulto."
Ele sacode a cabeça. Afinal, até q u e p o n t o p o d e m esperar que
ele invente?
Este j u l g a m e n t o não t e m base legal, mas há um imperativo
ideológico para separar aqueles que estão " d o nosso lado" dos que
não estão. Isso faz parte de um processo nacional mais amplo de
separação. Os bolcheviques nacionais precisam ser punidos — c o m
ou sem base legal.
E claro q u e os métodos exibidos no Tribunal Nikulin são ridí-
culos, mas q u e m p o d e vê-los ou ouvi-los? Somente as poucas pes-
soas presentes. O resto do país recebe a mensagem de que as a u t o -
ridades n ã o estão b r i n c a n d o e q u e m n ã o está do lado delas vai
preso. Castigue pessoas assim. N ã o demonstre piedade e sua carrei-
ra irá florescer.
Platon Lebedev, amigo e defensor de Khodorkovski, foi trans-
ferido para u m a cela punitiva por ter se recusado a sair para os exer-
cícios. U m a semana atrás Lebedev, q u e sofre de cirrose hepática, foi
transferido do hospital da prisão para u m a cela c o m u m e sua saúde
se d e t e r i o r o u de forma aguda. Ele se recusou a fazer exercícios p o r -
que não tinha forças. Eles se agarraram a isto: u m a cela punitiva é
um lugar e x t r e m a m e n t e ruim; não há lençóis, n e m aquecimento e
a dieta é de p ã o e água. O s e g u n d o m o t i v o é q u e o T r i b u n a l
M i t c h u r i n lhe deu até 25 de agosto para ler os registros das audi-
ções do caso Iukos. Lebedev ficará na cela punitiva até 26 de agos-
to e, c o m o nela não p o d e m entrar n e m papéis n e m livros, ele será
incapaz de preparar um recurso contra o veredicto.
E claro q u e Lebedev ainda t e m Khodorkovski e este está evi-
d e n t e m e n t e escrevendo seus comentários. O veredicto será dividi-
do entre os dois e eles têm advogados excelentes. Apesar disso, este
espírito de vingança contra pessoas cujo único crime foi deixar de
se declarar culpadas é monstruoso.
UM D I Á R I O RUSSO 337

Há u m a boa razão de p r e o c u p a ç ã o a respeito deste país. Os


atuais líderes do m u n d o p õ e m o rabo entre as pernas e trocam b e i -
jos c o m Putin em vez de reprimi-lo.

21 de agosto
O u t r o aniversário do golpe de 1991 contra G o r b a t c h o v e nossa
libertação dele. Cerca de oitocentas pessoas foram a u m a c o m e m o -
ração organizada pelo partido da Rússia Livre. N ã o tive vontade de
parar q u a n d o passei por ela. N ã o há liberdade; então, o que há para
comemorar? Desde aquela data, trouxemos de volta o q u e tínha-
mos antes.
Oficialmente, 5 8 % das pessoas pesquisadas aprovam o slogan
"A Rússia para os russos". O u t r o s 58%, quando lhes perguntaram
o que fariam se ganhassem um salário decente, disseram que c o m -
p r a r i a m i m e d i a t a m e n t e p r o p r i e d a d e s no exterior e e m i g r a r i a m .
Isto é u m a sentença de m o r t e para a "Rússia Livre" e t a m b é m
explica p o r que não temos revoluções ultimamente. Estamos espe-
rando q u e alguém a faça para nós.

23 de agosto
Algumas mães de crianças q u e m o r r e r a m em Beslan se trancaram
no prédio do tribunal em Vladikavkaz, na Ossétia do N o r t e , o n d e
N u r p a c h a Kulaev está sendo julgado. Oficialmente, ele é o único
terrorista de todos os q u e t o m a r a m a escola.
D e p o i s da tragédia, as m ã e s disseram que só confiavam em
Putin e t i n h a m certeza absoluta de que ele iria garantir um i n q u é -
rito objetivo. Putin p r o m e t e u que sim. Um ano se passou. P o r é m ,
o i n q u é r i t o exonerou todos os burocratas e agentes de segurança
que planejaram e executaram o ataque que levou à m o r t e de tantas
crianças e adultos. Agora as mulheres estão exigindo que elas m e s -
mas sejam presas. Elas se consideram responsáveis pela m o r t e de
seus próprios filhos, p o r q u e votaram em Putin. Sua invasão é um
ato de desespero.
Khodorkovski entrou em greve de fome na prisão Matrosskaia
Tichina, recusando até m e s m o água, em sinal de solidariedade para
c o m seu amigo Platon Lebedev, gravemente enfermo. Por i n t e r m é -
338 A N N A POLITKOVSKAYA

dio de seu advogado, Khodorkovski declarou que a transferência d


L e b e d e v para u m a cela punitiva era obviamente u m a retaliação
pelos artigos que ele, K h o d o r k o v s k i , havia publicado nos jornais
depois do veredito.
Bravo, Khodorkovski! N ã o pensei q u e ele fosse capaz disso.
Estou feliz p o r ter errado. Agora ele é um de nós. Oligarcas não
fazem greve de fome; são pessoas c o m o nós que fazem.
N o s últimos seis meses, a greve de fome t o r n o u - s e o único
m e i o de afirmar o direito à livre palavra, um direito supostamente
garantido pela Constituição. Há muita coisa que não se p o d e mais
falar, mas ainda é possível fazer u m a greve de fome para mostrar
q u e se foi silenciado. C o m p a r e c e r a reuniões de protesto t o r n o u - s e
praticamente inútil, meras pregações aos convertidos; aqueles que
c o m p a r t i l h a m de suas opiniões já c o n h e c e m a situação; p o r que
então continuar a lhes falar a este respeito? Fazer piquetes é inútil,
a m e n o s q u e seja para salvar sua consciência. Ao menos você p o d e -
rá contar a sua neta que fez mais do que expressar seu m a u h u m o r
na cozinha de sua casa. N e m m e s m o escrever livros q u e não são
publicados na Rússia por suas idéias dissidentes têm m u i t o impac-
to. Eles só são lidos por pessoas q u e vivem no exterior.
Assim, em 2005, a greve de fome é uma das poucas maneiras de
t o r n a r c o n h e c i d o seu protesto. A l é m disso, é uma coisa q u e qual-
quer um p o d e fazer. Todos nós p o d e m o s deixar de comer. Além
disso, não é preciso pedir u m a autorização do Estado para fazê-la.
O u t r a vantagem i m p o r t a n t e : na Rússia, todos suspeitam que
todos q u e r e m fazer relações públicas; mas que espécie de relações
públicas é u m a greve de fome? E evidente que ela é feita p o r uma
pessoa desesperada.
Assim, e n q u a n t o gozamos este veranico, o que a nova tática
t e m conseguido? Por três semanas em julho, os Heróis da Rússia,
da U n i ã o Soviética e do Trabalho Socialista estiveram em greve de
fome. E n q u a n t o isso, Putin deu apoio de relações púbhcas a c r i m i -
nosos neofascistas, c o m e n d o c o m eles n u m a tenda em Tver, insul-
tando ostensivamente os Heróis. Apesar disso, a greve de fome deles
foi m u i t o eficaz.
Os prisioneiros da colônia penal em Lgov fizeram u m a greve
de fome para chamar atenção para as torturas que estavam sofren-
do. E m b o r a as conseqüências t e n h a m sido terríveis, eles estão send
UM D I Á R I O RUSSO 339

