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Sumário

Febre Reumática Seções


iv Carta do Presidente da SOCESP
Otávio Rizzi Coelho
Editor Convidado: v Carta do Editor Convidado
vi Eventos
Benedito Carlos Maciel viii Normas para Publicação

Artigos de Atualização
1 Epidemiologia da febre reumática no OSWALDO CÉSAR DE ALMEIDA FILHO,
século XXI BENEDITO CARLOS MACIEL
Epidemiology of rheumatic fever in the
21st century 47 Valor da cintilografia miocárdica com
ALEKSANDER SNIOKA PROKOPOWITSCH, gálio-67 na abordagem de pacientes com
PAULO ANDRADE LOTUFO febre reumática
Value of Gallium-67 myocardium scintigraphy
7 Etiopatogenia da febre reumática in the work up of patients with rheumatic
Pathogenesis of rheumatic fever and fever
rheumatic heart disease Carlos Alberto Buchpiguel,
LUIZA GUILHERME, KELLEN C. FAÉ, José Soares Júnior
JORGE KALIL
53 Tratamento clínico da febre reumática
18 Aspectos anatomopatológicos da febre Clinical treatment of rheumatic fever
reumática MARIA HELENA B. KISS
Pathological aspects of the heart in
rheumatic fever 61 Coréia reumática: aspectos diagnósticos
LÉA MARIA MACRUZ FERREIRA e terapêuticos
DEMARCHI, JUSSARA BIANCHI CASTELLI Sydenham’s chorea: diagnostic and
therapeutic aspects
28 Diagnóstico clínico da febre reumática: VITOR TUMAS
os critérios de Jones continuam
adequados? 71 Cardite reumática: peculiaridades
Clinical diagnosis of rheumatic fever: diagnósticas e terapêuticas
are the Jones criteria still adequate? Rheumatic carditis: diagnostic peculiarities
MARIA TERESA R. A.TERRERI, and treatment
MARIA ODETE E. HILÁRIO MARIA SUELY BEZERRA DIÓGENES,
ANTÔNIO CARLOS CARVALHO
34 Valor dos exames laboratoriais no
diagnóstico e no seguimento de pacientes 79 Manifestações articulares da febre
com febre reumática reumática
Laboratory in rheumatic fever Articular involvement in rheumatic fever
MARIA HELENA VIDOTTI, VIRGÍNIA PAES LEME FERRIANI
JOSÉ FRANCISCO KERR SARAIVA
85 Profilaxia da febre reumática
40 Papel da Doppler ecocardiografia no Rheumatic fever prophylaxis
diagnóstico e no prognóstico da febre FLÁVIO TARASOUTCHI,
reumática aguda GUILHERME SOBREIRA SPINA
Role of the Doppler echocardiography in
the evaluation of patients with acute 92 Indicação cirúrgica na febre reumática
rheumatic fever aguda
ANTONIO PAZIN-FILHO, ANDRÉ SCHMIDT, Surgical indication in acute rheumatic fever
MINNA MOREIRA DIAS ROMANO, MAX GRINBERG,
GUILHERME SOBREIRA SPINA
Edição Anterior: Síndrome Isquêmica Aguda com Supradesnivelamento do Segmento ST
Editor Convidado: Otávio Rizzi Coelho

Próxima Edição: Coração, Exercícios e Atividade Física


Editor Convidado: Nabil Ghorayeb

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 iii
EPIDEMIOLOGIA DA FEBRE REUMÁTICA
PROKOPOWITSCH AS NO SÉCULO XXI
e col.
Epidemiologia da febre
reumática no século XXI
ALEKSANDER SNIOKA PROKOPOWITSCH, PAULO ANDRADE LOTUFO

Divisão de Clínica Médica — Hospital Universitário da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência: Av. Professor Lineu Prestes, 2565 —


Cidade Universitária — CEP 05508-000 — São Paulo — SP

A febre reumática, complicação tardia não-supurativa de infecções por estrepto-


cocos do grupo A de Lancefield, continua a ser um relevante problema de saúde
pública, especialmente nos países em desenvolvimento. Este artigo aborda de ma-
neira geral aspectos epidemiológicos atuais da febre reumática e das infecções por
estreptococos do grupo A, salientando a importância dos sorotipos mais reumato-
gênicos dessas bactérias e o ressurgimento recente de infecções estreptocócicas
graves e invasivas, associado a surtos de febre reumática aguda em escolares e
adultos jovens, observados principalmente nos Estados Unidos e na Europa.

Palavras-chave: febre reumática, infecções estreptocócicas, epidemiologia.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:1-6)


RSCESP (72594)-1501

EPIDEMIOLOGIA E TENDÊNCIAS DA mente após a 2ª Guerra Mundial, ocorreu grande que-


DOENÇA REUMÁTICA NO MUNDO da da incidência de febre reumática aguda, notada prin-
cipalmente nos Estados Unidos, no Japão e na Euro-
A febre reumática é uma complicação tardia não- pa, explicável pelo maior acesso ao uso de antibióti-
supurativa de infecções por estreptococos beta-hemo- cos, pela contínua melhora de condições de vida e,
líticos pertencentes ao grupo A de Lancefield. Geral- provavelmente, pela menor virulência de cepas estrep-
mente, afeta indivíduos entre 5 e 18 anos de idade, de tocócicas. Por exemplo, na Dinamarca, a incidência
qualquer raça e em qualquer parte do mundo(1). Essa anual de febre reumática aguda caiu de 200 para 11
doença continua a ser um problema relevante de saú- casos por 100 mil pessoas entre os anos de 1862 e
de pública nos dias atuais, especialmente nos países 1962, chegando a atingir cerca de um caso para cada
pobres, nos quais estima-se que a febre reumática seja 100 mil indivíduos após a introdução da penicilina(4, 5).
responsável por cerca de 60% de todas as doenças Durante a década de 1980, a incidência de casos agu-
cardiovasculares em crianças e adultos jovens(2). Além dos de febre reumática manteve-se em 0,06 caso por
disso, trata-se de uma doença que produz alto custo mil pessoas no Japão e na Grã-Bretanha, e em 0,7
socioeconômico, não somente para os serviços de saú- caso por mil pessoas no Estados Unidos(1).
de como também para os pacientes e suas famílias. Nos países em desenvolvimento, também houve re-
Um recente estudo brasileiro demonstrou que 22% dos dução da incidência de febre reumática aguda durante
pacientes com febre reumática em idade escolar apre- a segunda metade do século XX, mas em menor mon-
sentaram alguma repetência, e que 5% dos pais de ta que aquela observada no Primeiro Mundo. Na re-
pacientes perderam seus empregos em decorrência do gião Sul do Brasil, a incidência da doença chegou a
absenteísmo do trabalho(3). ser de um para cada mil habitantes durante a década
Durante a segunda metade do século XX, especial- de 1970(6), e de 3,6 para cada mil habitantes em algu-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 1


mas regiões do Centro- e 1972(9). No Brasil, essa taxa manteve-se em 0,15 por
Oeste durante a década 100 mil casos no final da década de 1980(6). Em 2000,
de 1990(7). Níveis ainda o número absoluto estimado de mortes decorrentes de
PROKOPOWITSCH AS maiores de incidência fo- doença cardíaca reumática no mundo foi de 332 mil(10),
e col. ram observados em outros e os países que mais contribuíram para esse número
Epidemiologia da febre países, como, por exem- foram China, Índia, Paquistão, Indonésia e Bangladesh,
reumática no século XXI
plo, a África do Sul, em So- com mais de 10 mil mortes pela doença em cada um
weto, em que chegaram a deles no ano de 2002 (Tab. 1)(11). No Brasil, morreram
ser registrados 19,2 casos 1.852 pessoas, a maioria com complicações da doen-
para cada mil escolares ça reumática, em 2002. Em 1979, o número de mortes
durante a década de foi de 1.870, mostrando que o risco de morte foi signi-
1970(8). ficativamente reduzido, considerando-se o aumento da
A redução da incidência de casos agudos de febre população em duas décadas.
reumática foi acompanhada pela diminuição das taxas A prevalência estimada de doença cardíaca reumá-
de mortalidade pela doença. Por exemplo, nos Esta- tica em crianças nas duas últimas décadas variou de
dos Unidos, houve queda dessas taxas da ordem de 0,2 por mil escolares em Havana (Cuba), no ano de 1987,
14,5 para 6,8 por 100 mil casos entre os anos de 1950 até 77,8 por mil escolares em Samoa, em 1999(12, 13). Cal-

Tabela 1. Número absoluto de óbitos por cardiopatia reumática notificados por alguns países em 2002.

Número de óbitos em 2002 Países

Igual ou acima de 10.000 China, Índia, Paquistão, Indonésia, Bangladesh


5.000 a 9.999 Federação Russa
1.000 a 4.999 Brasil, Estados Unidos, México, França, Alemanha,
Reino Unido, Egito, Congo, Etiópia, Nigéria, Irã,
Vietnã, Filipinas
500 a 999 Romênia, Bielo-Rússia, Argélia, Sudão, Angola,
África do Sul, Casaquistão
100 a 499 Argentina, Colômbia, Canadá, Portugal, Hungria,
Suécia, Austrália
10 a 99 Grécia, Finlândia, Bélgica, Dinamarca

Fonte: Organização Mundial da Saúde(11).

Tabela 2. Número absoluto de casos notificados de cula-se que a cardiopatia reumática, em países em
cardiopatia reumática em crianças de 5 a 14 anos de desenvolvimento, seja responsável por 12% a 65% das
idade no ano de 2003. internações hospitalares relacionadas a doenças car-
diovasculares(14). Em 2003, a África subsaariana foi a
Região ou país Número de casos região que mais contribuiu com o número de casos de
cardiopatia reumática no mundo em crianças de 5 a 14
África subsaariana 1.008.207 anos de idade, com 1.008.207 casos, seguindo-se a
Ásia Central e Meridional 734.786 Ásia Central e Meridional (734.786 casos) e a China
China 176.576 (176.576 casos). A América Latina contribuiu com
Mediterrâneo Oriental e 136.971 casos e os países desenvolvidos, com 33.330
Norte da África 153.679 casos (Tab. 2)(11).
América Latina 136.971 Dados da Organização Mundial da Saúde dão con-
Ásia (restante) 101.822 ta de que, em 1994, cerca de 12 milhões de pessoas
Europa Oriental 40.366 no mundo sofriam de febre reumática e suas seqüelas
Países desenvolvidos 33.330 cardíacas. Três milhões delas apresentavam insufici-
Pacífico 7.744 ência cardíaca congestiva requerendo repetidas hos-
pitalizações, a maioria com indicação de cirurgia car-
Fonte: Organização Mundial da Saúde(11). díaca valvar num prazo de 5 a 10 anos(15).

2 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


Apesar do declínio glo- após um episódio de faringite estreptocócica, ou seja,
bal da incidência de febre a nefritogenicidade parece ser uma propriedade de ape-
reumática experimentado nas algumas cepas de estreptococos do grupo A, que
PROKOPOWITSCH AS na segunda metade do sé- geralmente guardam tropismo por infecções cutâne-
e col. culo XX, nas últimas duas as(25).
Epidemiologia da febre décadas vem sendo nota- Existem alguns fatores de virulência de tais bactéri-
reumática no século XXI
do aumento progressivo as que parecem estar associados a sua reumatogeni-
do número de casos agu- cidade. Ao que tudo indica, as cepas de estreptococos
dos da doença, associa- do grupo A capazes de produzir febre reumática são
dos a formas agressivas e mais ricas em proteína M, apresentam alto teor de áci-
invasivas de infecções es- do hialurônico em suas cápsulas (o que produz colôni-
treptocócicas, principal- as de aspecto mucóide nas culturas em ágar), são po-
mente na América do Norte e na Europa(16), conforme bres em lipoproteinase (usualmente encontrada em
será abordado a seguir. cepas causadoras de infecções cutâneas), são alta-
mente virulentas em ratos e têm grande tropismo pela
EPIDEMIOLOGIA DAS INFECÇÕES orofaringe(26). A reumatogenicidade das cepas de es-
ESTREPTOCÓCICAS DO GRUPO A treptococos do grupo A parece depender, acima de
E TENDÊNCIAS ATUAIS tudo, das moléculas de proteína M encontradas em sua
superfície, já que algumas delas possuem epítopos que
Os estreptococos do grupo A são a causa mais co- apresentam reação cruzada com antígenos do hospe-
mum de faringite bacteriana, atingindo principalmente deiro(23), especialmente com tecidos cardíacos, sinovi-
crianças e jovens com idades entre 5 e 15 anos. Esti- ais e do sistema nervoso central.
ma-se que a maioria das crianças desenvolva pelo Alguns sorotipos de estreptococos do grupo A têm
menos um episódio de faringite por ano, dos quais 15% sido claramente associados a epidemias de febre reu-
a 20% causados por estreptococos do grupo A e 80% mática aguda, dentre os quais o mais comum é o soro-
por patógenos virais(17). tipo M5. Outros sorotipos associados com freqüência
Alguns estudos demonstraram que até 70% das cri- à ocorrência de febre reumática são M1, M3, M6, M14,
anças em idade escolar em países europeus apresen- M18, M19 e M24(16, 23). Alguns sorotipos prevalentes em
tam títulos significativos (acima de 200 unidades Todd) infecções de orofaringe, tais como M2, M4 e M12, não
de antiestreptolisina O(14). A prevalência de estreptoco- estão associados à doença(23).
cos do grupo A em portadores assintomáticos é muito Apesar de não terem sido conduzidos estudos lon-
heterogênea, tendo sido reportadas taxas que variam gitudinais para avaliar a tendência das taxas de inci-
desde 0,8% na Suíça(18) até 47% no Kuwait(19). Em nos- dência e prevalência de faringites estreptocócicas ou
so meio, já foram reportadas taxas de carreamento de carreadores assintomáticos de estreptococos do
assintomático em escolares de 0,8% no Recife (PE)(20), grupo A, os dados atualmente disponíveis sugerem que
2,6% na cidade do Rio de Janeiro (RJ)(21) e 23,7% em as mesmas têm se mantido mais ou menos estáveis
Araraquara (SP)(22). Entretanto, apesar de haver rela- na maioria dos países(14). Entretanto, têm sido relata-
tos de altas taxas de carreamento assintomático de das, ao longo dos últimos vinte anos, algumas altera-
estreptococos do grupo A, é importante ressaltar que ções na freqüência dos sorotipos de estreptococos do
apenas nos casos de doença verdadeira ocorre res- grupo A, bem como na severidade de infecções por
posta significativa de produção de anticorpos, de modo tais bactérias, aparentemente mais virulentas e invasi-
que se considera que somente pacientes com faringite vas. Tais relatos têm sido acompanhados por descri-
estreptocócica de fato apresentam risco de desenvol- ções de surtos de febre reumática aguda em países
ver febre reumática(14). desenvolvidos, não confinados apenas a populações
Nem todas as infecções por estreptococos do gru- social e economicamente desfavorecidas(16).
po A causam febre reumática aguda, ou seja, nem to- O declínio observado na incidência de febre reumá-
das as cepas dessas bactérias são reumatogênicas. tica aguda durante a década de 1970 em quase todo o
Geralmente, piodermites e infecções de tecidos moles mundo provavelmente deveu-se muito mais ao desa-
não levam ao surgimento da doença, assim como nem parecimento de cepas estreptocócicas reumatogênicas
todas as infecções estreptocócicas da faringe produ- que à melhoria das condições socioeconômicas e do
zem febre reumática(23). Além disso, algumas cepas cau- acesso à antibioticoterapia profilática, uma vez que não
sadoras de piodermites costumam causar glomerulo- houve redução concomitante da incidência de faringi-
nefrite aguda, mas não febre reumática aguda(24). A tes estreptocócicas(23). Entretanto, desde meados da
ocorrência de febre reumática e glomerulonefrite agu- década de 1980, após vários anos de desaparecimen-
da simultaneamente num mesmo paciente é muito rara to, têm sido identificadas cepas mucóides de estrepto-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 3


cocos do grupo A preva- ego(32). Diferentemente de relatos anteriores, a maioria
lentes em epidemias de dos indivíduos afetados era da raça branca, com ren-
febre reumática aguda, es- dimentos familiares bem acima da linha da pobreza(16).
PROKOPOWITSCH AS pecialmente pertencentes Clinicamente, artrite e cardite foram os achados mais
e col. aos sorotipos M3, M5 e freqüentes nesses surtos. Foi relatada ocorrência de
Epidemiologia da febre M18(27). Além disso, desde artrite em 47% a 100% dos casos, de cardite em 30%
reumática no século XXI
então têm sido relatados a 59%, e de coréia em até 30%. Vale ressaltar que cer-
vários casos de infecções ca de dois terços dos pacientes falharam em recordar
estreptocócicas graves e sintomas de faringite prévios ao surgimento da doen-
invasivas, tanto nos Esta- ça. Os sorotipos de estreptococos mais freqüentemen-
dos Unidos como em paí- te isolados nesses casos foram M1, M3 e M18(16), clas-
ses da Europa(28), causa- sicamente relacionados à ocorrência de febre reumáti-
das principalmente pelos sorotipos M1, M3 e M18. Fre- ca e muito prevalentes nas infecções estreptocócicas
qüentemente, as cepas relacionadas a essas infecções invasivas recentemente descritas.
apresentam produção mais acentuada da chamada Assim, após longo período de desaparecimento, nos
exotoxina estreptocócica pirogênica, a qual parece ter últimos vinte anos ressurgiram cepas de estreptoco-
participação importante na virulência e na invasivida- cos do grupo A com potencial reumatogênico conside-
de dessas bactérias(16). rável, associadas a infecções mais graves e afetando
Recentes relatos de tais infecções estreptocócicas não somente crianças em idade escolar, mas também
invasivas dão conta da ocorrência de bacteremia, sep- adultos jovens. Não há dados brasileiros até o momen-
se (inclusive puerperal), fasciíte necrotizante e miosi- to sobre essa mudança de perfil das cepas estreptocó-
te, além da denominada síndrome do choque tóxico cicas, mas os relatos indicam que vigilância será ne-
estreptocócico, caracterizada por insuficiência de múl- cessária, no sentido de identificar sorotipos reumato-
tiplos órgãos e choque, na vigência de infecção estrep- gênicos em nosso meio e associar sua ocorrência a
tocócica(16). Essas infecções costumam acometer es- possível aumento de casos novos de febre reumática
pecialmente adultos jovens e previamente saudáveis, no Brasil.
com uma taxa de letalidade de cerca de 30%(29). Além disso, a erradicação da febre reumática de-
Diferentemente da síndrome do choque tóxico es- penderá em muito do desenvolvimento de vacinas con-
tafilocócico, os pacientes com infecções estreptocóci- tra estreptococos do grupo A. Têm sido estudadas va-
cas invasivas costumam apresentar bacteremia e foco cinas multivalentes recombinantes, compostas por epí-
infeccioso evidente. Na maioria das vezes (em até 70% topos de proteína M representativos dos mais freqüen-
dos casos), o foco infeccioso original é cutâneo, muco- tes sorotipos reumatogênicos, além de vacinas orais
so ou de tecidos moles. Foco respiratório (pneumonia, capazes de induzir resposta imune IgA tipo-específica
sinusite ou otite) é identificável em até 18% dos casos, antiproteína M(34). Considerando-se que a profilaxia pri-
e em 5% a 24% das vezes ocorre apenas bacteremia mária (tratamento antibiótico de infecção estreptocóci-
isolada(16). ca aguda) é insuficiente para a prevenção da febre reu-
Concomitantemente a essa alteração da virulência mática, uma vez que a maior parte dos indivíduos que
e do perfil das infecções estreptocócicas, no final da desenvolvem a doença não experimenta infecção es-
década de 1980 começaram a surgir relatos de epide- treptocócica prévia clinicamente significativa, e que
mias de febre reumática aguda, especialmente em vá- muitos dos sorotipos reumatogênicos de estreptoco-
rias localidades dos Estados Unidos(30-33). Em tais sur- cos estão atualmente relacionados a infecções graves,
tos, crianças em idade escolar são as mais freqüente- o desenvolvimento de uma vacina contra estreptococos
mente acometidas, porém nota-se aumento significati- do grupo A tem se tornado assunto de relevância, que certa-
vo da incidência de febre reumática aguda em adultos, mente terá impacto importante na epidemiologia da estrep-
chegando a 100% dos casos na localidade de San Di- tococcia e da febre reumática em todo o mundo.

4 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


EPIDEMIOLOGY OF RHEUMATIC FEVER
PROKOPOWITSCH AS IN THE 21ST CENTURY
e col.
Epidemiologia da febre
reumática no século XXI
ALEKSANDER SNIOKA PROKOPOWITSCH, PAULO ANDRADE LOTUFO

Rheumatic fever, a non-supurative complication of infections by group A strepto-


cocci, remains a major health problem, especially in developing countries. This arti-
cle makes a global overview on the epidemiology of rheumatic fever and infections
by group A streptococci, highlighting the importance of the most rheumatogenic se-
rotypes of these bacteria and the recent reemergence of severe, invasive strepto-
coccal infections associated with outbreaks of acute rheumatic fever in school-aged
children and young adults, particularly described in United States and Europe.

Key words: rheumatic fever, streptococcal infections, epidemiology.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:1-6)


RSCESP (72594)-1501

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6 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


ETIOPATOGENIA DA FEBRE REUMÁTICA
GUILHERME L
e cols. LUIZA GUILHERME, KELLEN C. FAÉ, JORGE KALIL
Etiopatogenia da
febre reumática

Laboratório de Imunologia — Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP

Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 —


9o andar — CEP 05403-900 — São Paulo — SP

A febre reumática é desencadeada pela infecção de orofaringe pelo Streptococ-


cus pyogenes em indivíduos geneticamente suscetíveis, não tratados. A suscetibili-
dade está associada a diversos alelos HLA de classe II. As reações auto-imunes
que geram as lesões teciduais reumáticas ocorrem por mimetismo molecular entre
S. pyogenes e proteínas teciduais. Na doença reumática cardíaca, as lesões valvu-
lares são caracterizadas por intenso infiltrado inflamatório, rico em células mononu-
cleares. Linfócitos T infiltrantes da lesão reconhecem simultaneamente segmentos
da proteína M do estreptococo e proteínas do tecido cardíaco por mimetismo mole-
cular. Tanto linfócitos T do sangue periférico como os infiltrantes das lesões, princi-
palmente em indivíduos portadores dos antígenos HLA-DR7 e DR53, reconhecem o
mesmo segmento da proteína M5 (resíduos de aminoácidos de 81-96). As células
mononucleares que infiltram o tecido cardíaco dos pacientes com doença reumática
cardíaca grave produzem principalmente citocinas inflamatórias do tipo Th1 (IFNγ e
TNFα). Curiosamente, raras células mononucleares infiltrantes das válvulas produ-
zem IL-4, citocina reguladora da resposta inflamatória. Considerando-se que as le-
sões valvulares reumáticas são lentas e progressivas, a baixa produção de IL-4, e,
conseqüentemente, a manutenção da inflamação local, está correlacionada com a
progressão das lesões valvulares na doença reumática cardíaca, enquanto no mio-
cárdio, onde há grande número de células produtoras de IL-4, ocorre cura da mio-
cardite após algumas semanas. Em conclusão, a patogênese da febre reumática/
doença reumática cardíaca é decorrente de uma rede complexa de interações imu-
nes desencadeadas pelo agente infeccioso (S. pyogenes), as quais levam a lesões
auto-imunes órgão-específicas, progressivas e permanentes mediadas por linfóci-
tos T e citocinas inflamatórias.

Palavras-chave: febre reumática, proteína M, mimetismo molecular, linfócitos T, ci-


tocinas.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:7-17)


RSCESP (72594)-1502

HISTÓRICO 1840, Jean Baptiste Bouillot descreveu que a febre reu-


mática “lambe as articulações, mas morde o coração”.
Em 1798, foi publicada por Baillie a observação de Em 1889, Cheadle observou que a doença era mais
que havia correlação entre reumatismo e doença car- freqüente em membros de uma mesma família, suge-
díaca, feita dez anos antes por Pitcairn. Observações rindo um padrão genético de suscetibilidade. No perío-
subseqüentes indicaram que a febre reumática era uma do de 1900 a 1940, vários pesquisadores sugeriram a
doença que acometia crianças e adolescentes. Em participação de vírus ou bactérias no desencadeamento

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 7


da doença. Em 1930, Co- entre eles os grupos sanguíneos ABO e os antígenos
burn associou a infecção HLA de classe I, porém esses marcadores não apre-
por Streptococcus pyoge- sentaram associações significativas com a doença(4, 5).
GUILHERME L nes como agente causal Posteriormente, com a identificação dos antígenos HLA
e cols. da febre reumática.(1) de classe II, na década de 80, buscaram-se associa-
Etiopatogenia da ções com alelos dos genes HLA-DR e DQ localizados
febre reumática
O AGENTE INFECCIOSO na região de classe II do complexo principal de histo-
(Streptococcus compatibilidade (CPH), no cromossomo 6 em huma-
pyogenes) nos (Tab. 2). Os primeiros relatos demonstraram que
pacientes americanos negros com doença reumática
Estudos realizados por cardíaca crônica apresentavam maior freqüência de
Rebecca Lancefield per- HLA-DR2 e pacientes de origem caucasóide, HLA-DR4
mitiram a classificação do estreptococo beta-hemolíti- e DR9(6). A associação com HLA-DR4 e doença reu-
co como grupo A ou Streptococcus pyogenes, bem mática cardíaca em população americana de origem
como a definição de sua composição celular, levantan- caucasóide foi posteriormente confirmada(7) e essa
do questões a respeito de suas funções biológicas e mesma associação foi descrita em população de ori-
das relações com seu hospedeiro, o ser humano. gem árabe(8) e muçulmana da região da Kashmir(9). Em
O estreptococo do grupo A contém, na camada ex- negros da África do Sul, observou-se associação do
terna da parede celular, as proteínas M, T e R e o áci- alelo HLA-DR1 com a febre reumática(10) e estudos
do lipoteicóico (LTA), um polímero longo composto por desenvolvidos na Índia demonstraram associação da
fosfoglicerol e responsável pela ligação da bactéria à doença com os alelos HLA-DR3 e DQ2(11, 12). No Brasil,
fibronectina presente na célula epitelial oral do hospe- foi descrita a associação dos alelos HLA-DR7 e DR53
deiro, iniciando, assim, a colonização bacteriana (Fig. com a febre reumática em mulatos claros e escuros(13) e
1). As camadas média e interna são formadas por açú- posteriormente com um grupo de origem caucasóide(14).
cares e conferem rigidez à parede, mantendo a morfo- A associação com o alelo HLA-DR7 foi também encon-
logia bacteriana. A proteína M apresenta propriedade trada na Turquia(15). Mais recentemente, por meio de
antifagocítica e é altamente antigênica. Sua estrutura métodos moleculares para definição alélica, também
é fibrilar em alfa hélice dupla que se projeta da parede se observou associação significativa do haplótipo
celular, apresentando similaridade com proteínas fibri- DRB1*0701/DQA1*0201 na população egípcia(16) e do
lares do tecido humano, como miosina cardíaca, tro- haplótipo DRB1*07/DQB1*0302 e DQB1*0401-2 em
pomiosina, queratina, lamina e vimentina (Tab. 1). A população da Latívia(17), sendo essas associações par-
proteína M contém aproximadamente 450 resíduos de ticularmente mais evidentes em pacientes com lesões
aminoácidos dispostos em quatro regiões (A, B, C e valvulares múltiplas e regurgitação da valva mitral. Na
D), que apresentam blocos de repetições (Fig. 1). A população japonesa, a suscetibilidade à doença foi
porção N-terminal é a mais polimórfica (regiões A e B) descrita com os alelos DQA1*0104 e DQB1*05031(18).
e diferenças nos 11 primeiros resíduos de aminoáci- Em população mestiça no México, a associação des-
dos permitem classificar os diferentes subtipos ou ce- crita foi com os alelos DRB1*1602, DQA1*0501 e
pas do estreptococo do grupo A, que são aproximada- DQB1*0301(19).
mente 100 sorotipos. As regiões C e D são bastante Apesar da descrição de associações com distintos
conservadas e fazem parte da porção C-terminal que alelos HLA, os resultados demonstram que a associa-
se insere à superfície da bactéria (Fig. 1). As regiões C ção com o alelo DR7 parece ser a mais consistente,
de proteínas M de diferentes cepas apresentam apro- independentemente da população estudada (Tab. 1).(13-
ximadamente 80% de homologia, sendo responsáveis 17, 21)
O fato de diferentes alelos terem sido encontrados
pela fixação da bactéria na mucosa de orofaringe(2). em associação com a febre reumática, em determina-
das populações, pode resultar do envolvimento de di-
SUSCETIBILIDADE GENÉTICA ferentes cepas de estreptococo, da utilização de dife-
rentes métodos para identificação dos alelos ou da fal-
Estudos conduzidos em gêmeos demonstraram uma ta de análise de grupos de pacientes com definição da
taxa de concordância da doença de 18,7% em gême- manifestação clínica da doença homogênea.
os monozigóticos e de 2,5% em gêmeos dizigóticos, Recentemente, tem-se estudado o polimorfismo de
reforçando a idéia da participação de fatores genéti- genes de citocinas, que são moléculas envolvidas di-
cos no desenvolvimento da doença bem como nas di- retamente na regulação da resposta imune. TGF-ß2
ferentes manifestações clínicas(3). Com o progresso dos (“transforming growth factor-ß2”), citocina envolvida na
estudos epidemiológicos e posteriormente imunológi- fibrose e na calcificação do tecido valvular(22), foi avali-
cos, vários marcadores genéticos foram analisados, ado em pacientes portadores de doença reumática

8 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


GUILHERME L
e cols.
Etiopatogenia da
febre reumática

cardíaca na população chi-


nesa(23) e observou-se que
reduzido número de paci-
entes com insuficiência
mitral e/ou estenose mitral
apresentavam a variante
alélica associada à baixa
produção de TGF-ß1 e,
portanto, esses pacientes
estão predispostos a de-
senvolver alto grau de fi-
brose e calcificação.
TNFα (“tumor necrosis
factor-alpha”), uma citoci-
na pró-inflamatória, apre-
senta-se aumentada no
soro e no tecido cardíaco
em diversas cardiopati-
as (24). Em população de
mestiços mexicanos, por-
tadores de doença reumá-
tica cardíaca, foi mostrado
que alelos do gene TNFα
localizados na região que
promove aumento da
transcrição do gene TNFα
(região promotora) foram
predominantes nos paci-
entes quando comparados Figura 1. Desenho esquemático dos componentes estruturais do S. pyogenes. A. A
com indivíduos normais(25). estrutura do S. pyogenes é formada por uma cápsula de ácido hialurônico, que confere
No entanto, não foi obser- à bactéria sua aparência mucóide quando cultivada em ágar e contribui para sua ade-
rência à orofaringe. A parte externa da parede celular é composta de proteínas M, T e R
vada associação com o
e ácido lipoteicóico (LTA), um polímero composto de fosfoglicerol, que faz a ligação da
dano valvular(25). bactéria à fibronectina do epitélio oral. As camadas interna e média da parede celular
A análise do polimorfis- contêm carboidratos (N-acetil glucosamina e ramnose) que dividem os estreptococos
mo do gene da enzima nos diferentes grupos de Lancefield. Na parede ainda existem mucopeptídeos e a mem-
conversora da angiotensi- brana protoplasmática, com lipoproteínas antigênicas. B. A proteína M tem aproximada-
na-1, que tem alta ativida- mente 450 resíduos de aminoácidos dispostos em quatro regiões (A, B, C e D), que
de em tecido valvular, de- apresentam blocos de repetição. A porção N-terminal (NH2) é polimórfica e variações
nos resíduos de aminoácidos da região A definem os sorotipos de estreptococos. A
monstrou que pacientes
porção C-terminal (COOH) é composta pelas regiões C e D conservadas e fazem a
com febre reumática, por- inserção da proteína na superfície da bactéria. C. Células HEp-2 (carcinoma de laringe
tadores de uma variante humana) colonizadas por S. pyogenes, que se apresentam com aspecto de cocos ade-
alélica denominada “DD”, ridos à superfície celular. Aumento de 1.000X. (Foto cedida por Samar Freschi, Labora-
apresentavam maior risco tório de Imunologia do Instituto do Coração — InCor/HC-FMUSP.)

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 9


de desenvolver lesões val- Tabela 1. Proteínas do estreptococo que apresentam
vulares(26). homologia com proteínas humanas.

GUILHERME L AUTO-IMUNIDADE Proteínas do estreptococo do grupo A


e cols.
Componentes de membrana:
Etiopatogenia da A hipótese mais aceita
febre reumática — Ácido hialurônico
para explicar o mecanismo Proteína M:
de patogênese da febre — Vários epitopos da região N-terminal
reumática/doença reumá- Parede celular:
tica cardíaca é a de que a — Ramnose
infecção da orofaringe — N-acetil-glicosamina
pelo estreptococo, em in- — Complexos peptidoglicano-polissacarídeo
divíduos predispostos, desencadeia uma resposta imu- Proteínas solúveis:
ne humoral e celular exacerbada contra a bactéria. — Exotoxinas pirogênicas
Posteriormente, por similaridade entre proteínas da Proteínas humanas
bactéria e do hospedeiro, essa resposta imune ocasio- — Laminina
na lesões teciduais por um mecanismo chamado de — Queratina
mimetismo molecular. Na doença reumática cardíaca, — Actina
o principal alvo dessas reações é o tecido cardíaco, — Vimentina
sendo as válvulas mitral e aórtica as mais lesadas. — Miosina
Em meados da década de 40 surgiram os primeiros — Tropomiosina
relatos da presença de anticorpos dirigidos contra o Outras proteínas cardíacas identificadas por PM e pI
tecido cardíaco em pacientes com doença reumática
cardíaca. Em seguida observou-se que anticorpos diri- PM: peso molecular; pI: ponto isoelétrico
gidos contra o tecido cardíaco reagiam com antígenos
do estreptococo, reconhecendo estruturas da parede
da bactéria e também a proteína M, bem como proteí-
nas tissulares de mamíferos (Tab. 1).(27) Esses acha-
dos levaram à formulação da hipótese auto-imune na febre reumática causavam o aumento da incorporação
patogênese da doença reumática cardíaca. Posterior- e retenção de cálcio em cardiomiócitos de ratos neo-
mente, outros grupos demonstraram reação cruzada natos, levando a disfunção e morte celular, sugerindo
humoral entre proteína M do estreptococo e miosina, que anticorpos antimiosina podem ser deletérios para
tropomiosina, vimentina e laminina(28). Alguns trabalhos a função cardíaca(31).
demonstraram também que o carboidrato da parede Atualmente, sabe-se que a doença reumática car-
(N-acetil glucosamina) do estreptococo apresentava díaca é uma doença auto-imune mediada por célula. A
reação cruzada humoral com proteínas cardíacas(28). premissa dessa assertiva foi o fato de que as lesões
Esses anticorpos parecem ter papel importante du- valvulares apresentavam intenso infiltrado inflamatório,
rante a fase inicial da doença, principalmente nas ma- com a presença de linfócitos T CD4+ e CD8+, sugerin-
nifestações clínicas de artrite e coréia de Sydenham. do que essas células têm papel direto na patogênese
Na artrite, a presença de imunocomplexos nas articu- da doença reumática cardíaca(32, 33).
lações e na coréia e a presença de anticorpos IgG que O papel funcional das células infiltrantes do tecido
reagem com o citoplasma e o núcleo de neurônios re- cardíaco foi pioneiramente demonstrado por nosso gru-
forçam essa hipótese(29). Na cardite reumática, anticor- po, por meio do isolamento de clones de linfócitos T
pos de reação cruzada com o tecido cardíaco apare- obtidos diretamente das lesões cardíacas de pacien-
cem após a ativação de linfócitos T CD4+ na periferia e tes com doença reumática cardíaca grave. Esse traba-
se fixam no coração, corroborando para o desencade- lho demonstrou o reconhecimento simultâneo de pro-
amento de lesão local. Recentemente foi demonstrado teína M5 e proteínas do tecido cardíaco por linfócitos T
que anticorpos de reação cruzada se ligam ao endoté- infiltrantes da lesão cardíaca, evidenciando o mimetis-
lio valvular reumático, ocasionando o aumento da ex- mo molecular mediado por células T no coração(34). As
pressão de moléculas de adesão (“vascular cell adhe- proteínas cardíacas mais reconhecidas pelos clones
sion molecule-1”, VCAM-1), que, por sua vez, facilitam de linfócitos T intralesionais consistiram em proteínas
a infiltração, principalmente por neutrófilos e células derivadas do miocárdio e da valva aórtica (Fig. 2). Os
mononucleares (monócitos, linfócitos T CD4+ e CD8+), segmentos de 81-96, 83-103 e 163-177 resíduos de
levando à inflamação local(30). Além disso, foi descrito aminoácidos da proteína M5 foram preferencialmente
que anticorpos antimiosina obtidos de pacientes com reconhecidos por reação cruzada com as proteínas car-

10 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


Tabela 2. Associações descritas entre os alelos HLA de classe II e febre reumática/
doença reumática cardíaca.

