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João Alegria1
No mundo todo e também no Brasil já se disse muita coisa ruim sobre a televisão.
Esse tipo de questionamento ganha cada vez mais força no Brasil, principalmente pela
grande audiência de televisão no país, que é reconhecido como uma das sociedades mais
audiovisuais do planeta. Hoje em dia se pode dizer que existe pelo menos um aparelho de
televisão em cada domicílio brasileiro. Em muitos domicílios há mais que um televisor.
Para muitas famílias o televisor é um eletrodoméstico fundamental, cuja compra tem
preferência, por exemplo, frente ao refrigerador. As pesquisas de opinião mostram que o
televisor só perde para o fogão. Mesmo quando se tem em vista dois fortes concorrentes
contemporâneos, o computador e o celular, o televisor continua sendo um dos
eletrodomésticos preferidos pela população brasileira.
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João Alves dos Reis Junior, mais conhecido profissionalmente como João Alegria, é Doutor em Educação
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), colaborador do Grupo de Pesquisa
Educação e Mídia (GRUPEM), docente do Curso de Especialização em Mídia, Tecnologia da Informação e
Novas Práticas Educacionais (PUC-Rio) e Gerente de Programação, Jornalismo e Engenharia do Canal
Futura.
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Geneviève Jacquinot (2004) relata que em pesquisas realizadas na França, sobre as fontes
de conhecimento e informação identificadas por crianças e adolescentes que vivem no país,
em sua maior parte, os entrevistados relataram terem aprendido sobre história, geografia,
língua e até ciências exatas assistindo a programas de televisão. Surpreendentemente, a
menor parte do que estes entrevistados diziam conhecer eles próprios atribuíram à
educação formal.
Cada vez mais, pessoas e fatos são conhecidos apenas quando aparecem na televisão. No
Brasil a taxa média de consumo individual diário de conteúdo televisivo está entre três e
quatro horas. Quando se faz uma segmentação por faixas etárias, as taxas de consumo
individual diário são maiores para os mais jovens, principalmente crianças e adolescentes.
Nenhum outro veículo de comunicação no Brasil alcança tais índices. Nem mesmo os
computadores, games e internet, preferidos pelos jovens à televisão, são mais bem
sucedidos, em razão das limitações de acesso a esses aparelhos e a rede mundial de
computadores. E se as novas gerações apresentam o que Jesús Martín-Barbero (2002)
chamou de empatia tecnológica, ou seja: uma enorme facilidade para se relacionar com as
Novas Tecnologias da Informação e da Comunicação (NTICs), seus produtos e conteúdos,
por outro lado, é também a ingenuidade destes grupos frente aos meios e aos seus
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Nessa direção, dos que reconhecem uma preocupante ingenuidade das novas gerações
frente aos meios e seus conteúdos, interroga-se John Wesley Freire (1999): assistir a filmes
violentos, no cinema ou na TV (e usar indiscriminadamente os jogos eletrônicos),
explicaria a violência real que vem ocorrendo nas escolas norte-americanas, por exemplo?
Será que as crianças e jovens vêem os seres humanos como imagens virtuais ou coisas, não
fazendo mal tirar-lhes a vida? Distinguirão eles o real e o virtual? Os noticiários da TV,
insistentemente mostrando o bombardeio dos inimigos pelos amigos, não mostram que é
bom matar os inimigos? Mas, como descobrir os inimigos entre os iguais? Ou os inimigos
serão os outros? Será que a máquina de fazer doido (no dizer de Stanislau Ponte Preta)
vem, como se diz agora, fazer cabeças? São questões complexas. Perguntas sem respostas
fechadas, às quais só é possível responder num grau de relatividade desconcertante.
uma televisão pública e cidadã, como defendem os mesmos autores em outro texto
intitulado Televisión pública, cultural, de calidad. (MARTÍN-BARBERO et alli, 2000)
O vocábulo mídia se tornou usual no Brasil a partir do seu uso em língua inglesa, para
designar o conjunto, ou sistema, de meios de comunicação presentes numa determinada
sociedade. A origem está no termo medium, que, em Latim, significa “meio”. Medium foi a
palavra utilizada pelos primeiros estudiosos da comunicação para designar “meio de
comunicação”. O plural de medium em latim se escreve media, “meios” ou, no caso dos
estudos de comunicação, o conjunto dos meios de comunicação. A grafia mídia, com “i”,
tem a ver com a pronúncia da expressão media (latim, plural), em inglês.
