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JOSTEIN GAARDER

o MUNDO DE SOFIA
Romance da história
da filosofia
Tradução:
JOÃO AZENHA JR.

33~reimpressão

..: ~ .
elA. DAS LETRAS
Copyright © 1991 by Jostein Gaarder
e H. Aschehoug & Co. (w. Nygaard), Oslo
Título original:
Sofies verden
Tradução, autorizada pelo autor,
baseada na versão alemã
de Gabriele Haefs
Capa:
Silvia Ribeiro
Ilustração da capa:
Maria Eugênia
Preparação: Este livro não teria sido possível sem o apoio e a
Marcos Luiz Fernandes amizade de Siri Dannevig. Agradeço também a Mai-
Índice remissivo: ken Ims pela leitura do manuscrito e pelos valiosos co-
Valter Ponte mentários. Os meus agradecimentos, enfim, a Trond
Berg Eriksen pelas observações bem-humoradas e pe-
Revisão:
Touché! Editorial
lo seu sólido suporte técnico durante todos esses anos.
Carmen Simões da Costa /. G.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, sr, Brasil)

Gaarder, Jostein
O mundo de Sofia: romance da história da filoso-
fia I lostein Gaarder ; tradução João Azenha Jr. - São
Paulo: Companhia das Letras, 1995.

Título original: Sofies verden.


ISBN85-7164-475-6

1. Romance norueguês I. Título.

95-2905 CDD-839.823
Índice para catálogo sistemático
1. Romances: Século 20 : Literatura norueguesa 839.823
2. Século 20 : Romances: Literatura norueguesa 839.823

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ LTDA.
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_______________ 0 ••••
Quem, de três milênios,
Não é capaz de se dar conta
Vive na ignorância, na sombra,
À mercê dos dias, do tempo.

Johann Wolfgang von Goethe


ÍNDICE

o Jardim do Éden
...afinal de contas, algum dia alguma coisa tinha de ter sur-
gido do nada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
A cartola
...a única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons
filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas. . 22
Os mitos
...um equilíbrio precário entre as forças do bem e do mal . . 34
Os filósofos da natureza
...nada pode surgir do nada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41
Demócrito
...0 brinquedo mais genial do mundo. . . . . . . . . . . . . . . . . 55
O destino
...0 adivinho tenta adivinhar algo que na verdade não dá
para adivinhar. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
Sócrates
...mais inteligente é aquele que sabe que não sabe. . . . . . . . 71
Atenas
...e das ruínas ergueram-se construções monumentais. . . . 87
Platão
... 0 anseio de voltar à verdadeira morada da alma. . . . . . . . 93
A cabana do major
...a garota no espelho piscava os dois olhos ao mesmo
tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 110
Aristóteles
...um organizador, um homem extremamente meticuloso, que que-
ria pôr ordem nos conceitos dos homens . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 120
o Helenismo Darwin
... uma centelha do fogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 ...um barco carregado de genes navegando pela vida. . . . .. 430
Os cartões-postais Freud
...estou me impondo uma rigorosa censura. . . . . . . . . . . . . 157
...um desejo terrivel, egoísta, veio à tona dentro dela. . . .. 456
Dois círculos culturais Nosso próprio tempo
...o homem está condenado à liberdade. . . . . . . . . . . . . . .. 476
...só assim você não vai ficar flutuando no espaço vazio. .. 166
A Idade Média A festa no jardim
...uma gralha branca . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . .. 502
...percorrer um pedaço do caminho não é o mesmo que tomar
Contraponto
o caminho errado. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 182
...duas ou mais melodias soando ao mesmo tempo. . . . . .. 517
O Renascimento
A grande explosão
...ó linhagem divina vestida com trajes de mortais. . . . . .. 206
...nós também somos poeira estelar. . . . . . . . . . . . . . . . . .. 537
O Barroco
...da mesma matéria que compõe os sonhos. . . . . . . . . . . .. 235 Índice remissivo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 549
Descartes
...ele queria limpar o terreno dos velhos materiais . . . . . .. 252
Spinoza
...Deus não é um manipulador de fantoches. . . . . . . . . . .. 266
Locke
... tão vazia quanto uma lousa antes de o professor entrar na
classe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 276
Hume
...atira-o, então, ao fogo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 287
Berkeley
...como um planeta atordoado ao redor de um sol fumegante 302
Bjerkely
...um antigo espelho mágico, que sua bisavó comprara de
uma cigana . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 308
O Iluminismo
...da produção de agulhas à fundição de canhões. . . . . . . .. 325
Kant
...0 céu estrelado sobre mim e a lei moral dentro de mim .. 344
O Romantismo
... 0 caminho do mistério aponta para dentro. . . . . . . . . . .. 365
Hegel
...só o que é racional é viável. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 384
Kierkegaard
...a Europa a caminho da bancarrota. . . . . . . . . . . . . . . .. 397
Marx
...um fantasma ronda a Europa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 411
o JARDIM DO ÉDEN
...afinal de contas, algum dia alguma coisa
tinha de ter surgido do nada ...

Sofia Amundsen voltava da escola para casa. Percorrera a


primeira parte do caminho em companhia de Jorunn, sua colega
de classe. Tinham conversado sobre robôs. Jorunn considerava o
cérebro humano um computador complicado. Sofia não estava
bem certa se concordava com isto. O ser humano não seria algo
mais do que uma máquina?
Quando passaram pelo supermercado, cada uma tomou o
seu rumo. Sofia morava no final de um bairro extenso, com belas
casas, e tinha que andar quase o dobro de Jorunn para voltar da
escola. Sua casa parecia ficar no fim do mundo, pois atrás do
quintal não havia outras casas, só a floresta.
Dobrou a rua Kkwerveien. Bem no fim, a rua formava uma
curva fechada, chamada de liacurva do capitão". Só aos sábados
e domingos viam-se pessoas por ali.
Era um dos primeiros dias de maio. Em alguns jardins, den-
sas coroas de narcisos floriam sob as árvores de frutas. As bétulas
pareciam vestidas de finas capas de florescências verdes.
Não era curioso como nesta época do ano tudo começava a
crescer e a medrar? Como se explicava que quilos e quilos da
substância verde das plantas pudessem brotar da terra sem vida
quando o tempo ficava mais quente e os últimos resquícios de ne-
ve desapareciam?
Sofia olhou a caixa de correio, antes de abrir o portão do jar-
dim. Em geral havia um monte de folhetos de propaganda e al-
guns envelopes grandes para sua mãe. Sofia costumava colocar
toda a correspondência sobre a mesa da cozinha, antes de ir para
o seu quarto fazer a lição de casa.