GUILHERME L Grupo
e cols.
População clínico HLA Referência
Etiopatogenia da
febre reumática
África do Sul DRC DR1, DRw6 Maharaj e cols., 1987(10)
(negros)
Estados Unidos FR DR2 Ayoub e cols., 1986(6)
(negros)
Índia (região Norte) DRC DR3 Jhinghan e cols., 1986(11)
Índia (região Norte) DRC DR3, DQ2 Taneja e cols., 1989(12)
Estados Unidos FR DR4, DR9 Ayoub e cols., 1986(6)
(caucasóides)
Estados Unidos DRC DR4, DR6 Anastasiou-
(caucasóides) Nana e cols., 1986(7)
Arábia Saudita FR DR4 Rajapakse e cols., 1987(8)
Kashmir DRC DRB1*04 Bhat e cols., 1997(9)
(muçulmanos)
Brasil (mulatos) FR DR7, DR53 Guilherme e cols., 1991(13)
Turquia DRC DR7, DR3 Ozkan e cols., 1993(15)
Egito LVM DRB1*0701, Guedez e cols., 1999(16)
(região Norte) DQA02011*0401-2
Brasil FR DRB1*07 Visentainer e cols.,
(caucasóides) 2000(14)
Latívia LVM DRB1*07, Stanevicha e cols.,
DQB1*0302 2003(17)
RVM DRB1*07,
DQB1*0401-2
Turquia DRC DRw11 Olmez e cols., 1993(20)
México (mestiços) DRC/LVM DRB1*1602, Hernandez-
DQB1*0301, Pacheco e cols., 2003(19)
DQA1*0501
Japão EM DQB1*05031, Koyanagi e cols., 1996(18)
DQA1*0104

LVM: lesões valvulares múltiplas; RVM: regurgitação de valva mitral; EM: estenose
mitral; FR: febre reumática; DRC: doença reumática cardíaca. Destaques em negri-
to = associação mais freqüentemente descrita na literatura.

díacas acima referidas. Resultados similares de reco- sociados com a suscetibilidade à doença, conforme
nhecimento de segmentos da proteína M foram encon- mencionado. Esses resultados sugerem que as molé-
trados em camundongos imunizados com miosina culas HLA-DR7 e DR53 presentes na superfície dos
cardíaca humana (Fig. 2)(35). monócitos e linfócitos B (células apresentadoras de an-
Linfócitos T de sangue periférico de 46% dos paci- tígenos) estejam envolvidas no desencadeamento da
entes com doença reumática cardíaca grave analisa- resposta imune, por meio da apresentação do peptí-
dos também reconheceram o mesmo segmento de 81- deo imunodominante da proteína M do estreptococo
96 resíduos de aminoácidos da proteína M5, enquanto (segmento 81-96) aos linfócitos T dos pacientes com
apenas 8,6% dos controles reconheceram esse seg- doença reumática cardíaca grave(36).
mento (p = 0,0005)(36). Interessantemente, os indivídu- O fato de encontrarmos linfócitos T no sangue peri-
os respondedores a esse segmento eram principalmen- férico e no tecido cardíaco (miocárdio e válvulas) com
te os portadores dos antígenos HLA-DR7 e DR53, as- a mesma especificidade, isto é, capaz de reconhecer

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 11


os mesmos antígenos, entes em fase crônica e alguns em atividade reumá-
mostra que populações de tica). Um achado extremamente importante foi o fato
linfócitos sensibilizados na de observarmos que poucas células mononucleares
GUILHERME L periferia migram para o que infiltravam fragmentos de válvula mitral e aórtica
e cols. coração, permanecem no dos pacientes com doença reumática cardíaca grave
Etiopatogenia da tecido e são os principais estudados eram capazes de produzir a citocina IL-4,
febre reumática
responsáveis pelo desen- que é reguladora da resposta inflamatória (Fig. 3)(38).
cadeamento de reações Considerando-se que as lesões valvulares reumáti-
auto-imunes no cora- cas são lentas e progressivas, a baixa produção de
ção(37). Essas reações são IL-4 e, conseqüentemente, a manutenção da infla-

Figura 2. Regiões da proteína M do estreptococo e proteínas cardíacas humanas reconhecidas cruzadamente


por linfócitos T. a. Clones de linfócitos T infiltrantes da lesão cardíaca obtidos de pacientes com doença reumática
cardíaca grave reconhecem simultaneamente peptídeos derivados da proteína M5 do estreptococo (regiões 1-
25, 81-96, 80-103 e 163-177) e proteínas derivadas de miocárdio e valva aórtica identificadas por peso molecu-
lar (95-150, 43- e 30-43 kDa). b. Linfócitos T murinos reconhecem cruzadamente epitopos da proteína M do
estreptococo (NT4/5/6, B1B2 e B2) e regiões da miosina cardíaca humana. As regiões da proteína M do estrep-
tococo preferencialmente reconhecidas por células T humanas são as mesmas reconhecidas por células muri-
nas. O desenho dos peptídeos da proteína M5 e dos peptídeos NT4/5/6, B1B2 e B2 foi baseado em seqüências
descritas previamente(28, 34).

mediadas e reguladas por citocinas. Recentemente mação local estão correlacionadas com a progres-
mostramos que no tecido cardíaco (miocárdio e vál- são das lesões valvulares na doença reumática car-
vulas) há produção predominante de IFNγ e TNFα díaca, enquanto no miocárdio, em que há grande
por células mononucleares (monócitos e linfócitos T) número de células produtoras de IL-4, ocorre a cura
características de resposta do tipo inflamatória (Th- da miocardite após algumas semanas(38).
1)(38). As citocinas IL-10 e IL-4 (Th-2) são regulado-
ras da resposta inflamatória e são igualmente produ- MODELO ANIMAL
zidas por células que infiltram o miocárdio de paci-
entes com doença reumática cardíaca grave (paci- Recentemente, foi possível desenvolver lesões car-

12 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


díacas características da como da miosina cardíaca humana, reforça o papel da
febre reumática em ratos auto-imunidade desencadeada por mimetismo molecu-
Lewis por meio da imuni- lar no desenvolvimento das lesões reumáticas.
GUILHERME L zação desses animais
e cols. com proteína M recombi- CONSIDERAÇÕES GERAIS
Etiopatogenia da nante e com miosina car-
febre reumática
díaca humana(39, 40). Obser- Em função do conhecimento adquirido nos inúme-
vou-se a presença de in- ros trabalhos já publicados, podemos concluir que a
filtrado por células mono- patogênese da febre reumática/doença reumática car-
nucleares no miocárdio e díaca é formada por uma rede complexa de interações
na válvula mitral de apro- imunes desencadeadas por um agente infeccioso (S.
ximadamente 50% dos pyogenes), que leva a lesões órgão-específicas pro-
animais imunizados. Células de Anitschikow e nódulos gressivas e permanentes. Os principais eventos parti-
de Aschoff foram encontrados na válvula mitral. A re- cipantes da patogênese da doença reumática estão su-
produção da doença com o uso da proteína M, bem marizados na Figura 4.

Figura 3. Células produtoras de IL-4 em fragmentos de tecido cardíaco de pacien-


tes com doença reumática cardíaca. A determinação de células produtoras de IL-4
foi realizada em cortes histológicos de tecido valvular (mitral e/ou aórtico) e miocár-
dio (átrio esquerdo, átrio direito e músculo papilar) por imuno-histoquímica, confor-
me trabalho realizado por Guilherme e colaboradores(38). Foram analisados 20 frag-
mentos de tecido cardíaco (11 amostras de tecido valvular e 9 de miocárdio). Raras
células mononucleares (< 10%) produtoras de IL-4 foram detectadas em 82% dos
fragmentos de tecido valvular (p = 0,02) quando comparadas com células mononu-
cleares do miocárdio (22%). Inversamente, no miocárdio, 78% dos fragmentos apre-
sentam inúmeras células (> 10%) produtoras de IL-4. O baixo número de células
produtoras de IL-4 no tecido valvular contribui para a progressão da doença reumá-
tica cardíaca, levando ao dano valvular progressivo e permanente (OR = 15,8).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 13


GUILHERME L
e cols.
Etiopatogenia da
febre reumática

Figura 4. Desenho esquemático dos principais eventos participantes da patogêne-


se da febre reumática/doença reumática cardíaca. A. Indivíduos geneticamente pre-
dispostos a febre reumática/doença reumática cardíaca, portadores de infecção de
orofaringe pelo S. pyogenes não-tratada, desenvolvem resposta imune humoral e
celular exacerbada que leva à ativação de linfócitos T e B, resultando na produção
de citocinas inflamatórias, anticorpos contra antígenos estreptocócicos e células T
e B de memória, que reconhecem estruturas do estreptococo e também proteínas
do tecido cardíaco por reatividade cruzada, por meio do mecanismo do mimetismo
molecular. B. Os anticorpos iniciam um processo inflamatório no coração, aumen-
tando a expressão da molécula de adesão VCAM-1 (“vascular cell adhesion mole-
cule-1”) no endotélio, facilitando a infiltração celular. VCAM-1 interage com seu li-
gante VLA-4 (“very late antigen-4”) expresso em linfócitos T ativados, levando ao
influxo de células T CD4+ e CD8+. A injúria no endotélio valvular pode levar a expo-
sição de novas estruturas subendoteliais, que são reconhecidas pelos linfócitos T
infiltrantes do tecido, desencadeando uma série de reações auto-imunes com des-
truição tecidual. C. Citocinas inflamatórias do tipo Th1 (IFNg e TNFa) produzidas
pelas células no local da lesão e a baixa produção de citocinas reguladoras (IL-4)
corroboram para a persistência e a progressão da doença nas válvulas.

14 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


PATHOGENESIS OF RHEUMATIC FEVER
GUILHERME L AND RHEUMATIC HEART DISEASE
e cols.
Etiopatogenia da
febre reumática
LUIZA GUILHERME, KELLEN C. FAÉ, JORGE KALIL

Rheumatic fever occurs as a delayed sequel of throat infection by Streptococcus


pyogenes, affecting 3-4% of untreated children. Genetic susceptibility is associated
with HLA class II alleles. Rheumatic fever patients presented an exacerbated humo-
ral and cellular response against streptococci antigens that by similarities between
the bacteria and host antigens, leads to heart tissue injury by a mechanism called
molecular mimicry. The mitral and aortic valves are the tissue most affected. Our
group has described by the first time the immunodominant segment of streptococci
M5 protein (81-96 amino acid residues) and some heart tissue derived proteins that
are simultaneously recognized by peripheral T cells and heart infiltrating T cell clo-
nes by molecular mimicry, mainly by HLA DR7 and DR53 rheumatic fever/rheumatic
heart disease patients. Mononuclear cells that infiltrated the heart lesions produced
essentially inflammatory cytokines (INFγ and TNFα). Interestingly, mononuclear ce-
lls from the valvular lesions presented scarce numbers of IL-4 positive cells, sugges-
ting that the most severe lesions present in the valves are due to low numbers of
cells producing the regulatory IL-4 cytokine. In conclusion, all the knowledge acqui-
red in the pathogenesis of rheumatic fever/rheumatic heart disease defines rheuma-
tic fever/rheumatic heart disease as a post-infection auto-immune disease mediated
by cross reactive T cells and inflammatory cytokines.

Key words: rheumatic fever, rheumatic heart disease, molecular mimicry, T lympho-
cytes, cytokines.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:7-17)


RSCESP (72594)-1502

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 17


ASPECTOS ANATOMOPATOLÓGICOS DA
DEMARCHI LMMF FEBRE REUMÁTICA
e col.
Aspectos
anatomopatológicos da
febre reumática LÉA MARIA MACRUZ FERREIRA DEMARCHI, JUSSARA BIANCHI CASTELLI

Laboratório de Anatomia Patológica — Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP

Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 —


Cerqueira César — CEP 05403-900 — São Paulo — SP

A febre reumática é uma doença inflamatória, sistêmica e recorrente, que se


manifesta cerca de uma a seis semanas após a infecção aguda da orofaringe por
estreptococos beta-hemolíticos do grupo A. Presume-se que seja uma resposta imu-
nológica a antígenos estreptocócicos ou uma reação auto-imune induzida pelos es-
treptococos, em indivíduos geneticamente suscetíveis. Acomete crianças de 5 a 15
anos, mas 20% dos surtos iniciais ocorrem em indivíduos de meia idade ou idosos.
No coração há comprometimento dos tecidos conjuntivos pericárdico, miocárdi-
co e endocárdico. A pericardite é exuberante e predominantemente fibrinosa, com
aspecto macroscópico de “pão com manteiga”. A miocardite causa aumento cardía-
co, principalmente por dilatação ventricular. No tecido conjuntivo cardíaco encon-
tram-se nódulos de Aschoff, que retratam histologicamente as fases evolutivas da
doença: exsudativa, proliferativa e cicatricial. O nódulo de Aschoff, na fase prolifera-
tiva, é patognomônico de atividade reumática, apresentando degeneração fibrinóide
do colágeno e acúmulo de células inflamatórias, dentre elas as células de Anitsch-kow.
Pequenas vegetações são encontradas nas linhas de fechamento valvar, mais co-
mumente mitro-aórticas. Histologicamente são elevações da superfície valvar, de-
correntes da deposição de fibrina e plaquetas ou da degeneração fibrinóide do colá-
geno local.
O dano cardíaco é cumulativo, aumentando a cada episódio de atividade. As
alterações reumáticas crônicas mais importantes resultam da cicatrização das le-
sões agudas valvares e podem ocorrer em todas as valvas. A estenose mitral é a
seqüela reumática mais freqüente, seguida pela estenose mitro-aórtica e pela este-
nose aórtica isolada. Pode haver associação de estenose e insuficiência valvar, que
é mais comum nas lesões aórticas.

Palavras-chave: infecções estreptocócicas/complicações, febre reumática/patolo-


gia, cardiopatia reumática/patologia, doenças das valvas cardíacas, nódulo reumáti-
co/patologia.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:18-27)


RSCESP (72594)-1503

INTRODUÇÃO faringe por estreptococos beta-hemolíticos do grupo A(1, 2),


lesando, preferencialmente, o tecido conjuntivo do co-
A febre reumática é uma doença inflamatória sistê- ração(3, 4), das articulações, do sistema nervoso central
mica e recorrente, mediada imunologicamente, que se e da pele(2).
manifesta após um episódio de infecção aguda da oro- Atualmente, acredita-se que seja uma reação de hi-

18 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


persensibilidade em indiví- O episódio inicial da febre reumática dura cerca de
duos geneticamente sus- 12 semanas, podendo se estender até 6 meses. Após
cetíveis(5, 6), que ocorre em seu início, o indivíduo fica vulnerável à recorrência da
DEMARCHI LMMF cerca de 3% da população doença, em caso de novas infecções orofaríngeas, e
e col. que apresenta orofaringi- as mesmas manifestações clínicas e patológicas ten-
Aspectos te estreptocócica(7). A exa- dem a aparecer a cada episódio de recorrência(8).
anatomopatológicos da
febre reumática
ta patogênese da doença, O diagnóstico de febre reumática é feito pelos crité-
porém, ainda não está to- rios de Jones (revisados), que incluem a infecção por
talmente esclarecida, ape- estreptococos beta-hemolíticos do grupo A, acompa-
sar de anos de investiga- nhada de manifestações clínicas ou laboratoriais, divi-
ção científica. didas em grupos denominados maiores ou menores(13).
Embora seja uma do- De maneira geral, o prognóstico do primeiro surto
ença predominantemente da infância, o episódio inici- de febre reumática é bom, e apenas 1% dos pacientes
al e suas recorrências podem ocorrer em indivíduos morrem, principalmente em decorrência de miocardite
adultos ou idosos, com acúmulo de alterações patoló- aguda e suas conseqüências, tais como arritmias car-
gicas a cada nova recorrência(8). díacas e falência miocárdica(14).
A incidência e a taxa de mortalidade da febre reu-
mática aguda e da doença reumática crônica cardíaca Aspectos anatomopatológicos da febre reumática
diminuíram acentuadamente em muitos países, nos úl- ou doença reumática em atividade
timos trinta anos, por causa de melhoria das condições As alterações morfológicas cardíacas do episódio
socioeconômicas da população, do diagnóstico e do inicial da febre reumática são as mesmas observadas
tratamento precoces da orofaringite estreptocócica, e nos episódios de recorrência ou atividade da doença,
da diminuição da virulência dos estreptococos do gru- também chamados de doença reumática ativa.
po A, ainda não muito bem compreendida(9). O comprometimento cardíaco na febre reumática ou
Entretanto, a doença reumática continua a ser um na doença reumática ativa é chamado de pancardite,
importante problema de saúde pública em países sub- pois o processo inflamatório acomete o pericárdio, o
desenvolvidos e em desenvolvimento, entre eles o Bra- miocárdio e o endocárdio(5). Não devemos nos esque-
sil, e também em países desenvolvidos, nos quais ain- cer, porém, que, embora menos freqüentes, lesões reu-
da é encontrada em áreas geográficas superpopulo- máticas podem ocorrer na aorta, nas artérias coronári-
sas e de baixo nível socioeconômico(10, 11). Supõe-se as, em artérias e arteríolas pulmonares e até mesmo
que infecções orofaríngeas por linhagens mais virulen- em veias(12).
tas de estreptococos beta-hemolíticos do grupo A pos- O pericárdio apresenta exsudato predominantemen-
sam ser a causa da ocorrência de novos casos de do- te fibrinoso e estéril. Quando muito exuberante, é des-
ença reumática nos países desenvolvidos, mas ainda crito como pericardite em “pão com manteiga”, o qual
não existem estudos científicos conclusivos sobre esse geralmente se organiza sem deixar seqüelas funcio-
aspecto da doença(11). nais importantes(9).
Uma vez que as principais seqüelas da doença reu- O coração tem volume aumentado, como resultado
mática ocorrem no coração, neste artigo vamos nos da hipertrofia e da dilatação dos ventrículos, mais evi-
ater apenas à descrição das alterações morfológicas dente no ventrículo esquerdo. As valvas atrioventricu-
cardíacas mais importantes causadas pela doença. lares podem apresentar insuficiência funcional, depen-
Não devemos nos esquecer, porém, de que na do- dendo do grau de dilatação ventricular e da disfunção
ença reumática podem ser encontradas lesões vascu- miocárdica decorrentes da miocardite aguda(14). A mio-
lares na aorta, nas artérias coronárias, nas artérias e cardite é inespecífica, intersticial e difusa, sendo mais
arteríolas pulmonares e até mesmo em veias(12). evidente na base das cúspides valvares. É constituída
por infiltrado inflamatório que contém linfócitos T e B,
FEBRE REUMÁTICA OU DOENÇA REUMÁTICA plasmócitos, macrófagos, neutrófilos e alguns eosinó-
EM ATIVIDADE filos(15).
Nas valvas cardíacas, formam-se pequenas vege-
O quadro clínico da febre reumática pode surgir, ge- tações verrucosas, de 1 mm a 2 mm, róseo-acinzenta-
ralmente, de 10 dias a 6 semanas após um episódio de das, firmemente aderidas à superfície endocárdica ao
orofaringite por estreptococos beta-hemolíticos do gru- longo da linha de fechamento valvar (Figs. 1A a 1F)(16).
po A(2). Acomete mais freqüentemente crianças de 5 a Raramente, essas vegetações se estendem sobre as
15 anos de idade, mas cerca de 20% dos primeiros cordas tendíneas ou causam ruptura das mesmas(4).
surtos ocorrem em indivíduos de meia idade ou em Acredita-se que sejam resultado da reação imunológi-
idosos(5). ca desencadeada pela infecção estreptocócica, que

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 19


lesa o tecido conjuntivo em ordem decrescente, é: mitral, aórtica, tricúspide e
valvar(9), causando erosão pulmonar(17).
endocárdica e levando à Histologicamente, as pequenas verrucosidades po-
DEMARCHI LMMF precipitação de fibrina e à dem ser trombos constituídos por plaquetas e fibrina
e col. formação de trombos nos que se depositam na superfície valvar (Fig. 2D) ou pro-
Aspectos locais de erosão(17). Essas jeções de degeneração fibrinóide do colágeno valvar,
anatomopatológicos da
febre reumática
lesões são mais freqüen- junto às quais encontram-se células mononucleares,
tes nas valvas mitral e aór- fibroblastos e, ocasionalmente, células gigantes (Fig.
tica, uma vez que sua 2C)(16). É importante enfatizar que essas vegetações
ocorrência é maior quan- ou trombos são abacterianos, pois não há relatos que
to maior for a pressão de demonstrem a presença de estreptococos em tais le-
fechamento valvar, que, sões(18).

Figura 1. Macroscopia de valvas cardíacas com febre reumática ou doença reumá-


tica em atividade. A. Folheto anterior da valva mitral. B. Região da comissura póste-
ro-medial da valva mitral. As setas em A e B apontam pequenas vegetações fibrinói-
des sobre a linha de fechamento valvar. C. Valva aórtica aberta. A seta aponta vege-
tação na semilunar coronariana direita. D. Valva tricúspide retirada cirurgicamente.
As setas brancas e pretas indicam vegetações agudas presentes em toda a linha de
fechamento. E. Valva mitral com doença reumática crônica em atividade. Note as
comissuras já fusionadas. As setas brancas mostram vegetações na linha de fecha-
mento, indicação de atividade da doença. As setas pretas mostram vegetações na
comissura, que após organização levam ao agravamento da fusão comissural. F.
Valva mitral com doença reumática em atividade. As setas indicam a presença de
vegetações na linha de fechamento. Os asteriscos estão sobre cordas que apresen-
tam espessamento e fusão como seqüela de atividade prévia.

20 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


DEMARCHI LMMF
e col.
Aspectos
anatomopatológicos da
febre reumática

Figura 2. Histologia cardíaca na febre reumática ou doença reumática em atividade.


A. Nódulo de Aschoff, fase exsudativa no interstício perivascular do miocárdio. As
setas delimitam o centro da lesão composto por necrose de padrão fibrinóide (he-
matoxilina e eosina — objetiva x20). B. Nódulo de Aschoff, fase proliferativa. As
setas apontam o nódulo composto por células mononucleares macrofágicas tume-
feitas (células de Anitschkow), mais bem visibilizadas no detalhe no canto inferior
direito (hematoxilina e eosina — objetiva x40). C e D. Casos de biópsia em febre
reumática ou doença reumática em surto de agudização/atividade, mostrando ve-
getações valvares em diferentes estágios de organização. Os asteriscos estão so-
bre a vegetação valvar, composta por fibrina (o que predomina no caso D) e paliça-
da de células mononucleares organizando a lesão fibrinosa a partir da base (em
ambos os casos) (ambas as imagens: hematoxilina e eosina — objetiva x20). E.
Outro exemplo de nódulo de Aschoff, fase proliferativa, no interstício perivascular do
miocárdio, demarcado pelas setas (hematoxilina e eosina — objetiva x40).

No miocárdio encontram-se as lesões histológicas Na fase proliferativa ou granulomatosa, cerca de um


mais características do comprometimento cardíaco pela mês após o início da doença, o nódulo de Aschoff é
doença reumática, que são os nódulos de Aschoff(19) representado por degeneração fibrinóide do colágeno
(Figs. 2A, 2B e 2E). circundada por linfócitos, plasmócitos, macrófagos,
Os nódulos de Aschoff apresentam três fases mor- células gigantes e fibroblastos dispostos, grosseiramen-
fológicas distintas, classicamente descritas na febre reu- te, em forma de paliçada (Figs. 2B e 2E). Alguns des-
mática ou nos episódios de atividade da doença(19). ses macrófagos, denominados células de Anitschkow
Na fase inicial, ou exsudativa, cerca de 15 a 20 dias (Fig. 2B — detalhe), são grandes, têm citoplasma ba-
após a infecção estreptocócica, há tumefação, fragmen- sofílico e núcleo redondo ou oval. A cromatina dessas
tação e aumento da eosinofilia das fibras colágenas, células apresenta condensação central e aspecto on-
as quais apresentam aspecto semelhante à fibrina, dulado, circundada por um halo claro, que dá às célu-
denominado degeneração ou necrose fibrinóide, que é las a aparência de lagarta, ao corte longitudinal (“ca-
a principal característica dos nódulos de Aschoff nes- terpillar cells”), ou de olho de coruja, ao corte transver-
sa fase(19), podendo acompanhar-se de quantidade va- sal(9). Outros macrófagos, grandes e multinucleados,
riável de infiltrado inflamatório linfomonoplasmocitário conhecidos como células de Aschoff, também podem
(Fig. 2A). fazer parte desse infiltrado inflamatório variado(9). O

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 21


nódulo de Aschoff na fase mente causa sintomas clínicos ou alterações funcio-
granulomatosa é patogno- nais importantes.
mônico do comprometi- No miocárdio, encontramos infiltrado inflamatório lin-
DEMARCHI LMMF mento miocárdico pela fe- fomononuclear, leve e inespecífico. Os nódulos de As-
e col. bre reumática ou doença choff são substituídos por cicatriz fibrosa e, raramente,
Aspectos reumática ativa(20). são encontrados em amostras de tecido obtidas por
anatomopatológicos da
febre reumática
Na fase cicatricial, após cirurgia ou autópsia.
três a seis meses do iní- No endocárdio, uma área de espessamento, rugo-
cio da doença, há organi- sa e irregular, de 2 cm a 3 cm de diâmetro, pode estar
zação e cicatrização da presente no átrio esquerdo, usualmente acima da in-
fase granulomatosa, com serção da cúspide posterior da valva mitral(27). É classi-
aumento de fibroblastos, camente conhecida como placa de McCallum e é um
formação de fibras colágenas e fibrose perivascular, local propício para o desenvolvimento de endocardite
que, por vezes, tem aspecto de “chama de vela”(12). infecciosa(27).
Os nódulos de Aschoff são encontrados, predomi-
nantemente, no tecido conjuntivo perivascular do mio- Aspectos anatomopatológicos das valvas
cárdio(21), nessa ordem decrescente de freqüência: sep- cardíacas na doença reumática crônica
to ventricular, parede posterior do ventrículo esquerdo, À medida que os episódios de atividade reumática
músculo papilar posterior do ventrículo esquerdo e pa- se manifestam, a doença reumática crônica progride e
rede posterior do átrio esquerdo(15). Por vezes, são ob- se caracteriza, principalmente, por fibrose e calcifica-
servados no sistema de condução(15, 22). Nos casos de ção valvar, que causam deformidades estruturais nas
intensa atividade, também são encontrados no tecido valvas. Essas alterações acarretam disfunções valva-
conjuntivo subendocárdico(15), nas valvas cardíacas(15) res progressivas e permanentes. Podem ocorrer este-
e no pericárdio(23). nose ou insuficiência isoladas ou associação de este-
Apesar de a morfologia dos nódulos de Aschoff nem nose e insuficiência numa mesma valva(28, 29).
sempre corresponder precisamente ao tempo de evo- A disfunção valvar mais freqüente é a estenose mi-
lução da doença reumática, sua associação aos dados tral, seguida por dupla lesão mitral e dupla lesão aórti-
clínicos e laboratoriais é fundamental para o diagnósti- ca(15).
co da doença reumática(24). A lesão isolada da valva mitral é a lesão mais fre-
Estruturas histopatológicas semelhantes aos nódu- qüente da doença reumática crônica (65% a 70% dos
los de Aschoff são eventualmente observadas no co- casos), seguida da associação com a valva aórtica
ração de pacientes tratados com drogas vasoativas(25) (30% a 50%). A lesão conjunta das valvas mitral, aórti-
e em pacientes com outras doenças infecciosas(26). ca e tricúspide é pouco freqüente. O comprometimento
Deve-se, portanto, tomar cuidado com a interpretação isolado da valva aórtica ou das quatro valvas em con-
dessas lesões, sempre considerando os dados clíni- junto é muito raro(15).
cos e laboratoriais, para não se fazer o diagnóstico er- As deformidades valvares e as lesões da fase ativa
rôneo de febre reumática ou doença reumática ativa. da doença reumática são locais propícios para o de-
senvolvimento de complicações, como trombos cavitá-
DOENÇA REUMÁTICA CRÔNICA rios, mais comuns em átrios e aurículas(30), e endocar-
dites infecciosas(14). A cicatrização dessas complicações
A doença reumática crônica cardíaca desenvolve- também pode levar ao aparecimento de novas lesões
se a partir da organização da inflamação aguda cau- valvares, perpetuando o comprometimento cardíaco(31).
sada pela febre reumática e pelos episódios de ativi- Usualmente, o paciente com doença reumática crô-
dade da doença. Uma vez que, num mesmo indivíduo, nica cardíaca apresenta manifestações clínicas, anos
os tipos de lesões da febre reumática tendem a ser os ou décadas depois do primeiro episódio de febre reu-
mesmos a cada fase de atividade da doença(8,14), o dano mática. Em países desenvolvidos, o período de latên-
cardíaco é cumulativo, pois aumenta a cada episódio cia entre o surto agudo inicial e a disfunção valvar gra-
de recorrência(5). ve pode ser tão longo quanto 40 a 50 anos(5, 32). Já em
De maneira geral, a fibrose causada pela resolução países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, esse
da inflamação aguda da doença reumática não acarre- período de latência é mais curto e, comumente, a este-
ta comprometimento importante nas estruturas cardía- nose mitral grave se manifesta antes dos 20 anos de
cas, com exceção das valvas. idade(5, 32).
A pericardite crônica reumática apresenta espes- As cúspides das valvas atrioventriculares e as se-
samento fibroso e áreas focais de neoformação vascu- milunares das valvas arteriais apresentam espessa-
lar e infiltrado inflamatório linfomononuclear, mas rara- mento fibroso, retração, fusão de comissuras e calcifi-

22 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


cação freqüente, tornan-
do-se rígidas. Apesar de
essas alterações serem
DEMARCHI LMMF mais comuns nas valvas
e col. mitral e aórtica, elas po-
Aspectos dem ser observadas, em
anatomopatológicos da
febre reumática
menor intensidade, na val-
va tricúspide (Figs. 3G e
3H) e, mais raramente, na
valva pulmonar(32).
Alterações microscópi-
cas, como fibrose e neo-
formação vascular, podem estar presentes em todas
as valvas cardíacas de indivíduos com doença reumá-
tica crônica, inclusive nas valvas tricúspide e pulmo-
nar, mesmo que as alterações macroscópicas sejam
praticamente imperceptíveis(33).
Na fase crônica, o diagnóstico de valvopatia reumá-
tica pode ser feito, muitas vezes, apenas pelas altera-
ções macroscópicas da valva, uma vez que os acha-
dos microscópicos são inespecíficos.
Aspectos anatomopatológicos da valva mitral
na doença reumática crônica
A doença reumática é a causa mais freqüente de
estenose mitral e, por razões ainda desconhecidas, sua
ocorrência é duas vezes maior em mulheres que em
homens(9).
A estenose mitral é isolada em 65% a 70% dos ca-
sos de doença reumática e a estenose mitro-aórtica
ocorre em cerca de 25% dos casos(14).
Macroscopicamente, as alterações da estenose Figura 3. Macroscopia das valvas atrioventriculares
mitral reumática são caracterizadas por espessamen- com lesões de doença reumática crônica. A. Valva mi-
to das cúspides a partir da borda livre, fusão de comis- tral (M) na região da comissura e músculo papilar pós-
suras, espessamento, fusão e encurtamento das cor- tero-medial. As setas pretas indicam fusão e calcifica-
das tendíneas (Figs. 3A e 3C), diminuição dos espa- ção parcialmente ulcerada. As setas brancas mostram
ços intercordais (Figs. 3A e 3C) e calcificação distrófi- cordas fusionadas e encurtadas/retraídas, aproximan-
ca (Figs. 3A e 3E). do a cúspide ao topo do músculo papilar. B. Valva mi-
A fusão das comissuras, a fibrose e a calcificação tral com intenso espessamento fibroso das cúspides e
das cúspides da valva mitral estenótica, observadas cordoalha. As setas mostram as comissuras que foram
pela face atrial, têm o aspecto de “boca de peixe” (Fig. submetidas a comissurotomia. O átrio esquerdo (AE)
está intensamente dilatado e mostra espessamento fi-
3F). Pela face ventricular, as cordas estão espessas e
broso do endocárdio. C. Valva mitral retirada cirurgica-
fusionadas, deixando o aparelho valvar com mobilida-
mente. Os asteriscos apontam ambos os leques de
de bastante reduzida, e representam o componente
cordas tendíneas com fusão e retração. D. Outra valva
subvalvar da estenose mitral (Figs. 3A a 3D). Por ve- mitral submetida a comissurotomia (setas). Note o in-
zes, o espessamento, a fusão e o encurtamento das tenso espessamento da cordoalha (asterisco) prejudi-
cordas tendíneas são tão intensos, que as cúspides se cando o resultado funcional do procedimento. E. Valva
unem ao topo dos músculos papilares. Freqüentemen- mitral vista pelo átrio. As setas indicam calcificação ir-
te há placas de calcificação distrófica no tecido con- regular. F. Outra valva mitral vista pelo átrio, com o as-
juntivo das cúspides(Figs. 3A e 3E), que, quando muito pecto dito em “boca de peixe”, resultado do espessa-
acentuadas, podem ulcerar a superfície atrial, geral- mento das cúspides e fusão das comissuras. A seta
mente na região das comissuras (Fig. 3A). Essas le- apresenta trombose recente na fenda valvar. G. Valva
sões ulceradas favorecem a formação de trombos (Fig. tricúspide (T) vista pelo átrio. A seta aponta fusão da
3F) e, também, são locais propícios para a instalação comissura. H. Tricúspide aberta apresentando fusão e
de endocardite infecciosa(14). encurtamento de cordas (setas brancas) e fusão da
Na estenose mitral, o átrio esquerdo apresenta di- comissura (seta preta).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 23


latação variável e progres- da borda livre, e fusão de comissuras. A calcificação dis-
siva (Fig. 3B). Em casos de trófica da estenose aórtica reumática ocorre sob a forma
dilatação muito acentua- de nódulos calcificados na base das semilunares, sem
DEMARCHI LMMF da, forma-se o chamado comprometer as bordas livres ou as comissuras, diferen-
e col. “átrio esquerdo gigante”, te da calcificação encontrada em estenoses aórticas de
Aspectos de parede extremamente natureza degenerativa(35).
anatomopatológicos da
febre reumática
delgada (34), o qual pode As alterações microscópicas mais freqüentemente en-
causar desvio do brônquio contradas nas lesões reumáticas da valva aórtica são a
principal esquerdo e com- fibrose, a neoformação de vasos pequenos com paredes
pressão do nervo laríngeo espessas, e quantidades variáveis de infiltrado inflamató-
recorrente. Em pacientes rio linfomononuclear e de calcificação distrófica.
que apresentam dilatação
atrial e fibrilação atrial concomitantes, é freqüente o
achado de trombos murais revestindo parcialmente o
endocárdio da aurícula ou do átrio esquerdos. Mais
raramente, um grande trombo em forma de bola pode
preencher praticamente toda a cavidade atrial esquer-
da, aderido ao septo atrial na maioria das vezes ou à
aurícula esquerda ou, até mesmo, livre(35).
Em pacientes com estenose mitral de longa dura-
ção, o ventrículo esquerdo é pequeno, quando compa-
rado ao ventrículo direito, que se torna hipertrófico em
decorrência da congestão passiva pulmonar. Histolo-
gicamente, observam-se espessamento fibroso das
paredes de capilares e veias pulmonares, e graus vari-
ados de muscularização e hipertrofia da túnica média
e espessamento fibroso da íntima, na parede de arte-
ríolas pulmonares. Não é rara a presença de placas
ateroscleróticas em ramos arteriais pulmonares(35).
A arquitetura valvar, habitualmente estratificada e
avascular, mostra-se desorganizada, em decorrência
de fibrose difusa e neovascularização, caracterizada
pela formação de pequenos vasos de túnica muscular
espessa(36). Quando presente, o infiltrado inflamatório
é focal, constituído por pequena quantidade de linfóci-
tos, macrófagos e plasmócitos. Os músculos papilares
geralmente mostram espessamento endocárdico e fi-
brose intersticial.
As deformidades macroscópicas e as alterações his-
tológicas valvares descritas devem ser interpretadas
como prováveis seqüelas de doença reumática, mes-
mo quando encontradas em pacientes sem dados clí- Figura 4. Macroscopia da valva aórtica com lesões de
nicos de febre reumática ou coréia. doença reumática crônica. A. Dupla lesão aórtica, com
Aspectos anatomopatológicos da valva aórtica predomínio de estenose. As setas indicam fusão e cal-
na doença reumática crônica cificação de duas das comissuras da valva aórtica. B.
A estenose aórtica, por razões desconhecidas e di- Nesse caso, também com predomínio de estenose, as
ferindo da estenose mitral, é duas vezes mais freqüen- três comissuras estão fusionadas, deixando um orifí-
te em homens que em mulheres(9). cio valvar triangular central. C. Valva aórtica com se-
A estenose aórtica isolada raramente ocorre na au- qüela de fusão comissural apenas em uma comissura
sência de lesão da valva mitral(15); porém, em alguns e predomínio de insuficiência. D. Fusão das três co-
indivíduos, a repercussão clínica da estenose mitral missuras, intenso espessamento das semilunares e
pode ser menos importante que a da lesão aórtica(36). focos de calcificação (asterisco) em caso de estenose
As alterações patológicas da doença reumática crôni- aórtica grave. E. Valva aórtica aberta. As setas apon-
ca na valva aórtica são análogas às descritas na valva tam a intensa retração e o espessamento das semilu-
mitral. Há espessamento difuso das semilunares, a partir nares nesse caso de insuficiência aórtica.