menos torturados. De qualquer maneira, houve barulho suficiente


para p e r t u r b a r o t r a n q ü i l o t r a b a l h o do T r i b u n a l de D i r e i t o s
H u m a n o s da Europa. O g o v e r n o foi obrigado a reagir e, q u e m
sabe, os brutos que dirigem outras prisões na Rússia v e n h a m a ser
mais prudentes no futuro.
As vítimas de espancamentos pela polícia em Rasskazovo, na
província de Tambov, entraram em greve de fome, alertando que
" n ã o mais agüentaremos h u m i l h a ç õ e s , insultos e violência física
dos órgãos de c u m p r i m e n t o da lei". Os agressores pararam. Mais
uma greve e é possível que sejam presos.
F i n a l m e n t e , os b o l c h e v i q u e s nacionais do caso de 14 de
d e z e m b r o c o m e ç a r a m u m a g r e v e d e fome e m suas celas e m
M o s c o u , exigindo a libertação de todos os prisioneiros políticos.
Q u e m não vê que eles mesmos são prisioneiros políticos?
As autoridades registraram em silêncio este verão de greves de
fome, m e s m o que se refiram a ele só indiretamente, c o m o fizeram
em Sotchi q u a n d o observaram q u e os funcionários deviam se m a n -
ter à distância do povo. P o r é m , o Estado está se conscientizando de
que as pessoas não estão b r i n c a n d o . São pessoas que n ã o irão se
e n t e n d e r c o m ele, sob n e n h u m a circunstância. U m a greve de fome
não é um diálogo c o m as autoridades, mas c o m seus concidadãos.
Reflito que n i n g u é m consegue imaginar o primeiro-ministro
Fradkov, Surkov ou o p r ó p r i o P u t i n fazendo greve de fome. N ã o é
o estilo deles. Dar um passeio em um bombardeiro, supostamente
sem guarda-costas, t u d o b e m . P o r é m , um protesto c o m o o q u e
Khodorkovski dividiu agora c o m o povo está fora de questão.

24 de agosto

As mães voltaram a Beslan.


" N ó s , mães de Beslan", diz Marina Park, "somos culpadas de
ter d a d o vida a crianças condenadas a viver n u m país q u e decidiu
que n ã o necessitava deles. S o m o s culpadas de votar em um presi-
dente q u e decidiu que as crianças eram descartáveis. Somos culpa-
das p o r guardar silêncio d u r a n t e dez anos a respeito da guerra que
está s e n d o travada na T c h e t c h ê n i a , q u e deu o r i g e m a rebeldes
c o m o Kulaev."
340 A N N A POLITKOVSKAYA

Ella Kesaeva, outra mãe que p e r d e u seu filho, interrompe: "O


principal culpado é Putin. Ele se esconde por trás da Presidência.
Preferiu não nos ver e se desculpar. É u m a tragédia que vivamos
c o m um presidente desses, que se recusa a assumir responsabilidade
por qualquer coisa."
P o u c o depois disso, soube-se q u e P u t i n estava c o n v i d a n d o
representantes do C o m i t ê de Mães de Beslan para que se e n c o n -
trassem c o m ele em M o s c o u em 2 de setembro. Inicialmente as
mulheres ficaram indignadas: 2 de setembro era um dia de c o m e -
moração dos mortos. Elas não p o d e r i a m ir. Então a administração
presidencial as informou secamente de que o encontro entre Putin
e o povo de Beslan aconteceria c o m ou sem elas; seria encontrada
u m a pessoa para dizer a Putin, diante das câmeras de televisão, o
quanto todos o a m a m em Beslan. Sempre se acha alguém assim na
Rússia.
O q u e deveriam elas decidir? Imediatamente depois da atroci-
dade, P u t i n p r o m e t e u que toda a verdade seria revelada. Muitos
acreditaram nele, inclusive as "mães n e g r a s " que haviam perdido
seus filhos. P o r solicitação pessoal do presidente, foi formada u m a
Comissão Parlamentar para investigar as causas e circunstâncias dos
eventos em Beslan, presidida p o r Alexander Torchin, que p r o m e t e u
que o relatório detalhado e honesto da Comissão estaria pronto até
março de 2 0 0 4 .
N a d a aconteceu. Até hoje não há relatório e a investigação se
t r a n s f o r m o u em zombaria. M u i t a s das pessoas q u e haviam sido
reféns na escola ficaram tão irritadas q u e se recusaram a depor no
absurdo j u l g a m e n t o de Kulaev.
" O b v i a m e n t e ninguém foi culpado ou não dariam medalhas a
todos eles", c o m e n t a Marina Park em t o m cáustico. Os cidadãos de
Beslan ainda estão sozinhos c o m sua tristeza. Pessoas v ê m fotogra-
fá-los c o m o animais no zoológico e se vão. Perguntam se precisam
de dinheiro e eles respondem que a única coisa que q u e r e m é a
verdade.

27 de agosto
O presidente da Comissão Parlamentar sobre Beslan, Alexander
Torchin, a d m i t e que o relatório pelo qual Beslan espera há tanto
UM DIÁRIO RUSSO 341

t e m p o simplesmente não existe. " H á s o m e n t e algumas páginas


soltas."
A Rússia dá de ombros.