13
Para o seu pai vinham às vezes só alguns extratos bancários, Sofiajogou a mochila da escola num canto e colocou uma ti-
o que não era de se estranhar, pois afinal de contas ele não era um gela de ração para Sherekan. Depois, segurando a carta misterio-
pai como os outros. O pai de Sofia era capitão de um petroleiro e sa, largou o corpo sobre um banquinho da cozinha.
passava quase todo o ano viajando. Quando voltava para casa Quem é você?
por algumas semanas, ficava andando pela casa de chinelos e de- Se ela soubesse! É claro que ela era Sofia Amundsen, mas
dicava toda a sua atenção a Sofia e a sua mãe. Mas a proximida- quem era esta pessoa? Isto ela ainda não tinha descoberto direito.
de desses momentos desaparecia por completo quando ele estava E se tivesse outro nome? Anne Knutsen, por exemplo. Será
em serviço. que só por isso seria também uma outra pessoa?
Hoje havia na grande caixa verde de correio apenas uma pe- De repente lembrou-se de que no começo seu pai queria que
quena carta - e ela era para Sofia. ela se chamasse Synn0ve Amundsen. Sofia tentou imaginar-se es-
"Sofia Amundsen", estava escrito no pequeno envelope. tendendo a mão e apresentando-se como Synn0ve Amundsen.
"KI0verveien, 3." Era tudo; não havia remetente. A carta não es- Não, não dava. Toda vez que pensava nisso imaginava sempre
tava sequer selada. outra pessoa.
Assim que Sofia entrou e fechou a porta, abriu o envelope. Então saltou do banquinho e foi para o banheiro com a carta
Dentro encontrou apenas uma pequena folha, não maior do que misteriosa na mão. Parou diante do espelho e olhou-se fixamente
o envelope que a continha. Nela estava escrito; Quem é você? nos olhos.
Nada mais. A mensagem não tinha qualquer fórmula de sau- - Sou Sofia Amundsen - disse.
dação, tampouco um remetente, só estas três palavras escritas a Como resposta, a garota do espelho não teve a menor reação.
mão, seguidas de um grande ponto de interrogação. Não importava o que Sofia fizesse, ela fazia a mesma coisa. Com
Ela olhou mais uma vez o envelope. Estava certo ... a carta era um movimento rápido, Sofia tentou se antecipar à imagem do es-
mesmo para ela. Mas quem a teria colocado na caixa de correio? pelho; mas ela foi igualmente rápida.
Sofia fechou rapidamente a porta da casa, cuja fachada era - Quem é você? - perguntou Sofia.
pintada de vermelho. Como de costume, o gato Sherekan conse- Também desta vez não recebeu qualquer resposta; por um
breve instante, porém, não teve certeza de ter sido ela ou sua ima-
guiu sair furtivamente do meio dos arbustos, saltar sobre o pata-
gem no espelho quem tinha feito a pergunta.
mar da escada e enfiar-se dentro de casa, antes que Sofia conse-
Com o dedo indicador, Sofia apertou o nariz da figura do es-
guisse fechar a porta.
pelho e disse:
- Miau, miau, miau!
- Você sou eu.
E como não recebeu qualquer resposta, inverteu a sentença e
Quando a mãe de Sofia ficava irritada por algum motivo, ela disse:
às vezes dizia que sua casa parecia uma menagerie, isto é, uma es- - Eu sou você.
pécie de zoológico particular. De fato, Sofia estava muito satisfei- Sofia Amundsen nunca estava muito satisfeita com sua apa-
ta com sua coleção de bichinhos. Primeiro ela ganhou um aquário rência. Com freqüência ouvia que tinha lindos olhos amendoa-
com peixes ornamentais, a quem deu os nomes de Cachinhos dos, mas provavelmente lhe diziam isto porque seu nariz era pe-
Dourados, Chapeuzinho Vermelho e Peter, o Pretinho. Depois queno demais em relação ao tamanho da boca. O pior de tudo
vieram os periquitos Tom e Jerry, a tartaruga Govinda e finalmen- eram mesmo os cabelos lisos, que não tomavam forma nenhuma.
te Sherekan, um gato malhado. Todos os bichos serviam como Às vezes seu pai lhe acariciava os cabelos e a chamava de "a ga-
uma espécie de indenização por sua mãe sair sempre tão tarde do rota dos cabelos de linho", parodiando uma composição de Clau-
trabalho e por seu pai ficar viajando tanto pelo mundo. de Debussy. Para ele era fácil dizer isto; afinal, não era ele quem
14 15
estava condenado a carregar a vida inteira cabelos pretos e escor- Será que havia uma vida após a morte? Também sobre esta
ridos de tão lisos. E nos cabelos de Sofianão adiantava passar na- questão o gato não fa.zia a menor idéia.
da, nem spray, nem gel. Há pouco tempo a avó de Sofia tinha morrido. Por mais de
Às vezes ela achava sua aparência tão estranha que se per- meio ano, Sofia sentia todos os dias a falta que sua avó lhe fazia.
guntava se não teria sido um bebê malformado. Sua mãe sempre Não era injusto que um dia a vida tivesse um fim?
contara que tivera um parto difícil. Mas será que era mesmo o Cismada, Sofia parou um instante no passeio de saibro. Ten-
nascimento que determinava a aparência de urna pessoa? tou concentrar todo o seu pensamento no fato de existir, a fim de
Não era um tanto esquisito ela não saber quem era? E tam- esquecer que um dia deixaria de existir. Mas não conseguia. No
bém não era uma injustiça o fato de ela mesma não poder deter- mesmo instante em que se concentrava no fato de existir, pensa-
minar sua aparência? Isto simplesmente lhe tinha sido imposto ao va também que um dia morreria. E o mesmo ocorria ao contrário:
nascer. Seus amigos, estes sim ela talvez pudesse escolher, mas só quando sentiu intensamente que um dia desapareceria é que
não tinha tido a chance de escolher-se a si própria. Não tinha se- pôde entender exatamente o quanto a vida era infinitamente va-
quer decidido ser uma pessoa. liosa. E quanto maior e mais clara era uma face da moeda, tanto
O que era uma pessoa? maior e mais clara se tomava a outra. Vida e morte eram os dois
Sofia olhou de novo a moça no espelho. lados de urna mesma coisa.
- Acho que agora prefiro ir fazer minha lição de casa - dis- Não se pode experimentar a sensação de existir sem se expe-
se, como que tentando se desculpar. No momento seguinte já es- rimentar a certeza que se tem de morrer, pensou. E é igualmente
tava no corredor. impossível pensar que se tem de morrer sem pensar ao mesmo
Não, prefiro ir até o jardim, pensou. tempo em como a vida é fantástica.
- Miau, miau, miau! Sofia lembrou-se de que sua avó dissera algo semelhante no
Sofia espantou o gato para a escada de fora e fechou a porta. dia em que soube de sua doença. - Só agora entendo o quanto a
vida é rica - foram suas palavras.
Quando já estava no jardim, caminhando no passeio de sai- Não era triste que a maioria das pessoas tivesse primeiro que
bro com a carta misteriosa na mão, experimentou subitamente ficar doente para só então entender o quanto a vida é bela? Ou en-
uma sensação estranha. Sentiu-se corno uma boneca que ganhara tão que tivessem de encontrar uma carta misteriosa na caixa de
vida por uma varinha de condão. correio?
Não era extraordinário estar viva naquele momento e ser Talvez fosse melhor verificar se não havia chegado mais al-
personagem de urna aventura maravilhosa como a vida? guma coisa. Sofia correu até o portão e examinou o que havia
Sherekan saltou elegantemente sobre o passeio de saibro e dentro da caixa de correio. E estremeceu da cabeça aos pés ao des-
desapareceu na groselheira, que se erguia bem ao lado. Era um cobrir outro envelope idêntico ao primeiro. Será que ela verifica-
gato muito vivo, cheio de uma energia vibrante que ia dos bigo- ra direito se a caixa estava realmente vazia da primeira vez que
des brancos até a ponta da cauda chicoteante. Ele também estava apanhou a correspondência?
ali no jardim, mas certamente não tinha consciência disso do mes- O outro envelope também trazia o seu nome. Abriu-o e tirou
mo modo corno Sofia. uma pequena folha de papel, igual à primeira, em que estava escrito:
Depois de pensar um pouco sobre o fato de existir, Sofia não
De onde vem o mundo?
pôde deixar de pensar também que um dia desapareceria.
Estou vivendo no mundo agora, pensou. Mas um dia terei Não faço a menor idéia, pensou Sofia. Mas também ninguém
desaparecido. sabe! E apesar disso Sofia achou a pergunta pertinente. Pela pri-