No senso comum o termo é utilizado com três diferentes significados: para indicar o
conteúdo das produções difundidas através dos meios de comunicação; para se referir aos
próprios meios de comunicação e, por fim, para se referir aos suportes físicos de
transporte, conservação e distribuição de bens culturais realizados a partir do uso de
tecnologias da comunicação.
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Assim, ao ouvir expressões como “a mídia faz mal à infância”, é correto entender que o
sujeito falante quer se referir aos conteúdos veiculados pelos meios de comunicação. Já as
falas como “isso é culpa da mídia” referem-se aos próprios meios de comunicação, os
também chamados veículos de comunicação, ou seja, um determinado jornal, ou uma
emissora de rádio, em particular. Por fim, quando alguém pergunta “você vai me trazer o
filme em qual mídia?”, e outra pessoa responde “em DVD”, o termo está sendo utilizado
para indicar um suporte físico.
Conteúdo, meio de comunicação e suporte são conceitos específicos e eles mesmos devem
ser utilizados sempre que se queira a eles se referir. Neste segundo tópico do texto, a
preocupação inicial é recuperar a força do conceito mídia (seria incorreto frente ao
processo de convergência da mídia pensar a televisão apenas “em separado), evitando seu
uso generalizado e impreciso.
O termo mídia designa uma atuação sistêmica e articulada, que ultrapassa apenas um
veículo de comunicação e até mesmo uma tecnologia de comunicação: a mídia reúne todo
o conjunto dos meios em atividade num dado tempo e espaço, atuando simultaneamente. A
sua atuação consiste justamente em realizar e difundir bens culturais, portanto, envolve
processos, tecnologias e mercados da comunicação.
Desse ponto de vista fica difícil aceitar que um CD de música trancado numa gaveta, sem
ser exibido (enquanto produto gráfico), sem ser executado (enquanto fonograma), sem ser
consumido (enquanto música), possa ser considerado mídia.
Para empregar o termo mídia seria necessário dar conta de uma pequena equação: mídia é
o resultado da operação que envolve um bem cultural resultante de um processo de
produção característico de um determinado meio de comunicação, conservado e
transportado com o auxílio de um suporte físico específico e consumido por intermédio de
uma tecnologia da comunicação. É um pouco confuso, mas apenas até se acostumar com a
idéia. Fica mais fácil ao se tentar aplicar o conceito.
Exemplo 1:
Exemplo 2:
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Uma revista fechada e guardada, sem ser lida, sem sofrer o que se denomina consumo
cultural, não chega a caracterizar mídia, é um bem cultural, mas não é mídia. O ato de
consumo cultural é o que mais caracteriza a mídia. Sem consumo cultural não há mídia.
Essa compreensão é importante para, desde já, valorizar o papel do sujeito (de todos os
sujeitos sociais) em qualquer discussão sobre a mídia.
O segundo exemplo é bem interessante fica demonstrado através dele que leitura e escrita
são facilmente identificadas como tecnologias da comunicação. E de fato o são.
Porém, para que as pessoas possam se comunicar através da escrita e da leitura, pelo
menos três condições devem ser cumpridas: que aquele que escreve e aquele lê saibam ler
e escrever; que eles conheçam os caracteres com os quais a mensagem é redigida; que eles
compreendam a linguagem na qual a comunicação textual será estabelecida.
As mesmas condições devem ser preenchidas quando se trata de comunicação por meio da
imagem. A primeira condição, a mais importante, é que é necessário “saber ler e escrever”.