29 de agosto

No Tribunal Nikulin, durante t o d o o verão, somente 13 das 26 tes-


temunhas da acusação foram interrogadas. As da defesa ainda não
foram convocadas.
As autoridades estão retardando deliberadamente o j u l g a m e n -
to dos bolcheviques nacionais e os m a n t ê m na prisão, p o r q u e ima-
ginam que isso fará c o m q u e outros pensem duas vezes. Na verda-
de, isso só fortalece as convicções deles. E n q u a n t o os filhos estão na
prisão sob acusações simplesmente inventadas, seus pais começaram
a seguir a liderança deles. Estão organizando encontros de protesto,
fazendo piquetes, j u n t a n d o - s e a movimentos de oposição.
Agora os comunistas p e r m i t e m que os bolcheviques nacionais
realizem suas reuniões semanais nas suas instalações e a aliança dos
ativistas de esquerda está se t o r n a n d o m u i t o sólida. P o r é m , esta
noite, quando os bolcheviques nacionais estavam chegando, foram
atacados e brutalmente espancados por indivíduos mascarados c o m
uniformes de combate e b r a n d i n d o tacos de beisebol.
Depois do ataque, os assaltantes entraram calmamente em um
ônibus que estava à espera e se foram. A polícia foi chamada, perse-
guiu e parou o ônibus. Entraram e voltaram dizendo q u e o ônibus
estava cheio da "nossa g e n t e " . O que estava acontecendo? Simples-
m e n t e , aqueles " d o nosso l a d o " t ê m permissão para espancar os que
" n ã o estão do nosso lado". Os nachistas v ê m atacando os bolchevi-
ques nacionais c o m tacos de beisebol desde o início de janeiro. Em
29 de janeiro e 5 de março, h o u v e ataques em larga escala p o r ati-
vistas N a c h i à sede dos Bolcheviques Nacionais, que foi saqueada.
Mais u m a vez, desordeiros politicamente inspirados chegaram e se
foram em um ônibus p e q u e n o , equipados c o m tacos de beisebol.
Eles até trouxeram um gerador portátil para serrar a porta.
Os atacantes foram verificados pela polícia e liberados. Em 12
de fevereiro, no m e t r ô de M o s c o u , criminosos s u r p r e e n d e r a m e
espancaram não só bolcheviques nacionais, mas t a m b é m o pai de
um dos 39 que estão presos. Mais u m a vez, eles foram levados até
342 A N N A POLITKOVSKAYA

um posto da polícia e liberados. A cada vez, a polícia fazia um b o l e -


tim de ocorrência e chegou a c o m e ç a r a fazer acusações criminais
mas ou as deixavam de lado ou as p u n h a m no gelo. "Vocês preci-
sam e n t e n d e r " , suspiravam os investigadores. "É a política..."
" N ã o existe urgência p o r parte dos investigadores", c o n t o u -
me D m i t r i Agranovski, o advogado que representava o pai agredi-
do. " O s arquivos n e m foram enviados ao tribunal, apesar das trans-
gressões serem muito mais claras do q u e aquelas dos bolcheviques
nacionais q u e invadiram a área de recepção de Putin, e a violência
foi m u i t o maior. Muitas pessoas tiveram ferimentos graves. Estamos
t e n t a n d o impedir que o processo seja completamente encerrado,
mas está claro que ele não vai dar em nada."
E agora este novo ataque. Os Gladiadores do Spartak precisa-
v a m de p r o t e ç ã o contra a lei. Eles a e n c o n t r a r a m e agora estão
usando seus p u n h o s para retribuir a confiança neles depositada pela
administração presidencial.
E exatamente c o m o na Tchetchênia. O governo toma sob sua
proteção pessoas que têm, de preferência, vários processos criminais
p e n d e n t e s contra elas. Eles são anulados em troca da garantia de
que " e n q u a n t o estiver conosco, n i n g u é m poderá levantar um dedo
contra v o c ê . Espanque q u e m levantar". (Na Tchetchênia, é : " M a t e
q u e m você quiser.")
Será q u e veremos o dia em q u e o presidente decretará que
bandidos c o m o R o m a e R a m z a n deverão receber honras do Esta-
do russo?
T a m b é m é óbvio q u e o r e g i m e está ansioso p o r j o g a r um
g r u p o de jovens contra outro para que, depois da luta, haja equilí-
b r i o entre os dois lados, para q u e o ó d i o não deixe a sociedade.
M e d o e confronto são muito mais úteis; a busca da harmonia social
não faz parte da pauta do governo. Ele espera que a existência de
diferentes grupos sociais adversários venha a ser o tapete mágico
sobre o qual ele voará até sua meta de mais quatro anos no p o d e r e
no controle das receitas do país, e n q u a n t o nós continuamos nos
espancando uns aos outros. Isso é o q u e vejo por trás dos ataques
aos bolcheviques nacionais p o r equipes b e m organizadas usando
tacos de beisebol.
UM DIÁRIO RUSSO 343

30 de agosto
O C o n s e l h o Militar da Suprema C o r t e está estudando um recurso
contra a absolvição de u m a u n i d a d e de Operações Especiais pelo
Tribunal Militar do n o r t e do Cáucaso. Essa unidade, subordinada à
Diretoria Central de Inteligência, m a t o u seis pessoas e q u e i m o u
seus corpos no distrito de C h a t o i , na Tchetchênia, em janeiro de
2002. O veredicto foi considerado ilegal e o processo enviado de
volta para reconsideração.
Isso é m u i t o i n c o m u m . As objeções básicas ao primeiro v e r e -
dicto foram violações grosseiras dos procedimentos na seleção dos
jurados e na conduta do j u i z aos lhes dar instruções políticas antes
de q u e eles se retirassem para deliberar sobre o veredicto.
A u n i d a d e de Eduard U l m a n foi absolvida p o r q u e , e m b o r a
tenha m a t a d o e queimado suas vítimas, não poderia ser responsabi-
lizada p o r q u e estavam somente c u m p r i n d o as ordens de seus supe-
riores, q u e não podiam ser questionadas. O tribunal ignorou total-
m e n t e o fato de não haver ordens escritas, somente indicações vela-
das de um obscuro diretor da operação, cuja voz foi ouvida através
de um walkie-talkie.A Suprema C o r t e t a m b é m ignorou este i m p o r -
tante detalhe.
O q u e acontecerá a seguir? Esta é a terceira vez em q u e o caso
foi revisto, mas infelizmente ele ainda será j u l g a d o em R o s t o v -
s o b r e - o - D o n . Se o Conselho Militar estivesse esperando seriamente
um veredicto de culpado, U l m a n e sua unidade seriam n o v a m e n t e
detidos e o caso não teria voltado para Rostov, o n d e é praticamen-
te impossível formar um j ú r i radicalmente diferente dos anteriores.
Os j u r a d o s de R o s t o v foram de opinião que U l m a n estava perfei-
t a m e n t e em seus direitos; ele estava executando u m a missão para a
pátria e, de qualquer maneira, todos os tchetchenos são culpados a
priori. O forte sentimento antitchetcheno é um fato da vida no sul
da Rússia.
Por que nesta ocasião o veredicto foi deixado de lado? Afinal,
a Suprema C o r t e tem um l o n g o histórico de fechar os olhos para
assuntos inconvenientes. Ela está fazendo o j o g o de Putin. Q u a n d o
se e n c o n t r o u c o m os defensores dos direitos h u m a n o s no início do
verão, o presidente disse q u e ficara chocado c o m a absolvição de
U l m a n e seus comandados. Assim, a Suprema Corte se apressou em
344 A N N A POLITKOVSKAYA

ajudá-lo a superar o choque, r e t o m a n d o o caso, e o que acontecer


depois disso não é problema dela.
Mas a Diretoria Central de Inteligência (GRU) p o d e ser força-
da a se c o n t e r p o r um curto período. As subdivisões de Operações
Especiais dessa organização sanguinária continuam a "desinfetar" a