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meira vez em sua vida ela pensava que era praticamente impos- e folhas. E embora nenhum desses buracos fosse maior do que
sível viver num mundo sem ao menos perguntar de onde ele uma moeda de cinco coroas, ela tinha uma visão completa do jar-
vinha. dim. Quando era pequena, gostava de ficar vendo sua mãe e seu
Sofia estava tão perturbada com as duas cartas misteriosas pai andando por entre as árvores à sua procura.
que resolveu se enfiar em sua caverna. A caverna era o seu escon- Sofia sempre considerou o jardim um mundo à parte. Todas
derijo secreto. E ela só ia para lá quando estava muito brava, mui- as vezes que ouvia falar do Jardim do Éden, mencionado na Bí-
to triste ou muito alegre. Hoje ela estava muito confusa. blia, lembrava-se de seu esconderijo e da sensação de sentar-se ali
e observar o seu paraíso particular .
.A cas.avermelha ficava no meio de um grande jardim. Nele De onde vem o mundo?
havIa mUItos canteiros de flores, groselheiras e arbustos de uva- Não ... isto ela realmente não sabia. É claro que Sofia sabia
espim, árvores frutíferas de diferentes qualidades, um extenso que o mundo era apenas um pequeno planeta no meio de um uni-
gramado com um balanço e até mesmo um pequeno pavilhão, verso enorme. Mas, então, de onde vinha o universo?
que seu avô construíra para a sua avó quando o primeiro filho de- Naturalmente se poderia pensar que o universo era uma coi-
les morreu, algumas semanas depois de ter nascido. A criança sa que sempre existiu. Nesse caso, ela não precisaria encontrar
c~a~a~,a-se Marie. N~ lápide da sepultura havia a seguinte ins- uma resposta para a questão de saber de onde ele vinha. Mas se-
cnçao: Pequena Mane, presente de Deus, nos disse um olá e lo- rá que alguma coisa podia ser eterna? Alguma coisa dentro dela
go um adeus". protestava contra isto. Tudo o que existe tem que ter um começo.
.Num canto do jardim, mais atrás ainda do pé de framboesas, Portanto, em algum momento o universo também tinha de ter
haVIa uma folhagem bem densa, que não dava flores nem frutos. surgido a partir de uma outra coisa.
Na verdade, era uma velha sebe que fazia a divisa com a floresta; Mas se o universo de repente tivesse surgido de alguma ou-
mas con;o nos últimos vinte anos ninguém tinha se preocupado tra coisa, então essa outra coisa também devia ter surgido de al-
em poda-la, ela se transformara num emaranhado impenetrável guma outra coisa algum dia. Sofia entendeu que só tinha transfe-
de galho~ e ram~s. Sua avó contava que, durante a guerra, quan- rido o problema de lugar. Afinal de contas, algum dia alguma
do as gahnhas CIscavamlivremente pelo jardim, a sebe dificulta- coisa tinha de ter surgido do nada. Mas será que isto era possível?
va a entrada de raposas que queriam pegá-las. Esta idéia não era tão absurda quanto a noção de que o mundo
Para todos os outros a velha sebe era tão inútil quanto a ve- sempre existiu?
lha c~elheira lá da frente do jardim. Mas isto só porque eles não co- Nas aulas de religião ensinavam a ela que Deus tinha criado
nheCIam o segredo de Sofia. Há muito tempo, tanto que nem se o mundo, e agora Sofia tentava se consolar com o fato de que,
lembrava, Sofia descobrira uma estreita passagem na sebe. Quan- apesar de tudo, esta talvez fosse a melhor solução para o proble-
do atravessava a passagem se arrastando por entre os galhos, che- ma. Mas logo começou a pensar novamente. Ela até poderia se
gava a uma grande cavidade no interior da sebe. Aquilo era a "ca- contentar com o fato de Deus ter criado o mundo. Mas e o próprio
verna", seu.esconderijo. Ali ela podia ter a certeza de que ninguém Deus? Teria ele próprio se criado a partir do nada absoluto? De
a encontrana: novo, alguma coisa protestava dentro dela contra essa idéia. Em-
Com os dois envelopes na mão, Sofia atravessou o jardim bora não restasse dúvida de que Deus fosse capaz de criar todas
correndo e, de quatro, apoiando-se sobre os cotovelos como uma as coisas possíveis, dificilmente ele poderia ter criado a si mesmo,
foca, ent.r0u.pela sebe. A caverna era tão grande que Sofia quase sem antes possuir um "si mesmo" através do qual pudesse criar.
consegUIa fIcar de pé lá dentro. Hoje, porém, preferiu sentar-se E então só restava uma possibilidade: Deus sempre existiu. Mas
sobre umas raízes bem grossas que brotavam do chão. Dali, atra- esta possibilidade ela já tinha rejeitado. Tudo o que existia tinha
vés de dois pequenos buracos, podia enxergar por entre os galhos que ter tido um começo.