24 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


A fusão de uma ou são das comissuras (Figs. 4C e 4E). A insuficiência
mais comissuras, mesmo aórtica é a disfunção valvar que causa maior cardio-
na ausência de fibrose das megalia na doença reumática crônica(15).
DEMARCHI LMMF semilunares, já é fator su-
e col. ficiente para causar este- CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROGNÓSTICO
Aspectos nose aórtica (Figs. 4A, 4B E O TRATAMENTO DOS PACIENTES
anatomopatológicos da
febre reumática
e 4D). Nos indivíduos com
repetidos episódios de ati- O prognóstico dos pacientes é bastante variável e,
vidade reumática, a fibro- principalmente, depende da intensidade da lesão val-
se pode progredir rapida- var, de quais valvas cardíacas foram comprometidas e
mente e resultar em acen- se ocorreram ou não complicações.
tuada estenose aórtica, O tratamento clínico na fase ativa da doença con-
mesmo com pouca calcificação. siste no uso de antibióticos, corticóides e drogas para
A fusão das três comissuras e o orifício de abertura a insuficiência cardíaca.
valvar, de formato triangular ou circular (Fig. 4B), são Para a prevenção de surtos recorrentes da doença,
características típicas de valvopatia aórtica, reumáti- usam-se antibióticos, principalmente a penicilina, por
ca, de longa duração. Nesses casos, há a associação tempo prolongado.
de estenose e insuficiência valvar, com predomínio de O tratamento cirúrgico dos pacientes com lesões
estenose na maioria dos casos (Figs. 4A, 4B e 4D)(34). valvares crônicas, seja por comissurotomia (Figs. 3B e
A repercussão tanto clínica como funcional da insu- 3D) ou substituição da valva por prótese valvar, muito
ficiência aórtica será maior quando a fibrose e a retra- contribuiu para a melhor e maior sobrevida desses pa-
ção das semilunares forem mais acentuadas que a fu- cientes(5).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 25


PATHOLOGICAL ASPECTS OF THE HEART
DEMARCHI LMMF IN RHEUMATIC FEVER
e col.
Aspectos
anatomopatológicos da
febre reumática LÉA MARIA MACRUZ FERREIRA DEMARCHI, JUSSARA BIANCHI CASTELLI

Acute rheumatic fever is an acute, recurrent, inflammatory disease, that deve-


lops in genetically susceptible individuals, within one to six weeks of a pharyngeal
infection with group a beta-hemolytic streptococci. It seems to be an immune res-
ponse to streptococcal antigens or a streptococcal-induced autoimmune reaction to
normal tissue antigens.
It is a childhood disease, with peak incidence between ages 5 and 15 years; but
20% of first attacks occur in adults, sometimes in advanced life.
The acute rheumatic inflammation may occur in pericardium, myocardium and
endocardium. The marked fibrinous pericarditis has a “bread-and-butter” gross appe-
arance. Myocarditis causes cardiac enlargement and ventricular dilation. Aschoff
bodies are microscopic lesions of cardiac connective tissue that undergo exsudati-
ve, proliferative and cicatricial phases. Myocardial Aschoff bodies in proliferative phase
are pathognomonic of acute rheumatic fever, showing fibrinoid degeneration of val-
var collagen with inflammatory cells, including the Anitschkow cells. Verrucae are
small vegetations consisted of platelets and fibrin, or extruded collagen with fibrinoid
degeneration, that may be seen along the lines of valvar closure. Heart damage can
accumulate with each recurrence and chronic rheumatic heart disease results from
healed, often recurrent acute lesions. Valvar deformities are the most important rheu-
matic chronic sequels and they may be found in any cardiac valves. Rheumatic dise-
ase is the most common cause of mitral stenosis, followed by the aortic valve steno-
sis in combination or alone. Association of stenosis and incompetence dysfunction
is frequently seen in aortic valves with rheumatic disease.

Key words: streptococcal infections/complications, rheumatic fever/pathology, rheu-


matic heart disease/pathology, heart valve diseases/pathology, rheumatic nodule/
pathology.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:18-27)


RSCESP (72594)-1503

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 27


DIAGNÓSTICO CLÍNICO DA FEBRE REUMÁTICA: OS
TERRERI MTRA e col. CRITÉRIOS DE JONES CONTINUAM ADEQUADOS?
Diagnóstico clínico da
febre reumática: os
critérios de Jones
continuam adequados? MARIA TERESA R. A.TERRERI, MARIA ODETE E. HILÁRIO

Setor de Reumatologia Pediátrica —


Disciplina de Alergia, Imunologia Clínica e Reumatologia —
Departamento de Pediatria — Universidade Federal de São Paulo — Unifesp/EPM

Endereço para correspondência: Rua Loefgreen, 2381 — ap. 141 —


CEP 04040-004 — São Paulo — SP

O diagnóstico da febre reumática ainda representa um grande desafio para os


pediatras em virtude da ausência de manifestação clínica ou prova laboratorial pa-
tognomônica. Os erros diagnósticos ainda são freqüentes em algumas populações.
Desde a criação dos critérios de Jones, em 1944, cinco revisões foram feitas pela
Associação Americana de Cardiologia, tendo a última sido em 2002. Apresentações
poucos usuais de febre reumática aguda com uma variedade de manifestações clí-
nicas que não preenchem os critérios revisados de Jones podem levar a erros ou
atrasos no diagnóstico. Mudar o conceito da artrite da febre reumática poderia aju-
dar a incluir os inúmeros casos em que ela se apresenta de forma atípica; a ecocar-
diografia, quando utilizada criteriosamente, pode ter boa acurácia em distinguir a
lesão patológica da fisiológica e diagnosticar, assim, a cardite subclínica; a evidên-
cia de infecção estreptocócica precedente nem sempre é obtida, e, por essa razão,
talvez fosse melhor considerar essa condição como parte importante para o raciocí-
nio diagnóstico e não como indispensável. Além disso, o estabelecimento de um
escore de acordo com a freqüência e a importância das manifestações poderia tor-
nar os critérios de Jones mais precisos.

Palavras-chave: febre reumática, critérios de Jones, diagnóstico.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:28-33)


RSCESP (72594)-1504

INTRODUÇÃO um grande desafio para os pediatras e clínicos em vir-


tude da ausência de manifestação clínica ou prova la-
A febre reumática continua sendo um importante boratorial patognomônica. O diagnóstico definitivo fica
problema de saúde pública em países em desenvolvi- muitas vezes difícil pela variabilidade das manifesta-
mento como o Brasil, em virtude de sua alta morbida- ções clínicas. A febre reumática ainda é subdiagnosti-
de e mortalidade. É a causa mais freqüente de doença cada ou diagnosticada em excesso em algumas popu-
cardíaca adquirida em crianças e adolescentes des- lações.
ses países(1). Há 50 anos, Duckett Jones estabeleceu critérios que
ainda são um guia importante para o diagnóstico da
DIAGNÓSTICO — OS CRITÉRIOS DE JONES doença (Tab. 1)(2). A grande contribuição do Dr. Jones
foi ter criado um conjunto de critérios que fossem fá-
O diagnóstico da febre reumática ainda representa ceis de aplicar, com boa acurácia diagnóstica, e que

28 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


pudessem ser utilizados do intervalo PR foi acrescentado como critério menor,
em todas as populações. não sendo considerado quando a cardite estivesse pre-
Como todas as inovações sente como critério maior.
TERRERI MTRA e col. científicas, os critérios não Em uma tentativa de evitar os excessivos diagnósti-
Diagnóstico clínico da eram perfeitos e, desde cos falsos positivos, uma nova revisão dos critérios de
febre reumática: os então, cinco revisões fo- Jones foi realizada em 1965 (Tab. 3)(4). A evidência de
critérios de Jones
continuam adequados?
ram feitas pela Associação infecção estreptocócica prévia foi retirada dos critérios
Americana de Cardiologia, e considerada essencial para o diagnóstico da febre
tendo a última sido em
2002 (3-7). A presença de
dois critérios maiores ou Tabela 1. Critérios de Jones (originais) — 1944.(2)
um maior e dois menores,
associada à evidência de infecção estreptocócica re- Critérios maiores Critérios menores
cente, leva ao diagnóstico da doença. É importante
enfatizar que um grupo grande de pacientes não pre- Cardite Febre
enche esses critérios na apresentação da doença e Artralgia (poliartrite Dor abdominal
outras doenças que preenchem esses critérios preci- migratória)
sam ser excluídas antes do diagnóstico definitivo de Coréia Dor precordial
febre reumática. Na presença de coréia isolada ou car- Nódulos subcutâneos Eritema marginado
dite insidiosa, o diagnóstico pode ser feito sem haver o História prévia de Epistaxe
preenchimento de outros critérios(6). febre reumática
A primeira descrição dos critérios de Jones é de definitiva ou doença
1944, quando as manifestações da doença foram se- cardíaca reumática
paradas em maiores e menores (Tab. 1)(2). As maiores, Achados pulmonares
quando presentes, levavam a maior probabilidade de Achados laboratoriais
diagnóstico certo e incluíam, naquela época, cardite, Alterações no ECG
alterações articulares, nódulos subcutâneos e coréia, Anemia microcítica
além de história de febre reumática ou doença cardía- Elevação de VHS
ca reumática. As manifestações menores eram consi- Leucocitose
deradas sugestivas da febre reumática, mas não espe-
cíficas, ou seja, comuns a outras doenças e incluíam ECG = eletrocardiograma; VHS =
febre, eritema marginado e alteração de provas de fase velocidade de hemossedimentação.
aguda, entre outras. Embora Jones tenha descrito o
comprometimento articular como artralgia, ele consi-
derou sob essa denominação o quadro de poliartrite Tabela 2. Critérios de Jones (primeira revisão) —
migratória. Naquela época, a associação entre febre 1956.(3)
reumática e infecção estreptocócica não foi considera-
da suficientemente importante para incluir a infecção Critérios maiores Critérios menores
nos critérios diagnósticos(8). Jones reconheceu que al-
guns erros diagnósticos poderiam ocorrer e que mu- Cardite Artralgia
danças nos seus critérios deveriam ser necessárias à Poliartrite Febre
medida que maiores conhecimentos sobre a doença Coréia História de febre
surgissem. reumática
Para melhorar a especificidade dos critérios de Jo- Nódulos subcutâneos Evidência de infecção
nes, mudanças significativas foram realizadas em 1956 estreptocócica
(Tab. 2)(3). Estas incluíram o eritema marginado como precedente
quinto critério maior, substituindo a febre reumática Eritema marginado Alterações
prévia ou a doença cardíaca reumática, que se torna- laboratoriais como
ram um critério menor. A denominação de poliartrite elevação de VHS,
substituiu a artralgia como critério maior e esta passou PCR e leucocitose
a configurar como critério menor, não sendo conside- Prolongamento do
rada critério quando a artrite estivesse presente. O mais intervalo PR no ECG
importante foi que a evidência de faringite estreptocó-
cica precedente passou a ser critério menor. Alguns ECG = eletrocardiograma; VHS = velocidade de hemos-
critérios menores foram retirados e o prolongamento sedimentação; PCR = proteína C-reativa.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 29


reumática, associada à pregressa de febre reumática foi excluído. Além disso,
presença dos mesmos. a evidência de infecção estreptocócica precedente não
Essa evidência poderia poderia mais ser confirmada por meio de história su-
TERRERI MTRA e col. ser comprovada por meio gestiva de escarlatina e apenas por testes rápidos para
Diagnóstico clínico da de história de escarlatina, detecção dos antígenos estreptocócicos, cultura de
febre reumática: os cultura de orofaringe posi- orofaringe ou elevação dos títulos de antiestreptolisina
critérios de Jones
continuam adequados?
tiva ou elevação dos títu- O. Isso ocorreu pelo fato de a escarlatina ser comu-
los de anticorpos estrep- mente confundida com outras infecções exantemáticas.
tocócicos. Isso foi uma ten- A leucocitose foi excluída como prova de fase aguda
tativa de afastar outras do- por ser muito inespecífica. A evidência ecocardiográfi-

Tabela 3. Critérios de Jones (segunda revisão) — Tabela 4. Critérios de Jones (quarta revisão) — 1992.(6)
1965.(4)
Critérios maiores Critérios menores
Critérios maiores Critérios menores
Cardite Artralgia
Cardite Artralgia Poliartrite Febre
Poliartrite Febre Coréia Elevação de provas
Coréia História de febre de fase aguda
reumática Eritema marginado Prolongamento do
Nódulos subcutâneos Alterações intervalo PR
laboratoriais como Nódulos subcutâneos
elevação de VHS,
PCR e leucocitose Evidência de infecção estreptocócica precedente: cul-
Eritema marginado tura positiva, teste rápido para antígeno estreptocóci-
co ou elevação dos títulos de anticorpos estreptocóci-
Evidência de infecção estreptocócica precedente: cul- cos.
tura positiva, escarlatina ou elevação dos títulos de
anticorpos estreptocócicos.
VHS = velocidade de hemossedimentação; PCR = pro- ca de alteração valvar sem ausculta cardíaca foi consi-
teína C-reativa. derada insuficiente para estabelecer a presença de
cardite.
Em 2000, os membros do Comitê para febre reu-
enças que simulavam febre reumática, mas que não mática, endocardite e doença de Kawasaki da Associ-
tinham evidência de infecção estreptocócica prévia. O ação Americana de Cardiologia se encontraram com
aumento da especificidade comprometeu a sensibili- um grupo de especialistas internacionais para rever os
dade. A única condição que não exigia a infecção es- critérios de Jones e suas sucessivas revisões. O obje-
treptocócica era a coréia isolada ou a cardite insidiosa, tivo do encontro foi rever a acurácia dos critérios para
pelo seu longo período de latência. o primeiro surto da doença e discutir se técnicas mais
Em 1984, o comitê para febre reumática, endocar- modernas como a ecocardiografia Doppler colorida po-
dite e doença de Kawasaki da Associação Americana deriam ser adicionadas aos critérios para o diagnósti-
de Cardiologia esclareceu algumas definições, mas não co de cardite reumática. O grupo reafirmou a validade
ocorreram alterações significativas(5). Pela primeira vez dos critérios revisados de 1992, considerou-os como o
foi questionado o papel do ecocardiograma como uma padrão para o diagnóstico de surto inicial agudo de fe-
medida para diagnosticar a pericardite. O prolongamen- bre reumática e nenhuma outra correção foi sugerida.
to do intervalo PR foi classificado como uma manifes- Entretanto, até agora nenhum valor preditivo foi atribu-
tação não-específica e não relacionada à cardite. ído aos critérios de Jones.
Na revisão de 1992, ficou estabelecido que os cri- Apresentações poucos usuais de febre reumática
térios de Jones passariam a ser válidos apenas para o aguda com uma variedade de manifestações clínicas
diagnóstico inicial da febre reumática e não mais para que não preenchem os critérios revisados de Jones,
as recorrências (Tab. 4)(6). Esses critérios não seriam podem levar a erros ou atrasos no diagnóstico. Os cri-
utilizados para determinar a atividade ou estabelecer o térios de Jones não podem substituir o julgamento clí-
diagnóstico da doença inativa ou doença cardíaca reu- nico em casos atípicos(9).
mática crônica e, por isso, o critério menor de história As primeiras críticas a esses critérios começam com

30 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


as características da artri- para diferenciar o refluxo valvar orgânico leve do fisio-
te. lógico, podendo, desse modo, ser mais um motivo de
A artrite é a manifesta- erro diagnóstico. Minich e colaboradores estudaram um
TERRERI MTRA e col. ção maior mais freqüente, grupo de 68 pacientes com sopro cardíaco, dos quais
Diagnóstico clínico da porém é a mais inespecí- 37 com febre reumática e 31 controles com sopro car-
febre reumática: os fica, sendo seu diagnósti- díaco inocente, que apresentavam regurgitação valvar
critérios de Jones
continuam adequados?
co diferencial muito varia- à ecocardiografia Doppler(19). Esses autores propuse-
do. A exclusão de outras ram critérios ecocardiográficos para diferenciação da
artrites reativas ou outras regurgitação mitral orgânica da febre reumática da re-
causas de artrite aguda é, gurgitação mitral fisiológica, os quais apresentaram
por vezes, muito difícil. Há especificidade de 94% e valor preditivo positivo de
diversas publicações indi- 93%(19). Em um estudo cego prospectivo realizado por
cando que as manifestações articulares são muitas nós com 56 pacientes com febre reumática aguda, 11
vezes diferentes das descrições clássicas(10, 11). A artri- de 29 (37,9%) pacientes sem evidência clínica de car-
te aditiva ou de duração prolongada, o acometimento dite apresentaram alterações ecocardiográficas, carac-
de pequenas articulações, a monoartrite e a não res- terizando a cardite subclínica. Em 31 dos 56 pacientes
posta ao ácido acetilsalicílico são observados em mui- foram realizadas análises quantitativa e qualitativa mais
tos pacientes. Em nosso estudo com 93 pacientes com detalhadas e comparadas aos achados de 20 indivídu-
febre reumática, a artrite foi aditiva em 27% dos casos; os controles. Observamos que variáveis quantitativas
pequenas articulações, como as metacarpofalangea- como a espessura da valva mitral apresentaram valo-
nas e as interfalangeanas proximais e distais, foram res estatisticamente mais elevados nos pacientes com
acometidas com freqüência de 2% a 8%; artrite com cardite clínica e subclínica que em crianças controles.
duração maior que seis semanas, caracterizando artri- “Vena contracta” e altura do jato aórtico tiveram valo-
te crônica, foi observada em 10%; não resposta ao áci- res estatisticamente mais elevados na cardite clínica
do acetilsalicílico ocorreu em 15% das artrites; e mo- que na cardite subclínica, demonstrando que, embora
noartrite foi encontrada em 6% dos pacientes. Acha- pertençam ao mesmo espectro de lesão, a cardite clí-
dos semelhantes foram descritos por outros autores(11, 12). nica apresenta maior magnitude da lesão valvar. Quanto
Em muitos desses casos, o diagnóstico só é possível às variáveis qualitativas, como variância e convergên-
quando o acometimento cardíaco está associado. Mu- cia mitrais e regurgitação holodiastólica, foram estatis-
dar o conceito da artrite da febre reumática poderia ticamente mais freqüentes nos dois grupos de pacien-
ajudar a incluir os inúmeros casos em que ela se apre- tes que nos controles. Esses resultados podem ser
senta de forma atípica. Nos países com alta incidência mais uma evidência de que a ecocardiografia, quan-
de febre reumática, a artrite deve ser considerada de do utilizada criteriosamente, pode ter boa acurácia
forma mais cuidadosa durante o diagnóstico. em distinguir a lesão patológica da fisiológica. Tais
A cardite tem sido objeto de grande polêmica, es- achados vêm sendo alvo de debate em relação ao
pecialmente na última década. A cardite clínica é bem diagnóstico de cardite reumática e também a suas
específica e quadros com presença de sopro cardíaco implicações terapêuticas, como utilização do corti-
sugestivo de regurgitação mitral e/ou aórtica com con- cóide e modificações quanto à duração da profilaxia
firmação ecocardiográfica não costumam deixar dúvi- secundária(20, 21).
das sobre sua etiologia reumática. Cada vez mais au- A coréia de Sydenham é uma manifestação que
tores, porém, têm descrito a presença de achados eco- pode ser considerada como critério suficiente para o
cardiográficos de lesões valvares orgânicas, na ausên- diagnóstico de febre reumática mesmo quando isola-
cia de manifestações clínicas de cardite(13-17). A ecocar- da. É importante, entretanto, que outras causas de co-
diografia Doppler colorida é claramente aceita hoje réia sejam afastadas, como lúpus eritematoso sistêmi-
como uma técnica mais sensível que a ausculta cardí- co, tumores, doença de Wilson e drogas, entre outras.
aca na detecção da regurgitação valvar. No entanto, Em nossa casuística, observamos associação impor-
coloca-se em questão a acurácia desse exame quanto tante de cardite com coréia, alertando assim para a
à distinção entre a regurgitação patológica e a fisioló- necessidade de investigação do comprometimento car-
gica. De acordo com alguns autores, a inflamação val- díaco nos pacientes com essa manifestação.
var subclínica demonstrada pelo ecocardiograma de- As outras manifestações maiores, como eritema
veria ser aceita como evidência de cardite e ser consi- marginado e nódulos subcutâneos, embora sejam con-
derada como critério para o diagnóstico de febre reu- sideradas critérios maiores, são muito pouco freqüen-
mática(18). Entretanto, a ecocardiografia ainda não é tes. Essa é outra crítica aos critérios de Jones e exis-
aceita como critério diagnóstico de febre reumática, por tem sugestões para que essas manifestações deixem
ser um exame que carece de critérios mais específicos de ser consideradas maiores ou pelo menos não te-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 31


nham o mesmo peso que em nosso meio, cerca de 20% a 25% dos pacientes
os outros critérios maiores. não alteram seus títulos. Embora os métodos para de-
Outra grande dificuldade terminação de outros anticorpos aumentem a possibi-
TERRERI MTRA e col. que encontramos no diag- lidade de detecção da infecção estreptocócica recen-
Diagnóstico clínico da nóstico da febre reumáti- te, eles não estão disponíveis na rotina de serviços
febre reumática: os ca é a comprovação da públicos e nem em laboratórios particulares. Talvez fos-
critérios de Jones
continuam adequados?
infecção estreptocócica se melhor considerar essa condição como parte im-
precedente. Segundo os portante para o raciocínio diagnóstico ao invés de co-
autores responsáveis pe- locá-la como indispensável.
las revisões dos critérios Estudos prospectivos multicêntricos com participa-
de Jones, não pode haver ção das populações com maior incidência da doença
febre reumática sem essa são necessários para que possamos aumentar a es-
comprovação. Entretanto, sabemos que a cultura de pecificidade dos critérios de Jones. A redefinição da
orofaringe carece de sensibilidade e os testes rápidos artrite da febre reumática, a inclusão da cardite subclí-
para detecção de antígenos estreptocócicos não são nica, ou seja, da ecocardiografia, e o estabelecimento
realizados de rotina em nosso meio. Quanto à determi- de um escore de acordo com a freqüência e a impor-
nação dos títulos de anticorpos estreptocócicos, em tância das manifestações poderiam tornar os critérios
especial da antiestreptolisina O, que é a mais utilizada de Jones mais precisos.

CLINICAL DIAGNOSIS OF RHEUMATIC FEVER:


ARE THE JONES CRITERIA STILL ADEQUATE?

MARIA TERESA R. A.TERRERI, MARIA ODETE E. HILÁRIO

The diagnosis of rheumatic fever still represents a great challenge to pediatrici-


ans due to the absence of patognomonic clinical manifestation or laboratory test.
Misdiagnosis are also very frequent in some populations. Since their introduction in
1944 Jones criteria have been revised five times by the American Cardiology Asso-
ciation; the last one was in 2002. Unusual presentation of acute rheumatic fever with
a great range of clinical manifestations that do not fulfill the Jones criteria is respon-
sible for mistakes or delay of diagnosis. It would be of worth to change the arthritis
concept in an attempt to include the atypical forms; the echocardiography if utilized
with criteria could be an accurate instrument to distinguish pathologic from physiolo-
gic valvar lesions and therefore to diagnosis subclinic carditis; the evidence of strep-
tococcal infections not always is possible and for this reason would be better to
consider this condition as an important evidence for the diagnosis instead of consi-
der it indispensable. Otherwise the establishment of a score according to the fre-
quency and importance of the manifestations of rheumatic fever would turn Jones
criteria more precise.

Key words: rheumatic fever, Jones criteria, diagnosis.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:28-33)


RSCESP (72594)-1504

32 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


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critérios de Jones
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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 33


VALOR DOS EXAMES LABORATORIAIS
VIDOTTI MH e col. NO DIAGNÓSTICO E NO SEGUIMENTO
Valor dos exames
laboratoriais no DE PACIENTES COM FEBRE REUMÁTICA
diagnóstico e
no seguimento
de pacientes com
febre reumática MARIA HELENA VIDOTTI, JOSÉ FRANCISCO KERR SARAIVA

Disciplina de Cardiologia —
Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas

Endereço para correspondência: Rua Dr. José Vicente, 130 — CEP 13101-536 —
Campinas — SP

Embora não haja provas laboratoriais patognomônicas para o diagnóstico de cer-


teza da febre reumática, existem alguns achados de laboratório e algumas conside-
rações que nos auxiliam tanto na conclusão de uma hipótese clínica como no acom-
panhamento e nos critérios de cura da doença. Por isso é sempre bom lembrar que
o diagnóstico dessa doença se faz com um conjunto de dados clínicos como história
e exame clínico, bem como de resultados de provas laboratoriais. Existem dois tipos
de exames laboratoriais que são úteis no diagnóstico e na avaliação da evolução,
assim como na cura: os que pesquisam processos imunogenéticos (celulares, mole-
culares e humorais) importantes para determinar a gênese da afecção, e os que
reconhecem a existência de um processo inflamatório agudo, que seriam as chama-
das reações da “fase aguda do soro”. Dentre estas últimas encontram-se as muco-
proteínas e a fração alfa-2-globulina, que se comportam como provas seguras e
sensíveis, devendo-se somente à normalização das mesmas o desaparecimento do
processo inflamatório agudo.

Palavras-chave: diagnóstico laboratorial, febre reumática, estreptococos do grupo


A de Lancefield.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:34-9)


RSCESP (72594)-1505

INTRODUÇÃO do pelo agente etiológico e as reações da fase aguda


da doença. São, portanto, testes que evidenciam res-
Não existem sintomas ou sinais clínicos, nem mes- pectivamente a existência de um fator etiológico e o
mo provas laboratoriais específicas, para o diagnósti- comportamento de reações que medem a atividade do
co de certeza da febre reumática. O diagnóstico se faz processo inflamatório presente, podendo inclusive nos
na associação de ambos, o quadro clínico e o quadro informar o estado evolutivo da doença, até a cura. Sen-
laboratorial. Na prática sabemos que essas provas la- do assim, podemos dividir a investigação laboratorial
boratoriais não possuem caráter específico, ou seja, em dois gupos: A, com exames que vão nos mostrar
nenhuma delas pode garantir a presença da doença, se houve infecção prévia pelo estreptococo beta-he-
exigindo sempre um diagnóstico diferencial. Existem molítico do grupo A de Lancefield; e B, com exames
dois tipos de exames laboratoriais: os que vão mostrar que documentam a presença de processo inflamatório,
a resposta anticórpica do organismo ao produto libera- isto é, que medem a “atividade” do processo inflamatório.

34 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


PROVAS QUE Randall, atingindo seu pico três a seis semanas após a
AVALIAM A RESPOSTA infecção, enquanto a anti-DNAse B atinge seu pico mais
IMUNITÁRIA DO tardiamente (seis a oito semanas). Na maioria dos ser-
VIDOTTI MH e col. ORGANISMO viços, seguem-se os critérios determinados por Décourt
Valor dos exames para a ASLO(1), considerando-se o nível de 250 unida-
laboratoriais no Em razão do processo des Todd (UT) como normal para crianças com menos
diagnóstico e
no seguimento
etiológico da febre reumá- de 5 anos de idade e, para finalidades práticas, como
de pacientes com tica, são encontrados no anormais taxas acima de 333 UT para crianças com
febre reumática plasma dos pacientes in- menos de 5 anos de idade e acima de 500 UT para
fectados elevados títulos crianças acima dessa idade.
de anticorpos contra subs- A experiência universal nos mostra que os níveis
tâncias liberadas pelo es- normais de ASLO podem variar com fatores ligados a
treptococo do grupo A. Essas bactérias fabricam vári- idade, classe socioeconômica e até condições do meio
os produtos extracelulares, como: estreptolisinas A e ambiente, como promiscuidade e estações do ano.
S; desoxirribonucleases A, B, C e D; hialuronidase; pro- A redução dos títulos é geralmente lenta, com vari-
teinases; nicotinamida-adenina-deaminase; estreptoqui- ação de paciente para paciente, ao contrário do que
nase; e exotoxinas pirogênicas. acontece nas estreptococcias simples, cuja queda é
Os anticorptos tituláveis na prática clínica são: an- mais rápida. Após o surto agudo de febre reumática,
tiestreptolisina O (ASLO), antiestreptoquinase (AEQ), os níveis voltam ao normal em quatro a seis meses,
anti-hialuronidase (AH) e antidesoxirribonuclease (anti- porém a permanência de títulos elevados por tempo
DNAse). prolongado não indica persistência da atividade da
O anticorpo mais utilizado na clínica diária é o ASLO, doença. Também podemos salientar que a determina-
pela facilidade de obtenção e homogeneidade dos re- ção de outros anticorpos aumenta a sensibilidade na
sultados. A anti-DNAse B pode ser útil nos casos de identificação da infecção estreptocócica, mas não são
síndrome coréica reumática. A ASLO é prova obtida usados na prática clínica.(2)
geralmente por variação da técnica original de Rantz e A anti-DNAse B tende a permanecer circulando por

Obs.: as exotoxinas pirogênicas altamente nocivas estão ligadas ao exantema da


escarlatina.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 35


mais tempo, podendo ser VELOCIDADE DE HEMOSSEDIMENTAÇÃO
praticamente a única indi-
cação de infecção estrep- A alteração da velocidade de hemossedimentação
VIDOTTI MH e col. tocócica nas manifesta- geralmente ocorre de forma acentuada, sendo os des-
Valor dos exames ções neurológicas tardias vios precoces, contemporâneos das manifestações ini-
laboratoriais no da febre reumática (coréia ciais da doença. Valores mais elevados são observa-
diagnóstico e
no seguimento
de Sydenham).(3) dos em casos mais graves, embora não se tenha uma
de pacientes com correlação linear desse achado. Seus valores normais
febre reumática HEMOGRAMA situam-se abaixo de 10 mm a 20 mm. A velocidade de
hemossedimentação depende de múltiplos fatores,
É pouco expressivo e o como, por exemplo, tamanho das hemácias, presença
achado de grandes altera- de macromoléculas que alteram a carga elétrica da
ções pode sugerir presença de outras doenças.(4) É im- membrana celular das hemácias, nível de fibrinogênio,
portante, portanto, o diagnóstico diferencial com ou- alfa e gama globulinas (sobretudo da IgM), alteração
tras entidades mórbidas como anemia falciforme, artri- da viscosidade e da alimentação. Dessa maneira, em
te reumatóide juvenil, lúpus eritematoso sistêmico, leu- processo inflamatório agudo como na febre reumática,
cemias, etc. em que existe aumento significativo do fibrinogênio e
Na fase ativa da febre reumática, o hemograma re- das mucoproteínas, ocorre aumento da velocidade de
vela discreta leucocitose, com predomínio de polimor- hemossedimentação. Ressalte-se, no entanto, que vá-
fonucleares, com neutrofilia, além de um desvio para a rias outras doenças podem alterar a velocidade de he-
esquerda pouco acentuado. Com maior freqüência, e mossedimentação além da febre reumática, entre elas:
em particular em crianças, manifesta-se anemia hipo- anemias graves, neoplasias, colagenoses, infecções,
crômica, normocítica ou discretamente microcítica,(5) traumatismos e processos inflamatórios em geral. Além
não-responsiva à terapêutica com ferro. Em determi- deles, na gestação, particularmente a partir do segun-
nados casos pode servir de alerta em crianças com do trimestre, ocorre aumento progressivo da velocida-
outras manifestações muitos discretas. de de hemossedimentação sem significado patológico.
O uso crônico de alguns fármacos também pode alte-
PROVAS LIGADAS AO PROCESSO rar a velocidade de hemossedimentação, como antiin-
INFLAMATÓRIO flamatórios hormonais e não-hormonais, contracepti-
vos e penicilina benzatina. Dessa forma, a velocidade
As denominadas “reações da fase aguda do soro”, de hemossedimentação não constitui um instrumento
sendo inespecíficas, não possuem e não pretendem específico para o acompanhamento e a evolução no
possuir valor diagnóstico de febre reumática entre di- tratamento da febre reumática. Outro fator que pode
ferentes processos clinicamente comparáveis. São, induzir erro de interpretação é a persistência habitual
entretanto, muito úteis em sua capacidade de reve- de valores elevados da velocidade de hemossedimen-
lar processo “ativo”, definindo-o em sua presença, tação durante longo período, sem relação com a evo-
em sua permanência e em suas oscilações no tem- lução favorável do quadro clínico, que pode confundir
po. o médico e sugerir de maneira imprópria a continuida-
Na febre reumática, como em qualquer outra condi- de da terapêutica.
ção, as provas realmente expressivas são: Trata-se, portanto, de prova importante, mas não
— as que se desviam da normalidade logo no início da fiel, por causa das circunstâncias limitantes da real ex-
afecção; pressividade dos resultados (Tab. 1).
— as que oscilam em seus valores de acordo com as
próprias oscilações desta; PROTEÍNA C-REATIVA
— as que não se modificam artificialmente com o uso
de medicamentos; A proteína C-reativa é sintetizada no fígado, cor-
— as que só se normalizam quando do desapareci- rendo em baixas concentrações no plasma de indiví-
mento da doença. duos normais.(7) Trata-se de proteína imunitariamente
As diferentes provas laboratoriais apresentam, na anômala, que precipita com o carboidrato C de pneu-
febre reumática, aspectos de comportamento muito ex- mococos. Pode-se elevar de forma sensível no início
pressivos para a avaliação clínica, ao contrário do que do processo reumático, estando elevada em pratica-
é admitido por muitos autores.(1, 4, 6) As principais pro- mente 100% dos casos antes do final da segunda se-
vas desse grupo são: velocidade de hemossedimenta- mana de evolução.(6)
ção, proteína C-reativa, mucoproteínas e eletroforese A não elevação seqüencial da proteína C-reativa do-
de proteínas. sada em dias alternados sugere ausência de febre reu-

36 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


mática, ou seja, embora lismo é realizado no fígado e é excretado pelos rins. As
inespecífica, é extrema- técnicas utilizadas são trabalhosas, e com possibilida-
mente sensível nas fases de de erros, o que tem causado seu abandono em
VIDOTTI MH e col. iniciais da febre reumática. muitos centros e sua substituição pela alfa-1-glicopro-
Valor dos exames Entretanto, igualmente a teína ácida de mais fácil dosagem. A mucoproteína
laboratoriais no velocidade de hemossedi- encontra-se elevada em cerca de 95% dos pacientes
diagnóstico e
no seguimento
mentação constitui méto- com diagnóstico de febre reumática, mantendo-se al-
de pacientes com do apropriado para o se- terada enquanto durar a fase ativa. A normalização de
febre reumática guimento de pacientes seus níveis indica o final da fase ativa da doença. É
com febre reumática, e tí- importante comentar que não sofre alteração com a
tulos mais elevados não medicação antiinflamatória, mesmo com corticosterói-
representam necessaria- des,(8) sendo um bom guia para o critério de cura.
mente falta de controle da doença. Por outro lado, seus Como cifras superiores da normalidade, podem ser
níveis podem diminuir durante o curso ativo da doença aceitas(8) as de 4,0 mg% para a tirosina e de 14,5%
(Tab. 1). É importante lembrar que a proteína C-reativa para o polissacarídeo da mucoproteína; na prática,
não sofre habitualmente interferência da alimentação habitualmente é utilizada apenas a taxa de tirosina.
ou de medicação antiinflamatória. No seguimento do O retorno de seus níveis à normalidade costuma
paciente reumático, o reaparecimento da proteína C- refletir a regressão da doença e a manutenção de ní-
reativa no soro obriga a pesquisa de reativação do pro- veis persistentemente elevados indica atividade da do-
cesso inflamatório, exigindo cuidados na reavaliação ença. Portanto, apesar de suas limitações como rea-
do estado clínico. ção inespecífica, comporta-se, na prática clínica, como
prova sensível, expressiva e de confiança.
MUCOPROTEÍNAS
ELETROFORESE DE PROTEÍNAS
As mucoproteínas elevam-se em qualquer proces-
so inflamatório, infeccioso ou neoplásico. Seu metabo- As modificações das proteínas do soro não diferem

Tabela 1. Comportamento das reações da “fase aguda do soro”.(4)

Períodos da doença
Provas Fases iniciais Período de estado Momento da “cura”

Eritrossedimentação Desvio freqüente Oscilações também Persistência eventual


dependentes de de desvios
outros fatores moderados, sem
significação
Proteína C Presença constante Desaparecimento (ou Ausência, já há dias
redução) em número ou semanas, em certo
progressivo de enfermos número de enfermos
Mucoproteína Elevação quase Manutenção dos Normalização dos
constante desvios níveis
Frações protéicas: Redução freqüente, Tendência à Valores normais já
— albumina em particular nas normalização presentes em certo
formas graves e em número de enfermos
crianças
— alfa1-globulina Elevação freqüente Normalização precoce Valores normais já
presentes há dias ou
semanas
— alfa 2- globulina Elevação quase Manutenção dos desvios Normalização dos
constante níveis
— gama-globulina Elevação inconstante Manutenção dos desvios Eventual persistência
e/ou discreta ou elevação progressiva dos desvios
dos níveis

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 37


das alterações que ocor- tantes, mesmo diante da persistência de processo ativo.
rem em vários outros pro- Não apresentam valor prático.(9) As elevações da fração
cessos agudos e se exte- alfa-2-globulina são constantes e tendem a se manter
VIDOTTI MH e col. riorizam basicamente por durante toda a atividade reumática, sendo um indicador
Valor dos exames queda do teor de albumi- satisfatório da permanência da doença.(9)
laboratoriais no na e por elevação da taxa Em resumo, na prática clínica aconselha-se a utili-
diagnóstico e
no seguimento
das frações alfa-globulinas zação rotineira das determinações da mucoproteína e
de pacientes com e gama-globulinas(9) (Tab. da alfa-2-globulina do soro como provas realmente sa-
febre reumática 1). A redução importante tisfatórias no acompanhamento da evolução clínica de
da albumina pode ser pre- pacientes com febre reumática aguda. Essa constata-
coce, principalmente nas ção só admite o término da “atividade” da doença quan-
formas mais graves de cri- do da normalização de ambas as reações.
anças portadoras de febre reumática, sem relação com
seu estado nutricional. Uma redução dos níveis de al- ALFA-1-GLICOPROTEÍNA ÁCIDA
bumina (valores < 3,5 g/dl) é habitual. A normalização
das taxas em qualquer situação é ocorrência de prog- A alfa-1-glicoproteína ácida seria outro componen-
nóstico mais favorável. A elevação da gamaglobulina é te mucoprotéico que se eleva em qualquer processo
lenta e em períodos tardios, principalmente quando inflamatório agudo.(10) É um excelente antígeno, poden-
ocorrem agressões viscerais. As elevações das alfa- do ser dosada por técnicas imunológicas e por turbidi-
globulinas são precoces e nítidas ao final da primeira metria sem grandes dificuldades, fato esse que tem
semana de doença, observando-se nítida diferença de permitido em muitos centros clínicos substituir a dosa-
comportamento entre os dois tipos dessas frações. A gem de mucoproteínas, cujas técnicas são mais traba-
fração alfa-1-globulina tem alterações transitórias e incons- lhosas e com possibilidade de erros.

