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Agradeço a
Vanessa Ornella dos Santos e
Antônio Marcelo de Souza Abboud
a primeira revisão deste texto.
ÍNDICE
Prefácio,
Unidade 1. O fluxo do devir e sua captura pela ordem,
Unidade 2. O sentido da ordem,
Unidade 3. Uma nova ordem ou a mudança de sentido,
Unidade 4. Sobremodernidade ou a última ordem,
Unidade 5. A ordem da virtualidade unidimensional,
Unidade 6. A virtualização do espaço volátil,
Unidade 7. A virtualização dos conteúdos voláteis,
Unidade 8. A virtualização do tempo,
Unidade 9. Caminhos sobremodernos,
PREFÁCIO
Como chegar, então, a um discurso que não se perca no colapso do sentido, mas que,
por outro lado, não nos devolva uma forma e um sentido já estabelecido? O discurso
sobremoderno deverá ocupar um ponto no espaço e no tempo, de onde desate o nó,
antes que as tendências por ele amarradas se atualizem nos acontecimentos. Este ponto é
o buraco por onde escoarão os conteúdos voláteis que se tocam invisivelmente no nada
que os separa. Como forma de expressão da volatilidade das conexões em alta
frequência, o discurso sobremoderno segue os rastros de um “turbilhão que faz
convergir o que está em vias de desaparecer e o que está em vias de se formar” (André
Brasil, “Ensaio, pensamento ao vivo”).
Como todo discurso, ele carece do registro e da escritura. Contudo, a escritura
sobremoderna localiza-se nos pontos de inflexão dos conteúdos que trafegam numa
velocidade absoluta de um presente que os escoa sem deixar rastros; a escritura
sobremoderna é a escritura da velocidade absoluta, do espaço das conexões e do tempo
real. Portanto, ela se desdobra em uma arqueologia que vai em busca das palavras num
espaço sem perspectiva e num tempo sem espessura, de onde podemos ouvir “os gritos
que provêm da finura das medulas” (Jacques. Derrida, “A escritura e a diferença”).
Qualquer palavra – falada, pensada ou soprada – remete o falante, pensante ou ouvinte
àquilo que ela diz ou faz referência. Se tal coisa referida habita o mundo físico, a
palavra insta o agente da ação – que pensa, fala e ouve, a despeito dos paradoxos do
pensamento ou das construções linguísticas – a apoiar-se num espaço denso, cuja
espessura permite que as coisas sejam referidas de forma a dele se separarem. Contudo,
quando ingressamos no espaço-lugar ou região intersticial que separa os seres um dos
outros – e queremos nos colocar nesta fenda que se alarga até a indiscernibilidade
limítrofe entre as coisas e as palavras, os registros de nossos discursos carecem de uma
nova linguagem, da qual o arqueólogo do discurso não pode prescindir, caso não queira
se perder no vazio da insignificação.
A tarefa de um arqueólogo sobremoderno é ouvir os conteúdos no silêncio de
sua ausência, pois eles já partiram, ou melhor, não param de partir a cada instante. A
palavra sobremoderna, então, deve ser capaz de (des)cobrir as vibrações entre as
conexões por onde se escoa um fluxo contínuo, nas intermitências, rupturas, saltos e
desvios, onde se cruzam as linhas de uma trama que reúne personagens diversas em
constante relação. Estas personagens movem-se ininterruptamente, e delas nada
conseguiremos saber, a não ser que venhamos a procurá-las nas suas relações. Estas
conduzem o arqueólogo sobremoderno a domínios longínquos onde figuram saberes
diversos, e o põem a discursar sobre história, literatura, física, biologia, neurociência,
cinema ou economia, sem que as diversas linguagens representem obstáculo à
comunicação, uma vez que a glossolalia sobremoderna é a potência de desapropriar
cada domínio de seu território específico, e trazê-lo a um buraco que o faz escapar de si
próprio, para poder restaurar a potência às suas palavras. Como introdução a um
discurso, nosso objetivo é descortinar o palco onde os embates dos conteúdos se
desenrolam e, de certa maneira, fornecer um mapa em branco que auxiliará na jornada
por entre os labirintos sobremodernos. Neles, o viajante poderá ver surgir a escrita que
não se separa da própria jornada, num “neutro” que o separa das palavras e as utiliza
antes mesmo de encontrá-las, para que, tendo-as encontrado, tenha a certeza de sempre
ter sido despojado delas em um território que não cansa de se mover.
Todo território se estabelece a partir das referências identitárias, que constroem
um lugar de significações, onde a memória desempenha um papel fundamental na
adequação dos significantes e significados. Um cheiro, uma cor, um som capturados
pela percepção sensível remetem a um conjunto de referências onde o significado
garante a perenidade dos vetores de sua constituição. Neste espaço de adequação, os
conteúdos referentes guiam-se pelos códigos consolidados e catalogados na memória. É
a partir deste acervo que a permanência se constitui, e dele se torna dependente, quer
seja pela tradição ou pela conformidade dos códigos que livram o espírito da profunda
anomia, quando esse acervo se confronta com a instabilidade e a transitoriedade do
devir. Entre as fronteiras dos territórios abrem-se fendas e rachaduras por onde os
conteúdos circulam, aberturas responsáveis pelo processo de desterritorialização que
arranca os códigos de suas posições originais, num ritmo que irá reorientar o
desvanecimento dos arranjos originalmente fixados.
Os movimentos da sobremodernidade inseriram, definitivamente, um elemento
subversivo no território da estabilidade do mundo governado pelas leis da natureza que
alçavam o mundo dos homens ao que de mais perfeito poderia se conceber, a partir de
um humanismo que havia retomado, definitivamente, o elemento clássico da cultura
ocidental.
Além de apontar as contradições de uma sociedade que evoluíra à custa de um
rigor moral denunciado por sua superficialidade estruturante, a sobremodernidade
plantou um elemento de dúvida, a exemplo do metódico elemento cartesiano que se
confrontara com a heteronímia pré-moderna. Notas “lisérgicas” invadiram a percepção
sensível, levando a alma por novos caminhos, onde a volatilidade assumia a mais
suprema violência contra os territórios fixos da modernidade. As autoimolações em
praça pública se multiplicavam a cada overdose, e “contestação” era a palavra de
(des)ordem que libertava, por sua vez, um elemento já presente no limiar dos diversos
movimentos desterritorializantes que ocorreram ao longo da história do Ocidente: a
velocidade.
Presente nas transformações que se sucederam na sociedade quatrocentista, nos
motores da revolução industrial e na corrida espacial da Guerra Fria e nos solos
psicodélicos das guitarras, a velocidade é definitivamente responsável pelos processos
sobremodernos, fruto de uma aceleração das relações espaço-temporais capturadas pelos
meios de telecomunicações que construíram um novo território esvaziado das
dimensões temporais tradicionais, nas quais os conteúdos que se movimentam
continuamente por diferentes espaços (nunca os mesmos) desfazem fronteiras e
potencializam as linhas de fuga que arrastam os significados e os lançam numa contínua
impermanência. O processo de desterritorialização da sobremodernidade é um contínuo
desprender dos velhos votos, que põe em risco qualquer possibilidade de fixá-los em
uma circunscrição estabilizante. É o clamor pelos sons do universo em movimento, com
suas pulsações hipnóticas, que remetem o ser ao instante do tempo real.
Ao tempo que passa das mais longas durações acrescenta-se hoje um tempo que
se expõe instantaneamente: o das mais curtas durações, do domínio do
eletromagnetismo e da gravidade.
Paul Virilio, “A velocidade de libertação”