No dia 25 de Junho de 2000, o presidente norte-americano Bill Clinton
anunciou a sequenciação do genoma humano. O presidente realçou na época as potencialidades para uma nova era da “medicina molecular” mas assegurou que a informação agora disponibilizada jamais deveria ser usada para fins de “estigmatizar ou marginalizar indivíduos ou grupos”. Uma das descobertas surpreendentes ao decifrar o genoma humano foi a de que o número de genes que se estimava entre 30000-50000 era afinal mais modesto, uns cerca de 20000 genes, bem menos do que algumas variedades do arroz tão apreciado na alimentação humana. De facto muito mais existe no genoma do que os genes ou a informação genética codificante, aquela que permite definir a cor dos olhos, a altura, o ter a doença A ou B, os “fenótipos”. Há uma percentagem maioritária de sequências no genoma que não codificam nada e que exibem um grande grau de polimorfismo, i.e., são diferentes de pessoa para pessoa. Outra das descobertas do genoma foi a de que, apesar de serem notórias as diferenças entre os humanos, sobretudo os de origem geográfica distante, 99% da informação do genoma humano é idêntica e apenas 1 % é variável. O conceito de raça, tão caro à Antropologia do século XIX e início do séc. XX, enquadra-se na tentação de tudo classificar. Um dos fenótipos mais usados para esse fim foi a cor da pele, desde logo por Lineu, o maior dos sistematas. E depois dele multiplicaram-se os sistemas de classificação “racial”, assistindo-se progressivamente à contaminação do processo científico pelas ideologias e vice-versa. Curiosamente o tema, ou seja os fenótipos mais externamente visíveis como a cor da pele e dos olhos, conheceu nos últimos anos renovada atenção. O peixe Zebrafish, uma verdadeira coqueluche laboratorial pela sua simplicidade e facilidade de manuseamento, tem dado algumas achegas: foi possível identificar uma mutação, chamada golden, associada à diminuição da melanina na pele. Verificou-se afinal que esse fenótipo golden dos peixinhos de aquário tinha correspondência nos humanos: uma alteração de uma única base do código genético de G (Guanina) para A (Adenina), um SNP (Single Nucleotide Polymorphism) ao nível do gene SLC24A5, origina uma mudança do aminoácido Alanina para o aminoácido Treonina na posição 111 (Ala111Thr) e essa simples alteração de uma única base explica 25-38% das diferenças na cor da pele entre os africanos e os europeus. Tendo em conta a necessidade de exposição aos UV para obter vitamina D na pele, parece que essa mutação Ala111Thr teria sido necessária para a vida nas latitudes elevadas como no norte da Europa. Características como a cor da pele enquadram-se na classificação de EVCs (External Visible Chracteristics) que inclui também a cor dos olhos. O entanto estes EVCs que atualmente ganham novo interesse dada a sua potencial utilização na identificação individual (por exemplo na área forense nos casos frios, i.e., em que não há suspeito), são na verdade um grande desafio. Atualmente apenas três EVCs mostram aplicabilidade prática na identificação individual, tal é a complexidade da informação que determina estes fenótipos outrora olhados com uma simplicidade tão cómoda: os fenótipos cabelo ruivo, olhos azuis e olhos castanhos (não incluindo as variantes destes extremos). A cor dos olhos por exemplo, à parte os extremos olhos castanhos ou olhos azuis, é de uma enorme complexidade genética e ainda não completamente esclarecida. Apesar de haver já testes genéticos que prometem prever a cor dos olhos, estudos demonstraram que por exemplo para os olhos verdes a previsão baseada num painel de genes só acertava em 40% dos indivíduos com essa cor de olhos. Por outro lado a relação fenotípica entre a cor dos olhos (íris) e a cor de cabelo associa-se também à cor da pele e à sensibilidade da pele ao sol. Ou seja, são vários os genes envolvidos na determinação de uma destas características e, para complicar, os mesmos genes estão relacionados com diferentes fenótipos (os mesmos que dão a cor dos olhos interferem afinal na cor da pele e por aí fora). O fato de essas características visíveis externamente terem diferenças tão marcantes entre populações de distintas origens geográficas reflete apenas que os genes que lhes estão subjacentes têm frequências muito diferentes nas diferentes populações que foram ocupando os vários cantos do mundo desde a dispersão do homem moderno, o Homo sapiens a partir de África, há cerca de 200 000 anos atrás. Os mecanismos que contribuíram para acentuar essas diferenças de frequências são do domínio da genética populacional. Muitos são os “marcadores polimórficos” ou seja porções do genoma que variam entre indivíduos, com padrões de distribuição populacional claramente distintivos e mesmo marcantes, a ponto de poderem ser usados para determinar a ancestralidade e a origem geográfica de um certo DNA (os AIMs, Ancestral Informative Markers), mas mesmo estes na maioria fornecem um informação probabilística e de forma continua e não absoluta. No entanto nada existe de avaliação qualitativa sobre essas diferenças. Não é por um alelo ser mais ou menos frequente que isso tem um qualquer significado relativo em termos de superioridade ou inferioridade. Sobretudo deve ficar claro que estas ferramentas genéticas não servem para novo cartão de cidadão, pois como referiu Alec Jeffreys, “nacionalidade é um conceito legal que nada tem a ver com Genética”. Em 2011 o ponto em que estamos já não é o do genoma humano mas o dos genomas de humanos. Figuras públicas como James Watson, o bispo Desmond Tutu ou Craig Venter (um dos “pais” da sequenciação do genoma humano) têm já o seu genoma individual completamente sequenciado. A sequenciação do DNA do bispo Desmond Tutu e de alguns bosquímanos sul-africanos revelou algo muito interessante apesar de não surpreendente para os cientistas: dois bosquímanos vizinhos têm mais diferenças genéticas entre si do que por exemplo um europeu e um asiático. Ao conhecermos melhor os nossos genomas e não já uma composição supostamente representativa do Homo sapiens no seu todo, descobrimos que há diferenças genéticas notórias entre grupos populacionais. Mas essa constatação, possa ela ser “politicamente incorreta” só o será se os preconceitos fizerem de novo emergir uma certa interpretação dos dados científicos. A diversidade que culturalmente é de uma riqueza enorme, geneticamente é também uma vantagem face aos inimigos da nossa espécie com que temos que lutar. Como bem referiu Webb Miller, um dos autores do estudo de Desmond Tutu publicado na Science, se as amostras usadas inicialmente para sequenciar o genoma da espécie humana tivessem sido de indivíduos sul-africanos, então seriam os europeus os “diferentes” do “padrão”.