LABORATORY IN RHEUMATIC FEVER

MARIA HELENA VIDOTTI, JOSÉ FRANCISCO KERR SARAIVA

The purpose of this review is to assist the physician, during clinical practice, to
deal with a suspicion of an acute case of rheumatic fever. Rheumatic fever often
presents with a wide spectrum of clinical symptoms, frequently unspecific or only
slightly related to the inflammatory aspect of the disease. The laboratorial screening
is a very helpful tool in the differential diagnosis. Despite their lack of specificity, the
laboratorial tests and clinical presentation together frequently guide the clinician to
the diagnosis. The laboratorial exams also should be monitored to determine the
evolution of clinical cases, as well as the eventual recurrence of symptoms

Key words: laboratory, rheumatic fever, inflammation, rheumatism, carditis.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:34-9)


RSCESP (72594)-1505

38 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 39


PAPEL DA DOPPLER ECOCARDIOGRAFIA
PAZIN-FILHO A e cols. NO DIAGNÓSTICO E NO PROGNÓSTICO
Papel da Doppler
ecocardiografia no DA FEBRE REUMÁTICA AGUDA
diagnóstico e no
prognóstico da febre
reumática aguda
ANTONIO PAZIN-FILHO, ANDRÉ SCHMIDT, MINNA MOREIRA DIAS ROMANO,
OSWALDO CÉSAR DE ALMEIDA FILHO, BENEDITO CARLOS MACIEL

Divisão de Cardiologia —
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto —
Universidade de São Paulo — FMRP-USP

Endereço para correspondência: Hospital das Clínicas da FMRP-USP —


Divisão de Cardiologia — Campus Universitário Monte Alegre —
Ribeirão Preto — SP

A cardite é a única manifestação da febre reumática aguda que gera seqüelas


tardias para o paciente. Esse comprometimento é responsável pelos altos índices
de morbidade e de mortalidade da doença reumática do coração a longo prazo. A
Doppler ecocardiografia contribui, nessa fase aguda, para a elucidação diagnóstica,
a determinação da extensão do envolvimento cardíaco, a indicação de procedimen-
tos cirúrgicos, bem como para o acompanhamento evolutivo dos pacientes. No en-
tanto, o método, ao identificar acometimento cardíaco subclínico, oferece elementos
morfológicos e funcionais cuja interpretação é alvo de controvérsia. Esta revisão
procura colocar esses pontos em perspectiva e propiciar melhor compreensão do
real papel do método nas avaliações diagnóstica e prognóstica dessa entidade no-
sológica.

Palavras-chave: febre reumática aguda, Doppler ecocardiografia, diagnóstico.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:40-6)


RSCESP (72594)-1506

INTRODUÇÃO zado por achados clínicos que envolvem, basicamen-


te, a detecção de sopro cardíaco decorrente de regur-
O acometimento cardíaco, que tem no processo in- gitação mitral ou aórtica, a percepção de atrito pericár-
flamatório valvar sua maior expressão, é a única mani- dico ou a ocorrência de insuficiência cardíaca de início
festação da febre reumática aguda que deixa seqüelas recente, sem outra explicação aparente. A introdução
tardias, determinando elevados índices de morbidade da Doppler ecocardiografia, na prática clínica, bem
e de mortalidade dos pacientes acometidos. A preva- como sua ampla disseminação como método diagnós-
lência do acometimento cardíaco é variável, dependen- tico, possibilitou sua incorporação na investigação clí-
do da localização geográfica, da população sob estu- nica de casos agudos de febre reumática. A Doppler
do e dos critérios utilizados para definir cardite. Classi- ecocardiografia: 1) contribui para o diagnóstico diferen-
camente, o acometimento cardíaco corresponde a uma cial ao agregar informações anatômicas ou funcionais
“pancardite”, embora a principal manifestação seja o apontando para outras causas que justifiquem as ma-
acometimento valvar; esse envolvimento é caracteri- nifestações clínicas; 2) permite a caracterização preci-

40 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


sa da extensão do envol- ecocardiografia, em face de sua ampla disponibilidade
vimento cardíaco produzi- e da elevada sensibilidade na detecção de lesões val-
do pela doença; 3) auxilia vares, mesmo silentes do ponto de vista clínico, não
PAZIN-FILHO A e cols. na indicação de procedi- estimula o aprimoramento do aprendizado em técni-
Papel da Doppler mentos cirúrgicos, nessa cas de ausculta cardíaca.
ecocardiografia no fase aguda; e 4) oferece Considerando essas limitações de ordem clínica, tor-
diagnóstico e no
prognóstico da febre
informações essenciais no na-se necessária e inevitável a utilização de métodos
reumática aguda acompanhamento evoluti- diagnósticos auxiliares para caracterizar o envolvimento
vo dos casos a longo pra- cardíaco da doença. Assim, algumas experiências ini-
zo. No entanto, o método, ciais realizadas com marcadores séricos de lesão mio-
ao identificar acometimen- cárdica, como as troponinas(3, 4), não mostraram resul-
to cardíaco subclínico, ofe- tados promissores, indicando que o componente de
rece elementos morfológicos e funcionais cuja inter- miocardite é pouco expressivo. Os dados que confir-
pretação é alvo de controvérsia. Esta revisão procura mam o acometimento valvar como principal responsá-
colocar esses pontos em perspectiva e propiciar me- vel pelas manifestações cardíacas da doença tornam
lhor compreensão do real papel do método na avalia- a Doppler ecocardiografia método essencial para iden-
ção diagnóstica e prognóstica dessa entidade nosoló- tificação desse envolvimento, principalmente quando
gica. são considerados seu caráter não-invasivo, a crescen-
te disponibilidade e o potencial para acompanhamento
DIFICULDADE DIAGNÓSTICA evolutivo, ainda que essa técnica seja operador-depen-
dente.
O diagnóstico de cardite reumática, quando esse
envolvimento representa a única manifestação da do- COMPARAÇÃO DA DOPPLER ECOCARDIOGRAFIA
ença, não é simples. Nesse contexto, mesmo os crité- COM O EXAME FÍSICO
rios de Jones, comumente aplicados para o diagnósti-
co, não são capazes, em muitas situações, de oferecer A prevalência de cardite clinicamente manifesta é
elementos para um diagnóstico definitivo. Quando se variável de acordo com a casuística. Embora sejam re-
considera a recorrência da cardite reumática, esse di- latados valores entre 30% e 40% dos casos, em mé-
lema diagnóstico se torna ainda mais complexo(1). dia, existem dados mostrando taxas próximas a 90%(5).
A regurgitação valvar mitral e/ou aórtica representa A utilização da Doppler ecocardiografia em pacientes
a manifestação mais freqüente da cardite reumática, com manifestações sugestivas de febre reumática, po-
de tal modo que o acometimento cardíaco é raramente rém sem manifestações clínicas inequívocas de cardi-
diagnosticado na ausência dessas manifestações. As- te, permite identificar alterações funcionais compatíveis
sim, do ponto de vista clínico, o exame físico cardio- com cardite em 15% a 20% dos casos, que são consi-
vascular, principalmente a ausculta cardíaca, é o prin- derados subclínicos. Em um estudo multicêntrico, con-
cipal método de diagnóstico(2). Embora o exame físico duzido no Estado de São Paulo, a prevalência de car-
cardiovascular seja um método custo-efetivo para a dite atingiu 50,4%, embora se identificasse a presença
avaliação de cardiopatias, sua adequada utilização clí- de alterações ecocardiográficas em mais de 18,3% do
nica depende de uma curva de aprendizado prolonga- total de casos, sem que esses pacientes demonstras-
da. Ao mesmo tempo, a mudança do perfil epidemioló- sem sinais clínicos evidentes de cardite(5). Detecção de
gico de acometimento cardiovascular em diversas po- alterações ecocardiográficas potencialmente atribuíveis
pulações, em que se identifica declínio na incidência a uma manifestação aguda de febre reumática, sem
de afecções valvares, faz com que o aprendizado des- manifestação clínica concomitante de cardite, tem sido
se método diagnóstico fique comprometido e ainda mais identificada em diversas séries da literatura, com ex-
demorado. Paralelamente, verifica-se crescimento ex- ceção da série de Vasan e colaboradores(6), que não
pressivo da chamada “medicina defensiva”, que resul- identificou alterações ecocardiográficas no grupo de
ta da combinação de fatores diversos, incluindo: 1) a pacientes sem manifestações clínicas de cardite. Essa
ampla disponibilidade de métodos diagnósticos com- discrepância tem sido explicada pelo fato de que em
plementares; 2) a inadequada relação entre planos de países em desenvolvimento, como a Índia, onde foi
saúde e os médicos a elas vinculados; e 3) a pressão conduzido tal estudo, o comparecimento da população
exercida pelo crescente número de processos judiciais ao serviço médico, geralmente, é mais tardio.(7) Em
envolvendo questões de responsabilidade profissional. séries conduzidas nos países desenvolvidos, a detec-
Em conjunto, esses elementos contribuem para menor ção é mais precoce, bem como o acesso ao exame
valorização da semiologia cardiovascular como méto- ecocardiográfico, de modo que o seguimento evolutivo
do de investigação clínica. Nesse contexto, a Doppler evidencia, naqueles pacientes sem sinais clínicos de

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 41


cardite na fase inicial do gitação valvar, como estabelecer a distinção entre uma
quadro, mas apresentando regurgitação decorrente de agressão do endocárdio
alguma alteração ecocar- valvar pela febre reumática e uma regurgitação fisioló-
PAZIN-FILHO A e cols. diográfica, o desenvolvi- gica, silente do ponto de vista clínico, em paciente
Papel da Doppler mento mais tardio de ma- manifestando quadro febril associado a outra etiologia?
ecocardiografia no nifestações clínicas, na Essa preocupação influenciou a utilização de critérios
diagnóstico e no
prognóstico da febre
maioria desses pacientes. mais específicos para se caracterizar regurgitações pa-
reumática aguda tológicas (Tab. 1)(1, 2, 6, 12, 13). Minich e colaboradores(14)
PAPEL DA DOPPLER avaliaram a capacidade do ecocardiograma em dife-
ECOCARDIOGRAFIA renciar regurgitações patológicas de fisiológicas em 68
NO DIAGNÓSTICO pacientes com surto agudo de febre reumática utilizan-
DE CARDITE SEM do os critérios expressos na Tabela 1. Encontraram es-
MANIFESTAÇÕES pecificidade de 94% e valor preditivo positivo de 93%,
CLÍNICAS o que levou os autores a concluir que o exame pode
realizar essa diferenciação e a sugerir que o método
Várias alterações morfológicas ou funcionais podem deveria ser incluído como critério menor para o diag-
ser identificadas pela Doppler ecocardiografia em pa- nóstico de casos suspeitos de febre reumática.
cientes com suspeita de febre reumática. Essas altera-
ções não são específicas da febre reumática, podendo
estar presentes em outras afecções. A detecção des- Tabela 1. Critérios Doppler ecocardiográficos utiliza-
sas alterações contribui para tornar a hipótese clínica dos para definir uma regurgitação valvar como patoló-
mais provável, mas nenhum dos achados é patogno- gica.
mônico. O estudo de Vasan e colaboradores(6) docu-
mentou alterações nodulares nos folhetos valvares que 1. Presença de jato com mosaico (indicando fluxo caó-
poderiam representar o equivalente ecocardiográfico tico de alta velocidade) em pelo menos duas projeções,
dos característicos nódulos de Aschoff. Esses acha- que se estenda além do plano valvar.
dos poderiam ser mais específicos, ao se correlacio- 2. Fluxo regurgitante detectável durante toda a sístole
narem com alteração histopatológica reconhecidamente (para a regurgitação mitral) e durante toda a diástole
associada à febre reumática, porém seus achados não (para a regurgitação aórtica) pelo Doppler pulsátil ou
foram reproduzidos em outras séries. contínuo.
Evidências de pericardite ou derrame pericárdico, es- 3. Velocidade do jato regurgitante mensurada pelo Dop-
pessamento valvar e a controversa depressão da função pler pulsátil ou contínuo deve atingir valores próximos
ventricular(3, 8 9), reportada em estudos mais antigos mas dos esperados pela equação de Bernoulli para gradi-
não confirmada em estudos mais recentes, são alguns ente entre o átrio e o ventrículo esquerdos.
exemplos das alterações ecocardiográficas que podem
ser encontradas, embora a detecção de regurgitações
valvares se constitua no elemento fundamental para o Dois outros fatores complicam esse dilema. Em pri-
potencial diagnóstico do método(1, 10, 11). meiro lugar, o grau de regurgitação valvar considerado
A Doppler ecocardiografia com mapeamento de flu- “normal” aumenta com a idade. Em segundo lugar, des-
xo em cores é um método muito sensível para a detec- conhece-se a freqüência e o grau de regurgitação val-
ção de regurgitações valvares. O exame permite iden- var, sem expressão clínica, que podem ser detectados
tificar regurgitações valvares associadas a pouca ex- em outras afecções que acometem crianças febris,
pressão clínica, ainda que se deva registrar seu eleva- como miocardite viral, endocardite e lúpus eritematoso
do potencial para identificação de regurgitações valva- sistêmico. Thomson e colaboradores(15) avaliaram 329
res mínimas, mesmo em valvas estruturalmente nor- voluntários normais para estudar a prevalência e as
mais. Embora, para regurgitações valvares expressi- características de regurgitações valvares esquerdas.
vas, num contexto clínico compatível, haja uma ten- Nesse estudo, a regurgitação mitral teve prevalência
dência natural a caracterizar a febre reumática como de 1,87% dos casos, nunca ocorrendo antes dos 7 anos
causa dessa regurgitação, a elevada sensibilidade do de idade e apresentando algumas características par-
método para detecção de regurgitações fisiológicas ticulares: 1) duração holossistólica; 2) curta extensão
coloca em questão a possibilidade de detecção de ca- (próximo aos folhetos da valva mitral); e 3) área do jato
sos falsos positivos. Ou seja, quando se suspeita de em torno de 1,4 cm². Por outro lado, a regurgitação
cardite reumática como manifestação isolada da febre aórtica foi rara. Esses dados confirmam a influência da
reumática em paciente em quem se detecta, no estudo idade na avaliação de regurgitação valvar e colocam a
Doppler ecocardiográfico, a presença de mínima regur- presença de regurgitação mitral como principal fator

42 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


complicador no diagnósti- bre o prognóstico a longo prazo, uma vez que uma pro-
co diferencial com regurgi- porção desses pacientes irá desenvolver lesões valva-
tações fisiológicas. res residuais. Já a presença de cardite subclínica tem
PAZIN-FILHO A e cols. O uso de estudos Dop- implicações terapêuticas e prognósticas menos esta-
Papel da Doppler pler ecocardiográficos se- belecidas e ainda debatidas na literatura.
ecocardiografia no riados tem sido proposto A análise do impacto prognóstico fica bastante pre-
diagnóstico e no
prognóstico da febre
como alternativa para fa- judicada, por um lado, porque múltiplos estudos reali-
reumática aguda cilitar a diferenciação en- zados na literatura, quando não se dispunha do estudo
tre alterações fisiológicas Doppler ecocardiográfico, não foram capazes de esta-
e alterações patológicas belecer o diagnóstico de cardite reumática subclínica.
incipientes. Embora a de- Isso fez com que esses pacientes fossem incluídos no
tecção de anormalidades grupo sem evidências de cardite, mostrando bom prog-
persistentes, envolvimento de múltiplas valvas e pro- nóstico durante a evolução. Esse bom prognóstico po-
gressão da doença possa ampliar a especificidade dos deria, assim, ser, em parte, atribuído à possível resolu-
achados ecocardiográficos, os estudos seriados podem ção espontânea dessas alterações ecocardiográficas
retardar o diagnóstico. durante a evolução do quadro, o que tem determinado
o questionamento desses dados (Tab. 2).
IMPACTO DA DETECÇÃO DE Figueroa e colaboradores(16) estudaram 35 pacien-
CARDITE SUBCLÍNICA tes com diagnóstico de surto agudo de febre reumáti-
ca utilizando os critérios modificados de Jones, sub-
A presença de manifestações clínicas de cardite reu- metendo-os a avaliação clínica e Doppler ecocardio-
mática tem impacto sobre a conduta terapêutica, impli- gráfica. Esses pacientes foram acompanhados, repe-
cando a indicação de corticosteróides, bem como so- tindo a avaliação com um ano (32 pacientes) e cinco

Tabela 2. Prevalência de cardite clínica e subclínica, tempo de seguimento e persistência das lesões documen-
tadas pela Doppler ecocardiografia em estudos clínicos que avaliaram a evolução de pacientes com cardite
reumática subclínica no primeiro episódio.

Cardite Cardite Persistência


Estudo n clínica (%) subclínica (%) Seguimento das lesões

Figueroa 35 15 (43%) 10 (29%) 1 (32) e 5 (17) anos 3 em 6 avaliados


e cols.(16) com 5 anos de
evolução (50%)
Hilário 22 8 (36,4%) 2 (14,3%) 3, 6 e 24 meses 3 (60%)
e cols.(17) Fase inicial
5 (35%)
3 meses
Ozkutlu 26 — 14 (53,8%) 1 a 10 meses 10 (71,4%)
e cols.(9) (média 4,52 meses);
seguimento
ecocardiográfico a
cada 2 semanas nos
pacientes com cardite
Lanna 40 70% 2 (16,7%) 8,1 anos ± 0,6 ano 2 (100%)
e cols.(18) Fase inicial (7,7-9,7 anos);
seguimento com
1, 3 e 6 meses
inicialmente e
anualmente após
Ozkutlu 40 — 40 (100%) 18,1 + 13,9 meses 17 (42,5%)
e cols.(19)

n = número de pacientes

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 43


anos (17 pacientes) de tre os pacientes com acometimento cardíaco, clínico
evolução. Dos pacientes ou subclínico, sugerindo sua inclusão como um fator a
avaliados inicialmente, ser observado no diagnóstico diferencial de regurgita-
PAZIN-FILHO A e cols. 29% apresentavam cardi- ções fisiológicas. Apesar de a cardite subclínica ter sido
Papel da Doppler te subclínica, diagnostica- documentada em cerca de 16,7%, essa proporção re-
ecocardiografia no da pela presença de regur- fere-se a apenas dois pacientes, o que, sem dúvida,
diagnóstico e no
prognóstico da febre
gitação valvar ou aórtica caracteriza uma limitação desse estudo, de tal modo
reumática aguda utilizando os critérios da que a persistência das lesões em 100% dos casos, ao
Tabela 1, e essas altera- final do seguimento, pode representar um efeito dessa
ções ainda estavam pre- limitação.
sentes em aproximada- Considerados em conjunto, esses estudos questio-
mente 50% dos casos ao nam a percepção, então prevalente, de que as regurgi-
final de um ano e cinco anos de evolução. Essa propor- tações valvares documentadas nos pacientes com surto
ção foi semelhante à encontrada nos casos que se apre- agudo de febre reumática, sem manifestações clínicas
sentaram com cardite manifesta clinicamente durante cardíacas, desapareceriam na maioria dos casos du-
o surto inicial. Como esse estudo não utilizou os dados rante a evolução, uma vez que isso não ocorreu em
ecocardiográficos para intervenção sobre a conduta do uma proporção de 40% a 70% dos casos. Estudos en-
surto agudo, nem para profilaxia de novos surtos, não globando maior número de pacientes e com seguimento
se podem extrair conclusões sobre a importância da mais prolongado ainda são necessários para se docu-
detecção precoce dessas alterações. mentar o real valor diagnóstico e prognóstico desse
Em estudo similar em nosso meio, Hilario e colabo- método na febre reumática, especialmente nesse
radores(17) acompanharam 22 pacientes com surto agu- subgrupo de pacientes. Não obstante os autores dos
do de febre reumática, diagnosticados pelos critérios diversos trabalhos citados argumentem a favor da in-
modificados de Jones, que foram submetidos a avalia- clusão dos achados ecocardiográficos entre os critéri-
ção clínico-laboratorial e Doppler ecocardiográfica na os diagnósticos de febre reumática, a última revisão
admissão, e no terceiro, no sexto e no vigésimo quarto dos critérios de Jones(1), anterior a alguns dos traba-
meses de evolução. Esses autores observaram cardite lhos mencionados, frente à luz dos dados disponíveis,
subclínica em 14,3% dos casos na admissão, com au- manteve a disposição anterior de não utilizar os dados
mento posterior para 35,7% no terceiro mês de evolu- ecocardiográficos entre os critérios diagnósticos.
ção e persistência das alterações encontradas em 60% Um impacto clínico potencial da detecção de alte-
dos pacientes no vigésimo quarto mês de acompanha- rações ecocardiográficas subclínicas, em pacientes
mento. com suspeita de febre reumática, poderia envolver a
Ozkutlu e colaboradores(9) realizaram estudo envol- estratégia de profilaxia, uma vez que pacientes com
vedo 26 pacientes com diagnóstico de surto agudo de manifestações cardíacas da doença poderiam receber
febre reumática pelos critérios modificados de Jones, indicação de profilaxia por tempo mais prolongado. Em-
sem documentar evidências clínicas de cardite, mas bora a base racional dessa hipótese seja razoável, não
reportando sinais ecocardiográficos de regurgitação existem evidências suficientes para suportá-la.
valvar em 53,8% dos pacientes na fase inicial. Durante
o seguimento médio de 4,52 meses, notou-se persis- CONCLUSÃO
tência das lesões em 71,4% dos casos. Outro estudo
do mesmo autor(18), envolvendo o seguimento de 40 A Doppler ecocardiografia é uma técnica não-invasiva
pacientes com cardite subclínica por um período de que vem ampliando seu espectro de indicações na avali-
18,1 + 13,9 meses, documentou persistência das le- ação diagnóstica e prognóstica dos surtos agudos de fe-
sões ecocardiográficas em 42,5% dos casos. bre reumática. Embora apresente potencial para suprir
O estudo de Lanna e colaboradores(18), realizado em as limitações da avaliação clínico-laboratorial, descrita nos
Minas Gerais, é o que dispõe do maior tempo de se- critérios modificados de Jones, existem ainda lacunas na
guimento. Foram acompanhados 40 pacientes com di- caracterização ecocardiográfica do envolvimento cardía-
agnóstico de primeiro surto agudo de febre reumática co da febre reumática, especialmente quando se consi-
de acordo com os critérios de Jones modificados e re- dera o seguimento a longo prazo. A utilização rotineira da
alizado o acompanhamento clínico-laboratorial e eco- técnica em casos suspeitos de surto agudo de febre reu-
cardiográfico por um tempo médio de 8,1 + 0,6 anos. É mática tem sido recomendada por vários autores na lite-
importante registrar, nesse estudo, a documentação de ratura, muito embora não tenha sido incluída na última
espessamento valvar como um achado freqüente en- revisão dos critérios de Jones.

44 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


ROLE OF THE DOPPLER ECHOCARDIOGRAPHY
PAZIN-FILHO A e cols. IN THE EVALUATION OF PATIENTS
Papel da Doppler
ecocardiografia no WITH ACUTE RHEUMATIC FEVER
diagnóstico e no
prognóstico da febre
reumática aguda
ANTONIO PAZIN-FILHO, ANDRÉ SCHMIDT, MINNA MOREIRA DIAS ROMANO,
OSWALDO CÉSAR DE ALMEIDA FILHO, BENEDITO CARLOS MACIEL

Cardiac involvement in rheumatic fever is the sole clinical manifestation which


implies in sequela and it is responsible for the disease high morbidity and mortality.
Doppler echocardiography contributes for the differential diagnosis, evaluate the ex-
tension of the cardiac involvement and helps in surgical indication and follow up.
Nevertheless, the characterization of subclinical involvement is controversial. This
revision looks forward to characterize the potential role of the Doppler echocardio-
graphy in the evaluation of patients with acute rheumatic fever.

Key words: rheumatic fever, Doppler echocardiography, diagnosis.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:40-6)


RSCESP (72594)-1506

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46 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


TRATAMENTO CLÍNICO DA FEBRE REUMÁTICA
KISS MHB
Tratamento clínico da MARIA HELENA B. KISS
febre reumática

Departamento de Pediatria —
Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência: Rua Itápolis, 1624 — CEP 01245-000 —


São Paulo — SP

O tratamento de pacientes com febre reumática compreende três fases: a profilaxia


primária ou erradicação dos estreptococos da orofaringe, o tratamento sintomático das
manifestações clínicas, e a profilaxia secundária ou prevenção de novos surtos. Para a
profilaxia primária, a droga de escolha é a penicilina; em pacientes alérgicos à penicili-
na, a primeira opção é a eritromicina. As vantagens da penicilina benzatina são enfatiza-
das e a utilização de outros antibióticos como as cefalosporinas e azitromicina deve ser
evitada, pelo risco de desenvolvimento de resistência bacteriana. A artrite da febre reu-
mática deve ser tratada com antiinflamatórios não-hormonais, como o ácido acetilsalicí-
lico e o naproxeno, durante quatro a seis semanas. A cardite deve ser tratada com
prednisona na dose inicial de 2 mg/kg/dia, com reduções progressivas, dependentes da
evolução, até completar 12 semanas. O uso de corticosteróides por via oral ou parente-
ral e de gamaglobulina não interfere no prognóstico da cardite. Para o tratamento da
coréia utilizam-se o haloperidol ou os valproatos. Os barbitúricos, a prednisona em altas
doses e a carbamazepina apresentam eficácias comparáveis. A profilaxia secundária
deve ser realizada com a penicilina benzatina e, nos casos de alergia à penicilina, com
a sulfadiazina ou a eritromicina. Doses de 1.200.000 U devem ser recomendadas e
administradas a cada três semanas. A profilaxia secundária deve se estender até os 18
anos ou, no mínimo, durante cinco anos em pacientes sem cardite. A presença de car-
dite indica a profilaxia durante a vida inteira ou pelo menos até os 25 anos e no mínimo
durante dez anos.

Palavras-chave: profilaxia primária, artrite, cardite, coréia, profilaxia secundária.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:53-60)


RSCESP (72594)-1508

INTRODUÇÃO treptococo beta-hemolítico da orofaringe do paciente


com febre reumática. Para tanto é necessária a utiliza-
Uma vez estabelecido o diagnóstico de febre reu- ção de um antibiótico com eficácia clínica e bacterioló-
mática, a terapêutica envolve três fases que, de modo gica comprovada, utilizado em regime terapêutico de
geral, são realizadas de forma simultânea: fácil aderência, com baixo custo, espectro de atividade
— profilaxia primária ou erradicação do foco; adequado e efeitos colaterais mínimos. É importante
— tratamento sintomático; enfatizar que nenhum antibiótico isoladamente erradi-
— profilaxia secundária ou prevenção das recorrências. ca o estreptococo da orofaringe de 100% dos pacien-
tes tratados(1-4).
PROFILAXIA PRIMÁRIA OU ERRADICAÇÃO Levando em conta os aspectos acima menciona-
DO FOCO dos, o antibiótico de escolha para a profilaxia primária
ainda é a penicilina e nos casos de alergia, a eritromi-
O objetivo da profilaxia primária é erradicar o es- cina permanece como primeira alternativa (Tab. 1).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 53


Ambos os antibióticos de- — interferência bacteriana — antibióticos orais, em espe-
vem estar presentes em ní- cial a penicilina V, podem alterar a flora bacteriana nor-
veis tissulares adequados mal da orofaringe, cujo equilíbrio (por exemplo, pre-
KISS MHB durante dez dias para a ob- sença do Streptococcus viridans) parece ser impor-
Tratamento clínico da tenção de taxas máximas tante na defesa contra o estreptococo.
febre reumática de cura (erradicação do es- Apesar desses fatos, o uso continuado da penicilina
treptococo da orofaringe). nos últimos 40 anos não se acompanhou de aumento da
A penicilina benzatina taxa de falhas bacteriológicas e os escapes bacteriológi-
em dose única, intramuscu- cos observados após tratamento com penicilina não esti-
lar, é suficiente para a erra- veram associados a complicações supurativas ou não-
dicação do estreptococo da supurativas(8).

Tabela 1. Profilaxia primária da febre reumática(2, 5).

Droga Dose Duração

Penicilina benzatina 600.000 (≤ 25 kg) Única


(intramuscular) 1.200.000 (> 25 kg)
OU
Penicilina V oral 250 mg 2-3 x dia (≤ 25 kg) 10 dias
500 mg 2-3 x dia (> 25 kg)
Para indivíduos alérgicos à penicilina
Estolato de eritromicina 20-40 mg/kg/dia, 2-4 x dia 10 dias
(oral) (máximo — 1g)
Etilsucinato de eritromicina 40 mg/kg/dia, 2-4 x dia 10 dias
(oral) (máximo — 1g)

orofaringe, com custo extremamente acessível. Infelizmen- Outros antibióticos, como as cefalosporinas e os ma-
te, os temores às reações de hipersensibilidade (de modo crolídeos (claritromicina, azitromicina), vêm sendo pro-
geral, superdimensionados e infundados), a administra- postos como alternativas às penicilinas(9-11). Alguns estu-
ção parenteral bastante dolorosa da medicação e o sur- dos demonstram eficácias adequadas na erradicação do
gimento de novos antibióticos determinaram a acentua- estreptococo da orofaringe com cursos de cinco dias de
da diminuição de sua indicação pelos médicos e de sua cefdimir, cefpodoxime e azitromicina(1, 12, 13). Esses antibi-
aceitação pelos pacientes e seus familiares(5). óticos, porém, não devem ser considerados como drogas
A lidocaína a 1% utilizada como diluente para admi- de primeira escolha para a profilaxia primária. São dro-
nistração da penicilina benzatina não modifica sua con- gas de custos elevados, com efeitos colaterais freqüen-
centração sérica e reduz de maneira significativa a dor tes, especialmente para o trato gastrointestinal, e cujo uso
local(6). indiscriminado pode levar ao rápido aumento da resistên-
Outras penicilinas orais, como a ampicilina e a amoxi- cia bacteriana, o que já vem ocorrendo com a azitromici-
cilina isolada ou associada ao ácido clavulânico, adminis- na, ampliando as dificuldades para o tratamento de paci-
tradas durante dez dias apresentam eficácias iguais ou entes alérgicos à penicilina.
superiores às da penicilina V em relação à erradicação Antibióticos bacteriostáticos como cloranfenicol, tetra-
do estreptococo. ciclinas e sulfas não erradicam o estreptococo da orofa-
Recentemente, alguns fatores vêm sendo identifica- ringe, e, portanto, não são indicados para a profilaxia pri-
dos como responsáveis por casos de respostas inade- mária.
quadas ao uso das penicilinas(7): Concluindo, a penicilina benzatina mantém-se como
— inativação da penicilina por bactérias produtoras de a melhor opção para a profilaxia primária da febre reumá-
betalactamase — o Staphylococcus aureus, o Bacte- tica; quando sua utilização não for possível pelas várias
roides fragilis e, mais recentemente, a Moraxella ca- razões citadas anteriormente, é importante que a esco-
tarrhalis são exemplos importantes de bactérias da lha seja direcionada para antibióticos bactericidas para o
orofaringe produtoras de betalactamase; estreptococo, com espectros de ação reduzidos (menor

54 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


possibilidade de surgimen- mantido por seis semanas, mas poderá ser diminuído
to de resistência bacteria- desde que as provas de atividade inflamatória (proteína
na), boa tolerância, esque- C-reativa e velocidade de hemossedimentação) estejam
KISS MHB ma posológico confortável e normais.
Tratamento clínico da baixo custo.
febre reumática Contactantes domicilia- CORTICOSTERÓIDES
res de um caso de febre
reumática devem ser sub- Utilizados em todas as crianças com comprometimento
metidos a cultura de orofa- cardíaco. O corticosteróide de escolha é habitualmente a
ringe e tratados quando o prednisona, utilizada inicialmente em dose alta e fracio-
resultado for positivo. Mui- nada. Com a melhora dos sintomas e/ou tendência à nor-
tas vezes, pela dificuldade malização das provas de atividade inflamatória (aproxi-
em realizar culturas, a profilaxia primária é recomendada madamente duas semanas), passa-se para dose única
para todos os contactantes domiciliares, especialmente pela manhã até completar um mês; a seguir, inicia-se re-
crianças em idade escolar e adolescentes(2, 4). dução lenta até a retirada completa da droga em cerca
Amigdalectomia não tem indicação em pacientes reu- de 12 semanas, tempo médio de duração do surto de
máticos com o objetivo de diminuir a freqüência das in- cardite.
fecções estreptocócicas e, portanto, as recorrências da O uso de corticosteróide para o tratamento da febre
febre reumática(2). reumática é antigo(16) e, ao longo dos anos, vários estu-
dos prospectivos(17) ou baseados em análises de bancos
TRATAMENTO SINTOMÁTICO de dados(18) não conseguiram demonstrar superioridade
evidente dos corticóides em reduzir o risco de lesão val-
Terapêutica antiinflamatória var ou a duração da doença aguda. Sua utilização na
Antiinflamatórios não-hormonais cardite prende-se a sua ação como antiinflamatório de
De forma geral, os antiinflamatórios não-hormonais alta potência, existindo estudos que sugerem o uso de
são excelentes para o controle da febre e da artrite e suas antiinflamatórios não-hormonais (ácido acetilsalicílico)
indicações na febre reumática estão limitadas aos casos para os casos de cardites leves, com bons resultados(19).
que não apresentam evidências de cardite, uma vez que A pulsoterapia com metilprednisolona, na dose de 30
na presença de envolvimento cardíaco existe indicação mg/kg/dose, máximo de 1 g, por três a quatro dias conse-
ao uso de corticosteróide, tornando desnecessária a in- cutivos e eventual repetição, vem sendo utilizada para o
trodução simultânea de antiinflamatório não-hormonal. tratamento das cardites graves. E apesar da melhora la-
O ácido acetilsalicílico costuma ter efeito dramático boratorial não diferir da observada com o uso de predni-
na inflamação articular, com desaparecimento dos sinais sona, a melhora clínica parece ser mais rápida e o perío-
e sintomas em 24 a 48 horas. Outros antiinflamatórios do de internação hospitalar menor(20).
não-hormonais, como o naproxeno, parecem ser segu- O uso de gamaglobulina por via endovenosa para o
ros e igualmente eficazes.(14) tratamento da cardite apresenta resultados semelhantes
É nossa experiência que a poliartrite migratória carac- aos observados com os corticosteróides e a exemplo
terística da febre reumática responde muito bem ao uso destes não reduz o risco de lesão cardíaca em segui-
de ácido acetilsalicílico ou naproxeno, com melhora rápi- mentos de um ano(21). Para crianças com comprometi-
da do processo inflamatório. No entanto, os quadros arti- mento cardíaco, orienta-se o repouso no leito ou a limita-
culares atípicos, mais prolongados, também observados ção das atividades físicas, por períodos variáveis (um a
na febre reumática, podem não responder adequadamen- seis meses), dependendo da gravidade da cardite.
te aos salicilatos e ao naproxeno, constatando-se melho- Diuréticos, digitálicos, e restrição tanto hídrica como
res resultados com o uso de indometacina (Tab. 2). sódica poderão ser necessários em casos de insuficiên-
Crianças com quadros articulares mal caracterizados, cia cardíaca.
em fases muito iniciais, poderão ser tratadas com anal-
gésicos, como o acetaminofen, de modo a permitir me- TRATAMENTO DA CORÉIA
lhor caracterização do quadro articular e, conseqüente-
mente, diagnóstico e tratamento mais adequados. Pacientes com coréia devem ser mantidos em am-
Como os antiinflamatórios não-hormonais são sinto- bientes tranqüilos, com poucos estímulos externos.
máticos e não interferem no curso da febre reumática, a Várias drogas, como tranqüilizantes e sedativos, po-
duração do tratamento deve ser estimada de modo a co- derão ser utilizadas de forma isolada ou em associa-
brir o período de atividade da doença, em geral, com du- ção.
ração de seis a 12 semanas(15). Na ausência de cardite, o Em nossa experiência, o haloperidol é a melhor op-
tratamento com antiinflamatório não-hormonal deve ser ção terapêutica no controle sintomático dos movimen-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 55


tos coréicos, com melho- nistração do haloperidol. O tempo de resposta é dis-
ra clínica após 5,6 dias em cretamente maior e apesar da possível hepatotoxici-
média e desaparecimento dade, em geral, nenhuma complicação importante está
KISS MHB dos sinais em 37 dias(22), associada ao uso da droga(5).
Tratamento clínico da permitindo à criança o re- Carbamazepina na dose de 4 mg/kg/dia a 10 mg/
febre reumática torno mais rápido às ativi- kg/dia acompanhou-se de melhora clínica evidente após
dades diárias. Apesar de dois a 14 dias, com desaparecimento da coréia em duas
não serem observadas re- a 12 semanas e duração total do tratamento de um a
ações graves ou irreversí- 15 meses, desacompanhada de efeitos colaterais(23).
veis associadas ao uso de O uso de prednisona em altas doses (2 mg/kg/dia)

Tabela 2. Tratamento sintomático das manifestações clínicas da febre reumática.