18 19
- Droga! Mas por que será que um pai mandaria um cartão de aniver-
De novo abriu os dois envelopes. sário para o endereço de Sofia, se não havia dúvida de que ele de-
Quem é você? veria ir para outro endereço? Que pai, em sã consciência, manda-
De onde vem o mundo? ria um cartão-postal propositadamente para um endereço errado,
Que perguntas mais capciosas! E de onde vinham as duas evitando assim que seus votos de feliz aniversário chegassem até
cartas? Isto era uma coisa quase tão misteriosa quanto elas. a filha? Por que esta seria" a forma mais fácil"? E, sobretudo, co-
Quem teria arrancado Sofia de seu cotidiano e a teria con- mo ela, Sofia, poderia encontrar Hilde?
frontado de repente com os grandes mistérios do universo? E assim Sofia ganhou mais um problema para ficar quebran-
do a cabeça. Tentou mais uma vez ordenar seus pensamentos.
Pela terceira vez, Sofia foi até a caixa de correio. Em poucas horas de uma única tarde ela tinha sido colocada
Só agora o carteiro tinha trazido a correspondência normal. diante de três enigmas. O primeiro era a questão de saber quem
Sofia apanhou um grosso maço de material de propaganda, jor- havia colocado os dois envelopes brancos na sua caixa de correio.
nais e duas cartas endereçadas à sua mãe. Havia também um car- O segundo eram as difíceis perguntas que estas cartas lhe propu-
tão-postal, com a foto de uma praia tropical. Virou o cartão para nham. E o terceiro era saber quem era essa Hilde Moller Knag e
ler o que estava escrito. O cartão tinha um selo da Noruega e o ca- por que ela, Sofia, tinha recebido o cartão de aniversário em lugar
rimbo "Regimento da ONU". Seria um cartão de seu pai? Mas ele dessa desconhecida.
não estava trabalhando bem longe dali? Além do mais, aquela Ela tinha certeza de que estes três enigmas de alguma forma
não era a sua caligrafia. tinham qualquer coisa em comum, pois até aquele dia ela tinha le-
Sofia sentiu o coração bater um pouco mais rápido, quando vado uma vida absolutamente normal.
leu o endereço do cartão. "Hilde M011erKnag, a/c Sofia Amund-
sen, Kloverveien, 3,.." O restante do endereçamento estava certo.
No cartão estava escrito:
Querida Hilde!
Muitas felicidades, de todo o meu coração, pelos seus quinze
anos. Como você deve saber, quero te dar um presente que te ajude
a crescer como gente. Desculpe-me se mando o cartão aos cuidados
de Sofia. Foi a forma mais fácil que encontrei.
Beijos, Papai.
Sofia correu para casa e entrou às pressas na cozinha. Sentia
que uma tempestade rugia dentro de si. E o que era isso agora?
Quem era essa Hilde que fazia quinze anos exatamente um mês
antes de ela própria também fazer quinze anos?
Sofia foi buscar a lista telefônica que ficava no corredor. Ha-
via muitas pessoas de sobrenome Moller, algumas até de Knag.
Mas em toda a grossa lista telefônica ninguém se chamava M011er
Knag.
De novo examinou o estranho cartão. E não teve dúvidas: tu-
do indicava que era um cartão autêntico, com selo e carimbo.