T c h e t c h ê n i a , operação na qual U l m a n e seu destacamento estavam


envolvidos, e o fato de não sabermos de casos semelhantes se deve
simplesmente ao fato de que não são registrados. As atrocidades na
aldeia de Borozdinovskaia em 4 de j u n h o também foram c o m e t i -
das p o r um destacamento do G R U . O assassinato, em 4 de j u l h o , de
A b d u l - A z i m Iangulbaev, chefe do governo da aldeia de Z u m s o i , é
outro exemplo.
O p a n o de fundo para o caso de Iangulbaev é que, em janeiro,
quatro pessoas foram seqüestradas de Z u m s o i por um g r u p o de sol-
dados lançados de pára-quedas de helicópteros. Nada mais foi ouvi-
do delas. A seguir, os soldados ficaram furiosos, espancando aldeões e
se apoderando, por exemplo, de 250 mil rublos [US$10.000] que
uma das famílias tinha acabado de receber c o m o compensação pela
destruição da sua casa. Abdul-Azim Iangulbaev fez o possível para
e n c o n t r a r os aldeões seqüestrados. A p e l o u para organizações de
direitos h u m a n o s e falou dos excessos cometidos pelos soldados,
um fato i n c o m u m hoje na T c h e t c h ê n i a . E não apenas lá.
Na primavera, ele enviou ao C e n t r o M e m o r i a l de Direitos
H u m a n o s e ao Gabinete do P r o c u r a d o r um rascunho de relatório
feito p o r um dos soldados envolvidos nas operações de janeiro que
dava os n o m e s dos militares no c o m a n d o dos sequestros e m e n c i o -
nava o b o m b a r d e i o de casas e o assassinato de um dos aldeões.
Em 4 de j u l h o , o jipe de Iangulbaev foi detido numa estrada de
m o n t a n h a p o r três homens mascarados, que apresentaram creden-
ciais do G R U e ordenaram que ele saísse do carro e mostrasse sua
carteira de identidade. Q u a n d o foi abrir o porta-malas para que
fosse inspecionado, ele foi m o r t o à queima-roupa c o m u m a arma
dotada de silenciador.

31 de agosto
Há u m a divisão em Beslan. As mães devem ou não ir a M o s c o u
para se encontrar c o m Putin em 2 de setembro?
UM DIÁRIO RUSSO 343

Ao que parece, Putin acha q u e elas elevem: um avião especial


será enviado para buscá-las. Isto não t e m precedentes, mas Beslan
t a m b é m não. Porém, muitas das mães estão se recusando a ir. Hoje
a delegação dos que vão ao Kremlin não consiste exclusivamente
em mães q u e perderam seus filhos e queriam há m u i t o contar a
Putin t u d o o que lhes vai na cabeça. Ela inclui, é claro, Teimuraz
Mamsurov, o pai de duas crianças q u e sobreviveram na escola e
que, na época do ataque terrorista, era líder do parlamento republi-
cano. H o j e ele é "diretor" da Ossétia do N o r t e . As repúblicas não
t ê m mais presidentes, mas se é diretor ele claramente goza da c o n -
fiança de P u t i n . M a m s u r o v n ã o criará confusão na presença de
Putin para descobrir a verdade a respeito do ataque terrorista. Ele
não cometerá suicídio político.
O u t r o m e m b r o da d e l e g a ç ã o é M a i e r b e k Tuaev, d i r e t o r da
C o m i s s ã o Pública para a D i s t r i b u i ç ã o de Ajuda H u m a n i t á r i a . A
filha de Maierbek foi morta, mas, depois das atrocidades, q u a n d o
choveu ajuda humanitária na cidade, vinda do m u n d o inteiro, ele
foi n o m e a d o para distribuí-la.Também há Azamat Sabanov, filho de
Tatarkan Sabanov, ex-diretor da Primeira Escola que, c o m o fazia
o
t o d o s os anos, havia ido para o desfile de I de s e t e m b r o e foi
m o r t o no ataque. Azamat é assessor de Maierbek Tuaev para a dis-
tribuição da ajuda humanitária, q u e funciona c o m o um narcótico
n u m a cidade que passa a maior parte do t e m p o no cemitério.
Telefono para Marina Park e ela conta: "Estou no cemitério."
Posso ouvir muitas vozes em volta dela. Ela é um m e m b r o extre-
m a m e n t e ativo do C o m i t ê das Mães de Beslan. Marina foi u m a das
primeiras signatárias das muitas cartas enviadas pelo comitê a insti-
tuições envolvidas no i n q u é r i t o sobre a tragédia, mas decidiu não
comparecer ao encontro c o m P u t i n em 2 de setembro. " N ã o faz
sentido viajar mil quilômetros para receber condolências", disse ela,
inflexível, ainda no c e m i t é r i o . " E l e não está nos r e c e b e n d o para
seguir em frente c o m o i n q u é r i t o , mas porque quer ser fotografado
conosco."
A l e x a n d e r Gumetsov, cuja filha Aza, de 12 anos, foi m o r t a ,
t a m b é m não quer mais ver o presidente.
C o n h e c i Alexander este ano. Ele estava e ainda está profunda-
m e n t e deprimido. Aza era sua única filha. H o u v e um t e m p o em
q u e ele queria muito contar t u d o sobre o que sua família passou até
346 A N N A POLITKOVSKAYj