Manifestação Tratamento Duração*

Artrite Ácido acetilsalicílico: 80 mg/kg/dia a 4-6 semanas


100 mg/kg/dia, via oral, 6 h/6 h, ou
Naproxeno: 15 mg/kg/dia, 4-6 semanas
via oral, 12 h/12 h, ou
Indometacina: 2 mg/kg/dia a 4-6 semanas
3 mg/kg/dia, via oral, 6 h/6 h
Cardite Prednisona:
— 1 mg/kg/dia a 2 mg/kg/dia, 2 semanas**
via oral, 6 h/6 h
A seguir
— 1 mg/kg/dia a 2 mg/kg/dia, 2 semanas
via oral, dose única
A seguir
— redução gradual (+ 20% por 8 semanas
semana) até suspensão
Coréia Haloperidol: iniciar com 2 mg/dia, 8-12 semanas
via oral, 12 h/12 h. Na ausência de
resposta após 72 h, aumentar
1 mg/dia até 4-6 mg/dia. Cautela
com sinais de impregnação, ou
Ácido valpróico: 20 mg/kg/dia a 8-12 semanas
40 mg/kg/dia, via oral, 6 h/6 h
ou 8 h/8 h, ou
Fenobarbital: 5 mg/kg/dia a 8-12 semanas
7 mg/kg/dia, via oral, 6 h/6 h ou 8 h/8 h

* A duração total do tratamento poderá variar, dependendo do quadro clínico e das provas de atividade inflama-
tória.
** Duração total do tratamento da cardite = 12 semanas.

haloperidol, é preciso ter cautela na sua administra- durante quatro semanas em crianças com coréia mos-
ção. E quando doses superiores a 5 mg/dia forem ne- trou-se eficaz na redução da intensidade e da duração
cessárias, é recomendável a monitorização contínua dos sintomas, mas não impediu as recidivas(24).
em ambiente hospitalar, pelos riscos de impregnação.
O ácido valpróico pode ser uma alternativa terapêu- PROFILAXIA SECUNDÁRIA
tica válida para crianças que apresentem toxicidade ou
que não podem ser supervisionadas durante a admi- Independentemente da gravidade do surto inicial,

56 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


pacientes portadores de em desenvolvimento, como o Brasil(2, 3, 25) (Tab. 3).
febre reumática apresen- Vários estudos(26-32) corroboram essa orientação, de-
tam riscos elevados (20% monstrando de forma inegável a superioridade do es-
KISS MHB a 50%) de recorrência da quema a cada três semanas quando comparado ao de
Tratamento clínico da doença após infecções es- quatro semanas.
febre reumática treptocócicas de orofarin- Alguns estudos(33, 34) propostos para avaliar a farma-
ge. Novos surtos de ativi- cocinética da penicilina benzatina determinaram os ní-
dade da doença poderão veis séricos da droga nos dias 1, 3, 10, 21 e 28 após
agravar lesões cardíacas injeção intramuscular de 1.200.000 U, demonstrando
preexistentes ou propiciar que após três semanas os níveis séricos eram iguais
seu surgimento, razão ou superiores a 0,02 µg/ml em todos os pacientes e
pela qual a profilaxia se- após quatro semanas, em apenas 44%.
cundária é obrigatória e seu objetivo básico é prevenir Comparações entre esquemas de duas e de quatro
o aparecimento de infecções estreptocócicas de orofa- semanas mostram taxas de infecções estreptocócicas
ringe e, portanto, impedir as recorrências de febre reu- de orofaringe semelhantes nos dois grupos e taxas de
mática(3, 15). recorrências da febre reumática de 0,06 paciente/ano
Há cerca de 40 anos, a droga de escolha para a e 0,12 paciente/ano, respectivamente(35). Esse estudo
profilaxia secundária é a penicilina benzatina, por ser não incluiu o esquema de três semanas para análise
a que fornece proteção mais efetiva contra a faringoa- comparativa.
migdalite estreptocócica e contra recorrências de fe- Em nossa experiência, a comparação, durante cin-
bre reumática, quando comparada a outras drogas, co anos, entre os intervalos de duas e de três sema-
como, por exemplo, a penicilina oral ou a sulfadiazina(2, 15). nas para a profilaxia secundária não mostrou diferen-
Dúvidas quanto a intervalos de administração da ças quanto às taxas de recorrência da febre reumáti-
droga, dose e duração da profilaxia vêm sendo discuti- ca.
das ao longo dos anos e várias controvérsias persis- Estudos preliminares demonstraram que com uma
tem. única injeção intramuscular de 600.000 U, níveis séri-
O estreptococo beta-hemolítico do grupo A apre- cos baixos de penicilina poderiam ser detectados por
senta sensibilidade elevada e mantida a níveis muito 10 a 14 dias, e que com doses de 1.200.000 U os ní-
baixos de penicilina, não havendo descrição do surgi- veis séricos persistiam por três a quatro semanas(29).
mento de cepas resistentes na atualidade. Para uma Vários outros estudos também demonstram que os
profilaxia secundária adequada, os níveis séricos de níveis séricos da penicilina benzatina e mesmo a ma-
penicilina benzatina devem ser mantidos acima de 0,02 nutenção desses níveis variam segundo a dose de pe-
µg/ml. nicilina administrada(29, 36, 37), referindo-se que com do-
Com a utilização de 1.200.000 U de penicilina ben- ses de 1.800.000 ou 2.400.000, níveis séricos adequa-
zatina a cada quatro semanas, a taxa de recorrência dos poderiam ser mantidos mesmo após quatro sema-
da febre reumática situa-se entre 5% e 8% em segui- nas. Com base nesses estudos, sugere-se que a dose
mentos de cinco a seis anos, sendo esta a principal preconizada de penicilina benzatina deva ser de pelo
razão para a Organização Mundial da Saúde e a Asso- menos 1.200.000 U, mesmo para crianças, porque as
ciação Americana de Cardiologia recomendarem o uso crianças com febre reumática são, em sua maioria, es-
de penicilina benzatina a cada três semanas para o colares com pesos superiores a 25 kg, ressaltando-se
tratamento profilático da febre reumática, em países que o cálculo da dose de penicilina para crianças é de

Tabela 3. Profilaxia secundária ou prevenção das recorrências de febre reumática.

Droga Dose Administração

Penicilina benzatina 1.200.000 U Intramuscular a cada


três semanas
Penicilina V 250 mg 2x dia Oral, diária
Para indivíduos alérgicos à penicilina
Sulfadiazina 500 mg/dia (< 27 kg) Oral, diária
1 g/dia (> 27 kg)
Eritromicina 250 mg 2x dia Oral, diária

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 57


50.000 U/kg. — comparecimento às consultas médicas desacompa-
A duração da profilaxia nhado dos pais ou responsáveis.
secundária baseia-se prin-
KISS MHB cipalmente na presença PROFILAXIA DA ENDOCARDITE BACTERIANA
Tratamento clínico da ou na ausência de cardite.
febre reumática Segundo a Associação Procedimentos cirúrgicos ou dentários em pacien-
Americana de Cardiologia, tes com cardiopatia reumática devem ser acompanha-
pacientes que tiveram car- dos por doses suplementares de antibióticos. As reco-
dite devem manter a profi- mendações variam de acordo com o procedimento e
laxia durante a vida inteira com a idade do paciente. Para a profilaxia do Strepto-
e aqueles que não tiveram coccus viridans, responsável por 50% a 75% das in-
cardite devem manter a fecções endocárdicas, recomenda-se a utilização da
profilaxia até 18 anos e pelo menos durante cinco anos amoxicilina uma hora antes e seis horas após o proce-
após o último surto(2, 3). dimento(2, 40).
Pacientes com regurgitação mitral leve ou cardite
curada e baixo risco de contato com o estreptococo ALERGIA À PENICILINA
poderão suspender a profilaxia com 25 anos e após 10
anos do último surto(38). Alergia à penicilina é rara. Estudos em populações
Dessa forma, a duração da profilaxia secundária é militares demonstram incidências de 0,8%, sendo as
sempre prolongada e sua eventual suspensão deve reações em crianças ainda mais raras(2-4). O Grupo In-
levar em conta os fatores de risco de recorrência de ternacional de Estudos em Febre Reumática coloca a
cada paciente (idade, risco profissional de exposição freqüência de reações alérgicas à penicilina benzatina
ao estreptococo, condições socioeconômicas, etc.), a em 3,2% e a anafilaxia em 0,2%, considerando ainda
presença de cardite e sua gravidade, e, ainda, o fato que reações alérgicas graves são raras em pacientes
de as recorrências ocorrerem principalmente nos cin- em profilaxia prolongada e os benefícios sempre su-
co primeiros anos após o surto da doença(8, 15, 39). peram os riscos(41). Na ausência de reações após a pri-
A profilaxia secundária realizada com penicilina oral meira aplicação de penicilina benzatina, a presença de
ou outras drogas, como as sulfas e a eritromicina, em reações à segunda dose é extremamente rara, quan-
geral não apresenta boa eficácia, basicamente pelas do esta for administrada um a dois meses após a dose
baixas taxas de aderência. Contudo, mesmo com boa anterior.
aderência, o risco de recorrência é maior com a profi- Testes cutâneos para detecção de alergia à peni-
laxia oral, habitualmente não recomendada. cilina costumam ser inadequados, pela não utiliza-
A baixa aderência ao tratamento parece ser a prin- ção dos determinantes antigênicos primários ou mes-
cipal causa de recorrência da febre reumática. Alguns mo secundários da penicilina e, ainda, por erros téc-
fatores de risco devem ser considerados(15): nicos. A utilização prévia de penicilina pelo paciente
— adolescência; e a informação de alergia nos familiares são dados
— data do último surto (quanto maior o intervalo de importantes na caracterização da provável alergia e
tempo após o surto, menor a aderência); a primeira aplicação da penicilina benzatina deve ser
— baixo nível socioeconômico; realizada em local com disponibilidade de recursos
— baixo nível cultural da família; para atendimento imediato de reações alérgicas gra-
— ausência de hospitalização no surto agudo; ves.

58 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


CLINICAL TREATMENT OF RHEUMATIC FEVER
KISS MHB
Tratamento clínico da MARIA HELENA B. KISS
febre reumática

Treatment of rheumatic fever patients involves three phases: primary prophylaxis


or eradication of streptococcus from throat, symptomatic treatment of clinical featu-
res, and secondary prophylaxis or prevention of recurrences. For primary prophyla-
xis, penicillin is the drug of choice and in cases of allergy, erythromicin is the first
option. The advantages of benzathine penicillin G are emphasized and the utilization
of cephalosporins or azithromycin should be avoided for the risk of increasing resis-
tance. Rheumatic fever arthritis should be treated with non steroidal anti-inflamma-
tory drugs, such as acetil-salycilic acid or naproxen for four to six weeks. Carditis
should be treated with prednisone, at initial dosis of 2 mg/kg/day with progressive
reductions based on evolutive parameters until 12 weeks . Oral or parenteral corti-
costeroids and gamaglobulin don’t seem to affect carditis prognosis. Chorea treat-
ment is based on the use of haloperidol or valproates. Barbiturics, high dosis of
prednisone and carbazepine present similar results. Secondary prophylaxis should
be performed with benzathine penicillin G and, in cases of allergy, with sulfadiazine
or erythromycin. Dosis of 1 200 000 U should be recommended each three weeks,
until 18 years and for a minimum of five years in patients without carditis. In the
presence of carditis, prophylaxis should be recommended for life or at least until 25
years or 10 years after the rheumatic fever attack.

Key words: primary prophylaxis, arthritis, carditis, chorea, secondary prophylaxis.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:53?-60)


RSCESP (72594)-1508

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60 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


CARDITE REUMÁTICA: PECULIARIDADES
DIÓGENES MSB DIAGNÓSTICAS E TERAPÊUTICAS
e col.
Cardite reumática:
peculiaridades
diagnósticas e MARIA SUELY BEZERRA DIÓGENES, ANTÔNIO CARLOS CARVALHO
terapêuticas

Escola Paulista de Medicina — Universidade Federal de São Paulo

Endereço para correspondência: Rua Napoleão de Barros, 715 —


Vila Clementino — CEP 04024-002 — São Paulo — SP

A febre reumática é uma doença sistêmica inflamatória, não-supurativa, do teci-


do conjuntivo, de natureza auto-imune, desencadeada por infecção da orofaringe
pelo estreptococo ß-hemolítico do grupo A de Lancefield em indivíduos suscetíveis.
Dentre os órgãos que podem ser acometidos inicialmente pela doença, o coração é
o único que pode evoluir com seqüela. Reconhecida como uma doença dos países
em desenvolvimento, ainda representa para os brasileiros um dos mais sérios pro-
blemas de saúde pública, sendo a principal responsável pelas admissões hospitala-
res decorrentes de problemas cardiovasculares em indivíduos com menos de 40
anos de idade. A cardite reumática manifesta-se cerca de quatro semanas após o
surto infeccioso e pode variar amplamente em sua manifestação clínica, desde as
formas inaparentes até repercussões hemodinâmicas graves, com insuficiência car-
díaca congestiva refratária ao tratamento habitual. A cardite subclínica representa o
principal desafio diagnóstico, uma vez que pode passar despercebida e resultar em
seqüelas cardíacas importantes. As provas laboratoriais inespecíficas não auxiliam
na diferenciação com outras doenças inflamatórias de etiologia imunológica. Por
outro lado, não existe cardite em atividade sem provas laboratoriais alteradas. Dos
exames complementares, o ecocardiograma Doppler, aliado à clínica, desempenha
o papel mais importante no diagnóstico e sua inclusão nos critérios diagnósticos de
Jones está sendo universalmente cogitado. Quanto ao tratamento, a erradicação
primária e a prevenção da estreptococcia com penicilina benzatina ainda represen-
tam os meios mais eficazes no controle da doença. A corticoterapia oral com predni-
sona continua sendo o tratamento de escolha da cardite. A pulsoterapia com metil-
prednisolona é uma alternativa de tratamento para os casos graves, refratários ao
corticóide oral.

Palavras-chave: febre reumática, cardite, ecocardiografia, corticosteróides.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:71-8)


RSCESP (72594)-1510

INTRODUÇÃO em diversos órgãos como coração, articulações, pele,


tecido celular subcutâneo e sistema nervoso central.
A febre reumática é uma doença sistêmica, do teci- Entretanto, a cardite é a única manifestação que pode
do conjuntivo, de natureza inflamatória, não-supurati- levar a danos permanentes. O diagnóstico de febre reu-
va, desencadeada em geral uma a duas semanas após mática constitui um grande desafio para cardiologistas
infecção da orofaringe pelo estreptococo ß-hemolítico e pediatras dada a grande semelhança clínica com
do grupo A de Lancefield nos indivíduos suscetíveis. outras doenças reumáticas e não-reumáticas, e por não
Caracteriza-se pela inflamação transitória e recorrente dispormos de provas laboratoriais específicas(1, 2).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 71


A febre reumática tem lentamente após dois ou três anos, sendo indetectá-
distribuição universal, com veis cinco anos após o episódio inicial. As manifesta-
preferência pelos países ções agudas que se resolvem sem seqüelas tendem a
DIÓGENES MSB de clima tropical, e afeta coincidir com resposta predominantemente humoral,
e col. predominantemente os in- enquanto a resposta celular parece ser a responsável
Cardite reumática: divíduos que vivem nos pelo desenvolvimento da cardiopatia reumática crôni-
peculiaridades
diagnósticas e
países em desenvolvimen- ca(8). O comprometimento cardíaco ocorre entre quatro
terapêuticas to como Brasil e Índia. Re- e oito semanas após a estreptococcia. O processo in-
gistram-se anualmente de flamatório envolve o endocárdio, o miocárdio e o peri-
10 a 20 milhões de casos cárdio, constituindo, portanto, uma pancardite. A endo-
novos no mundo. As con- cardite é a forma de manifestação mais comum, sendo
dições socioeconômicas a valvulite a única alteração que aparentemente deixa
precárias representam as principais dificuldades enfren- seqüela. A pericardite e a miocardite raramente ocor-
tadas pelas autoridades de saúde na luta pela sua er- rem de forma isolada(1, 2).
radicação. Acomete 0,3% a 4% das crianças com in-
fecção de garganta não-tratadas suscetíveis genetica- QUADRO CLÍNICO
mente à doença. Desses, aproximadamente 30% evo-
luem com cardite reumática, a mais temida das com- A cardite é a mais grave das manifestações clínicas
plicações. Nos estudos prospectivos, essa incidência da febre reumática e pode levar ao óbito. Pode se ma-
está acima de 50%. Predomina na faixa etária entre 5 nifestar até a sexta semana do surto agudo. Os princi-
e 15 anos, podendo ocorrer recidivas, particularmente pais sinais clínicos são: sopro cardíaco sistólico suges-
em pacientes que não fazem a profilaxia da estrepto- tivo de insuficiência valvar, taquicardia e insuficiência
coccia. Sua incidência decresce com a progressão da cardíaca congestiva. Poderão ocorrer sopro diastólico,
idade e aumenta nas populações com alto risco de fa- atrito pericárdico e arritmias cardíacas. As valvas mais
ringite estreptocócica como os ambientes escolares, acometidas em ordem de freqüência são: mitral, aórti-
os promíscuos e em recrutas militares(3-5). ca, tricúspide e raramente a pulmonar. A insuficiência
No Brasil ocorrem aproximadamente 30 mil novos aórtica raramente ocorre de forma isolada. Geralmen-
casos por ano de febre reumática, dos quais 50% evo- te existe em concomitância com a insuficiência mitral.
luem para cardite. Os custos social e financeiro da fe- O mesmo ocorre com as insuficiências tricúspide e
bre reumática em nosso país são elevados. A cardio- pulmonar. O sopro de insuficiência mitral é sistólico,
patia reumática, seqüela da febre reumática, representa suave, na região apical com irradiação para axila. É
uma das causas mais freqüentes de morbidade e mor- causado inicialmente por edema valvar, podendo re-
talidade cardiovascular em nosso meio, sendo respon- gredir com o tratamento. Caso haja seqüela decorren-
sável pela maioria das admissões hospitalares de cau- te de deformidade fibrótica residual da valva, o sopro
sa cardíaca e a principal indicação de cirurgia cardía- pode não desaparecer. O sopro diastólico de estenose
ca nos indivíduos com menos de 40 anos de idade. no foco mitral não é próprio da fase aguda e, quando
Nas faixas etárias superiores a essa, é superada ape- presente, pode significar a existência de surto ativo
nas pela hipertensão arterial sistêmica e pela doença anterior. A insuficiência aórtica gera sopro diastólico
coronariana(5-7). nos focos aórtico e aórtico acessório. A regurgitação
valvar de grau leve é bem tolerada. Aquelas que evolu-
FISIOPATOLOGIA em para grau moderado e/ou importante, porém, le-
vam à insuficiência cardíaca congestiva proeminente.
Após uma epidemia de estreptococcia, apenas al- A pancardite reumática caracteriza-se por taquicardia
guns indivíduos desenvolverão febre reumática, indi- em repouso, na ausência de febre. Pode evoluir para
cando suscetibilidade genética. Atualmente ainda não cardiomegalia, disfunção ventricular e insuficiência car-
é possível detectar o indivíduo suscetível. Os mecanis- díaca nos casos mais graves. Entretanto, há contro-
mos que levam à doença não estão todavia bem escla- vérsia quanto ao valor da miocardite isolada no desen-
recidos. A teoria imunológica é a mais aceita. Experi- cadeamento de insuficiência cardíaca, uma vez que não
ências científicas evidenciam respostas imune humo- observamos a presença desta na ausência de envolvi-
ral e celular anormais. Ocorre uma interação entre os mento valvar. Por conseguinte, a insuficiência valvar,
anticorpos antiestreptococos e tecidos do hospedeiro particularmente a mitral, parece ser a principal causa
(reação cruzada). Foi documentada a existência de an- de descompensação cardíaca. A pericardite é a forma
ticorpos antitecido cardíaco — miosina e tropomiosina. de apresentação clínica menos comum e não aparece
Os anticorpos de reação cruzada com estruturas car- isoladamente. Pode ser assintomática ou se manifes-
díacas atingem pico no início da doença e declinam tar como dor precordial atípica, com atrito pericárdico

72 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


e abafamento de bulhas critérios maiores de Jones para o diagnóstico de febre
quando há derrame peri- reumática. Os critérios maiores de Jones são cardite,
cárdico de tamanho mode- poliartrite, coréia, eritema marginado e nódulos subcu-
DIÓGENES MSB rado para importante. En- tâneos. Os critérios menores são febre, artralgia, ele-
e col. tretanto, o derrame peri- vação de reagentes de fase aguda, como velocidade
Cardite reumática: cárdico costuma ser de de hemossedimentação e proteína C-reativa, e alon-
peculiaridades
diagnósticas e
pequeno volume. Durante gamento do intervalo PR no eletrocardiograma. A pro-
terapêuticas o surto de atividade reu- babilidade de febre reumática é elevada quando há
mática com cardite pode- antecedentes recentes de infecção estreptocócica com
rão ocorrer arritmias. As níveis elevados de anticorpos antiestreptolisina-O, as-
mais freqüentes são as sociada a dois critérios maiores ou de um maior e dois
extra-sístoles tanto supra- menores. A ausência de evidência de estreptococcia
ventriculares como ventriculares e o bloqueio atrioven- prévia torna o diagnóstico duvidoso, exceto nos casos
tricular de 1º grau. Resumidamente, na presença de de coréia de Sydenham, que pode se apresentar como
comprometimento cardíaco restrito ao pericárdio e/ou única manifestação da doença após um período de la-
miocárdio, sem envolvimento do endocárdio valvar (au- tência prolongado(1-3, 9).
sência de sopro), o diagnóstico de cardite é imprová- Deve-se ter em mente que a infecção estreptocóci-
vel(1-3, 9, 10). ca pode passar despercebida e os critérios revisados
A cardite pode ser inaparente ou subclínica, ou seja, de Jones devem ser utilizados como uma bússola que
aquela em que não existe expressão clínica — sopro orienta o diagnóstico, mas nunca como fórmula mate-
cardíaco ou sinais e sintomas de insuficiência cardía- mática infalível. O diagnóstico baseado nos critérios de
ca. Em estudo realizado por Hilário e colaboradores(11), Jones torna-se difícil quando a cardite é subclínica e/
dos 14 pacientes com febre reumática sem evidência ou quando a cardite reumática ocorre num paciente
clínica de cardite, dois apresentavam insuficiência mi- com doença reumática preexistente. Para o diagnósti-
tral leve ao ecocardiograma com Doppler e outros três co de cardite em recorrência, recomenda-se que haja
evoluíram após três meses com insuficiência mitral leve, evidência de mudança nos achados clínicos preexis-
dos quais um caso evidenciava também insuficiência tentes, como aparecimento de um novo sopro, aumen-
aórtica. Espessamento da valva mitral foi evidenciado to da intensidade de sopro observado previamente,
em dois desses pacientes após 6 e 12 meses. Cardite aparecimento de pericardite ou aumento da área car-
subclínica foi relatada por vários outros autores e cons- díaca na radiografia de tórax. É importante lembrar que
titui a grande controvérsia para utilização obrigatória a ausência de cardite no primeiro surto de febre reu-
da ecocardiografia como critério diagnóstico(11-16). mática não exclui a possibilidade de cardite em surtos
recorrentes. Diante dessas dificuldades diagnósticas, o
DIAGNÓSTICO reconhecimento de cardite em alguns pacientes continua
um problema e a reestruturação dos critérios de Jones, já
Clínico revisados quatro vezes, sendo a última revisão de 1992,
O diagnóstico de faringoamidalite estreptocócica com certeza não trará a solução(5, 9, 17, 18).
deve ser considerado na presença de paciente em ida- Quanto ao diagnóstico diferencial, a febre reumáti-
de escolar ou pré-escolar, com febre alta — tempera- ca pode ser confundida principalmente com artrite reu-
tura igual ou maior que 38oC —, dor e hiperemia da matóide juvenil, endocardite bacteriana e lúpus erite-
orofaringe, adenopatia cervical anterior dolorosa, ex- matoso sistêmico(1, 2).
sudato e petéquias no pálato, crostas milicéricas e ero-
são nas bordas das narinas. A presença de tosse, rou- Exames complementares
quidão, coriza ou conjuntivite deve dirigir nossa sus- Provas laboratoriais
peita diagnóstica para uma provável etiologia viral. A Não existe diagnóstico laboratorial patognomônico
idade do paciente merece nossa atenção, pois a ocor- de febre reumática, isto é, as provas de atividade de
rência de febre reumática é rara antes dos 5 e após os fase aguda são inespecíficas, podendo algumas de-
15 anos. A evolução da angina estreptocócica é autoli- las, como, por exemplo, a velocidade de hemossedi-
mitada, com desaparecimento dos sintomas e sinais mentação, estar elevadas em outros processos infla-
dentro de aproximadamente cinco dias, mesmo na au- matórios reumáticos e não-reumáticos. Entretanto, a
sência de tratamento. O estreptococo, porém, pode dosagem sérica dessas provas é fundamental na ca-
permanecer na orofaringe por um período de até três racterização do surto agudo de cardite. Os níveis da
meses(1, 2). velocidade de hemossedimentação, proteína C-reativa
O diagnóstico clínico de cardite é baseado nos sin- e α1-glicoproteína ácida e fração α2-globulina do soro
tomas e sinais clínicos já descritos. A cardite é um dos encontram-se invariavelmente elevados. Na ausência

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 73


dessa elevação devemos maiores de bloqueios. A miopericardite pode causar
sempre questionar a exis- extra-sístoles e alterações da repolarização ventricu-
tência de atividade reumá- lar tipo supradesnivelamento difuso do segmento ST e
DIÓGENES MSB tica. A cultura da orofarin- alterações da onda T. O alongamento do intervalo QT
e col. ge positiva só tem valor na corrigido para a freqüência cardíaca é considerado ín-
Cardite reumática: presença de quadro clíni- dice de atividade e de miocardite. A valvulite mitral e/
peculiaridades
diagnósticas e
co suspeito, uma vez que ou aórtica, dependendo do grau da lesão, pode levar à
terapêuticas o número de falsos positi- sobrecarga de câmaras esquerdas, mais freqüentemen-
vos na população sadia é te encontrada nas lesões crônicas(1, 2, 18).
elevado. O hemograma Radiografia de tórax
pode ser normal ou evi- A área cardíaca pode estar normal ou aumentada.
denciar anemia de grau A cardiomegalia é proporcional à gravidade do acome-
leve, com valores normais ou levemente diminuídos dos timento cardíaco. Sua ausência não exclui a presença
leucócitos. Na presença de anemia de grau importante de cardite. Podemos encontrar sinais de congestão
associada ou não à linfocitose, o diagnóstico diferenci- pulmonar e pequeno derrame pleural à direita na pre-
al com leucose deve ser lembrado. A detecção de ní- sença de insuficiência cardíaca(2).
veis aumentados de anticorpos antiestreptococos como Ecocardiograma Doppler
antiestreptolisina-O (ASLO), anti-hialuronidase, antide- O ecocardiograma cada vez mais se firma como mé-
soxirribonuclease é de fundamental importância, pois todo complementar de suma importância para confir-
indica infecção prévia. A elevação desses anticorpos mação de cardite, particularmente nos casos de cardi-
inicia-se após duas semanas do começo da infecção. te isolada, subclínica ou recorrente, além de ser extre-
O mais conhecido é a ASLO. Consideram-se anormais mamente útil na avaliação de pericardite com derrame,
valores acima de 333 U/ml para crianças até 5 anos, e função ventricular esquerda e no grau de regurgitação
500 U/ml para crianças maiores de 5 anos. Para o di- valvar. Estudos demonstram aumento da freqüência do
agnóstico de estreptococcia recente, deve-se solicitar diagnóstico de cardite com o auxílio da ecocardiogra-
a dosagem seriada de ASLO a cada 15 dias, a fim de fia, principalmente em pacientes considerados como
se detectar a elevação dos níveis séricos dos mesmos, tendo artrite isolada ou coréia. Na realidade, esses
pois uma única determinação laboratorial elevada não pacientes eram portadores de cardite subclínica, diag-
tem valor diagnóstico, uma vez que alguns pacientes nóstico que não poderia ter sido evidenciado sem o
que tiveram estreptococcia podem manter níveis ele- emprego da ecocardiografia, tornando-se, portanto,
vados de ASLO por período superior a um ano. Vale exame de alta sensibilidade e especificidade. A impor-
lembrar que em 20% dos pacientes com febre reumáti- tância da ecocardiografia cresceu de tal forma que al-
ca os níveis de ASLO não se elevam(1, 2, 9). guns autores preconizam sua inclusão entre os critéri-
Dosagem sérica de troponina T tem sido realizada os diagnósticos de Jones. Afirmam também que é pos-
nos pacientes com cardite reumática na tentativa de sível diferenciar regurgitação mitral patológica subclí-
evidenciar lesão miocárdica durante o surto agudo. En- nica de regurgitação fisiológica usando critérios rigo-
tretanto, concentrações normais de troponina T ou ape- rosos de Doppler e fluxo a cores. Como a valvulite é
nas discretamente aumentadas em pacientes com car- condição “sine qua non” de cardite reumática, a docu-
dite reumática e insuficiência cardíaca proeminente mentação ecocardiográfica de regurgitação valvar pode
questionam a existência de lesão miocárdica, confir- mudar o diagnóstico e o acompanhamento dos paci-
mando a presença de endocardite como alteração car- entes com cardite subclínica, principalmente porque
díaca fundamental dentro de um quadro inflamatório regurgitações leves nem sempre são detectadas na
do tecido conjuntivo cardíaco, sendo a insuficiência ausculta cardíaca, particularmente na presença de ta-
cardíaca mais uma conseqüência da regurgitação val- quicardia. Entretanto, o diagnóstico de cardite reumáti-
var mitral(19-22). ca somente pelo ecocardiograma ainda não é consen-
Eletrocardiograma so geral, uma vez que a presença de sopro cardíaco
Os achados são inespecíficos, podendo o eletro- em indivíduos normais pode levar ao diagnóstico equi-
cardiograma ser inclusive normal. A alteração mais fre- vocado de cardite. A presença de regurgitação valvar
qüentemente encontrada é o aumento da duração do de grau discreto, considerada normal com o aumento
intervalo PR. Esse achado é considerado uma expres- da idade, restringe assim o valor diagnóstico do eco-
são de atividade e pode se normalizar com o uso de cardiograma. A prevalência de insuficiência mitral dis-
corticosteróide. Considera-se bloqueio atrioventricular creta na população normal pode variar de 38% a 45%
de 1º grau quando o intervalo PR for igual ou superior e de insuficiência tricúspide, de 15% a 77%. Assim sen-
ao valor considerado normal para a idade e freqüência do, é preciso estarmos atentos para não superestimar-
cardíaca, podendo mais raramente evoluir para níveis mos o valor da ecocardiografia e procurarmos unir to-

74 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


das as informações dispo- róide de escolha é a prednisona, na dose de 1 mg/kg/
níveis para o correto diag- dia a 2 mg/kg/dia, dose máxima: 60-80 mg/dia, via oral,
nóstico de cardite(9-18, 23-33). em duas a três tomadas na primeira semana e, poste-
DIÓGENES MSB Os achados ecocardio- riormente, em dose única pela manhã. Deverá ser man-
e col. gráficos de lesão valvar tida nessa dosagem por três a quatro semanas com
Cardite reumática: mitral reumática mais fre- posterior redução gradual semanal de 20% da dose
peculiaridades
diagnósticas e
qüentemente encontrados caso haja melhora clínica e das provas laboratoriais.
terapêuticas são espessamento das Suspende-se a medicação entre 8 e 12 semanas de
cúspides, nódulos valvula- tratamento. Ainda não existe consenso sobre o trata-
res e mobilidade reduzida mento de cardite subclínica com corticóide. Mas a ten-
dos folhetos, podendo ha- dência é tratar esses pacientes(1, 2). Estudos demons-
ver falha de coaptação e tram que o uso de corticosteróides reduz rapidamente
até mesmo rotura de cordoalhas, resultando em insufi- os sintomas e sinais clínicos, ficando a maioria dos
ciência de grau variado. Já a valvopatia reumática, se- pacientes assintomáticos na primeira semana de tra-
qüela da cardite reumática, caracteriza-se por espes- tamento. Entretanto, existe relato de que os antiinfla-
samento valvar, fusão comissural e insuficiência valvar matórios tanto hormonais como não-hormonais, assim
e/ou estenose valvar(31, 32). como a imunoglobulina endovenosa, não diminuem o
risco de seqüela cardíaca em pacientes com cardite
TRATAMENTO após um ano de evolução(35).
Para os pacientes com insuficiência cardíaca con-
O processo inflamatório na febre reumática é geral- gestiva grave e refratários ao corticóide oral, tem-se a
mente autolimitado e evolui para remissão espontânea opção do uso de pulsoterapia em série, forma terapêu-
num período médio de três meses ou mais rapidamen- tica essa bastante utilizada nas doenças auto-imunes.
te com tratamento à base de antiinflamatórios. A profi- A pulsoterapia consiste no uso de megadoses de corti-
laxia primária é obrigatória para a erradicação da es- costeróides, entre 500 mg e 2 g, com o objetivo de ob-
treptococcia das vias aéreas. Recomenda-se a penici- ter-se efeito imunossupressor e imunomodulador mais
lina G benzatina na dose de 600.000 UI, intramuscular, proeminente e duradouro que a prednisona, além de
para crianças com peso igual ou inferior a 25 kg, e reduzir os efeitos colaterais do corticóide oral. Dá-se
1.200.000 UI para crianças com mais de 25 kg. Nos preferência à metilprednisolona. Existem vários esque-
casos de hipersensibilidade à penicilina, poderá ser ad- mas terapêuticos. Pode-se administrar 40 mg/kg/dia,
ministrada a eritromicina via oral, na dose de 40-50 mg/ até no máximo 1 g, diluídos em 200 ml de soro glicosa-
kg/dia, dividida em quatro tomadas durante 10 dias. A do a 5% via endovenosa, em jejum, durante três dias
azitromicina na dose de 10 mg/kg em dose única diária consecutivos, repetidos semanalmente até a normali-
durante cinco dias e a claritromicina na dose de 7 mg/ zação das provas laboratoriais. Outro esquema seria
k/dia a 8 mg/k/dia em duas doses diárias também têm metilprednisolona na dose de 1 g diluído em soro gli-
sido utilizadas(1, 2, 34) cosado a 5%, por via endovenosa, em duas horas, du-
A profilaxia secundária é mandatória para preven- rante três dias consecutivos nas duas primeiras sema-
ção de novos surtos. A maioria dos casos de recorrên- nas, dois dias na terceira semana, e um dia na quarta
cia de cardite deve-se à falta de aderência ao trata- semana. Apesar de o uso da metilprednisolona ter se
mento. Utiliza-se a penicilina G benzatina, intramuscu- mostrado útil em casos de insuficiência cardíaca con-
lar, na mesma posologia da profilaxia primária, a cada gestiva refratária, alguns estudos realizados compa-
21 dias. Não é recomendada a utilização da penicilina rando prednisona oral com pulsoterapia mostraram
via oral por causa da baixa aderência ao tratamento. melhor resultado em pacientes tratados com predniso-
Nos casos de hipersensibilidade, recomenda-se a sul- na oral. Após o término da pulsoterapia, é recomenda-
fadiazina na dose de 500 mg/dia para crianças até 25 do o uso de ácido acetilsalicílico na dose de 50 mg/kg/
kg e 1 g para aquelas com mais de 25 kg. Nas crianças dia durante quatro a seis semanas para evitar-se o efeito
que evoluem com cardite sem seqüela, a profilaxia de- rebote. É extremamente importante antes de iniciarmos
verá ser mantida durante 10 anos ou até o indivíduo a corticoterapia tratarmos possíveis focos infecciosos,
completar 25 anos. Nos casos com seqüela, deverá ser realizarmos o PPD, com profilaxia com isoniazida em
mantida pelo resto da vida(1, 2, 34). reator forte e tratarmos estrongiloidíase, além de ad-
Pacientes com cardite ativa devem ficar em repou- ministrarmos protetores da mucosa gástrica como an-
so relativo e proporcional ao grau do acometimento car- tiácidos e cimetidina durante o período de tratamento.
díaco. O tratamento medicamentoso é feito com corti- O corticóide não deve ser utilizado por períodos pro-
costeróides, com o objetivo de reduzir a resposta infla- longados por causa de seus bem conhecidos efeitos
matória e obter efeito imunossupressor. O corticoste- adversos(36-39).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 75


Na vigência de insufici- triculares e outras arritmias nos casos mais graves. Nos
ência cardíaca está indica- casos de cardite com insuficiência cardíaca refratária
do o uso de digital, diuréti- está indicada cirurgia cardíaca para troca da valva aco-
DIÓGENES MSB co de alça — furosemida, metida(1, 2, 40).
e col. espironolactona e vasodi- Como mensagem final da presente revisão, enfati-
Cardite reumática: latadores do tipo inibidores zamos a importância do diagnóstico correto de cardite
peculiaridades
diagnósticas e
da enzima de conversão reumática para conduzirmos adequadamente o trata-
terapêuticas da angiotensina. A admi- mento. Erros diagnósticos podem levar tanto à profila-
nistração de um ou mais xia secundária desnecessária com penicilina benzati-
desses medicamentos vai na como à possibilidade de deixar uma abertura para
depender do grau do com- recorrência de cardite naqueles casos que não foram
prometimento cardíaco. O diagnosticados. O acompanhamento cuidadoso e peri-
digital deverá ser usado com cautela, uma vez que ódico, particularmente dos casos duvidosos, é reco-
poderá desencadear ou precipitar bloqueios atrioven- mendação prudente.