20 21
Sofia sentiu um tom de desapontamento na voz de Jorunn.
- Bom, será que pelo menos você poderia me dizer o que foi
que de repente passou a ser tão importante?
A CARTOLA Sofiabalançou a cabeça.
...a única coisa de que precisamos para - Bem isto é segredo.
nos tornarmos bons filósofos é a capacidade de - Tsch na certa você se apaixonou por alguém.
nos admirarmos com as coisas ... As duas continuaram a caminhar juntas sem dizer nada.
Quando chegaram ao campo de futebol, Jorunn disse:
- Vou cortar caminho pelo campo.
Cortar caminho pelo campo! Jorunn só fazia isto quando pre-
cisava chegar logo em casa por causa de visitas, ou então quando
Sofia estava certa de que o autor das cartas anônimas iria se tinha hora marcada no dentista.
manifestar outra vez. Ela decidiu que a princípio não diria nada Sofia ficou sentida por ter magoado Jorunn. Mas o que deve-
a ninguém sobre essas cartas. ria ter respondido? Que ela de repente estava tão preocupada em
Na escola, Sofia tinha dificuldade de se concentrar no que o saber quem era e de onde tinha surgido o mundo que não tinha
professor falava. De uma hora para a outra, começou a achar que tempo para jogar peteca? Será que sua amiga teria entendido?
ele só falava de coisas que não eram importantes. Por que ele não Por que será que era tão difícil preocupar-se com estas ques-
falava sobre o que é um ser humano, ou então sobre o que é o tões tão importantes e, de certa forma, tão naturais?
mundo ou de onde ele tinha surgido? Sentiu o coração bater mais rápido quando abriu a caixa de
Ela sentia uma coisa que nunca tinha sentido antes: na esco- correio. Numa primeira olhada, viu apenas extratos bancários e
la, e também por toda a parte, as pessoas só se preocupavam com um grande envelope amarelo para sua mãe. Puxa vida! Sofia ti-
nha esperado tanto por outra carta do remetente desconhecido!
trivialidades. Mas havia questões maiores, mais graves, cujas res-
Quando fechou o portão, descobriu seu nome num dos enve-
postas eram mais importantes do que as matérias normais da
lopes grandes. No verso do envelope estava escrito: Curso de filo-
escola.
sofia. Maneje com cuidado.
Alguém teria respostas para elas? De qualquer forma, Sofia
Sofia atravessou correndo o caminho de pedras e colocou sua
achava mais importante refletir sobre elas do que quebrar a cabe-
mochila na escada. Empurrou as outras cartas para baixo do ca-
ça decorando verbos irregulares. pacho, correu para o jardim atrás da casa e procurou refúgio no
Quando tocou o sinal depois da última aula, ela saiu com seu esconderijo. Só ali o envelope podia ser aberto.
tanta pressa da escola que Jorunn teve de correr para conseguir Sherekan veio correndo atrás dela, mas não havia nada que
alcançá-la. ela pudesse fazer para impedi-lo. De uma coisa Sofia estava cer-
- Vamos jogar baralho hoje à noite? - perguntou Jorunn, ta: o gato não iria denunciá-la.
depois de já estar caminhando há algum tempo ao lado da amiga. No envelope havia três páginas datilograJadas, presas por
Sofia sacudiu os ombros com indiferença. um clipe. Sofia começou a ler.
- Acho que não me interesso mais por jogar baralho.
Jorunn pareceu cair das nuvens com a resposta.
- Não? Então vamos jogar peteca?
- ~cho que também não me interesso mais por jogar peteca.
-E mesmo?

22
23
o QUE É FILOSOFIA? a vida por aqui é uma questão maior e mais importante do que
saber quem ganhou mais medalhas de ouro nos últimos jogos
Querida Sofia, Olímpicos.
Muitas pessoas têm hobbies diferentes. Algumas colecionam
moedas e selos antigos, outras gostam de trabalhos manuais outras O mel hor meio de se aproximar da filosofia é fazer perguntas
ainda dedicam quase todo o seu tempo livre a uma deter:ninada fi losóficas:
modalidade de esporte. Como o mundo foi criado? Será que existe uma vontade ou um
Também há os que gostam de ler. Mas os tipos de leitura tam- sentido por detrás do que ocorre? Há vida depois da morte? Como
bém são muito diferentes. Alguns lêem apenas jornais ou gibis, ou- podemos responder a estas perguntas? E, principalmente: como'de-
tros gostam de romances, outros ainda preferem livros sobre temas vemos viver?
diversos como astronomia, a vida dos animais ou as novas desco- Essasperguntas têm sido feitas pelas pessoas de todas as épo-
bertas da tecnologia. cas. Não conhecemos nenhuma cultura que não se tenha pergun-
Se me interesso por cavalos ou pedras preciosas, não posso tado quem é o ser humano e de onde veio o mundo.
querer que todos os outros tenham o mesmo interesse. Se fico gru- Basicamente, não há muitas perguntas filosóficas para se fazer.
dado na tele~isão assistindo a todas as transmissões de esporte, te- já fizemos algumas das mais importantes. Mas a história nos mos-
nho que aceitar que outras pessoas achem o esporte uma chatice. tra diferentes respostas para cada uma dessas perguntas que esta-
. Mas será que existe alguma coisa que interessa a todos? Será que mos fazendo.
eXiste alguma coisa que concerne a todos, não importando quem são É mais fáci I, portanto, fazer perguntas filosóficas do que res-
ou ~nd~ se encontram? Sim, querida Sofia, existem questões que de- pondê-Ias.
veriam rnteressar a todas as pessoas. E é sobre tais questões que trata Da mesma forma, hoje em dia cada um de nós deve encontrar
este curso. a sua resposta para estas perguntas. Não dá para procurar numa en-
Qual é a coisa mais importante da vida? Se fazemos esta per- ciclopédia se existe um Deus, ou se há vida após a morte. A enci-
g~nta a u~a pessoa de um país assolado pela fome, a resposta se- clopédia também não nos diz como devemos viver. Mas a leitura
ra: a comida. Se fazemos a mesma pergunta a quem está morrendo do que outras pessoas pensaram pode nos ser útil quando precisa-
de frio, então a resposta será: o calor. E quando perguntamos a al- mos construir nossa própria imagem do mundo e da vida.
gu~m que se sen.te sozinho e isolado, então certamente a resposta A busca dos filósofos pela verdade pode ser comparada com
sera: a companhia de outras pessoas. uma história policial. Alguns acham que Andersen é o criminoso;
. Mas, uma vez satisfeitas todas essas necessidades, será que outros acham que é Nielsen ou jepsen. Um crime na vida real po-
arnda resta alguma coisa de que todo mundo precise? Os filósofos de chegar a ser desvendado pela polícia um dia. Mas também po-
a=ha~ que sim. Eles acham que o ser humano não vive apenas de demos imaginar que a polícia nunca consiga solucionar determina-
pao. E claro que todo mundo precisa comer. E precisa também de do caso, embora a solução para ele esteja em algum lugar.
a~or e de c,uidado. Mas ainda há uma coisa de que todos nós pre- Mesmo que seja difícil responder a uma pergunta, isto não sig-
C1sam~s.Nos temos a necessidade de descobrir quem somos e por nifica que ela não tenha uma - e só uma - resposta certa. Ou há
que vivemos. algum tipo de vida depois da morte, ou não.
Portanto, interessar-se em saber por que vivemos não é um in- Muitos dos antigos enigmas foram resolvidos pela ciência ao
teresse "casual" como colecionar selos, por exemplo. Quem se in- longo dos anos. Antigamente, um grande enigma era saber corno
teressa por tais questões toca um problema que vem sendo discuti- era o lado escuro da Lua. Não era possível chegar a uma respcosta
do pelo homem praticamente desde quando passamos a habitar apenas através de discussão; a resposta ficava para a imaginação
este planeta. A questão de saber como surgiu o universo, a Terra e de cada um. Hoje, porém, sabemos exatamente como é o lado es-