finalmente receber os restos mortais da filha, identificada soment


pelos testes de D N A . Mas agora, c o m o a maioria das pessoas na
cidade, Alexander sente que foi enganado tantas vezes no ano pas-
sado q u e nada poderá restaurar sua fé nas autoridades do Estado.
M e s m o que Putin quisesse passar t o d o o mês de setembro c o m as
pessoas de Beslan; mesmo q u e não houvesse n e n h u m a m e n ç ã o a
dinheiro e apenas a discussão da necessidade de um i n q u é r i t o sério;
m e s m o que Putin obrigasse o procurador-geral, o diretor do FSB,
o ministro do Interior e todos os condecorados "heróis de Beslan"
a falar a verdade às mães na sua presença; mesmo que ele de repen-
te se arrependesse e beijasse a m ã o daquelas mulheres, perante as
quais ele sempre será culpado, e jurasse arrancar a verdade dos seus
serviços de segurança — m e s m o assim ele não acreditaria.
E assim duas ou três mães, das vinte que haviam sido convida-
das, irão ao Kremlin. Elas servirão para influenciar os h o m e n s poli-
t i c a m e n t e mais confiáveis, convidados para o e n c o n t r o de Putin
c o m o C o m i t ê das Mães de Beslan.
A m ã e de Aza, R i m m a Tortchinova, é u m a das q u e vão. Ela
q u e r olhar P u t i n nos olhos q u a n d o lhe fizer algumas perguntas
i m p o r t a n t e s que não foram respondidas. R i m m a não t e m ilusões,
mas acha que é sua obrigação para c o m a m e m ó r i a da filha. Ela irá
a M o s c o u de qualquer m a n e i r a . Perguntará sobre os quartéis a
partir dos quais a operação foi dirigida, sobre o ataque, os lança-
dores de granadas, o papel dos helicópteros federais sobrevoando
a escola.
P o d e m o s apenas imaginar as dificuldades que ela irá enfrentar
em 2 de setembro, assim c o m o as outras mulheres que irão ver o
p r e s i d e n t e . Q u e solidariedade p o d e a sociedade oferecer a elas
neste m o m e n t o ? Podemos ao m e n o s estender a m ã o para que elas
sintam não só sua dor, mas t a m b é m o apoio do país q u a n d o enfren-
tarem o frio do Kremlin. Talvez então nosso presidente ache mais
difícil "gerenciar" tudo de forma cínica e seja obrigado a responder
h o n e s t a m e n t e às perguntas delas.
Há poucas evidências de solidariedade social. Assistimos ao
drama das mães de Beslan pela televisão. Vemos seus lamentos no
tribunal em Vladikavkaz, trancando-se em sinal de protesto, reali-
zando reuniões, bloqueando a rodovia, exigindo ver o subprocura-
dor-geral Chepel, que está visivelmente constrangido p o r ter de
U M D I Á R I O RUSSO 347

m e n t i r indefinidamente para elas. O país está sedado p o r esta nove-


la, inclinado a m u r m u r a r s o m e n t e que "elas estão fora de si de tris-
teza" e, afinal, o t e m p o irá curá-las e não há nada a ser feito.
Vamos assistir à e d i ç ã o v e s p e r t i n a do p r o g r a m a n o t i c i o s o
Vremia e iremos para a cama esquecendo as mulheres c o m véus
pretos até o próximo episódio de As Mães de Beslan. Os h o m e n s de
Beslan c o n t i n u a r ã o p e r d e n d o a cabeça, c u l p a n d o - s e p o r t u d o ,
e n q u a n t o as mulheres c o n t i n u a m a viver no novo cemitério de sua
cidade.
o
A m a n h ã é I de setembro. Um ano se passou e n e n h u m dos
incompetentes burocratas, generais, diretores de serviços de inteli-
gência, oficiais de quartéis operacionais ou m e s m o chefes da polí-
cia foi responsabilizado. De qualquer maneira, n i n g u é m está exi-
gindo isso. O que aconteceu c o m a opinião pública?
o
Em I de setembro de 2 0 0 5 , ficou claro q u e o m o v i m e n t o
democrático está em colapso. N ã o haverá n e n h u m a frente unida,
seja na realidade ou nas eleições para o Parlamento t c h e t c h e n o em
novembro, as eleições para a D u m a de M o s c o u em d e z e m b r o ou
nas eleições para a D u m a em 2007. O C o m i t ê 2008 é um fantas-
ma. O Congresso dos Cidadãos está em coma. A elite intelectual
russa não conta c o m n e n h u m fórum no qual possa influenciar a
governança do Estado.
Sim, Gary Kasparov e n t r o u para a Frente Civil U n i d a , embora
esta não pareça estar atraindo muitos membros. Ela formula assim
sua missão:

Em futuro próximo, a estagnação de Putin será substituída por


u m a séria crise política criada pelas próprias autoridades do
Estado e não pelos democratas. A principal tarefa que temos
diante de nós antes q u e ocorra essa crise é criar u m a organiza-
ção capaz de unir todos os cidadãos responsáveis contra o regi-
me quando este finalmente perder a cabeça. Precisamos apren-
der a organizar nossa oposição.

São palavras verdadeiras, mas o problema que sufoca todas as


boas palavras é que todos os m e m b r o s da Frente Civil Unida, c o m
exceção de Kasparov, t ê m um histórico de derrota eleitoral. Entre
essas pessoas, que fizeram parte dos movimentos democráticos nos
anos anteriores a Ieltsin, há algumas que se c o m p o r t a r a m de forma
348 A N N A POLITKOVSKAYA

desastrosa no fim do período de Ieltsin e tornaram possível a c h e -


gada da era Putin.
Para deixar claro, não acredito q u e as convicções democráticas
dessas pessoas sejam tão profundas. N ã o confio em n e n h u m a delas,
c o m exceção de Kasparov, e duvido que ele seja capaz de mover
m o n t a n h a s sozinho. Milhões de outros russos t a m b é m não confiam
nessas pessoas.
V l a d i m i r R i z h k o v ainda d i r i g e o P a r t i d o R e p u b l i c a n o da
Rússia, visto pelo povo c o m ceticismo ainda maior. Ele existe há 15
anos, t e n d o surgido de um improvável agrupamento do período de
Ieltsin, a "Plataforma Democrática do Partido Comunista da U n i ã o
Soviética", p o r q u e esse monstro já existia e na época parecia m u i t o
progressista. O povo também não o apoia.
Iavlinski r o m p e u publicamente c o m a U n i ã o de Forças de D i -
reita, ao p o n t o de se recusar a ter qualquer coisa a ver c o m Nikita
Belikh, seu novo líder. Isso acaba c o m qualquer esperança de a d e -
são entre a U n i ã o e o Iabloko. O ú n i c o elemento ativo no Iabloko
é sua ala j o v e m , sob ília Iachin. Seus protestos se assemelham cada
vez mais àqueles dos b o l c h e v i q u e s nacionais de L i m o n o v . O
Iabloko J o v e m não tem o próprio Iavlinski em alta conta, talvez p o r -
que seus m e m b r o s sejam muito mais puros, mais honestas e, mais
importante, mais apaixonados que os velhos democratas, dos quais
Iavlinski é um exemplo típico. A visão de que os velhos democratas
p e r t e n c e m ao passado está hoje m u i t o disseminada.
A U n i ã o de Forças de Direita está ocupada em bajular a a d m i -
nistração presidencial, enfatizando q u e "nada tem contra P u t i n " .
No verão, Belikh circulou por 45 regiões do país tentando m o b i l i -
zar pessoas de direita. Nada conseguiu.
Q u a l q u e r pessoa que no m o m e n t o esteja tentando fazer algo
de válido na Rússia está se deslocando para a esquerda. K h o d o r -
kovski está certo, apesar de todos os democratas terem c o n d e n a d o
suas idéias enviadas da prisão. A Marcha para a Esquerda da Rússia
é um fato consumado, que t a m b é m elimina qualquer possibilidade
de u m a R e v o l u ç ã o Laranja russa. N ã o haverá na Rússia n e n h u m
grande avanço revolucionário c o m laranjas, tulipas ou rosas.
Nossa revolução, se vier, será vermelha, porque os comunistas
são quase a força mais democrática do país e porque ela será san-
grenta. A R e v o l u ç ã o Laranja na Ucrânia reuniu por algum t e m p o
UM D I Á R I O RUSSO 349

todos os nossos democratas e liberais, mas a seguir dividiu-os ainda


mais. No lugar deles, c o m o um t u m o r , veio o m o v i m e n t o " d e m o -
crático" N a c h i da administração presidencial.
A ameaça de uma revolução sangrenta vem hoje das próprias
autoridades do Estado ou possivelmente de oposicionistas q u e p e r -
d e m a calma q u a n d o confrontados pelos nachistas. Da m a n e i r a
c o m o estão as coisas, a cor de qualquer revolução na Rússia será
vermelha e n i n g u é m p o d e ter certeza de que os lutadores de rua
nachistas de Surkov não voltarão seus socos ingleses e suas c o r r e n -
tes contra seus atuais mestres políticos.
Será que estou com m e d o ?