RHEUMATIC CARDITIS: DIAGNOSTIC


PECULIARITIES AND TREATMENT

MARIA SUELY BEZERRA DIÓGENES, ANTÔNIO CARLOS CARVALHO

Rheumatic fever is an immunologic, non-suppurative, systemic inflammatory di-


sease of the connective tissue, triggered by a group A ß-hemolytic streptococcal
tonsillopharyngitis in susceptible individuals. It’s a multiorgan disease but the heart
is the only one that can be left with permanent damage. Well recognized as a disea-
se of developing countries, it still represents one of the major health problems for
Brazilians and is the main cause of hospital admissions for heart disease in patients
under forty years of age. Rheumatic carditis is manifested about four weeks after the
streptococcal attack. It’s clinical manifestation is broadly variable. It can be innapa-
rent or lead to refractory congestive heart failure. Indolent carditis represents the
main diagnostic challenge because of the absence of clinical symptoms and signs
and the probability of leading to important sequelae. The nonspecific laboratory tes-
ts do not help in differentiating rheumatic carditis from other inflammatory diseases
of immunologic etiology. On the other hand, rheumatic carditis can not be confirmed
without elevated acute-phase reactants. Two-dimensional echocardiogram and Do-
ppler ultrasound is the key complementary diagnostic tool for diagnosis of carditis as
long as associated with clinical findings and its inclusion among Jone’s criteria is
being universally discussed. The use of benzathine penicillin still represents the best
treatment for eradication and prevention of streptococcal infection in rheumatic fe-
ver. Oral prednisone is the antiinflammatory agent of choice in the treatment of car-
ditis. Pulsetherapy with methylprednisolone is an alternative for the treatment of se-
rious carditis that does not respond to oral corticosteroid.

Key words: rheumatic fever, carditis, echocardiography, corticosteroids.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:71-8)


RSCESP (72594)-1510

76 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


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78 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


MANIFESTAÇÕES ARTICULARES DA FEBRE
FERRIANI VPL REUMÁTICA
Manifestações
articulares da febre
reumática
VIRGÍNIA PAES LEME FERRIANI

Departamento de Puericultura e Pediatria/Serviço de Imunologia,


Alergia e Reumatologia —
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto — Universidade de São Paulo

Endereço para correspondência: Av. Bandeirantes, 3900 — CEP 14049-900 —


Ribeirão Preto — SP

A artrite é a manifestação clínica mais freqüente, mas menos específica, da febre


reumática. Alguns pacientes podem apresentar quadros articulares atípicos, diferentes
da poliartrite migratória clássica descrita por Jones, o que dificulta a identificação
dessa doença, principalmente quando o paciente apresenta artrite como único sinal
maior.

Palavras-chave: febre reumática, artrite, artralgia, artrite reativa pós-estreptocócica.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:79-84)


RSCESP (72594)-1511

EPIDEMIOLOGIA sentam artrite isolada (sem cardite ou coréia) mais fre-


qüentemente (41%) que crianças com mais de 5 anos
A artrite é, na maioria das séries descritas, a mani- de idade (20%)(7). Outros estudos também demonstra-
festação mais freqüente da febre reumática e ocorre ram incidência maior de artrite em crianças pequenas(8,
em 60% a 80% dos pacientes(1-3). Em um estudo reali- 9)
. Quando a artrite aparece isoladamente, sem cardite
zado pelo comitê de reumatologia pediátrica da Socie- ou coréia, o diagnóstico de certeza da febre reumática
dade de Pediatria de São Paulo, envolvendo 786 crian- torna-se bastante difícil, já que várias outras doenças
ças atendidas em serviços terciários, 453 (57,6%) apre- podem apresentar comprometimento articular seme-
sentaram artrite, 396 (50,4%) apresentaram cardite, en- lhante.
quanto 274 (34,8%) apresentaram coréia(1). Um levan-
tamento feito no Serviço de Reumatologia Pediátrica CARACTERÍSTICAS DO COMPROMETIMENTO
do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de ARTICULAR
Ribeirão Preto-USP(2), analisando 120 surtos de febre
reumática aguda, em 109 pacientes, a artrite foi tam- A artrite típica da febre reumática geralmente é a
bém a manifestação mais comum (77%), seguida de manifestação inicial da doença e aparece duas a qua-
cardite (62%) e coréia (32%). tro semanas após a infecção estreptocócica. Usualmen-
A artrite aparece, freqüentemente, acompanhada de te envolve várias articulações, de forma migratória (me-
outros sinais maiores, principalmente a cardite (Tab. lhora em uma articulação e começa em outra), dura de
1). No entanto, artrite isolada pode ocorrer em 8% até um a cinco dias em cada articulação, é extremamente
42% dos pacientes(2, 4-6). Segundo um estudo recente dolorosa e responde muito bem aos antiinflamatórios
realizado nos Estados Unidos, crianças pequenas (com não-hormonais. As articulações estão geralmente ede-
menos de 5 anos de idade) com febre reumática (5% maciadas, quentes, com limitação importante dos mo-
das crianças com febre reumática desse estudo) apre- vimentos e podem apresentar eritema. A dor da artrite

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 79


é muito intensa e, carac- reumática avaliados(19). Vale a pena comentar também
teristicamente, despropor- o relato de um caso de febre reumática cuja manifesta-
cional à intensidade do ção inicial foi monoartrite de joelho, acompanhada de
FERRIANI VPL edema, que pode ser dis- febre e aumento de provas de atividade inflamatória,
Manifestações creto(10, 12). sem qualquer outra alteração. Esse paciente (um me-
articulares da febre A duração total do nino de 9 anos) desenvolveu uma lesão de válvula mi-
reumática
quadro articular varia, tral três semanas após o episódio de monoartrite, e,
geralmente, de uma a nessa ocasião, os títulos de antiestreptolisina O (ASLO),
três semanas e a artrite que inicialmente eram normais, estavam elevados(16).
evolui para cura comple- Dessa forma, mesmo sabendo que a poliartrite é a

Tabela 1. Freqüência de artrite e associação com outros critérios maiores.

Kiss, 1993(10) Pileggi, 1997(11)

% do total % dos pacientes % do total % dos pacientes


de casos com artrite de casos com artrite
Manifestações (n = 344) (n = 177) (n = 120) (n = 92)

Artrite isolada 8 15 8 11
Artrite e cardite 37 71 50 65
Artrite e coréia 1,5 3 7 9
Artrite, cardite e coréia 3,5 6,5 8 11
Artrite, cardite e NSC 1 2 1 2
Artrite, cardite e EM 0,8 1,5 0,8 1

n = número de pacientes; NSC = nódulos subcutâneos; EM = eritema marginado.

ta, sem seqüelas. manifestação articular considerada como sinal maior


As articulações mais freqüentemente acometidas dos critérios de Jones, dados consistentes de literatu-
são os joelhos e os tornozelos. O acometimento de pu- ra sugerem que a febre reumática deve estar incluída
nhos, cotovelos, pequenas articulações dos pés e das entre os diagnósticos diferenciais de monoartrite. O
mãos, coluna cervical e quadris ocorre em freqüências seguimento desses pacientes é extremamente impor-
variáveis, de acordo com a população estudada(2, 13-15) tante para que se possa identificar, de forma precoce,
(Tab. 2). Recentemente, foi descrito um caso de febre o diagnóstico correto.
reumática com comprometimento de articulações sa- Alguns pacientes com febre reumática podem apre-
croilíacas(16). sentar apenas artralgia em uma ou mais articulações.
O número de articulações acometidas, na maioria Essa é uma manifestação muito inespecífica, mas é
dos surtos, varia de duas a 16(2, 17, 18). No estudo reali- um dos sinais menores dos critérios de Jones modifi-
zado em nosso serviço, observamos comprometimen- cados. No entanto, a artralgia só deve ser utilizada como
to de duas a cinco articulações em 58% dos casos e critério para o diagnóstico de febre reumática nos pa-
de seis até 10 articulações em 30% dos surtos. Ape- ciente que não apresentam artrite(20).
nas três pacientes apresentaram monoartrite: dois com Foram descritos alguns casos de entesite em paci-
acometimento de joelho e o outro de coxofemoral. Nes- entes com febre reumática(21, 22).
ses casos, a presença de outros critérios maiores (dois Pacientes com febre reumática que apresentam qua-
pacientes com coréia e cardite e um paciente com co- dros de artrites atípicas têm sido descritos por diferen-
réia) possibilitou o diagnóstico de febre reumática(11). tes autores. Em 1975, Stollerman(17) já comentava que
Outro estudo brasileiro descreveu monoartrite em 10% 32% das crianças portadoras de febre reumática não
dos 97 pacientes com febre reumática avaliados(15). apresentavam o padrão clássico do acometimento ar-
Recentemente, estudo realizado em população do norte ticular, considerando-se o tempo maior de duração da
da Austrália revelou uma porcentagem de comprome- artrite, a presença de oligo ou monoartrite, o padrão
timento monoarticular em 13% dos 555 casos de febre aditivo ou simétrico e/ou a resposta insatisfatória aos

80 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


salicilatos. Em estudo re- tocócica como uma entidade distinta da febre reumáti-
alizado em nosso serviço ca(26), e outros a consideram como parte do espectro
com 109 pacientes, 47% clínico da febre reumática(27-29). É importante enfatizar
FERRIANI VPL dos 92 pacientes com ar- que muitos pacientes descritos como portadores de
Manifestações trite apresentaram com- artrite reativa pós-estreptocócica desenvolveram val-
articulares da febre prometimento articular atí- vulites durante o seguimento posterior(21, 30).
reumática
pico: 28% dos 92 pacien- Considerando a alta prevalência de infecções es-
tes tiveram duração da ar- treptocócias e de febre reumática no Brasil, a dificulda-
trite maior que três sema- de do diagnóstico dessa doença, o conhecimento de
nas, 20% dos casos não que quadros articulares atípicos são freqüentes e de

Tabela 2. Articulações acometidas em pacientes com febre reumática.

Freqüência (%) de acometimento

Feinstein e Almedra Hilário Pileggi e


Spagnuolo, e cols., e cols., Ferriani,
Articulações 1962(13) 1992(14) 1992(15) 2000(2)

Joelhos 76 73,3 76 75
Tornozelos 50 41,5 62 79
Cotovelos 15 18,8 29 19
Punhos 15 20,7 28 25
Quadril 15 22,6 15 16
Pequenas articulações
dos pés 15 17 13 32
Pequenas articulações
das mãos 8 17 15 26
Ombros 8 —- 12 19
Coluna cervical 1 —- 15 26
Coluna lombar —- —- 7 4

responderam ao uso de salicilatos, e 3% apresenta- que a chamada artrite reativa pós-estreptocócica pode
ram monoartrite. O tempo decorrido entre o início dos evoluir com comprometimento cardíaco, é muito mais
sintomas e o diagnóstico de febre reumática foi signifi- prudente considerarmos que casos de febre reumática
cantemente maior nas crianças com artrite atípica, atípica existem e devem ser tratados da mesma forma
quando comparadas àquelas que apresentaram qua- que os quadros típicos, para que se possa prevenir as
dros articulares típicos de febre reumática(2). complicações cardíacas, com o uso da profilaxia com
Outras descrições de quadros articulares atípicos penicilina benzatina em todos esses casos.
de febre reumática foram publicadas(16, 19, 23), inclusive
em nosso país(15, 22). EXAMES LABORATORIAIS
A artrite atípica da febre reumática é muito seme-
lhante àquela descrita na artrite reativa pós-estrepto- Não existem exames laboratoriais que confirmem o
cócica. Essa entidade clínica, descrita principalmente diagnóstico de febre reumática. Alguns exames são
na literatura internacional, é definida pela presença de úteis para caracterizar o processo inflamatório e ou-
artrite que aparece após quadro de infecção causada tros para auxiliar no diagnóstico diferencial com outras
pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A, mas di- doenças.
fere da artrite da febre reumática (que também é reati- O hemograma pode revelar leucocitose e neutrofi-
va e pós-estreptocócica) pelo menor período de latên- lia e anemia leve a moderada. As plaquetas podem estar
cia após a infecção estreptocócica (até 10 dias), artrite aumentadas. Anemia severa e linfocitose sugerem ou-
mais prolongada e má resposta aos salicilatos(21, 24, 25). tros diagnósticos, entre eles as leucoses e a anemia
Alguns autores consideram a artrite reativa pós-estrep- falciforme(28).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 81


As provas de ativida- mática é extenso e inclui doenças infecciosas, he-
de inflamatória costumam matológicas e do tecido conjuntivo (Tab. 3).
estar elevadas na maioria Uma das dificuldades diagnósticas mais freqüen-
FERRIANI VPL dos pacientes com febre tes na avaliação das poliartrites deve-se à introdu-
Manifestações reumática, exceção feita ção precoce de antiinflamatórios não-hormonais em
articulares da febre àqueles que apresentam pacientes com manifestações articulares incaracte-
reumática
coréia isolada. Em nossa rísticas, em fases iniciais. Essa conduta impede a
casuística, 83% dos ca- observação e a caracterização da artrite (migratória,
sos com artrite e cardite poliarticular, de curta duração em cada articulação)
e 100% dos casos que se e o reconhecimento da febre reumática (31). Casos de
apresentaram como artri- febre reumática cuja única manifestação maior é a
te isolada tinham pelo artrite constituem um dos grandes desafios diagnós-
menos uma prova de atividade alterada. As muco- ticos em pediatria.
proteínas estiveram elevadas em 82% dos casos, a Outra situação difícil acontece nos casos em que
velocidade de hemossedimentação em 73% e a pro- o paciente conta uma história anterior de manifesta-
teína C-reativa em 55% de todos os pacientes avali- ções articulares mal definidas, às vezes artralgias ou
ados(11). dores em membros, que foram interpretadas como
A velocidade de hemossedimentação e a proteí- surtos de febre reumática, especialmente se associ-
na C-reativa geralmente estão elevadas nas primei- adas a aumento das provas de atividade inflamatória
ras semanas da febre reumática e sofrem influência e/ou aumento dos títulos de ASO(31). Vale lembrar que
dos antiinflamatórios não-hormonais. Por outro lado, a artralgia é um sinal menor de febre reumática e só
os níveis séricos de alfa-glicoproteína 1 e alfa-2 glo- deve ser valorizada na ausência de artrite. Além dis-
bulina não sofrem influência do uso de antiinflamató- so, crianças com dores em membros, não articula-
rios não-hormonais. Essas proteínas também estão res, não devem ser diagnosticadas como portadoras
elevadas na fase aguda da febre reumática, assim de febre reumática.
permanecendo durante períodos prolongados de tem-
po e seus níveis têm sido utilizados para monitorizar TRATAMENTO
a atividade da febre reumática(28).
A análise do líquido sinovial é raramente solicita- A medicação de escolha para o tratamento da ar-
da em pacientes com febre reumática, com exceção trite continua sendo o ácido acetilsalicílico, na dose
dos casos em que existe suspeita de artrite séptica de 80 mg/kg/dia a 100 mg/kg/dia (máximo de 3 gra-
(principalmente na vigência de monoartrite e febre). mas) dividida em quatro doses(31, 32). Outros antiinfla-
As principais alterações incluem aumento do núme- matórios não-hormonais que também são eficazes
ro de leucócitos (10.000/mm³ a 100.000/mm³), com para o tratamento da artrite são a indometacina na
predomínio de neutrófilos, concentração de proteí- dose de 2 mg/kg/dia a 3 mg/kg/dia(10) e o naproxeno,
nas por volta de 4 g e taxas de glicose normais(12). 10 mg/kg/dia a15 mg/gk/dia(33). Essas doses devem
ser utilizadas até que haja melhora clínica da artrite,
DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL o que ocorre geralmente em dois a três dias, e nor-
malização das provas de atividade inflamatória. Nes-
O diagnóstico diferencial da artrite da febre reu- sa fase, a dose dos antiinflamatórios não-hormonais

Tabela 3. Diagnóstico diferencial da artrite da febre reumática.*

Artrites infecciosas Virais: rubéola, caxumba, hepatite B


Bacterianas: artrite séptica, artrites causadas por
gonococos e meningococos, endocardite bacteriana
Artrites reativas pós-entéricas ou pós-infecções do
trato urinário
Anemia falciforme
Leucemia linfoblástica aguda
Doenças do tecido conjuntivo Lúpus eritematoso sistêmico, artrite
reumatóide juvenil, vasculites

* Segundo Kiss, 2003(31).

82 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


deve ser progressivamen- EVOLUÇÃO E PROGNÓSTICO
te reduzida, completando
um período total de trata- Como já foi comentado anteriormente, a artrite da
FERRIANI VPL mento de quatro a oito febre reumática evolui sem deixar seqüelas. No entan-
Manifestações semanas(28). to, existe uma forma rara de artrite não erosiva defor-
articulares da febre Crianças com quadros mante — a artrite de Jaccoud — que foi descrita em
reumática
articulares mal definidos, alguns casos de febre reumática em adultos. Trata-se,
em fases muito iniciais, na verdade, de uma fibrosite periarticular que leva a
devem ser tratadas com deformidades caracterizadas por desvio ulnar, princi-
analgésicos, como o ace- palmente do quarto e quinto dedos das mãos, subluxa-
taminofen, de modo a ção e flexão das articulações metacarpofalangeanas e
permitir melhor caracteri- hiperextensão das interfalangeanas proximais. Esse tipo
zação do quadro articular, durante sua evolução, e, de artropatia também pode estar associado ao lúpus
conseqüentemente, diagnóstico e tratamento mais eritematoso sistêmico em adultos. Não existem casos
adequados. descritos de artropatia de Jaccoud em crianças(10, 34, 35).

ARTICULAR INVOLVEMENT IN RHEUMATIC FEVER

VIRGINIA PAES LEME FERRIANI

Arthritis is the most common and less specific manifestation of rheumatic fever.
Some patients may present with atypical arthritis, adding an extra dilemma for the
diagnosis of this disease, mainly when arthritis is the sole major manifestation.

Key words: rheumatic fever, arthritis, arthralgia, post-streptococcal arthritis.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:79?-84)


RSCESP (72594)-1511

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84 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


PROFILAXIA DA FEBRE REUMÁTICA
TARASOUTCHI F
e col. FLÁVIO TARASOUTCHI, GUILHERME SOBREIRA SPINA
Profilaxia da
febre reumática

Unidade Clínica de Valvopatia — Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP

Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 —


Cerqueira César — CEP 05403-900 — São Paulo — SP

A prevenção de surtos iniciais de febre reumática depende do reconhecimento e


do tratamento rápidos da faringoamidalite. A erradicação do estreptococo do grupo
A da orofaringe é essencial. Na seleção de um regime terapêutico, vários fatores
devem ser considerados, incluindo eficácia bacteriológica e clínica, e facilidade de
aderência à terapêutica recomendada. A penicilina é o agente antimicrobiano de
escolha para o tratamento da estreptococcia, exceto em pacientes com história de
alergia à penicilina.
Para os pacientes que já apresentam o diagnóstico de febre reumática é indicada
a profilaxia secundária para a prevenção de novos surtos de febre reumática. Res-
salta-se a necessidade do diagnóstico correto, e a melhor ferramenta para fazê-lo é
a história clínica detalhada e o exame físico minucioso. Assim, em nosso meio, a
profilaxia secundária deve ser realizada com aplicações de penicilina G benzatina
com intervalo máximo de três semanas.

Palavras-chave: profilaxia, febre reumática, doença reumática cardíaca.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:85-91)


RSCESP (72594)-1512

INTRODUÇÃO munidade em geral, pois acomete indivíduos muito


jovens e freqüentemente determina múltiplas inter-
A prevalência de febre reumática e de cardiopatia nações hospitalares e cirurgias(2). Estima-se que 30%
reumática crônica em uma determinada comunidade das cirurgias cardíacas no Brasil se devam a seqüe-
é reflexo do nível de cuidados preventivos primários las de febre reumática, porcentual que se eleva a 90%
e do acesso à saúde. (1) Em muitos países desenvol- quando consideramos apenas as cirurgias cardíacas
vidos a doença tornou-se rara, enquanto em muitos infantis. Segundo dados do DATASUS(3) (Fig. 1), nos
países subdesenvolvidos, como o Brasil, a cardiopa- últimos 10 anos temos tido uma média de 10 mil ca-
tia reumática crônica permanece como a maior cau- sos de febre reumática aguda por ano que necessi-
sa de doença cardíaca entre crianças e adultos jo- taram de internação hospitalar. Esse é um valor ex-
vens.(2) tremamente elevado, considerando-se que esta, en-
A febre reumática é seqüela de uma infecção de tre as doenças cardiológicas, é com certeza a mais
orofaringe pelo estreptococo beta-hemolítico do gru- facilmente prevenível.(2)
po A de Lancefield, e acomete de 3% a 4% das cri-
anças não tratadas. A doença reumática cardíaca PROFILAXIA PRIMÁRIA DA FEBRE REUMÁTICA
aparece no período de quatro a oito semanas ou mais
tardiamente, em aproximadamente 30% das crian- Para impedir que novos casos continuem surgindo,
ças acometidas por febre reumática. A doença reu- o mais importante é realizar adequadamente a profila-
mática é uma das afecções que acarretam maiores xia primária da febre reumática, impedindo que os indi-
custos para o Sistema Único de Saúde e para a co- víduos suscetíveis venham a contrair a doença. Infec-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 85


TARASOUTCHI F
e col.
Profilaxia da
febre reumática

Figura 1. Número de casos de febre reumática aguda internados por ano.

ções (faringite reumática e amidalites) por estreptoco- creção nasal ou tosse, sendo o diferencial feito com
cos beta-hemolíticos do grupo A não diagnosticadas e outras infecções das vias aéreas superiores, como as
não tratadas adequadamente, em indivíduos sensíveis, causadas por vírus. Podem ser realizados exames la-
podem levar a um surto de febre reumática. Assim, é ne- boratoriais para o diagnóstico da estreptococcia, como
cessário um esquema eficaz não só de tratamento mas cultura de orofaringe (que em geral tem baixa positivi-
de prevenção de infecções pelos estreptococos(2, 4). dade) e testes rápidos. Esses testes muitas vezes são
Devemos lembrar que fatores socioeconômicos de difícil obtenção e retardariam o tratamento adequa-
estão relacionados a essas infecções e desenvolvem do da estreptococcia, motivo pelo qual em geral em
a doença reumática. A febre reumática classicamen- saúde pública o procedimento mais adequado é tratar
te é considerada uma doença derivada de más con- com antibióticos todas as infecções de garganta com a
dições de vida da população, de aglomerações e de mínima possibilidade de serem bacterianas. Esse regi-
um sistema de saúde que não consegue dar à popu- me mais agressivo de uso de antibióticos é adequado
lação assistência adequada. Assim, o tratamento das a situações de alta prevalência de estreptococos no
infecções estreptocócicas passa pela melhora das ambiente ou em surtos epidêmicos de amidalite agu-
condições de vida da população, especialmente as da(5).
de mais baixa renda, pelas condições favoráveis à O antibiótico de eleição para a profilaxia primaria
disseminação dos estreptococos (precárias condi- da febre reumática é a penicilina G benzatina em dose
ções de higiene, aglomerações e maior promiscui- única de 600.000 UI para crianças de até 25 kg e de
dade). Essa população sem acesso ao sistema de 1.200.000 UI para pacientes acima desse peso, em
saúde é a mais suscetível à febre reumática(4). Um injeção intramuscular profunda, em dose única. A
dos fatores que levaram ao declínio da febre reumá- grande vantagem desse regime é seu baixo custo e
tica na Europa e na América do Norte foi a melhoria grande eficácia e a vantagem de não haver necessi-
das condições de vida da população, associada ao dade de repetir o tratamento. Considerando-se o tra-
adequado sistema de tratamento de infecções estrep- tamento por via oral, a droga de escolha ainda é a
tocócicas, com identificação e tratamento precoce dos fenoximetilpenicilina (penicilina V)(2, 5) na dose de
portadores de amidalites estreptocócicas (2). 500.000 UI de 12 em 12 horas para crianças e em
A profilaxia primária é baseada no diagnóstico pre- intervalo mais freqüente (de 8 em 8 horas ou de 6
coce dos portadores de infecções de orofaringe pelo em 6 horas) para adultos. Devemos lembrar que o
estreptococo beta-hemolítico do grupo A e o tratamen- tratamento antibiótico deve ser mantido por pelo
to com antibióticos bactericidas(5). O diagnóstico rápi- menos 10 dias, com o objetivo de prevenir também a
do é essencial, e o tratamento deve ser iniciado nos ocorrência de febre reumática. Devemos lembrar que
primeiros dias do quadro, pois a persistência do mi- as penicilinas ocupam lugar de destaque no comba-
crorganismo por mais de uma semana acarretará, nos te às estreptococcias também pela ausência de re-
indivíduos suscetíveis, a seqüência de reações imuno- sistência destes a essas drogas
lógicas, que poderá desenvolver o surto de febre reu- Novos tratamentos para a amidalite, como, por
mática(4). exemplo, com macrolídeos(6) ou cefalosporinas(7-10), po-
O quadro clínico da amidalite estreptocócica inclui dem ser efetivos na erradicação do estreptococo, mas
dor de garganta, impedindo a deglutição, febre alta por serem medicamentos de alto custo têm seu em-
(mais de 38oC), adenopatia cervical e submandibular, prego limitado na amidalite estreptocócica, principal-
e petéquias em palato e úvula. Geralmente não há se- mente quando se tem um tratamento tão efetivo e de

86 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


baixo custo disponível. fundamental e a melhor ferramenta para isso é a histó-
Além disso, até hoje não ria clínica detalhada e o exame físico minucioso. Esse
foi descrita resistência dos cuidado é fundamental para evitar que pacientes sem
TARASOUTCHI F estreptococos à penicilina. febre reumática recebam profilaxia apenas por serem
e col. Para pacientes alérgi- portadores de altos títulos de ASLO e pacientes com
Profilaxia da cos à penicilina pode-se valvopatia grave não recebam a adequada profilaxia,
febre reumática
usar eritromicina na dose que pode melhorar o prognóstico do paciente a longo
de 10 mg/kg a 12 mg/kg a prazo.(2)
cada 8 horas ou 500 mg a A droga de escolha é a penicilina G benzatina, nas
cada 6 horas, também du- mesmas doses de 600.000 UI para crianças com até

Tabela 1. Prevenção da febre reumática — profilaxia primária.

Agente Dose Via Duração

Penicilina G benzatina 600.000 IU para IM Dose única


pacientes < 27kg
1.200.000 UI para
pacientes ≥ 27kg
Penicilina V Crianças VO 10 dias
250 mg 2-3 vezes por dia
Adolescentes e adultos
500 mg 2-3 vezes por dia
Para pacientes alérgicos à penicilina
Eritromicina 40 mg/kg/dia VO 10 dias
2-4 vezes por dia
(máximo 1g/dia)

IM = intramuscular; VO = via oral.

rante 10 dias. As sulfas são inadequadas para o tra- 27 kg e de 1.200.000 UI acima desse peso. A freqüên-
tamento das amidalites estreptocócicas, pois não são cia das doses de penicilina é motivo de controvérsia,
bactericidas e assim não previnem a febre reumáti- que vem ganhando mais definição graças a muitos es-
ca(5, 11) (Tab. 1). tudos comparando diversos regimes de profilaxia. Se-
Para o diagnóstico de febre reumática é necessário gundo a “American Heart Association”(5), o uso de apli-
quadro clínico típico compatível, que, em geral, se ins- cações mensais seria adequado, reservado-se as apli-
tala após a amidalite, e não durante a mesma. Em es- cações a cada três semanas para localidades com alta
tudos clássicos em populações confinadas em quar- incidência de febre reumática ou de amidalites estrep-
téis, verificou-se que após um surto de amidalites es- tocócicas. Entretanto, vários trabalhos demonstram que,
treptocócicas apenas 3% dos infectados desenvolve- ao menos fora dos Estados Unidos e da Europa, o re-
ram quadro clínico compatível com febre reumática. gime de uma aplicação de penicilina a cada quatro se-
Assim, não basta a estreptococcia, o paciente tem que manas é inadequado.(12-15) Em nosso meio, pela alta
ser suscetível à febre reumática. Títulos elevados de prevalência de febre reumática e de infecções estepto-
antiestreptolisina O (ASLO) apenas demonstram es- cócicas, não devemos usar aplicações mensais de pe-
treptococcia anterior, mas não fazem diagnóstico de nicilina benzatina por não proporcionarem proteção
febre reumática. adequada aos portadores de doença reumática. O ris-
co de recorrência com aplicações a cada quatro sema-
PROFILAXIA SECUNDÁRIA DA FEBRE nas é cinco vezes maior que com aplicações a cada
REUMÁTICA três semanas.(12)
Assim, a profilaxia secundária deve ser realizada
Nos pacientes com diagnóstico de febre reumática, com aplicações de penicilina G benzatina com interva-
está indicada a profilaxia secundária para a prevenção lo máximo de três semanas. Considerando-se que o
de novos surtos. O diagnóstico correto da doença é maior risco de recorrência da febre reumática ocorre

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 87


nos dois primeiros anos ção de grupos para o acompanhamento da profilaxia
após o surto reumático, a secundária da febre reumática. Esses centros seguiri-
penicilina deve ser admi- am os portadores de febre reumática e seriam capa-
TARASOUTCHI F nistrada a cada 15 dias(2) zes de pesquisa ativa nos casos de absenteísmo, pois
e col. nos dois primeiros anos a falta de aderência entre adolescentes e famílias mi-
Profilaxia da após o surto reumático e grantes leva a grande incidência de recidivas. Em nos-
febre reumática
após isso deverá ser ad- so meio, a Liga de Combate à Febre Reumática de-
ministrada com intervalos senvolve, desde 1955, trabalho de acompanhamento
de 21 dias. A preferência com especial atenção à orientação dos pacientes quan-
pelo regime de 15/15 dias to ao correto uso da profilaxia(17) e cuidados globais ao
nos dois primeiros anos paciente reumático, como a disponibilidade de serviço
deve-se ao fato de que de odontologia integrado ao atendimento médico(18), que
nesse período é maior a probabilidade de recorrência é de extrema importância, visto que pacientes com fe-
da febre reumática, e com aplicações quinzenais a re- bre reumática têm pouco acesso a serviços de saúde
corrência da febre reumática é próxima a zero.(14) Para e por isso, em geral, têm saúde bucal precária. A asso-
pacientes com alergia à penicilina está indicada a sul- ciação de infecções dentárias a lesões valvares reu-

Tabela 2. Prevenção da febre reumática — profilaxia secundária.

Agente Dose Via

Penicilina G benzatina 1.200.000 UI a cada IM


2-3 semanas
Penicilina V 250 mg 2 x por dia VO
Sulfadiazina 0,5 g uma vez por dia VO
para pacientes < 27 kg
1 g uma vez por dia
para pacientes ≥ 27 kg
Para pacientes alérgicos à penicilina e à sulfadiazina
Eritromicina 250 mg 2 x por dia ‘ VO

IM = intramuscular; VO = via oral.

fadiazina(2), na dose de 1 g/dia, sendo necessário o con- máticas pode ter conseqüências graves, notadamente
trole de possíveis quadros leucopênicos (Tab. 2). De- a endocardite Infecciosa.
vemos sempre lembrar que a antibioticoterapia intra-
muscular é mais efetiva que aquela por via oral na pre- DURAÇÃO DA PROFILAXIA ANTIBIÓTICA EM
venção de novos surtos reumáticos.(16) PACIENTES COM FEBRE REUMÁTICA
Os critérios de suspensão à profilaxia são(2): paci-
entes sem acometimento cardíaco, apenas com mani- O risco aumenta com vários ataques prévios, en-
festação articular ou coréia “pura” — suspender aos 18 quanto o risco diminui quanto maior for o intervalo des-
anos ou cinco anos após o surto reumático; pacientes de o ataque mais recente. A probabilidade de se ad-
com cardite durante o surto agudo que não apresen- quirir infecção estreptocócica de trato respiratório su-
tam seqüelas tardias ou apresentam seqüelas muito perior é uma consideração importante. Pacientes com
discretas — suspender aos 25 anos ou dez anos após aumento da exposição a infecções estreptocócicas in-
o último surto reumático; pacientes nos quais é retira- cluem crianças e adolescentes, pais de crianças jovens,
da a profilaxia e os sintomas retornam deverão ter pro- professores, médicos, enfermeiras, outros profissionais
filaxia mantida por mais cinco anos. Pacientes com aco- de saúde em contato com crianças, recrutas militares
metimento cardíaco, mesmo discreto, deverão ter pro- e outros em ambientes cheios e fechados (aglomera-
filaxia prolongada, de preferência por toda a vida; quan- ções). Tem-se demonstrado alto risco de recorrência
do isso não for possível, até a quinta década.(2, 5) em populações com dificuldades econômicas.
Desde os primeiros trabalhos sobre a profilaxia, Médicos devem considerar cada situação individual
vários centros acadêmicos têm incentivado a forma- quando determinam a duração adequada da profilaxia.