Ninguém sabe ler e escrever sem ter aprendido e todos crêem poder ler imagens sem o
mínimo de estudo prévio, o que é um equívoco. A segunda condição é o conhecimento dos
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Na verdade, uma imagem, um audiovisual, uma página da internet, uma pintura, um texto
escrito não podem ser considerados como uma linguagem em si. É apenas através do
processo que sua leitura desencadeia no intelecto do leitor que eles são transformados em
linguagem e passam a possibilitar comunicação.
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É bastante comum no Brasil o uso da expressão alfabetizar para a mídia. A proposta por trás de alfabetizar
em mídia é bastante mais ampla e mais complexa do que alfabetizar para a mídia. Pois, não se trata de
buscar apenas desenvolver determinadas competências para uma “leitura crítica” dos conteúdos veiculados
pelos meios de comunicação, mas, sobretudo de desenvolver junto aos sujeitos sociais suas possibilidades de
expressão, compreensão, comunicação em diferentes linguagens.
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Conforme noticiado pelo jornal, de acordo com o levantamento, 38% dos brasileiros
poderiam ser considerados analfabetos funcionais. Desses, 8% seriam absolutamente
analfabetos, e 30% teriam um nível de habilidade muito baixo, conseguindo apenas
identificar uma informação simples em um só enunciado, um anúncio, por exemplo.
Outros 37% da população demonstravam um patamar básico, capacidade de localizar uma
informação em textos curtos, como uma carta ou uma notícia.
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Desde o ano 2001, numa parceria envolvendo o Instituto Paulo Montenegro/Ibope e a ONG Ação
Educativa, foi desenvolvido um índice para a medição do analfabetismo funcional no Brasil, o Indicador
Nacional de Alfabetismo Funcional (INAF). A partir de então o Instituto tem realizado pesquisas em âmbito
nacional para o diagnóstico do alfabetismo dos brasileiros. Esse dado já estava disponível anteriormente a
partir de pesquisas realizadas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Porém, o IBGE
mede o analfabetismo funcional no Brasil do seguinte modo: é analfabeta funcional a pessoa que declara
possuir menos de quatro anos completos de escolaridade. No entanto, o número de anos de estudo
completados ou não por uma pessoa é um dado muito relativo. Depende há quanto tempo se deu e como foi
esse processo de escolarização, por exemplo. Por isso, para os técnicos envolvidos com o INAF, existia a
necessidade de construir instrumentos específicos para medir o analfabetismo funcional, independentemente
do grau de escolaridade. O INAF permite verificar a existência de analfabetos funcionais que passaram mais
de quatro anos na escola ou de alfabetizados funcionais que nunca foram à escola.
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Dentre as informações disponibilizadas no site do Instituto Paulo Montenegro, sobre o INAF, encontra-se
um conjunto de definições nas quais se fundamentam as conclusões de seus técnicos. São elas:
Analfabetismo: corresponde à condição dos que não conseguem realizar tarefas simples que envolvem a
leitura de palavras e frases ainda que uma parcela destes consiga ler números familiares (números de
telefone, preços etc.). Alfabetismo nível rudimentar: corresponde à capacidade de localizar uma
informação explícita em textos curtos e familiares (como um anúncio ou pequena carta), ler e escrever
números usuais e realizar operações simples, como manusear dinheiro para o pagamento de pequenas
quantias ou fazer medidas de comprimento usando a fita métrica. Alfabetismo nível básico: as pessoas
classificadas neste nível podem ser consideradas funcionalmente alfabetizadas, pois já lêem e compreendem
textos de média extensão, localizam informações mesmo que seja necessário realizar pequenas inferências,
lêem números na casa dos milhões, resolvem problemas envolvendo uma seqüência simples de operações e
têm noção de proporcionalidade. Mostram, no entanto, limitações quando as operações requeridas envolvem
maior número de elementos, etapas ou relações. Alfabetismo nível pleno: classificadas neste nível estão as
pessoas cujas habilidades não mais impõem restrições para compreender e interpretar elementos usuais da
sociedade letrada: lêem textos mais longos, relacionando suas partes, comparam e interpretam informações,
distinguem fato de opinião, realizam inferências e sínteses. Quanto à matemática, resolvem problemas que
exigem maior planejamento e controle, envolvendo percentuais, proporções e cálculo de área, além de
interpretar tabelas de dupla entrada mapas e gráficos. Fonte: Instituto Paulo Montenegro [www.ipm.org.br].