D i z e m c o m freqüência q u e sou pessimista; que não acredito na


força do povo russo; que sou obsessiva em minha oposição a Putin
e n ã o vejo nada além disso.
Eu vejo tudo e este é t o d o o problema. Vejo o q u e é b o m e
t a m b é m o que é ruim. Vejo q u e as pessoas gostariam q u e a vida
mudasse para melhor, mas são incapazes de fazer isso acontecer e
que, para ocultar essa verdade, elas se concentram no lado positivo
e fingem que o negativo não existe.
Pelo m e u m o d o de pensar, um cogumelo que cresce sob uma
folha grande não pode esperar escapar. Quase certamente alguém
irá localizá-lo, cortá-lo e c o m ê - l o . Se você nasceu ser h u m a n o , não
p o d e se comportar c o m o um cogumelo.
N ã o consigo aceitar a previsão demográfica oficial do C o m i t ê
de Estatística do Estado que cobre o período até 2016. Em 2016,
muitas pessoas da minha geração poderão estar mortas, mas nossos
filhos estarão vivos, assim c o m o nossos netos. Será que realmente
não nos importamos c o m o tipo de vida que eles terão ou mesmo
se terão ou não uma vida?
Muitas pessoas parecem não se importar. Se continuarmos c o m
as mesmas diretrizes políticas e econômicas, a população russa cairá
em 6,4 milhões de pessoas. Essa é a previsão otimista: que em 2016
a Rússia terá uma população de 138,8 milhões.
A previsão pessimista não é tão fácil de conseguir, mas voce
p o d e r á descobri-la se for suficientemente persistente; ela o levará a
querer fazer alguma coisa para m u d a r a situação na Rússia imedia-
t a m e n t e . A previsão pessimista é de q u e estaremos r e d u z i d o s a
128,7 milhões de habitantes. Milhões de pobres, incapazes de pagar
UM D I Á R I O RUSSO 351

pelos serviços médicos privatizados, irão morrer. Jovens continua-


rão a ser mortos aos bandos no exército. Em guerras e t a m b é m fora
delas, todos os que " n ã o estão do nosso l a d o " serão m o r t o s ou
enviados para apodrecer e m o r r e r nas prisões.
Isso acontecerá se t u d o p e r m a n e c e r c o m o é agora. Se não
enfrentarmos o problema da pobreza. Se a desgraçada negligência
em relação à prestação de serviços de saúde e ao m e i o ambiente
persistir. Se não embarcarmos n u m a campanha nacional contra o
alcoolismo e o vício em drogas. Se a guerra no n o r t e do Cáucaso
não terminar. Se não for m u d a d o nosso sistema humilhante de p r e -
vidência social, que p e r m i t e q u e u m a pessoa mal sobreviva, sem
perspectiva de viver u m a vida plena e digna, c o m e n d o b e m , des-
cansando de forma adequada, praticando esportes.
Até aqui não há n e n h u m sinal de mudanças. As autoridades do
Estado continuam surdas a todos os alertas do povo. Elas vivem sua
própria vida, seus rostos p e r m a n e n t e m e n t e distorcidos pela ambi-
ção e pela irritação p o r q u e alguém pode tentar impedi-las de ficar
ainda mais ricas. Para eliminar essa possibilidade, sua prioridade é
paralisar a sociedade civil. Todos os dias tentam convencer o povo
russo de que a sociedade civil e a oposição são financiadas pela
C I A , pelos ingleses, p o r Israel e pelos serviços de inteligência mar-
cianos, além, é claro, da teia mundial da al-Qaeda.
H o j e nossas a u t o r i d a d e s só estão interessadas em ganhar
dinheiro. Isso é literalmente t u d o em que estão interessadas.
Se alguém pensar q u e p o d e se sentir à vontade c o m a previsão
"otimista", que o faça. É certamente o caminho mais fácil, mas é
t a m b é m uma sentença de m o r t e para nossos netos.
Glossário

Um asterisco no texto indica a primeira ocorrência das seguintes perso-


nalidades e organizações significativas:

Personalidades:
Basaev, Chamil: principal comandante dos guerrilheiros tchetchenos
quando a Rússia invadiu aTchetchênia em 1994. Os bombardeios russos
mataram onze membros da sua família e depois disso ele se transformou
num guerreiro impiedoso. Acusado de tramar as tomadas de reféns em
Nord-Ost e na Primeira Escola em Beslan, que terminaram de forma san-
grenta pelo governo russo. Morto numa explosão em 2006.
Berezovski, Bóris: tornou-se um oligarca na era Ieltsin e construiu um
império de mídia que ajudou a reeleição de Ieltsin, mas caiu sob Putin por
sua oposição à Guerra Tchetchena e seu apoio às causas liberais e demo-
cráticas na Rússia.Vive hoje em Londres. Acusou Putin de responsabilida-
de pela morte de Alexander Litvinenko, seu associado, em 2006.
Bonner, Ielena: incansável defensora dos direitos humanos, cujo pai, um
secretário de origem armênia da Internacional Comunista, foi assassinado
pelo regime em 1937. Viúva de Andrei Sakharov, físico laureado com o
Nobel e ativista dos direitos humanos.
Chubais, Anatoli: vice-primeiro-ministro em 1994-6 associado ao pro-
grama de "terapia de choque" de reformas de livre mercado, com privati-
zação e a criação dos oligarcas sob Ieltsin.Tornou-se vice-líder do partido
político União de Forças de Direita.
Fradkov, Mikhail: ex-diretor da Polícia Fiscal Federal e representante
junto à União Européia; nomeado primeiro-ministro da Rússia por Punn
em 2004, para substituir o turbulento Milhail Kasianov.
354 A N N A POLITKOVSKAYA