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curo da Lua. Não dá mais para "acreditar" que há um homem mo- Não podia ser a mesma pessoa que tinha mandado o cartão
rando na Lua, nem que ela é um grande queijo, todo cheio de de aniversário para Hilde M011er Knag, pois o cartão tinha selo e
buracos. carimbo. Mas o envelope amarelo tinha sido colocado em mãos
Um dos antigos filósofos gregos, que viveu há mais de dois mil na caixa de correio, exatamente como acontecera antes com os
anos, acreditava que a filosofia era fruto da capacidade do homem dois envelopes brancos.
de se admirar com as coisas. Ele achava que para o homem a vida Sofia olhou o relógio. Já eram quinze para as três. Sua mãe só
é algo tão singular que as perguntas filosóficas surgem como que voltaria do trabalho em duas horas.
espontaneamente. É como o que ocorre quando assistimos a um Então correu outra vez para o jardim, a fim de olhar a caixa
truque de mágica: não conseguimos entender como é possível de correio. Será que havia mais alguma coisa lá dentro?
acontecer aquilo que estamos vendo diante de nossos olhos. E en- Encontrou outro envelope amarelo endereçado a ela. Olhou
tão, depois de assistirmos à apresentação, nos perguntamos: como ao redor, mas não viu ninguém. Sofia correu até a fímbria da flo-
é que o mágico conseguiu transformar dois lenços de seda brancos resta e olhou para a trilha que levava para o seu interior. Também
num coelhinho vivo? ali não havia ninguém. De repente, pareceu-lhe ouvir o estalar de
Para muitas pessoas, o mundo é tão incompreensível quanto o galhos lá dentro da floresta. Mas ela não tinha muita certeza se
coelhinho que um mágico tira de uma cartola que, há poucos ins- poderia ser alguém, e também não teria muito sentido sair corren-
tantes, estava vazia. do atrás de ruídos. Se alguém estava tentando fugir dela, ela não
conseguiria detê-lo.
No caso do coelhinho, sabemos perfeitamente que o mágico
Sofia fechou a porta de casa e colocou no chão sua mochila e
nos iludiu. Quando falamos sobre o mundo, as coisas são um pou-
a correspondência para sua mãe. Correu para seu quarto, pegou
co diferentes. Sabemos que o mundo não é mentira ou ilusão, pois uma grande lata de bolachas que estava cheia de belas pedras,
estamos vivendo nele, somos parte dele. No fundo, somos o coe- derramou tudo no chão e colocou dentro dela os dois envelopes
lhinho branco que é tirado da cartola. A única diferença entre nós grandes. Depois, segurando a lata, correu de novo para o jardim.
e o welhinho branco é que o coelhinho não sabe que está parti~i- Antes, porém, ainda deu um pouco de ração para Sherekan.
pando de um truque de mágica. Conosco é diferente. Sabemos que - Miau, miau, miau!
estamos fazendo parte de algo misterioso e gostaríamos de poder Quando chegou a seu esconderijo, abriu o envelope e tirou
explicar como tudo funciona. mais algumas páginas datilografa das. Então começou a ler.