88 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


Pacientes que tiveram car- Tabela 3. Duração da profilaxia antibiótica em pacien-
dite reumática são tam- tes com febre reumática.
bém de alto risco relativo
TARASOUTCHI F de recorrência de cardite Categoria Duração
e col. e provavelmente de man-
Profilaxia da ter um envolvimento cardí-
febre reumática Febre reumática com cardite Pelo menos dez anos
aco grave e crescente com e seqüela valvar após o último surto,
cada recorrência. Por isso, pelo menos até os 40
pacientes que tiveram car- anos
dite reumática devem re- Algumas vezes pela
ceber profilaxia antibiótica ‘ vida inteira
por longos períodos, talvez Febre reumática com cardite Dez anos ou até a
por toda a vida. A duração da profilaxia depende de sem seqüela valvar idade adulta,
haver ou não valvulopatia residual. A profilaxia deve o que for mais longo
ser mantida mesmo após a cirurgia valvular, incluindo Febre reumática sem cardite Cinco anos ou até os
colocação de prótese valvular. Pacientes que tiveram 21 anos, o que for
febre reumática sem cardite são consideravelmente de mais longo
menor risco para envolvimento cardíaco com recorrên-
cia. Portanto, a profilaxia pode ser interrompida nes-
ses indivíduos após vários anos. Em geral, a profilaxia PERSPECTIVAS
deve continuar até cinco anos após o último ataque de
febre reumática ou 21 anos de idade, conforme seja o O maior desafio para o controle efetivo da febre reu-
tempo. A decisão de interromper ou reiniciar a profila- mática é o desenvolvimento de uma vacina contra o
xia deve ser feita após discussão com o paciente dos estreptococo beta-hemolítico do grupo A. Essa vacina
potenciais riscos e benefícios, além de cuidadosa con- traz muitos desafios, sendo o principal deles identificar
sideração dos fatores de risco epidemiológicos citados um peptídeo que ao mesmo tempo confira proteção e
anteriormente (Tab. 3). Em pacientes que possuam não desencadeie a reação imune tardia que causa a
exposição ocupacional ao estreptococo, como médi- febre reumática. No Instituto do Coração (InCor/HC-
cos, dentistas, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, FMUSP), o grupo do laboratório de imunologia tem fei-
professores, trabalhadores em creches e que tenham to pesquisas relevantes sobre a fisiopatologia da febre
seqüelas graves decorrentes da febre reumática, a pro- reumática(19) e trabalha atualmente para o desenvolvi-
filaxia deve ser mantida enquanto persistir a exposição mento de vacina, que poderá ser o desenvolvimento
ocupacional. Dessa forma, esse grupo de pacientes que vai erradicar definitivamente as complicações tar-
deve manter a profilaxia enquanto estiverem atuando dias de infecções estreptocócicas, como a febre reu-
profissionalmente. mática.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 89


RHEUMATIC FEVER PROPHYLAXIS
TARASOUTCHI F
e col. FLÁVIO TARASOUTCHI, GUILHERME SOBREIRA SPINA
Profilaxia da
febre reumática

For the prevention of acute rheumatic fever, identification and early treatment of
streptococcal pharingoamigdalytis is essential. Erradication of group A streptococci
is achieved by a single dose of benzathine penicillin G or via a 10-day course of oral
antibiotics. In the antibiotic selection several factors must be considered, such as:
cost, clinical and bacteriological efficacy and compliance to the prescribed regimen.
Still today, penicillin is the antibiotic of choice for primary and secondary prophylaxis
of rheumatic fever, except in patients with penicillin allergy. Patients with a rheumatic
fever diagnosis must undertake secondary prophylaxis for the prevention of recur-
rent attacks which can lead to progression of the disease. In countries with high
prevalence of rheumatic fever and rheumatic heart disease secondary prophylaxis
must be achieved with benzathine penicillin G applications with 21-day intervals.

Key words: rheumatic fever, prophylaxis, valvular heart disease.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:85-91)


RSCESP (72594)-1512

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 91


INDICAÇÃO CIRÚRGICA NA
GRINBERG M e col. FEBRE REUMÁTICA AGUDA
Indicação cirúrgica na
febre reumática aguda

MAX GRINBERG, GUILHERME SOBREIRA SPINA

Unidade Clínica de Valvopatia — Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP

Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 —


CEP 05403-900 — São Paulo — SP

A febre reumática ainda tem alta prevalência em nosso meio, e sua manifestação
mais temível é a cardite reumática. A cardite acarreta inflamação de todos os folhe-
tos do coração, mas suas conseqüências manifestam-se de forma mais pronuncia-
da no miocárdio e no endocárdio. A insuficiência cardíaca na cardite grave ocorre
tanto por disfunção miocárdica como por aparecimento ou aumento de regurgitação
valvar. Nos raros casos de insuficiência cardíaca refratária, a pulsoterapia se faz
necessária; se houver insuficiências graves, pode ser necessária a abordagem ci-
rúrgica na fase aguda da doença. Tal intervenção, entretanto, deve ser realizada no
período de estado apenas em pacientes com insuficiência cardíaca refratária, pelas
dificuldades técnicas e alta mortalidade.

Palavras-chave: febre reumática, cardite reumática aguda, tratamento, indicação


cirúrgica.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:92-6)


RSCESP (72594)-1513

INTRODUÇÃO to jovens e freqüentemente determina múltiplas inter-


nações hospitalares e cirurgias. Estima-se que 30% das
A prevalência de febre reumática e de cardiopatia cirurgias cardíacas no Brasil se devam a seqüelas de
reumática crônica em uma determinada comunidade febre reumática, porcentual que se eleva a 90% quan-
são reflexo do nível de cuidados preventivos primári- do consideramos apenas as cirurgias cardíacas infan-
os(1). Em muitos países desenvolvidos a doença tor- tis. Segundo dados do DATASUS (Fig. 1), nos últimos
nou-se rara, enquanto em países em desenvolvimen- dez anos houve uma média de 10 mil casos de febre
to, como o Brasil, a cardiopatia reumática crônica per- reumática aguda por ano que necessitaram de inter-
manece como a maior causa de doença cardíaca en- nação hospitalar. Esse é um valor extremamente ele-
tre crianças e adultos jovens. vado, considerando-se que esta, entre as doenças car-
A febre reumática é seqüela de uma infecção de diológicas, é com certeza a mais facilmente evitável(2).
orofaringe pelo estreptococo beta-hemolítico do grupo A Figura 1 analisa internações por febre reumática agu-
A de Lancefield, e acomete 3% a 4% das crianças não da, segundo dados do sistema DATASUS. Devemos
tratadas. A doença reumática cardíaca aparece no pe- ressaltar que a internação por febre reumática aguda
ríodo de quatro a oito semanas ou mais tardiamente é evento raro, que ocorre em menos de 5% dos casos.
em cerca de 30% das crianças acometidas por febre Em geral, os surtos reumáticos podem ser acompa-
reumática. A doença reumática é das que acarretam nhados e medicados ambulatorialmente. A quase tota-
maiores custos para o Sistema Único de Saúde e para lidade dos casos de artrite e de coréia reumáticas pode
a comunidade em geral, pois acomete indivíduos mui- ser acompanhada sem necessidade de internação.

92 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


Dessa forma, a maior O uso precoce de antiinflamatórios não-hormonais tam-
parte dos pacientes com bém pode dificultar o reconhecimento da cardite reu-
atividade reumática que mática, impedindo seu reconhecimento e tratamento
GRINBERG M e col. necessita de internação adequados.
Indicação cirúrgica na são aqueles com acome- Freqüentemente a cardite aguda reumática é as-
febre reumática aguda timento cardíaco de grau sintomática, e nem por isso é menos grave: muitos pa-
importante. Esses pacien- cientes apresentam-se tardiamente com sintomas de-
tes têm quadros que po- correntes de seqüelas valvares reumáticas, não saben-
dem variar de leve insufi- do relatar sintomas compatíveis com surto agudo reu-
ciência cardíaca até a car- mático. Como o uso de antiinflamatórios hormonais e,
dite fatal, quadro que ain- principalmente, a instituição precoce da profilaxia se-
da ocorre em países com cundária podem mudar radicalmente o prognóstico des-

Figura 1. Número de casos de febre reumática aguda internados por ano.

alta incidência de febre reumática, como o nosso. Em ses pacientes, o diagnóstico do surto de cardite aguda
casos raros, o acometimento cardíaco pode ser de tal é de extrema importância.
importância que há a necessidade de tratamento cirúr- Hoje podemos dizer que há dois tipos de cardite
gico na fase de estado da doença. grave: a cardite considerada grave por ter sintomas de
insuficiência cardíaca e miocardite na fase aguda e a
QUADRO CLÍNICO DA CARDITE REUMÁTICA cardite silente na fase aguda, mas que determina im-
portantes seqüelas valvares, que se tornam clinicamen-
A cardite é a mais grave das manifestações da fe- te aparentes décadas após o surto agudo.
bre reumática, por deixar seqüelas (cardiopatia reumá- Pode ser didaticamente dividida em :
tica crônica). Em nosso meio, cada vez mais pacientes — Cardite leve — Paciente com quadro de taquicardia
têm quadros de cardite e se apresentam assintomáti- desproporcional à febre, abafamento da primeira bu-
cos ou oligossintomáticos, tornando cada vez mais di- lha, sopros sistólicos regurgitativos discretos em
fícil o diagnóstico da cardite aguda. O fato de a cardite área mitral, aumento do intervalo PR no eletroardi-
ser uma manifestação predominantemente celular faz ograma, com área cardíaca normal à radiografia. Na
com que possam não haver outros sintomas como ar- quase totalidade dos casos é assintomática.
trite e/ou coréia, manifestações predominantemente — Cardite moderada — Compreende os sintomas da
humorais, dificultando assim o reconhecimento da do- cardite leve acrescidos de pericardite (dor precordi-
ença. Outras manifestações celulares como os nódu- al que melhora com a posição genopeitoral, e piora
los subcutâneos podem acompanhar a cardite, e por com o decúbito e com a inspiração, acrescida de
isso são classicamente marcadores de cardite grave. atrito pericárdico à ausculta). Os sopros em geral

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 93


são mais intensos e há au- inflamatória. Considerando-se que as lesões valvula-
mento discreto a modera- res reumáticas são lentas e progressivas, a baixa pro-
do da área cardíaca, po- dução de IL-4 e, conseqüentemente, a manutenção da
GRINBERG M e col. dendo haver imagem car- inflamação local estão correlacionadas com a progres-
Indicação cirúrgica na díaca sugestiva de derra- são das lesões valvares na doença reumática cardía-
febre reumática aguda me pericárdico. O eletro- ca, enquanto no miocárdio, em que há grande número
cardiograma pode revelar de células produtoras de IL-4, ocorre cura da miocardi-
prolongamento do interva- te após algumas semanas(5).
lo QT, complexos QRS de
baixa voltagem e sobre- QUADRO CLÍNICO
carga de câmaras esquer-
das. A maioria dos pacien- O exame físico na cardite grave em geral revela ta-
tes que não apresenta pericardite é assintomática. quicardia, sendo característicos os sopros mitrais. O
— Cardite grave — O principal sintoma da cardite gra- aumento do volume de sangue proveniente do átrio es-
ve é a insuficiência cardíaca. Pode ocorrer já no pri- querdo pode também gerar um sopro diastólico, espe-
meiro surto de febre reumática, mas é mais comum cialmente quando os folhetos mitrais estão espessa-
nas recorrências desta. Pode se iniciar de forma dos, como acontece na doença reumática. Na fase ati-
inespecífica, com anorexia, astenia, palidez e taquip- va dessa doença, observamos hipofonese de B1, as-
néia, principalmente em crianças. Tais sintomas logo sociada a sopro sistólico regurgitativo e sopro diastóli-
são superajuntados àqueles da insuficiência cardí- co em ruflar sem reforço pré-sistólico (sopro de Carey-
aca, como edema de membros inferiores, oropnéia, Coombs). A valvulite aguda leva à insuficiência mitral
dispnéia paroxística noturna e hepatomagalia dolo- aguda, que determina aumento do volume em átrio
rosa. esquerdo e aumento do fluxo sanguíneo na diástole
atrial, que faz vibrar a valva espessada pelo processo
FISIOPATOLOGIA DA CARDITE REUMÁTICA inflamatório agudo. Pelos motivos acima descritos, esse
sopro é indicativo de valvulite reumática ativa. Diferen-
Hoje na literatura há diversos relatos de que a dis- ciamos esse sopro da dupla disfunção mitral estabele-
função miocárdica na cardite reumática seria decor- cida por não haver hiperfonese de B1, estalido de aber-
rente apenas do grau de regurgitação valvar. Essa teo- tura de mitral ou reforço pré-sistólico no sopro diastóli-
ria foi baseada no fato de que não foram achadas ele- co, além do quadro clínico, que é bastante diferente
vações dos níveis séricos de troponinas cardíacas na nas duas doenças. O sopro mais comum na cardite
fase aguda da febre reumática. Discordamos, entretan- reumática é o sopro sistólico regurgitativo mitral.
to, dessa interpretação. Na cardite aguda, o fator mio- O eletrocardiograma pode revelar sobrecarga de câ-
cárdico é somado ao fator valvar para, em conjunto, maras esquerdas e, por vezes, arritmias atriais. Um si-
produzirem os sintomas da insuficiência cardíaca. nal importante nesse exame é a presença de bloqueio
Devemos lembrar que nem sempre é necessário que atrioventricular do primeiro grau, que inclusive é crité-
haja necrose miocárdica para que a disfunção ventri- rio menor de Jones para o diagnóstico. A radiografia
cular se estabeleça. Fatores humorais presentes nos de tórax em geral apresenta grande aumento da área
estados inflamatórios, como as citocinas pró-inflama- cardíaca e da congestão pulmonar. O ecocardiograma,
tórias, podem produzir disfunção ventricular reversível especialmente o transesofágico, além do espessamento
sem necrose miocárdica. O fator de necrose tumoral valvar e das insuficiências valvares, pode mostrar as
alfa (TNF) e a interleucina-6 (IL-6) podem produzir dis- pequenas verrucosidades reumáticas na borda das
função ventricular por vias dependentes de esfingomi- valvas características de atividade reumática. Outro
elinase(3, 4) neutra e de óxido nítrico. Assim, a fase agu- exame de imagem que pode ser útil nessa fase é a
da da febre reumática pode produzir disfunção ventri- cintilografia cardíaca com gálio-67, que tem boa espe-
cular reversível sem necrose miocárdica. cificidade para a miocardite reumática.
É interessante também observarmos que a respos-
ta inflamatória que ocorre na valva é diferente da res- TERAPÊUTICA
posta inflamatória que ocorre no miocárdio na febre
reumática. A análise do perfil de citocinas no tecido As medidas gerais são muito importantes, como res-
cardíaco de pacientes com doença reumática cardía- trição hidrossalina e repouso absoluto, por quatro a seis
ca grave mostrou predomínio de células mononuclea- semanas no caso da cardite leve e moderada e até o
res secretoras de TNF alfa e IFNγ (padrão Th1), en- controle da insuficiência cardíaca no caso da cardite
quanto raras células mononucleares infiltrantes das grave, com retorno gradual às atividades após esse
válvulas produzem IL-4, citocina reguladora da resposta período. Embora alguns grupos tenham utilizado an-

94 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


tiinflamatórios não-hormo- altas doses (pulsoterapia com metil-prednisolona) an-
nais no tratamento da car- tes de serem considerados para cirurgia.
dite, entendemos que A valvulite reumática aguda pode produzir lesões
GRINBERG M e col. como mais grave manifes- valvares de importante repercussão hemodinâmica na
Indicação cirúrgica na tação da doença reumáti- fase aguda, podendo levar à rotura de cordas tendíne-
febre reumática aguda ca, a cardite deve ser tra- as da valva mitral. Essa insuficiência mitral aguda é de
tada necessariamente difícil compensação clínica, e freqüentemente pode ne-
com antiinflamatórios hor- cessitar de correção cirúrgica ainda na fase aguda da
monais. Também destaca- doença. A febre reumática aguda também pode levar,
mos que atualmente, embora mais raramente, a graves disfunções e até ro-
como a maioria (mais de tura da valva aórtica.
80%) dos casos de cardi- O tratamento cirúrgico na fase aguda traduz-se em
te reumática aguda é assintomática, a identificação de maior risco para o paciente, pois, em decorrência da
cardite reumática, mesmo que subclínica, demonstra inflamação, as estruturas estão mais friáveis e mesmo
que há grande inflamação miocárdica, que deve ser o acesso ao campo cirúrgico pode estar prejudicado,
tratada vigorosamente por sua gravidade. Dessa for- caso esteja presente a pericardite fibrinosa da febre
ma, não aconselhamos o uso de antiinflamatórios não- reumática.
hormonais para o tratamento da cardite.
O antiinflamatório de escolha é a prednisona, na CUIDADOS COM O CANDIDATO A CIRURGIA NA
dose de 1 mg/kg para os casos leves e de 2 mg/kg nos FASE AGUDA DA FEBRE REUMÁTICA
casos graves, máximo de 60 mg/dia, com uma dose
por dia, pela manhã. Em pacientes com insuficiência Pacientes com febre reumática aguda que estão
cardíaca de difícil controle está indicada a pulsotera- sendo considerados para cirurgia cardíaca represen-
pia com metilprednisolona, na dose de 1 g por três dias tam uma população de extrema gravidade e, dessa for-
consecutivos (diluído em soro e administrado lentamen- ma, devem ser preferencialmente cuidados em ambi-
te), podendo ser repetida até quatro vezes. Em crian- ente de terapia intensiva, com monitorização constan-
ças a dose é de 10 mg/kg a 40 mg/kg de metilpredni- te. O uso de diuréticos venosos (digital) é útil e como a
solona, e após a pulsoterapia os pacientes devem con- quase totalidade das lesões agudas da febre reumáti-
tinuar com corticoterapia oral. Os corticóides devem ser ca consiste de regurgitações valvares, está indicado o
mantidos por três a quatro semanas em dose máxima, uso de vasodilatadores, como os inibidores da enzima
quando então deve ser feita a retirada gradual, e mé- conversora de angiotensina ou, nos casos críticos, o
dia de 20% por semana, não sendo necessária, em nitroprussiato de sódio venoso. Esses pacientes fre-
nossa experiência, associação de ácido acetilsalicílico qüentemente necessitam também se suporte inotrópi-
na retirada do corticóide. A duração da corticoterapia co com dobutamina na dose de 5 µg/kg/min a 20 µg/
pode ser guiada por parâmetros clínicos, como a ta- kg/min. Casos com congestão pulmonar refratária po-
quicardia (o mais sensível marcador clínico de ativida- dem se beneficiar de pressurização das vias aéreas
de reumática) ou o grau de insuficiência cardíaca. Pa- com ventilação não-invasiva e CPAP. Devemos ressal-
râmetros laboratoriais como mucoproteínas, alfa-1 gli- tar que não devem ser esperadas grandes melhoras
coproteína ácida e fração alfa-2 da eletroforese de pro- hemodinâmicas para a indicação cirúrgica.
teínas também devem ser usados para acompanha-
mento da terapêutica. Técnica cirúrgica
Apesar da gravidade do quadro, o tratamento cirúr-
TRATAMENTO CIRÚRGICO gico na fase aguda da febre reumática nem sempre é
sinônimo de troca valvar. Em nosso meio, procedimen-
O tratamento cirúrgico em pacientes com febre reu- tos conservadores têm sido descritos para o tratamen-
mática pode ser considerado uma medida de exceção. to das lesões decorrentes da febre reumática aguda(6).
A maioria dos pacientes tem boa resposta clínica quan- Crianças e adolescentes constituem a maioria dos pa-
do realizada corticoterapia, seja por via oral seja endo- cientes reumáticos com cardite grave, e sabe-se que
venosa, na forma de pulsoterapia, nos casos mais gra- nessa faixa etária o implante de prótese biológica está
ves. Apenas pacientes que têm insuficiência cardíaca associado a alto índice de calcificação e necessidade
refratária, associada a importante disfunção ventricu- precoce de reoperação por disfunção protética. Como
lar, devem ser considerados para tratamento cirúrgico solução alternativa, o implante de prótese metálica
na fase aguda da doença. De modo geral, os pacientes mostra-se pouco satisfatória em nossa realidade, pois
que são considerados para tratamento cirúrgico devem o fato de serem portadores de febre reumática já de-
ter ao menos realizado tratamento com corticóide em monstra que esses pacientes provêm de áreas e de

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005 95


realidades com difícil dificuldades para se adequar às necessidades de se-
acesso à assistência mé- guimento e cuidado demandadas pela anticoagulação
dica, e assim têm muitas oral.
GRINBERG M e col.
Indicação cirúrgica na
febre reumática aguda

SURGICAL INDICATION IN ACUTE RHEUMATIC FEVER

MAX GRINBERG, GUILHERME SOBREIRA SPINA

Rheumatic fever is still frequent and its most dreadful feature is the rheumatic
carditis. Carditis leads to inflammation of all layers of the heart, but the myocarditis
and the rheumatic endocarditis are the features that lead to severe consequences.
Heart failure ensues due to myocarditis and also due to new or increased valvular
regurgitation. In the rare cases of heart failure resistant to conventional treatment
high-dose intravenous corticosteroid therapy is essential and surgical correction of
the valvular regurgitations may be necessary. However, the surgery correction, due
to its high risk, must only be performed in patients who fail to improve with medical
treatment.

Key words: rheumatic fever, acute rheumatic carditis, treatment, surgical indication.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1:92-6)


RSCESP (72594)-1513

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96 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 — Janeiro/Fevereiro de 2005


FATORES DE RISCO EM PACIENTES COM INFARTO
AGUDO DO MIOCÁRDIO EM HOSPITAL PRIVADO
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em
pacientes com infarto
agudo do miocárdio em KELLI CRISTINA SILVA DE OLIVEIRA, MARIA LÚCIA ZANETTI
hospital privado

Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo

Av. Bandeirantes, 3900 — Bairro Monte Alegre — Campus Universitário — USP —


CEP 14040-902 — Ribeirão Preto — SP

Este estudo descritivo teve como objetivo identificar os fatores de risco relaciona-
dos ao meio ambiente, à biologia humana, ao estilo de vida e aos serviços de saúde
dos pacientes internados em um hospital privado, até 48 horas após o infarto agudo
do miocárdio. Foram entrevistados 31 pacientes infartados, no período de janeiro a
julho de 2003. Os resultados apontam que, dos 31 (100%) pacientes investigados, a
maioria era alfabetizada (93,5%), do sexo masculino (61,3%), encontrava-se na fai-
xa etária de 40 a 49 anos (54,9%), com sobrepeso ou obesidade classes I e II
(58,1%), e apresentava antecedentes familiares de hipertensão arterial sistêmica
(74,2%). Observou-se que 93,6% deles utilizavam frituras nas refeições, 58,1% fazi-
am uso de bebida alcoólica, 32,2% eram fumantes e 29,0% eram ex-fumantes, 58,1%
não praticavam atividade física, e 54,8% estavam realizando tratamento de hiper-
tensão arterial e diabetes melito. Com isso, ficou demonstrada a necessidade de
implementação de programa educativo específico para a prevenção de condições
crônicas de saúde para essa clientela.

Palavras-chave: fatores de risco, infarto do miocárdio, enfermagem.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1 Supl A:1-11)


RSCESP (72594)-1514

INTRODUÇÃO população. Esse fenômeno, que foi observado princi-


palmente nos países desenvolvidos, hoje vem ocorren-
As doenças não-transmissíveis são responsáveis do também nas áreas mais desenvolvidas dos chama-
pelas principais causas de morte e incapacidade no dos países de Terceiro Mundo(4, 5).
mundo e representam grande desafio para o setor de Numa revisão da literatura, as pesquisadoras verifi-
saúde no que se refere ao desenvolvimento global(1, 2). caram que a classificação dos fatores de risco para as
Na América Latina e no Caribe, as doenças não- doenças cardiovasculares, em particular o infarto agu-
transmissíveis de maior importância para a Saúde Pú- do do miocárdio, tem sido ampliada. Dentre os fatores
blica são as cardiovasculares, o câncer e o diabetes de risco que predispõem as pessoas às doenças car-
melito. As doenças cardiovasculares abrangem a do- diovasculares estão: hábitos do estilo de vida (aumen-
ença isquêmica cardíaca, a doença cerebrovascular, a to da ingesta de gordura saturada, colesterol, sedenta-
hipertensão arterial, a falência cardíaca e a doença car- rismo, tabagismo, hipertensão arterial, dislipidemias,
díaca reumática(1-3). intolerância à glicose, resistência à insulina) e história
Dentre as doenças cardiovasculares, destacamos familiar de doença cardiovascular prematura (obesida-
a doença isquêmica cardíaca, que está intimamente de, alcoolismo e estresse)(6).
ligada ao processo de aterosclerose, em decorrência Assim, quando as pessoas se expõem a esses fa-
do aumento da vida média e do envelhecimento da tores de risco, ficam sujeitas a essas doenças. No en-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 1
tanto, devemos considerar quatro elementos principais: meio ambiente, biologia
que a exposição a tais fa- humana, estilo de vida e organização do sistema de
tores também é decorren- saúde. Construídos a partir da identificação das cau-
te de pobreza, baixos ní- sas e dos fatores que desencadeavam doenças e mor-
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em veis de escolaridade, ali- tes no Canadá, esses elementos possibilitaram esta-
pacientes com infarto mentação inadequada, fal- belecer o nível de saúde da população, naquele país.
agudo do miocárdio em ta de saneamento básico Quanto ao conceito de meio ambiente, este inclui
hospital privado e qualidade do ambiente todos os aspectos relacionados à saúde externos ao
em que o indivíduo vive, corpo humano e relacionados ao ambiente tanto físico
situações que levam à como social dos indivíduos. A biologia humana abran-
maior exposição de agen- ge os aspectos físicos e mentais da saúde, que se re-
tes patológicos(1). ferem ao corpo humano e à constituição orgânica do
Então, é necessário que o profissional de saúde e indivíduo. Já o estilo de vida consiste no conjunto de
os tomadores de decisão da área da saúde compreen- decisões tomadas pelo indivíduo, sobre as quais ele
dam o conceito de risco. Os fatores de risco referem- possui maior ou menor controle e que afetam sua saú-
se a qualquer atributo de exposição do indivíduo que de. Do ponto de vista da saúde, decisões e hábitos
aumente a probabilidade de que ele padeça de enfer- pessoais insatisfatórios criam os riscos autocriados. Por
midade não-transmissível. No contexto da Saúde Pú- fim, a organização do sistema de saúde é definido quan-
blica, as verificações desses fatores nos auxiliam a to a qualidade, quantidade, administração, natureza e
descrever a distribuição de uma enfermidade futura relações de pessoas e recursos, no oferecimento do
numa população e não a predizer a saúde de uma pes- cuidado de saúde, do qual fazem parte a equipe e as
soa em particular(2). instituições de saúde.
Cabe ressaltar que a construção do risco tem cará-
ter coletivo e, portanto, a associação de condições de OBJETIVO
risco faz parte do processo de produção de doenças.
Outro ponto a considerar é que a concepção de risco Identificar os fatores de risco relacionados ao meio
difere de pessoa para pessoa, pois a percepção acer- ambiente, à biologia humana, ao estilo de vida e aos
ca desse mesmo risco é influenciada pela cultura, pelo serviços de saúde de pacientes internados em hospi-
meio ambiente, pela mídia e por grupos de interesse e tal privado, até 48 horas após o infarto agudo do mio-
acesso aos produtos, e motivada pelo processo de glo- cárdio.
balização, que ocorre nas últimas décadas(2).
Mesmo considerando que não é possível modificar MATERIAL E MÉTODOS
muitos dos fatores de risco associados às doenças, os
pesquisadores têm procurado identificá-los e quantifi- Delineamento do estudo
cá-los para a saúde. Utilizamos, para esse fim, o método descritivo.
Partindo dessas considerações, procuramos identi-
ficar, por meio deste estudo, o estilo de vida dos paci- Local do estudo
entes com infarto agudo do miocárdio, tendo em vista A pesquisa foi desenvolvida no Hospital São Fran-
os avanços tecnológicos e terapêuticos que auxiliam cisco e no Hospital do Coração de Ribeirão Preto, no
no tratamento da doença isquêmica do coração, pro- Estado de São Paulo.
longando, assim, a vida do paciente.
População e amostra do estudo
REFERENCIAL TEÓRICO No período de janeiro a julho de 2003, 42 pacientes
foram internados na Unidade Coronariana do hospital
Diante da abrangência dos fatores de risco que en- em estudo, com suspeita diagnóstica de infarto agudo
volvem os pacientes com infarto agudo do miocárdio, do miocárdio. A amostragem feita por conveniência
ou seja, os fatores biológicos, sociais, culturais e o sis- atendeu aos seguintes critérios de inclusão: o paciente
tema de saúde, optamos por utilizar o referencial teóri- deveria apresentar diagnóstico de infarto agudo do
co de Campo de Saúde(7). Essa escolha possibilitará a miocárdio, confirmado mediante a realização de exa-
análise de aspectos que abrangem o processo de do- me clínico pelo médico; eletrocardiograma e alterações
ença dos pacientes, os quais apresentam essa condi- dos exames laboratoriais de dosagem de enzimas da
ção crônica sob diferentes formas, ou seja, meio ambi- creatina-cinase-CK com as isoenzimas; desidrogena-
ente, biologia humana, estilo de vida e organização do se lática-LDH e músculo cardíaco-CKMB; encontrar-
sistema de saúde. se no segundo dia de infarto agudo do miocárdio, ou
O conceito de Campo de Saúde é composto por seja, até 48 horas após o infarto agudo do miocárdio;

2 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
estar sem dor e concordar preconizadas para um estudo descritivo, sendo a mes-
em participar da pesquisa ma fundamentada no referencial teórico do Modelo de
após assinatura do termo Campo de Saúde.
de consentimento informa-
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em do. Assim, a amostra foi Aspectos éticos
pacientes com infarto constituída por 31 pacien- Submetemos o estudo à análise do Comitê de Ética
agudo do miocárdio em tes internados com infarto da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Uni-
hospital privado agudo do miocárdio. versidade de São Paulo e, após sua aprovação, escla-
recemos aos sujeitos participantes os objetivos e a na-
Variáveis do estudo tureza da investigação. Antes de iniciarmos as entre-
As variáveis do estudo vistas, os participantes assinaram o termo de consen-
foram relacionadas à iden- timento.
tificação (nome, registro, enfermaria, leito, endereço
completo e tipo de plano de saúde), ao meio ambiente RESULTADOS E DISCUSSÃO
(nível de instrução, profissão, ocupação, turno de tra-
balho, número de empregos, renda familiar, estado ci- Análise das variáveis relacionadas à identificação
vil, número de filhos, procedência e local de residên- e ao meio ambiente
cia), à biologia humana (sexo, idade, peso, altura, índi- Dos 31 (100%) pacientes investigados, 21 (67,7%)
ce de massa corporal, história familiar de doenças car- receberam atendimento do plano de saúde São Fran-
diovasculares, antecedentes familiares de morte por cisco Clínicas; 2 (6,5%), da Cooperativa de Trabalho
doença cardiovascular e uso de hormônio feminino), Médico Unimed-Ribeirão Preto-SP; 1 (3,2%), particu-
ao estilo de vida (causas atribuídas pelo paciente para larmente; e 7 (22,6%), de outros planos de saúde.
a ocorrência do infarto agudo do miocárdio, hábitos ali- Em relação ao nível de instrução, os dados mais
mentares, consumo de bebidas alcoólicas, atividade expressivos apontam que 5 (16,1%) cursaram o pri-
física, tabagismo, estresse e padrão do sono), e ao sis- meiro grau incompleto e 11 (35,5%), o primeiro grau
tema de saúde (informações referentes à doença atu- completo (Tab. 1).
al, conhecimento do diagnóstico, dúvidas quanto à do- Estudo randomizado realizado no Brasil, sobre os
ença, tratamentos médicos e utilização de outro siste- fatores de risco para o infarto agudo do miocárdio, de-
ma de saúde). monstrou que, quanto ao grau de instrução, os pacien-
tes, em sua maioria, eram analfabetos ou com baixo
Elaboração do instrumento de coleta de dados grau de escolaridade. Demonstrou, ainda, que não hou-
Elaboramos um roteiro sistematizado, consideran- ve diferenças significativas entre os pacientes investi-
do as variáveis do estudo, a experiência pessoal do gados quanto ao nível de escolaridade e risco para o
pesquisador e a revisão da literatura. Esse instrumen- desenvolvimento do infarto agudo do miocárdio(8).
to, composto de cinco partes, continha 42 questões Quanto à profissão, os dados desta pesquisa de-
semi-abertas e três abertas. monstraram que 12,9% e 9,7% dos pacientes eram em-
presários e comerciantes, respectivamente, o que leva
Estudo piloto a pensar que esses indivíduos podiam estar de algu-
O estudo piloto foi realizado na Unidade Coronaria- ma forma sob estresse ocupacional (Tab. 1).
na do hospital em estudo, em janeiro de 2003, com Em relação ao turno de trabalho, 24 (77,4%) paci-
cinco pacientes infartados. entes com infarto agudo do miocárdio desenvolviam
seu trabalho no período diurno; 1 (3,2%), no vesperti-
Coleta de dados no; 4 (12,9%) deles encontravam-se sem trabalho; e 2
Obtivemos os dados das variáveis do estudo medi- (6,5%), em outros turnos.
ante entrevistas dirigidas, realizadas na Unidade Co- Em relação a estarem ou não empregados, dos 31
ronariana, ocasião em que o pesquisador registrou no (100%) pacientes investigados, 24 (77,4%) tinham um
instrumento os dados colhidos. emprego; 2 (6,5%), dois; 1 (3,2%), quatro ou mais; e 4
(12,9%) encontravam-se sem trabalho.
Organização dos dados para análise A renda familiar dos pacientes com infarto agudo
Os dados contidos no formulário receberam códi- do miocárdio variou de 2 a 15 salários mínimos ou mais
gos específicos, quando selecionamos as variáveis, que (Tab. 1). Em contrapartida, a renda familiar da maioria
eram transportadas para uma planilha. Montamos a dos pacientes com infarto agudo do miocárdio atendi-
estrutura do banco de dados a partir das planilhas, da em hospital público era inferior a 3 salários-míni-
sendo o mesmo formatado no programa SPSS 9.0 for mos(9).
Windows. Para análise dos dados, utilizamos normas A associação entre um pobre estado de saúde e

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 3
Tabela 1. Distribuição numérica e porcentual de pacientes com infarto agudo do
miocárdio, internados em hospital privado, segundo escolaridade, profissão, ocupa-
ção, renda familiar e estado civil — Ribeirão Preto, SP, 2003.
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em n %
pacientes com infarto
agudo do miocárdio em Escolaridade
hospital privado
— Analfabeto 2 6,5
— Primeiro grau incompleto 5 16,1
— Primeiro grau completo 11 35,5
— Segundo grau incompleto 3 9,7
— Segundo grau completo 6 19,3
— Nível superior incompleto 1 3,2
— Nível superior completo 3 9,7
Profissão
— Médico 1 3,2
— Professor 1 3,2
— Administrador de empresa 1 3,2
Ocupação
— Dona de casa 6 19,3
— Aposentado 5 16,1
— Empresário 4 12,9
— Comerciante 3 9,7
— Representante comercial 2 2,5
— Artesão 2 2,5
— Trabalhador rural 2 2,5
— Vendedor 2 2,5
— Outros 5 16,1
Renda familiar
— Menor que 3 salários mínimos 4 12,9
— 3 a 5 salários mínimos 10 32,2
— 5 a 10 salários mínimos 10 32,2
— 15 ou mais salários mínimos 7 22,6
Estado civil
— Casado/amasiado 22 70,9
— Viúvo 4 12,9
— Desquitado/divorciado 3 9,7
— Solteiro 2 2,5

n = número de pacientes.

baixo nível socioeconômico tem sido observada no úl- isquêmica cardíaca(11), ressaltamos a importância da
timo século; assim, há fortes evidências de que a baixa participação da família no processo de reabilitação da
condição econômica constitui fator independente de pessoa acometida por infarto agudo do miocárdio para
risco para a doença(10). sua reintegração social(12).
Analisando o estado civil (Tab. 1) dos pacientes com No que se refere ao número de filhos, 8 (25,8%)
infarto agudo do miocárdio, observou-se que 22 (70,9%) pacientes tinham mais de três filhos; 7 (22,6%), três
eram casados/amasiados. Estudo realizado em um filhos; 7 (22,6%), dois filhos; 6 (19,3%), um filho; e 3
hospital público universitário de grande porte demons- (9,7%) não possuíam filhos. Ainda quanto ao número
trou que a maior parte dos pacientes era casada e ti- de filhos, cabe ressaltar que em todo o mundo as ta-
nha filhos(9). xas de natalidade estão recuando, as expectativas de
Além da relação entre situação conjugal do indiví- vida avançando e as populações envelhecendo. Na
duo e índices de morbidade e mortalidade por doença década de 50, por exemplo, a média de filhos em uma

4 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
família era de seis, porém dos pacientes, se encontravam na faixa etária de 30 a
hoje a taxa de fecundida- 59 anos de idade. Cabe destacar, no entanto, que 2
de total diminuiu para três (6,5%) infartados se encontravam na faixa etária de 30
filhos. Os dados encontra- a 39 anos, mostrando uma tendência para o infarto
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em dos neste estudo também agudo do miocárdio em adultos jovens, uma vez que a
pacientes com infarto refletem essas mudan- ocorrência do infarto agudo do miocárdio no Brasil foi
agudo do miocárdio em ças(2). de 58 anos(8).
hospital privado Quanto ao local de mo- Considerando que ocorre maior freqüência de paci-
radia, os 31 (100%) paci- entes infartados entre os elementos do sexo masculi-
entes residiam em área ur- no e que tradicionalmente são as mulheres que mais
bana, com infra-estrutura procuram os serviços de saúde para os cuidados de
(rede de energia elétrica e prevenção e/ou tratamento, estratégias efetivas são ne-
pavimentação das ruas). No entanto, estudando a pro- cessárias para atingir a população masculina como um
cedência dos 31 (100%) pacientes com infarto agudo todo, no sentido de incentivá-la a buscar práticas de
do miocárdio, verificamos que 14 (45,2%) eram proce- saúde saudáveis. As estratégias reportam-se a inter-
dentes de Ribeirão Preto (SP); 7 (22,6%), da região de venções comportamentais e técnicas para aumentar a
Ribeirão Preto (SP DIR XVIII) e 10 (32,2%), de outras aderência do indivíduo ao autocuidado, visando a di-
cidades do Estado de São Paulo. minuir os fatores de risco para o infarto agudo do mio-
Achamos importante investigar os aspectos relaci- cárdio. Por outro lado, é preciso que, para aqueles pa-
onados ao meio ambiente, pois o bom estado de saú- cientes que já sofreram o primeiro infarto agudo do
de é influenciado pelo estilo de vida, que guarda rela- miocárdio, os enfermeiros busquem estratégias edu-
ção direta com qualidade de vida e com clima harmo- cativas que dêem autonomia ao paciente, envolvendo-
nioso no ambiente de trabalho e social e consigo mes- o e responsabilizando-o pelo seu cuidado, mediante
mo(13). interação efetiva paciente-enfermeiro.
No que se refere ao índice de massa corporal, cons-
Análise das variáveis relacionadas à biologia tatou-se que 13 (41,9%) pacientes com infarto agudo
humana do miocárdio apresentaram índice de massa corporal
Em relação à faixa etária, constatamos que, dos 31 normal; 8 (25,8%), sobrepeso; 8 (25,8%), obesidade
(100%) pacientes investigados, 2 (6,5%) se encontra- classe I; e 2 (6,5%), obesidade classe II.
vam na faixa etária de 30 a 39 anos; 7 (22,6%), de 40 a Cabe ressaltar que dos 31 (100%) pacientes inves-
49 anos; 10 (32,2%), de 50 a 59 anos; 6 (19,3%), de 60 tigados, 10 (32,2%) estavam com obesidade classes I
a 69 anos; 5 (16,1%), de 70 a 79 anos; e 1 (3,2%), de e II (Tab. 3).