Fridman, Mikhail: co-fundador do Alfa Group em 1988, que hoje pos-


sui o maior banco privado da Rússia e tem participação em petróleo
varejo e telecomunicações.
Gorbatchov, Mikhail: último secretário-geral do Partido Comunista
Soviético (1984-90) e primeiro presidente executivo da URSS (1990-1).
Suas tentativas para democratizar o regime comunista levaram ao seu
colapso.
Iavlinski, Grigori: autor em 1990 de um programa malsucedido para
transformar a Rússia numa economia de livre mercado em dois anos. Co-
fundador do partido Iabloko em 1995, que mais tarde tentou o impeachment
de Ieltsin. Recusou-se a concorrer à Presidência em 2004, alegando que
Putin havia fraudado as eleições parlamentares de 2003 para garantir que
não houvesse representantes do Iabloko na Duma.
Ieltsin, Bóris: primeiro presidente da Federação Russa (1991-9).
Conseguiu banir o Partido Comunista da República Russa e desmante-
lou a URSS em favor de uma Comunidade de Estados Independentes.
Dizem que iniciou a Primeira Guerra Tchetchena para manter seu poder
pessoal com apoio do exército e que entregou o poder a Vladimir Putin
em 1999 para frustrar a candidatura do rival à Presidência em 2000.
Jirinovski, Vladimir: político populista e ultranacionalista e líder do
Partido Democrático Liberal Russo. Comentou, a respeito do envenena-
mento do ex-agente da KGB Alexander Litvinenko em Londres em
2006, que "um traidor deve ser eliminado pelo uso de qualquer método".
Kadirov, Akhmed: mufti tchetcheno pró-Moscou, mais tarde "presiden-
te" da Tchetchênia, assassinado um dia depois de comparecer à posse de
Putin para o segundo mandato.
Kadirov, R a m z a n : combateu contra a Rússia na Primeira Guerra
Tchetchena de 1994-6. Passou a apoiar a Rússia na Segunda Guerra
(1999 até o presente). Nomeado primeiro-ministro depois do assassinato
do pai, Akhmed Kadirov. Comanda uma força paramilitar.
Kasparov, Gary: campeão mundial de Xadrez em 1985, aos 22 anos.
Trocou o xadrez pela política russa em 2005.
Khakamada, Irina: empreendedora e candidata na eleição presidencial
de 2004; presidente do Partido Democrático Russo Livre.
Khodorkovski, Mikhail: foi o oligarca mais rico da Rússia; fundador do
Menatep Bank e da empresa de petróleo Iukos. Apoiou partidos democra-
UM DIÁRIO RUSSO 355

ticos de oposição e propôs a introdução de práticas de negócios ocidentais


transparentes. Entrou em choque com o regime de Putin, foi preso em 2003
por supostas irregularidades fiscais e sentenciado a nove anos de prisão.
Kuchma, Leonid: segundo presidente da Ucrânia (1994-2005). Acusado
oficialmente em 2005 de envolvimento no assassinato do jornalista
Georgi Gongadze em 2000.
L i m o n o v , Eduard: escritor russo, fundador do Partido Bolchevique
Nacional, nacionalista mas ainda não registrado. Preso em 2002 por dois
anos por suposta compra de armas.
Lubachenko, Alexander: presidente autoritário da Bielorrússia desde
1994.
Maskhadov, Aslan: principal líder militar tchetcheno na Primeira
Guerra Tchetchena; eleito presidente em 1997, assinou um tratado de paz
com Ieltsin no Kremlin, mas foi incapaz de impedir uma divisão entre
nacionalistas seculares e fundamentalistas islâmicos. Morto pelo FSB em
2005, aparentemente quando tentava negociar um acordo de paz para o
conflito. Seu corpo não foi devolvido à família para ser enterrado.
Mironov, Sergei: desde 2001, orador do Soviet da Federação, a câmara alta
do Parlamento Russo. Desde 2003, presidente do Partido da Vida Russo,
que se fundiu em 2006 com os partidos Rodina e dos Pensionistas Russos
para formar o Partido da Justiça Russo, o qual comanda. Pró-Putin.
Pamfilova, Ella: deputada na Duma nos anos 90 e candidata à Presi-
dência em 2000. Presidente da Comissão Presidencial para o Desenvol-
vimento da Sociedade Civil e dos Direitos Humanos.
Putin,Vladimir: demitiu-se da KGB em 1991 com o posto de tenente-
coronel. Diretor do FSB (1998-9) e sucessor de Bóris Ieltsin como presi-
dente da Federação Russa em 2000. Reeleito em 2004. Seu mandato
expira em 2008.
Rakhimov, Murtaza: eleito presidente do Bachkortostan em 1993 e
reeleito em 1998 e 2003. A Organização para Segurança e Cooperação na
Europa descreveu a eleição de 2003 como desfigurada por "elementos de
fraude básica".
R o g o z i n , Dmitri: líder do partido Rodina (Pátria), nacionalista, que de-
fendeu os direitos dos russos étnicos até o início de 2006 quando, aparen-
temente por pressão de Kremlin, mudou de posição. Seu partido represen-
tava uma ameaça crescente ao Rússia Unida, das autoridades do Estado.
356 A N N A POLITKOVSKAYA

Rizkhov,Vladimir: deputado na Duma desde 1993 e vice-presidente do


Partido Republicano Russo.
Saakachvili, Mikhail: líder da Revolução da Rosa na Geórgia em 2003,
que obrigou Eduard Chevarnadze a renunciar depois de eleições conside-
radas fraudulentas. Tornou-se presidente da Geórgia em 2004. Enfrentou
com sucesso confrontos separatistas em Adjara e Abkhazia, mas ainda tem
sérios problemas com a Ossétia do Sul.
Sakharov, Andrei: considerado o pai da bomba de hidrogênio soviética,
Sakharov tornou-se um dos mais corajosos críticos do regime. Agraciado
com o prêmio Nobel de 1975, mas não pôde viajar para recebê-lo. Sua
posição contra a corrupção e a falta de legitimidade do regime soviético
foi muito influente junto à elite. Morreu em 1989.
Surkov, Vladislav: principal ideólogo e conselheiro do Kremlin, que
ocupou altos cargos nos bancos Menatep e Alfa durante os anos 90.
Diretor de Relações Públicas da empresa de televisão ORT (1998-9).
Subchefe da Administração Presidencial de Putin. De ascendência meio
tchetchena, acredita-se que Surkov seja o principal patrocinador de
Ramzan Kadirov no Kremlin e também da política de tchetchenização da
guerra na Tchetchênia.
Zakaev, Akhmed: atual ministro do Exterior do governo separatista da
República Tchetchena de Itchkeria, herói da resistência na Primeira
Guerra Tchetchena, representante da Tchetchênia em 1996 nas conversa-
ções de paz que levaram à retirada dos russos; vice-primeiro-ministro,
depois ministro das Relações Exteriores. Ferido no início da Segunda
Guerra Tchetchena (de 1999 até o presente), Zakaev deixou a Tchet-
chênia em 2000 e tornou-se o mais importante representante do governo
Maskhadov na Europa Ocidental. Recebeu asilo político do Reino
Unido em 2003 e mora em Londres.
Ziazikov, Murat: presidente da Inguchétia, uma república que faz fron-
teira com a Tchetchênia e com a qual tem ligações étnicas próximas.
Membro da KGB nos anos 80, foi eleito presidente (com forte envolvi-
mento do FSB) em 2004.