PS. Quanto ao coelhinho branco, talvez seja melhor compará-lo


com todo o universo. Nós, que vivemos aqui, somos os bichinhos UMA ESTRANHA CRIATURA
microscópicos que vivem na base dos pêlos do coelho. Mas os fi-
lósofos tentam subir da base para a ponta dos finos pêlos, a fim de Aqui estamos nós de novo. Na certa você já entendeu que es-
poder olhar bem dentro dos olhos do grande mágico. te breve curso de filosofia virá em pequenas doses. Aqui vão mais
algumas considerações introdutórias.
Você ainda está aí, Sofia? Vamos continuar. .. Eu já disse que a capacidade de nos admirarmos com as coisas
é a única coisa de que precisamos para nos tornarmos bons filóso-
fos? Se não, então digo agora: A ÚNICA COISA DE QUE PRECISAMOS PARA
NOS TORNARMÓS BONS FilÓSOFOS É A CAPACIDADE DE NOS ADMIRARMOS
Sofia estava exausta. Se ela ainda estava ali? Ela não sabia
COM AS COISAS.
nem mesmo se tinha parado para respirar durante a leitura.
Todo mundo sabe que os bebês possuem essa capacidade. De-
Quem teria trazido a carta? Quem? Quem?
pois de alguns meses na barriga da mãe, eles são empurrados para
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uma realidade completamente diferente. Mas depois, quando cres- Sou uma criatura estranha, você irá pensar. Sou um animal
cem, parece que esta capacidade vai desaparecendo. Como se ex- misterioso ...
plica isto? Será que Sofia Amundsen é capaz de responder a esta Eentão vai ser como acordar de um sono de anos. Como o da
pergunta? Bela Adormecida. "Quem sou eu?", você irá se perguntar. Você sa-
Vamos ver: se um bebezinho pudesse falar, na certa ele diria be que viaja pelo universo num planeta. Mas o que é o universo?
alguma coisa sobre o novo e estranho mundo a que chegou. Pois Você está me acompanhando, Sofia? Então vamos fazer mais
apesar de a criança não saber falar, podemos ver como ela olha ao um teste de raciocínio.
seu redor e quer tocar com curiosidade todos os objetos que vê. Certa manhã, mamãe, papai e o pequeno Thomas - a esta al-
Quando vêm as primeiras palavras, a criança pára e diz "Au! tura já com dois ou três anos - estão sentados na cozinha toman-
Au!" toda vez que vê um cachorro. Podemos ver como ela fica agi- do o café. De repente, mamãe se levanta, vira-se para a pia e en-
tada dentro do carrinho e movimenta os bracinhos dizendo "Au tão... bem, então papai começa a flutuar sob o teto da cozinha.
au, au!". Para nós, que já deixamos para trás alguns anos de nos~ O que você acha que Thomas diria? Talvez ele apontasse o de-
sas vidas, o entusiasmo da criança pode parecer até um tanto exa- do para seu pai e dissesse: "Papai voando!".
gerado. "Sim, sim, é um au-au", dizemos nós, os "vividos". "Mas Na certa Thomas ficaria espantado, mas ficar espantado não é
agora fique quietinho." Não ficamos muito entusiasmados, pois já novidade para ele. Afinal, o papai faz tantas coisas estranhas que,
vimos outros cachorros antes. a seus olhos, um pequeno vôo sobre a mesa do café da manhã não
Estacena insólita talvez se repita algumas centenas de vezes, faz lá muita diferença. Todos os dias, por exemplo, seu pai faz a
até que a criança passe por um cachorro, ou por um elefante, ou barba com um aparelhinho esquisito, àsvezes sobe no telhado e vi-
por um hipopótamo sem ficar fora de si. Mas muito antes de a ra a antena da TV, outras vezes enfia a cabeça no compartimento
criança aprender a falar corretamente - ou muito antes de ela do motor do carro e sai com a cara toda preta lá de dentro.
aprender a pensar filosoficamente -, ela já se h~bituou com o Agora é a vez da mamãe. Ela ouviu o que Thomas disse e vi-
mundo. ra-se resoluta. Como você acha que ela reagiria à visão de seu ma-
Uma pena, se você quer saber o que eu acho. rido voando sobre a mesa da cozinha?
O que importa para mim, querida Sofia, é que você não este- Na mesma hora ela deixa cair o vidro de geléia e solta um gri-
ja entre aqueles que consideram o mundo uma evidência. Para ter to de pavor. Talvez ela até precise de um médico, depois que pa-
certeza disso, vamos fazer dois exercícios de raciocínio antes de pai voltar a sentar-seem sua cadeira. (Há muito tempo ele deveria
começarmos com nosso curso propriamente dito. ter aprendido a se comportar à mesa!)
Imagine que você está dando um passeio na floresta. De re- Por que será que Thomas e mamãe reagem de forma tão dife-
pente, no meio do caminho, você vê uma pequena nave espacial. rente? O que você acha?
Então, um pequeno marciano sai da nave e olha para você lá de É uma questão de hábito. (Grave bem isso!) Mamãe aprendeu
baixo ... que as pessoas não podem voar. Thomas não. Ele ainda não tem
O que você pensaria? Bem, isto não importa. Mas será que já muita certeza do que é possível e do que não é possível neste
passou pela sua cabeça que você pode ser uma marciana? mundo.
Naturalmente, é muito pouco provável que você um dia trope- Mas e quanto ao mundo propriamente dito, Sofia? Você acha
ce numa criatura de outro planeta. Não sabemos nem mesmo se há que ele é possível? O mundo também fica pairando livremente no
vida em outros planetas. Mas pode ser que você um dia tropece em espaço.
si mesma. Pode ser que um belo dia você pare o que está fazendo O triste de tudo isto é que, à medida que crescemos, nos acos-
e passea se ver de uma forma completamente diferente. E pode ser tumamos não apenas com a lei da gravidade. Acostumamo-nos, ao
que isto aconteça justamente durante um passeio na floresta. mesmo tempo, com o mundo em si.