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Haddad pondera que “muitos estudiosos têm criticado a concepção de leitura como
conjunto de habilidades genéricas que, uma vez adquiridas, podem ser aplicadas a qualquer
situação; têm dirigido esforços para estabelecer conjuntos de tarefas socialmente relevantes
em que se utiliza material escrito e, a partir deles, dimensionar e analisar graus e tipos de
alfabetismo que caracterizam pessoas ou grupos”. (HADDAD, 2008) Ou então, como
contextualiza Vera Masagão Ribeiro:
não é mais apenas saber se as pessoas conseguem ou não ler e escrever mas
também o que elas são capazes de fazer com essas habilidades. Isso quer
dizer que, além da preocupação com o analfabetismo, problema que ainda
persiste nos países mais pobres e também no Brasil, emerge a preocupação
com o alfabetismo, ou seja, com as capacidades e usos da leitura e escrita
nas diferentes esferas da vida social. (RIBEIRO, 2005, p. 1)
Deste modo é possível imaginar um alfabetismo múltiplo e, em oposição, também um
analfabetismo múltiplo.5 O que quase torna obrigatório propor, de forma provocativa, a
inconveniente hipótese do analfabetismo funcional múltiplo.
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Levando em conta a reflexão apresentada no texto a expressão alfabetismo/analfabetismo múltiplo quase
chega a ser redundante. Porém, tendo em vista a evidente falta de consciência social da importância da escrita
e da leitura do mundo nas diferentes linguagens atualmente em uso, ela é importante para forçar a discussão
sobre o tema.
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São poucas as experiências que demarcam exceções a essa regra. Sem a intenção de dar
conta de todas elas, merece destaque a experiência da jornalista argentina Marcela Czarny,
que desde os anos 1990 vêm desenvolvendo estratégias de apropriação da linguagem de
imprensa em inúmeras oficinas de produção realizadas nas escolas públicas da Argentina.
E nisso tem contado com o apoio de grandes jornais que circulam naquele país, como ela
própria relata. (CZARNY, 1997) Ou então o esforço de incentivo à leitura, às múltiplas
leituras do mundo, que resulta da ação conjunta da Universidade de Passo Fundo e do
Canal Futura, com a realização e veiculação do programa de televisão infantil Mundo da
leitura. (BECKER, 2007) Em vários pontos do país ocorrem oportunidades de formação
audiovisual, como um complemento ao processo de alfabetização do qual a educação
formal procura dar conta. É o caso de Belo Horizonte, onde a Associação Imagem
Comunitária dissemina ininterruptamente a produção audiovisual entre jovens das
periferias da cidade. Lá essa produção alcançou qualidade e reconhecimento, sendo exibida
semanalmente na televisão educativa local, ao lado da produção de profissionais da
comunicação. (LIMA, 2006) Existem experiências onde se procura contaminar as práticas
docentes tradicionais, centradas no texto, com as diferentes tecnologias da comunicação e
informação, como busca fazer a equipe do Educom, na cidade de São Paulo. (SOARES,
2004) Mas, ainda há muito para fazer.
O mais importante é não desanimar e continuar o trabalho para integrar, num único círculo
virtuoso, mídia, sociedade e escola, num processo permanente de produção e reinvenção
do mundo. Só assim estaria a televisão, verdadeiramente, a serviço da leitura e da escrita.