Organizações:
C o m u n i d a d e de Estados Independentes (CEI): criada em 1991,
unindo frouxamente todas as antigas repúblicas da URSS, exceto a
Geórgia e os estados bálticos Estônia, Lituânia e Letônia.
UM DIÁRIO RUSSO 357

Democratas Liberais: primeiro partido de oposição registrado, em


1989, depois do fim do monopólio do Partido Comunista. Um partido de
nome confuso e ultranacionalista liderado por Vladimir Jirinovski, supos-
tamente subsidiado por Ieltsin para tirar apoio do Partido Comunista.
Duma: o Parlamento Russo que, sob a Constituição de Ieltsin, substituiu
o Soviet Supremo em 1993. Consiste em 450 deputados eleitos.
Federação Russa: Estado sucessor da URSS a partir de 1991, mas não
inclui as repúblicas autônomas da URSS.
FSB (Birô Federal de Segurança): atual organização de segurança
interna do Estado; sucessor do Serviço Federal de Contra-espionagem.
labloko: partido liberal formado em 1995 em reação a lutas internas no
campo democrático; fala contra restrições à liberdade de imprensa e de
práticas políticas democráticas; apoia a integração da Rússia na União
Européia, opõe-se à guerra na Tchetchènia e pediu a deposição do regi-
me de Putin por "meios constitucionais".
KGB (Comitê de Segurança do Estado): polícia secreta soviética,
substituída em 1991 pelo Serviço Federal de Contra-espionagem depois
de seu envolvimento na tentativa de golpe contra Gorbatchov.
O M O N (Unidade de Operações Especiais da Polícia): criada em
1979 para proteger os Jogos Olímpicos de Moscou em 1979 de ataques
terroristas. Posteriormente usada como polícia contra tumultos; há uma
unidade em cada território da Federação Russa.
Rodina: partido nacionalista e socialista fundado em 2003, liderado por
Dmitri Rogozin. Acreditam que tenha sido montado pelo Kremlin para
atrair votos dos desiludidos simpatizantes do Partido Comunista. Nas elei-
ções de 2003, conseguiu 37 assentos na Duma e agora diz ser "Por Putin,
mas contra o governo".
Rússia Unida: partido criado em 2001 pelo Kremlin para apoiar
Vladimir Putin; detém a maioria constitucional na Duma.
União de Forças de Direita: partido liberal formado em 1999 a partir
de vários partidos dedicados à introdução de reformas de livre mercado e
muito crítico da redução das liberdades democráticas com Putin.
Oficialmente, recebeu 4% dos votos nas eleições parlamentares de 2003,
perdendo representação na Duma, que exige 5%, provocando amplas sus-
peitas de fraude eleitoral pelo Kremlin.
358 A N N A POLITKOVSKAYA

Outros:
Bachkortostan ou Bachkiria: formada em parte pelas montanhas Urais
do sul e pelas planícies adjacentes; população de 4 milhões, dos quais 36%
são russos étnicos, 29% bachkirs e 24%, tártaros.
Daguestão: localizado na parte mais ao sul da Rússia, nas montanhas do
norte do Cáucaso. Etnicamente muito diversificado.
Geórgia: a primeira república a declarar sua independência da Rússia,
pouco antes do colapso da URSS. Problemas separatistas com a Abkhazia
e a Ossétia do Sul em particular são fomentados pela Rússia. Rica em
recursos naturais, atraente para turistas e famosa por seus vinhos, a Geórgia
está combatendo a corrupção, que atrasa a economia.
Inguchétia: abrange principalmente muçulmanos sunitas de várias
ordens sufis.Tem muitos refugiados da guerra na Tchetchênia. População
de meio milhão composta por 77% de inguches, 20% de tchetchenos e
1,2% de russos.
Kirghizia: isolada do mar e montanhosa, às vezes chamada de Suíça da
Ásia Central.Teve sua Revolução das Tulipas em 2003 em protesto contra
eleições fraudulentas e a repressão dos oposicionistas, mas o novo regime
está se esforçando para cumprir suas promessas de combater a corrupção
e descentralizar a autoridade.
Revolução da Rosa: uma série de protestos na Geórgia no final de 2003
em resposta a fraudes nas eleições parlamentares de novembro de 2003. A
incapacidade do presidente Eduard Chevardnaze para lidar com proble-
mas separatistas e a corrupção generalizada fizeram com que ele perdesse
a eleição para Mikhail Saakachvili. Chevardnaze cantou vitória, mas foi
obrigado a reconhecer a derrota depois que o prédio do Parlamento foi
tomado por partidários de Saakachvili, trazendo rosas como símbolo de
não-violência; unidades militares de elite se colocaram ao lado dos mani-
festantes. A eleição foi repetida em janeiro de 2004 e o partido de
Saakachvili venceu por uma ampla margem.
Revolução Laranja: deflagrada na Ucrânia no final de 2004 pela maciça
fraude na eleição presidencial pelas autoridades pró-Moscou. Uma nova
eleição em dezembro de 2004 levou à vitória de Viktor Iustchenko, que
havia sido envenenado pouco antes da primeira eleição e recebeu 52%
dos votos contra os 44% em favor de Viktor Ianukovitch.
Tchetchênia: situada na parte leste do norte do Cáucaso e predominan-
UM D I Á R I O RUSSO 359

temente de religião muçulmana sunita. A maior parte do seu potencial


econômico foi destruída nas duas Guerras Tchetchenas, com enormes
perdas de vida de combatentes e civis. De acordo çom o governo russo,
foram gastos mais de US$2 bilhões em reconstrução desde 2000, embora
o órgão russo de monitoramento econômico considere que mais de
US$350 milhões não tenham sido gastos conforme o planejado.
Ucrânia: declarou independência de Moscou em 1991, mas foi lenta na
implantação de reformas de livre mercado; é fortemente dependente da
Rússia para o fornecimento de energia, fato que esta tentou explorar em
busca de vantagens políticas. Sua população de 46 milhões é 78% ucrania-
na e 17% russa.
W a h h a b i s m o : forma dominante do Islã na Arábia Saudita, no Qatar e no
oeste do Iraque, a qual defende uma posição puritana e legalista em assun-
tos de fé e prática religiosa. Árabes wahhabi de fala russa inundaram a
Tchetchênia no fim da Primeira Guerra Tchetchena, permitindo que o
governo russo mostrasse a Tchetchênia como cabeça-de-ponte do funda-
mentalismo islâmico.

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