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Ao ~ue tudo indica, ao longo da nossa infância nós perdemos caixa de correio. Esta mensagem pode ser, digamos, uma rã viva.
a ca~aCldade de nos admirarmos com as coisas do mundo. Mas De qualquer forma, tem de ser alguma coisa verde. Afinal, não va-
com Isto perdemos uma coisa essencial - algo de que os filósofos mos querer assustar o carteiro.
qu~~remno~ lembrar. Pois em algum lugar dentro de nós, alguma
~olsa no.sdiz que a vida é um grande enigma. E já experimentamos Vamos resumir: um coelho branco é tirado de dentro de uma
Isto, mUito antes de aprendermos a pensar. cartola. E porque se trata de um coelho muito grande, este truque
leva bi Ihões de anos para acontecer. Todas as crianças nascem bem
~ara ser mais preciso: embora as questões filosóficas digam na ponta dos finos pêlos do coelho. Por isso elas conseguem se en-
respeito a todas as pessoas, nem todas se tornam filósofos. Por di- cantar com a impossibilidade do número de mágica a que assistem.
ferentes m?tivos, a maioria delas é tão absorvida pelo cotidiano Mas conforme vão envelhecendo, elas vão se arrastando cada vez
que a adml:ação pela vida acaba sendo completamente reprimida. mais para o interior da pelagem do coelho. E ficam por lá. Lá em-
(Elas se alojam bem no fundo do pêlo do coelho, fazem um ninho baixo é tão confortável que elas não ousam mais subir até a ponta
bem confortável e ficam lá embaixo pelo resto de suas vidas.) dos finos pêlos, lá em cima. Só os filósofos têm ousadia para se lan-
. Para as crianças, o mundo - e tudo o que há nele - é uma çar nesta jornada rumo aos limites da linguagem e da existência.
c?lsa nov~; algo que desperta a admiração. Nem todos os adultos Alguns deles não chegam a concluí-Ia, mas outros se agarram com
veem a cOisa dessa forma. A maioria deles vivencia o mundo como força aos pêlos do coelho e berram para as pessoas que estão lá
uma coisa absolutamente normal. embaixo, no conforto da pelagem, enchendo a barriga de comida
E precisamente neste ponto é que os filósofos constituem uma e bebida:
louvável exceção. Um filósofo nunca é capaz de se habituar com- - Senhoras e senhores - gritam eles -, estamos flutuando
pletamente com este mundo. Para ele ou para ela o mundo conti- no espaço!
nua a ter al.g~ de incompreensível, algo até de enigmático, de se- Mas nenhuma das pessoas lá de baixo se interessa pela grita-
creto. ~s .filosofos e as crianças têm, portanto, uma importante ria dos filósofos.
carac~enstlca comum. Podemos dizer que um filósofo permanece a - Deus do céu! Que caras mais barulhentos! - elas dizem.
sua Vida toda tão receptivo e sensível às coisas quanto um bebê. E continuam a conversar: será que você poderia me passar a
. E agora você precisa se decidir, querida Sofia: você é uma manteiga? Qual a cotação das ações hoje? Qual o preço do toma-
cnança que ainda não se "acostumou" com o mundo? Ou você é te? Você ouviu dizer que a Lady Di está grávida de novo?
uma filósofa capaz de jurar que isto nunca vai lhe acontecer?
Se.você simplesmente balança a cabeça e não se sente nem co~
~o cnança, nem como filósofa, a explicação para isto é que você Quando a mãe de Sofia voltou para casa no final da tarde, a
Ja se acostumou tanto com o mundo que não consegue mais se sur- lata com as cartas do misterioso filósofo estava em segurança no·
pree~der com ele. Neste caso, você corre perigo. Ejustamente por esconderijo. Sofia tinha tentado se concentrar na lição de casa,
n;edlda de segurança, para evitar que isto aconteça, é que você es- mas continuava a quebrar a cabeça com tudo o que tinha lido.
ta r:cebendo este curso de filosofia. Eu não quero que justamente Eram tantas as coisas sobre as quais ela jamais tinha pensa-
voce pa:,se.a pertencer ao clube dos apáticos e indiferentes. Quero do! Ela não era mais uma criança, mas também não era completa-
que voce viva uma vida instigante. mente adulta. Sofia entendeu que já tinha começado a se arrastar
I Você receberá este curso inteiramente grátis. Assim, não have- lá para dentro da espessa pelagem do coelho que havia sido tira-
ra .dev?luçãO de dinheiro, caso você desista de fazê-lo. Se você do da cartola preta do universo. Mas agora o filósofo a tinha de-
q~lser Interromper o curso em determinado momento, também não tido. Ele - ou será que era ela? - a tinha agarrado pelo canga te
ha problema. Você só precisa deixar uma mensagem para mim na e a puxara novamente para a ponta da pelagem, onde ela brinca-

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ra um dia, quando ainda era criança. E lá fora, na pontinha dos fi- - Por acaso você andou mexendo com drogas?
nos pêlos, ela vira novamente o mundo como se fosse pela pri- Sofia não conseguiu conter um sorriso, mas entendeu por
meira vez. O filósofo a salvara. que aquela pergunta lhe estava sendo feita justamente agora.
Sofia puxou sua mãe para a sala e a fez sentar numa poltrona. . - Você ficou louca? - respondeu. - As drogas só deixam a
- Mamãe, a senhora não acha a vida uma coisa extraordiná- gente ainda mais careta!
ria? - começou. Naquela noite, nada mais foi dito sobre drogas ou sobre coe-
Sua mãe ficou tão espantada com a pergunta que não lhe lhinhos brancos.
ocorreu qualquer resposta. De outras vezes, ao chegar em casa,
sempre encontrava Sofia debruçada sobre os livros, fazendo os
deveres de casa.
- Sim - respondeu. - Às vezes.
- Às vezes? Quero dizer ... você não acha surpreendente o
simples fato de o mundo existir?
- Sofia, do que você está falando?
- Estou perguntando uma coisa. Ou será que você acha o
mundo uma coisa totalmente normal?
- Sim. O mundo é uma coisa absolutamente normal. Na
maioria das vezes.
Sofia entendeu que o filósofo tinha razão. Os adultos acha-
vam o mundo uma coisa evidente. Dormiam para sempre o sono
encantado do cotidiano.
- Você apenas se habituou tanto com o mundo que ele não
surpreende mais você - disse.
- Desculpe, mas não estou entendendo nada.
- Estou dizendo que você se acostumou demais com o mun-
do. Em outras palavras, que você está totalmente tapada.
- Veja lá como você fala comigo, Sofia.
- Então me deixe dizer de outra forma. Você arrumou um
ninho bem confortável lá no fundo da pelagem de um coelho
branco que acabou de ser tirado da cartola preta do universo. E
daqui a pouco você vai pôr as batatas para cozinhar. Depois vai
ler o seu jornal e depois de uma soneca de meia hora vai assistir
aos telejornais.
Uma expressão de preocupação passou pelo rosto da mãe de
Sofia. De fato ela foi até a cozinha e colocou as batatas para cozi-
nhar. Logo depois voltou para a sala e então foi a sua vez de fa-
zer Sofia se sentar numa poltrona.
- Vamos conversar - começou ela. E pela voz de sua mãe
Sofia percebeu que se tratava de algo sério.

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