Tabela 2. Distribuição numérica e porcentual de pacientes com infarto agudo do miocárdio, internados em um
hospital privado, segundo sexo e faixa etária. Ribeirão Preto, SP, 2003.

Faixa etária (em anos)

30-39 40-49 50-59 60-69 70-79 80 ou mais Total


n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%) n (%)

Sexo
— Masculino 1 (3,2) 5 (16,1) 7 (22,6) 3 (9,7) 2 (6,5) 1 (3,2) 19 (61,3)
— Feminino 1 (3,2) 2 (6,5) 3 (9,7) 3 (9,7) 3 (9,7) 0 (0,0) 12 (38,7)
Total 2 (6,5) 7 (22,6) 10 (32,2) 6 (19,3) 5 (16,1) 1 (3,2) 31 (100)

n = número de pacientes.

80 anos ou mais. No que diz respeito ao sexo, 19 Também verificamos, na Tabela 3, que a obesidade
(61,3%) eram do sexo masculino e 12 (38,7%), do sexo classe II foi encontrada somente entre pacientes com
feminino (Tab. 2). infarto agudo do miocárdio do sexo feminino. A esse
Os dados do presente estudo apontam que 41,9% respeito, estudo realizado em um hospital público de-
dos homens e 19,4% das mulheres, ou seja, 61,3% monstrou que a maioria dos pacientes apresentou ín-

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 5
dice de massa corporal nor- farto agudo do miocárdio, como antecedente pessoal(15).
mal, enquanto estudo de Ao analisarmos os antecedentes familiares dos paci-
fatores de risco para infarto entes infartados de um hospital privado, encontramos que
agudo do miocárdio em 16 (51,6%) deles mencionaram os pais como hiperten-
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em mulheres indicou presença sos.
pacientes com infarto de sobrepeso e obesida- Os filhos de pais hipertensos são mais propensos a
agudo do miocárdio em de(14). desenvolver a doença do que aqueles de pais normoten-
hospital privado Considerando que paci- sos, pois quando pai e mãe são hipertensos a chance de
entes com sobrepeso ou o filho desenvolver a doença fica em torno de 50%(16, 17).
obesidade apresentam au- Quanto aos antecedentes familiares para diabetes

Tabela 3. Distribuição numérica e porcentual de pacientes com infarto agudo do miocárdio, internados em um
hospital privado, segundo sexo e índice de massa corporal — Ribeirão Preto, SP, 2003.

Índice de massa corporal (kg/m²)


Obesidade Obesidade
Normal Sobrepeso classe I classe II Total
n (%) n (%) n (%) n (%) n (%)

Sexo
— Masculino 9 (29,0) 5 (16,1) 5 (16,1) 0 (0,0) 19 (61,3)
— Feminino 4 (12,9) 3 (9,7) 3 (9,7) 2 (6,5) 12 (38,7)
Total 13 (41,9) 8 (25,8) 8 (25,8) 2 (6,5) 31 (100)

n = número de pacientes.

mento da morbidade e da mortalidade cardiovasculares melito, 15 (48,3%) referiram a doença entre seus familia-
quando comparados a pacientes com índice de massa res. Destes, 6 (19,3%) indicaram a mãe; 3 (9,7%), os ir-
corporal normal, e que 58,1% dos pacientes estudados mãos; 3 (9,7%), mãe/irmãos; 2 (6,5%), o pai; e 17 (54,8%)
se encontravam com sobrepeso ou obesidade, urge o desconheciam a presença de diabetes melito na família.
estabelecimento de protocolos de orientação que con- A mortalidade de pacientes diabéticos com infarto agudo
templem a obesidade como fator de risco para infarto do miocárdio é maior que entre os não-diabéticos, em
agudo do miocárdio. No caso, os profissionais devem ini- decorrência da extensão da área de necrose, da freqüên-
ciar tais orientações já no período de internação, com cia de choque e de insuficiência cardíaca(18).
acompanhamento durante o processo de reabilitação, evi- Cabe ressaltar que 17 (54,8%) dos pacientes investi-
tando assim novas recidivas. Devem, ainda, nortear sua gados não sabiam informar se havia diabetes melito na
prática em evidências científicas e acreditar que os pro- família, o que nos leva a pensar que os pacientes infarta-
gramas de saúde que proporcionam aconselhamento, dos desconheciam a presença de diabetes melito como
educação, retroalimentação e outros auxílios aos pacien- fator de risco para o infarto agudo do miocárdio. A impor-
tes podem oferecer resultados satisfatórios. tância da educação em saúde na abordagem desse fator
Dentre os 31 (100%) pacientes investigados, as prin- de risco justifica-se, pois os indivíduos diabéticos apre-
cipais doenças referidas na família estavam relacionadas sentam risco quatro a cinco vezes maior que a população
a hipertensão arterial, diabetes melito, angina do peito, geral de desenvolver insuficiência cardíaca(19).
infarto agudo do miocárdio, acidente vascular cerebral e Ao considerarmos que 29,0% dos pacientes infarta-
morte súbita. dos participantes dessa investigação se encontravam na
Em relação aos antecedentes familiares para doença faixa etária de 30 a 49 anos, e que 48,3% deles apresen-
cardiovascular, a hipertensão arterial foi citada por 23 tavam o diabetes melito como antecedente familiar, con-
(74,2%) pacientes, na seguinte ordem: mãe, pai e irmãos. sideramos necessário dispensar maior atenção aos cui-
Apenas 7 (22,6%) deles referiram que a família não apre- dados com as doenças associadas às cardiovasculares,
sentava hipertensão arterial e 1 (3,2%) desconhecia essa no que se refere à prevenção e à exposição de novos
informação. A hipertensão arterial sistêmica foi a mais fatores de risco, por meio da implementação de progra-
prevalente nos hospitais públicos em pacientes com in- mas educativos específicos para essa população.

6 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
Quanto à angina do pei- a sua prevenção.
to, apenas 7 (22,6%) paci-
entes mencionaram ante- Análise das variáveis relacionadas ao estilo de vida
cedentes familiares: 1 Ao investigarmos as principais causas para ocorrên-
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em (3,2%) citou o pai; 5 cia do infarto agudo do miocárdio, observamos que 9
pacientes com infarto (16,1%), a mãe; 1 (3,2%), o (29,0%) pacientes referiram o estresse; 5 (16,1%) não
agudo do miocárdio em irmão; 22 (70,9%) não ti- souberam indicá-la; 3 (9,7%) mencionaram sedentaris-
hospital privado nham nenhum caso de an- mo e estresse; e 2 (6,5%) indicaram estresse e nervosis-
gina do peito na família; e 2 mo. Esses dados apontam que o estresse foi a causa
(6,5%) não souberam infor- referida como a mais importante para o desencadeamento
mar. No que se refere ao in- do infarto agudo entre os pacientes investigados.
farto agudo do miocárdio, Estudo realizado com trabalhadores de uma destila-
17 (54,8%) referiram ocorrência de infarto agudo do mio- ria demonstrou que a maioria deles tinha algum conheci-
cárdio na família: 5 (16,1%) citaram a mãe; 8 (25,8%), o mento sobre os fatores de risco para as doenças cardio-
pai; 2 (6,5%), os irmãos; 1 (3,2%), pai e irmão; 1 (3,2%), vasculares, como dieta inadequada, falta de exercícios,
mãe e irmão; e 14 (45,2%) não tiveram nenhum caso de tabagismo, ingestão excessiva de sal, álcool, estresse e
infarto agudo do miocárdio na família. obesidade(22). Desse modo, constatamos que os riscos
Verificamos que 15 (48,4%) pacientes infartados, in- mais referidos estão ligados aos hábitos do estilo de vida
vestigados em hospital privado, apresentavam história e que alguns grupos específicos conhecem os hábitos
familiar para o infarto agudo do miocárdio, sendo o pai o autocriados. As principais causas atribuídas para a ocor-
antecedente mais freqüente. rência do infarto, entre os pacientes de um hospital públi-
Quando indagamos a respeito dos antecedentes fa- co, foram estresse e tabagismo(14).
miliares para acidente vascular cerebral, apenas 6 (19,3%) Assim, torna-se necessária a realização de outros es-
referiram história familiar: 3 (9,7%) indicaram o irmão; 2 tudos para conhecermos o significado da palavra estres-
(6,5%), a mãe; 1 (3,2%), o pai; 24 (77,5%) não tinham se para os pacientes e quais as implicações para sua
antecedentes familiares para acidente vascular cerebral; qualidade de vida, considerando que as evidências cien-
e 1 (3,2%) não soube informar. tíficas acerca do estresse, como fator de risco para o de-
Os dados deste estudo demonstram que apenas sencadeamento do infarto agudo do miocárdio, ainda são
19,3% dos pacientes infartados de um hospital privado inconclusivas.
referiram antecedentes familiares para doença cerebro- Quando investigamos o número de refeições realiza-
vascular. Isso se justifica porque no Brasil essa doença das no dia anterior ao infarto agudo do miocárdio, verifi-
supera a coronariana, exceto em cidades como São Pau- camos que dos 31 (100%) pacientes infartados, 24
lo, onde esta última representa contingente maior de víti- (77,4%) realizaram o desjejum corretamente; 5 (16,1%),
mas que a afecção cerebrovascular(20). incorretamente; e 2 (6,5%), nada ingeriram no desjejum.
Ao analisarmos o uso de hormônio feminino, consta- No almoço, 24 (77,4%) alimentaram-se corretamente e 7
tamos que das 12 (38,7%) pacientes do sexo feminino (22,6%), incorretamente. No jantar, 16 (51,6%) procede-
com infarto agudo do miocárdio, 7 (22,6%) faziam uso de ram corretamente; 11 (35,5%), incorretamente; e 4 (12,9%)
hormônio. Quanto ao tipo de hormônio, 3 (9,7%) não sa- nada ingeriram nessa refeição.
biam o nome do medicamento; 2 (6,5%) usavam livial; 1 A maioria dos pacientes estudados informou que não
(3,2%), gincobiloba; e 1 (3,2%), estrogenol. Cabe menci- tinha o hábito de fazer lanche noturno. Os números obti-
onar que todas as mulheres que faziam uso de hormônio dos nesse item foram: 18 (58,1%) pacientes não toma-
feminino referiram encontrar-se na menopausa. vam lanche noturno; 9 (29,0%) o faziam de forma correta;
Quanto ao início da menopausa, 4 (12,9%) indicaram e 4 (12,9%), de forma incorreta.
tempo de 1 a 9 anos; 4 (12,9%), de 20 a 29 anos; 1 (3,2%), No entanto, sabemos que a alimentação saudável é
de 10 a 19 anos; e 1 (3,2%), de 30 anos ou mais. importante para a manutenção da qualidade de vida, para
Investigar esse fator de risco é importante, pois a pro- a redução do peso corporal e, conseqüentemente, para o
teção das mulheres em relação aos homens para o apa- bem-estar(13). Em relação ao consumo de gordura, dos
recimento do infarto agudo do miocárdio antes da meno- 31 (100%) pacientes infartados, 27 (87,1%) faziam uso
pausa parece estar relacionada a alguns mecanismos da de frituras e 4 (12,9%), não. Quando indagados a respei-
fisiologia reprodutiva, responsável por menor tendência to da inclusão de frituras nas refeições, 12 (38,7%) as
trombolítica e proteção hormonal(21). Desse modo, o co- ingeriam duas ou mais vezes por semana; 8 (25,8%), ra-
nhecimento da história familiar do paciente é um dado ramente; e 7 (22,6%), diariamente.
extremamente importante, uma vez que podemos esti- Quanto ao tipo de gordura utilizado no preparo das
mar riscos para a ocorrência do infarto agudo do miocár- refeições, 27 (87,1%) utilizavam gordura vegetal; 2 (6,5%),
dio e, conseqüentemente, a adoção de medidas visando gordura animal; e 2 (6,5%) não utilizavam qualquer tipo

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 7
de gordura no preparo das como justificativa o prejuízo que o cigarro trazia para a saú-
refeições. de.
Os dados obtidos nesta O estudo com pacientes com infarto agudo do miocárdio
investigação, acerca dos há- de hospital público demonstrou que os fumantes se encon-
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em bitos alimentares dos pacien- travam, predominantemente, na faixa etária dos 50 aos 70
pacientes com infarto tes infartados de um hospital anos, sendo um quarto de ex-fumantes que haviam parado
agudo do miocárdio em privado, levam-nos a pensar de fumar há mais de cinco anos(15). Esse dado é relevante,
hospital privado que a estratégia a ser adota- pois o tabagismo é mais prevalente entre os homens que
da para a prevenção do in- entre as mulheres, tanto no caso dos fumantes como no dos
farto deve ter como foco um ex-fumantes(2). Em contrapartida, o risco de primeiro infarto
modelo voltado à população para as mulheres fumantes é 3,6 vezes maior, quando com-
em geral. No entanto, propor- parado ao risco de mulheres não-fumantes(26). Ainda em re-
cionar atenção à saúde e à educação a um membro da famí- lação ao risco de infarto agudo do miocárdio em ex-fuman-
lia, durante o período de internação, pode resultar na redu- tes, esse risco decresce rapidamente nos primeiros cinco
ção de riscos para os membros mais próximos, visto que os anos, mas naqueles que consomem mais de 20 cigarros por
fatores de risco tendem a se concentrar nas famílias. dia o risco se iguala ao dos não-fumantes após 15 anos de
No que se refere à atividade física, dos 31 (100%) paci- abandono do vício(27). Já na tentativa do abandono do taba-
entes com infarto agudo do miocárdio, apenas 13 (41,9%) gismo pode-se constatar declínio imediato da freqüência car-
realizavam algum tipo de atividade física: 9 (29,0%) faziam díaca(28, 29).
caminhada; 1 (3,2%), caminhada e bicicleta; 1 (3,2%), mus- Considerando que 10 (32,2%) dos pacientes investiga-
culação; 1 (3,2%), caminhada e hidroginástica; 1 (3,2%), ca- dos eram fumantes e que o hábito de fumar tem forte asso-
ratê; e 18 (58,1%) não praticavam qualquer atividade física. ciação com a ocorrência de infarto agudo do miocárdio, o
Verificando a freqüência e a duração da atividade física, per- profissional deve utilizar o período de internação hospitalar
cebemos que 7 (22,6%) pacientes realizavam uma vez por para motivar o paciente a abandonar o tabagismo. No entan-
semana, com duração de 60 minutos ou mais; 4 (12,9%), to, sabemos que resultados efetivos serão conseguidos so-
três vezes por semana, com duração de 30 a 39 minutos; e 2 mente por meio de intervenções comportamentais, a longo
(6,5%), duas vezes por semana, com duração de 40 a 49 prazo.
minutos. No que se refere ao consumo de bebidas alcoólicas, dentre
A prática adequada e regular de atividade física tem sido os 31 (100%) pacientes investigados, observamos que 18
admitida como uma das mais importantes e eficazes medi- (58,1%) faziam uso de algum tipo de bebida alcoólica. Des-
das para a prevenção da doença arterial coronariana, para a tes, 5 (16,1%) a ingeriam todos os dias; 6 (19,3%), nos finais
preservação da saúde e para a qualidade de vida das pes- de semana; 4 (12,9%), semanalmente; 3 (9,7%), esporadi-
soas, uma vez que um dos fatores de risco para doenças camente; e 13 (41,9%) não faziam uso de bebida alcoólica.
coronarianas é o sedentarismo(13, 23-25). Quanto ao tipo de bebida alcoólica, 11 (35,5%) pacientes
A falta de exercícios físicos regulares, caracterizando o consumiam cerveja; 3 (9,7%), cerveja e vinho; 2 (6,5%), cho-
sedentarismo, foi o fator de risco mais prevalente encontrado pe e cerveja; 1 (3,2%), cerveja e batidas; 1 (3,2%), cerveja,
na maioria dos pacientes infartados de um hospital públi- whisky e vinho; e 13 (41,9%) não faziam uso de bebidas
co(15). alcoólicas.
Ao se constatar que a maioria, 18 (58,1%) pacientes in- O alcoolismo tem representado um problema de Saúde
vestigados, era sedentária, foi apresentado a esses pacien- Pública importante, na atualidade, pela sua alta prevalência,
tes um programa de orientação acerca da importância da que abrange cerca de 10%. Segundo dados do Ministério da
atividade física, antes da alta hospitalar, com o qual tentou- Saúde, 32,0% dos leitos em diversos hospitais foram ocupa-
se motivá-los a buscar apoio e engajamento em programas dos por pacientes que apresentavam doenças decorrentes
dessa natureza oferecidos à comunidade. do abuso de bebida alcoólica(30).
Outro fator de risco autocriado que investigamos foi o ta- Analisando o consumo de bebida alcoólica em pacientes
bagismo. Dos 31 (100%) pacientes com infarto agudo do infartados de um hospital privado, vimos que esse fator de
miocárdio, 10 (32,2%) eram fumantes, sendo 6 (19,3%) do risco também deve ser contemplado no programa educativo
sexo masculino e 4 (12,9%) do sexo feminino; 12 (38,7%) para prevenção dos fatores de risco para o infarto agudo do
não fumavam; e 9 (29,0%) eram ex-fumantes. Quanto à quan- miocárdio. Por isso, a abordagem ao paciente deve ser pau-
tidade de cigarros consumidos, 6 (19,3%) fumavam um maço tada pelo valor calórico da bebida alcoólica, pelo ganho de
de cigarros por dia e 4 (12,9%), dois maços. Em relação ao peso corporal e pelo risco de hipoglicemia naqueles com
tempo que faziam uso de cigarro, 5 (16,1%) informaram um diagnóstico de diabetes melito. A interação com a família é
período de 30 a 39 anos; 3 (9,7%), de 20 a 29 anos; e 2 fundamental para auxiliar na busca de ajuda nos grupos de
(6,5%), de 10 a 19 anos. Quando investigamos qual motivo apoio da comunidade.
levou os ex-tabagistas a pararem de fumar, todos apontaram Em relação ao local que mais causava estresse nos 31

8 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
(100%) pacientes infartados, cesso educativo, durante a internação, coloca o paciente com
12 (38,7%) indicaram o local infarto agudo do miocárdio como co-partícipe no gerencia-
de trabalho; 7 (22,6%), a mento de sua doença, pois seu envolvimento o responsabi-
casa; 6 (19,3%), a rua; 1 liza pelo autocuidado.
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em (3,2%), a casa e o local de Pesquisando tratamentos médicos para outras doenças,
pacientes com infarto trabalho; 1 (3,2%) sentia es- observamos que 6 (19,3%) pacientes realizavam tratamento
agudo do miocárdio em tresse o tempo todo; e 4 para o controle da hipertensão arterial do e diabetes melito; 6
hospital privado (12,9%), em lugar nenhum. (19,3%), para hipertensão arterial; 2 (6,5%), para diabetes
O estresse também tem melito; 2 (6,5%), para hipertireoidismo; 1 (3,2%), para catara-
se constituído em fator de ris- ta/diabetes melitus; 1 (3,2%), para doença de Chagas/diabe-
co importante para doença tes melito; 1 (3,2%), para hipertensão arterial/enfizema pul-
isquêmica cardíaca, tema monar; 5 (16,1%), para outras doenças; e 7 (22,6%) não
que se encontra em discussão na atualidade. No entanto, ele faziam nenhum tratamento.
pode ser desencadeador de angina do peito, infarto agudo Entre os 31 (100%) pacientes investigados, observamos
do miocárdio e morte súbita(31). Pacientes infartados de um que 8 (25,8%), além de diabetes melito, eram portadores de
hospital público denominaram o estresse de tensão nervo- outras doenças; 7 (22,6%) apresentavam hipertensão arteri-
sa, nervosismo e angústia(15, 32). al em conjunto com outras doenças; e 17 (54,8%) eram por-
Estresse é apontado, ainda, como fator importante para tadores de diabetes melito e/ou hipertensão arterial, doen-
o desenvolvimento da hipertensão arterial(33) e como um dos ças desencadeadas pela exposição aos fatores de risco para
fatores que afetam a qualidade de vida, estando relacionado doenças cardiovasculares.
a doenças cardiovasculares(34). Estudos acerca do padrão Grande parcela de pacientes infartados de hospital
do sono dos pacientes demonstraram que 10 (32,2%) deles público apresentou doenças associadas à isquemia car-
referiram o hábito de dormir em torno de seis a sete horas díaca, tais como hipertensão arterial, diabetes melito e
por noite; 10 (32,2%), de oito a nove horas; 6 (19,3%), de dislipidemia(14, 32).
quatro a seis horas; 2 (6,5%), de três a quatro horas; 1 (3,2%), A importância do tratamento e da manutenção dos níveis
de duas a três horas; e 2 (6,5%), nove horas ou mais. pressóricos e glicêmicos dentro dos valores de normalidade
O estudo sobre o padrão do sono como fator de risco deve constituir preocupação constante tanto da equipe de
psicossocial para a doença isquêmica cardíaca tem sido re- saúde como dos pacientes, pois a ocorrência de hiperten-
comendado(21). são arterial e diabetes melito multiplica os fatores de risco
para a doença micro e macrovascular, coronariana, insufici-
Variáveis relacionadas ao sistema de saúde ência cardíaca congestiva, doença cerebrovascular e doen-
Ao investigarmos o conhecimento que os 31 (100%) pa- ça vascular periférica(35).
cientes infartados tinham a respeito da doença, obtivemos Quando as pesquisadoras investigaram a respeito da uti-
que a maioria, 16 (51,6%), mencionou algum conhecimento lização pelos pacientes de outros serviços de saúde, além
sobre a doença e 15 (48,4%) nada sabiam sobre ela. dos prestados pelo seu plano de saúde, a maioria, 21 (67,7%),
Mesmo considerando que vários fatores de risco para o referiu que utilizava somente os serviços oferecidos pelo pla-
infarto agudo do miocárdio foram citados, é preciso salientar no de saúde e 10 (32,2%) informaram utilizar outros servi-
que somente o conhecimento desses fatores não modifica ços.
os hábitos de estilo de vida; é preciso ir além, ou seja, aplicar Dos 10 (32,2%) pacientes infartados que faziam uso de
intervenções comportamentais, as quais deverão despertar outros serviços, 5 (16,1%) mencionaram utilizá-los em situa-
o paciente para aderir ao processo educativo contínuo e per- ções de urgência e outros 5 (16,1%), esporadicamente.
manente. Reconhecemos que o hospital em estudo tem serviço
Investigando as dúvidas que os pacientes infartados ti- especializado para o acompanhamento dos portadores de
nham em relação à doença, obtivemos que dentre os 31 condições crônicas de saúde; no entanto, verificamos que os
(100%), 12 (38,7%) apresentaram dúvidas acerca do pro- enfermeiros pouco têm indicado esse serviço aos pacientes
cesso de doença e 11 (35,5%), não. infartados. Diante desse fato, indagamos se os enfermeiros
O interesse do paciente de hospital público, quanto aos reconhecem a importância da educação contínua e perma-
aspectos relacionados à fisiopatologia da doença, ao prog- nente de pacientes que apresentam doenças desencadea-
nóstico e à recuperação, após a ocorrência do infarto agudo das por exposição aos fatores de risco.
do miocárdio também foi mensurado(15). Assim, é papel do enfermeiro de uma unidade coronaria-
Assim, conhecer as dúvidas dos pacientes de um hospi- na motivar o paciente com infarto agudo do miocárdio a bus-
tal privado acerca de determinada doença, em particular o car ajuda para o gerenciamento de sua doença no serviço
infarto agudo do miocárdio, também pode levar os enfermei- especializado do hospital, pois no período de internação ele
ros a obter conhecimentos específicos para que saibam lidar se encontra fragilizado e sem condições de elaborar as mu-
com as condições crônicas. A importância de iniciar o pro- danças comportamentais necessárias quanto a seu estilo

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 9
de vida, a fim de manter boa tes nos indivíduos estudados, dentre eles os hábitos au-
qualidade de vida. tocriados, que se constituem em agravos para a ocorrên-
cia da doença. Identificamos, ainda, que os pacientes in-
CONCLUSÕES fartados possuíam certo conhecimento dos fatores de ris-
OLIVEIRA KCS e col.
Fatores de risco em co cardiovasculares e que, mesmo conhecendo-os, se
pacientes com infarto O conjunto de dados ob- expunham a eles, não incorporando atitudes saudáveis
agudo do miocárdio em tidos nesta investigação, em seu cotidiano. Cabe destacar o interesse das pesqui-
hospital privado com base no referencial te- sadoras em buscar uma via de comunicação entre os
órico adotado, possibilitou enfermeiros e os pacientes com infarto agudo do miocár-
identificar alguns fatores li- dio, assim como fornecer subsídios para a elaboração
gados aos elementos do futura de um protocolo educativo específico para essa
Campo de Saúde presen- população, durante o período de internação.

RISK FACTORS IN PATIENTS WITH MYOCARDIAL


INFARCTION IN A PRIVATE HOSPITAL

KELLI CRISTINA SILVA DE OLIVEIRA, MARIA LÚCIA ZANETTI

This is a descriptive investigation, which intended to identify the risk factors rela-
ted to the environment, human biology, life style and health services of patients
admitted in a private hospital, until 48 hours after the myocardial infarction. We inter-
viewed 31 internee patients in a private hospital, from January through July 2003.
Results showed that 93.5% of the patients were literate; 61.3% were male; 54.9%
were aged between 40 and 49 years old; 58.1% were over weighted or fat, belonging
to classes I and II; related to familiar antecedences 74.2% presented systemic arte-
rial hypertension; 93.6% were accustomed to eat fried food; 58.1% used to drink
alcoholic drinks; 32.2% were smokers and 29.0% were ex-smokers; 58.1% were
sedentary; and 54.8% were under arterial hypertension and mellitus diabetes treat-
ment. Data showed the existence of “self created” habits, which may be modified. It
is important to mention the necessity of raising educative programs searching for
chronicle diseases prevention.

Key words: risk factors, myocardial infarction, nursing.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1 Supl A:1-11)


RSCESP (72594)-1514

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Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 11
EFEITO DO EXERCÍCIO FÍSICO E DA
DIETA HIPOCALÓRICA NA OBESIDADE
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico
e da dieta hipocalórica
na obesidade IVANI CREDIDIO TROMBETTA, PAULO HIRAI SUZUKI

Unidade de Reabilitação Cardiovascular e Fisiologia do Exercício —


Instituto do Coração (InCor) — HC-FMUSP

Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas Carvalho de Aguiar, 44 —


1º subsolo — Cerqueira César — CEP 05403-900 — São Paulo — SP

A obesidade é uma doença multifatorial complexa, que se associa a outros fato-


res de risco cardiovascular. O aumento da prevalência global da obesidade resulta
da combinação de suscetibilidade genética com fatores ambientais. O tratamento
não-farmacológico da obesidade por meio de dieta hipocalórica e com baixa quanti-
dade em gorduras associada à atividade física regular constitui a base do tratamen-
to para a diminuição dos riscos de doenças cardiovasculares em indivíduos obesos.
Os principais efeitos do treinamento físico referem-se às adaptações metabólicas
que favorecem o controle dos fatores de risco de doença cardiovascular. Pode-se
dizer que a prática regular de exercício físico, apesar de não provocar perda de peso
corporal tão intensa quanto a dieta hipocalórica, preserva a massa magra, atenua
expressivamente outros fatores de risco cardiovascular e evita o reganho de peso. A
prática regular de exercício físico, portanto, constitui-se em benefício independente
nas várias co-morbidades da obesidade, notadamente na hipertensão arterial, na
hiperglicemia e na resistência à insulina. Dessa forma, um estilo de vida ativo, com
conseqüente aumento da capacidade física, pode atenuar o risco de morbidade e
mortalidade em indivíduos com sobrepeso ou obesos.

Palavras-chave: obesidade, treinamento físico, dieta hipocalórica, risco cardiovas-


cular.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1 Supl A:12-20)


RSCESP (72594)-1515

INTRODUÇÃO da pela razão do peso (em quilogramas) dividido pela


altura ao quadrado (em metro). Na população em ge-
A obesidade caracteriza-se por excesso de tecido ral, essa medida tem alta correlação positiva com a
adiposo, e ocorre pelo balanço energético positivo de quantidade de gordura corporal. Embora os mecanis-
forma crônica, isto é, uma ingestão calórica que sobre- mos que determinam a obesidade não sejam totalmente
passa o gasto calórico. É obeso o indivíduo do sexo conhecidos, sabe-se que alguns fatores interagem e
masculino com quantidade de gordura corporal maior caracterizam a multifatoriedade da doença.
que 20% do peso corporal, sendo o ideal de 12% a15%, Parte do mais recente levantamento do “Nutrition
e do sexo feminino com quantidade maior que 30%, Examination Survey” (NHANES) demonstrou aumento
sendo o ideal de 22% a 25%(1). No entanto, em estudos significativo da prevalência de obesidade de 22,9%
epidemiológicos e na clínica é muito utilizado o índice (NHANES III — 1988-1994) para 30,5% (1999-2000),
de massa corporal (IMC) como determinante dos ní- e do sobrepeso de 55,9% para 64,5%, numa amostra
veis de obesidade, pois é uma medida facilmente obti- representativa da população americana(2). Dados recen-

12 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
tes demonstram compor- efeito direto no nível metabólico. Entretanto, esse nível
tamento semelhante no é pequeno em relação ao balanço energético. O au-
Brasil, com aumento da mento do gasto energético por meio do exercício, sem
prevalência da obesidade o aumento correspondente do consumo energético,
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico em todos os grupos popu- pode reduzir o peso corporal. No entanto, qualquer
e da dieta hipocalórica lacionais. Em nosso país, perda de peso alcançada com exercício físico modera-
na obesidade porém, observou-se redu- do pode ser facilmente revertida por pequeno aumento
ção do número de casos compensatório no consumo de alimentos. Na maioria
de obesidade em mulhe- dos estudos, o treinamento físico provoca gasto calóri-
res de nível socioeconômi- co adicional pouco expressivo na redução do peso cor-
co mais elevado que habi- poral em indivíduos obesos sob orientação dietética hi-
tam áreas urbanas(3). pocalórica. Não podemos esquecer, no entanto, que
É consenso que o aumento da obesidade em níveis pessoas que se mantêm ativas ao longo da vida têm
epidêmicos no mundo é causado pelo consumo de menores chances de se tornar obesas e melhor distri-
grande proporção de calorias derivadas da gordura(4), buição corporal, com menores depósitos de gordura
que são alimentos de baixo custo e mais saborosos, intra-abdominal.
associado a um estilo de vida sedentário(5, 6). De forma Outro aspecto de interesse é o papel do exercício
simplista, pode-se dizer que a obesidade resulta de um no reganho de peso após programas de emagrecimen-
desequilíbrio entre ingestão e gasto calórico. No en- to. Nesse sentido, o exercício físico regular têm se mos-
tanto, os mecanismos que levam ao fenótipo obesida- trado extremamente eficiente. A manutenção do peso
de são muito mais complexos. Fatores de suscetibili- corporal após um período de dieta hipocalórica é mais
dade, como os fatores genéticos (genes suscetíveis), efetivamente alcançada com o treinamento físico(11).
desempenham importante papel de ação permissiva Mais importante de que seu efeito direto na perda
para os fatores ambientais, e, em alguns casos, po- de peso corporal, a prática de exercício físico apresen-
dem ser determinantes da obesidade. Além disso, ou- ta aspectos importantes relacionados ao efeito agudo
tros fatores participam das variações interindividuais e também crônico sobre a mobilização e a utilização
da composição corporal. São eles: idade, sexo, meta- de gordura, que influenciam o emagrecimento. Além
bolismo de repouso, oxidação lipídica, atividade ner- do efeito direto no gasto calórico, a atividade física man-
vosa simpática, metabolismo do tecido adiposo e do tém o metabolismo aumentado por longo período após
músculo esquelético, tabagismo, e níveis hormonais de sua execução. Isso significa dizer que, mesmo após o
leptina, insulina, esteróides sexuais e cortisol(7). exercício, a mobilização e a oxidação de lípides per-
Apesar das evidências de que fatores genéticos têm manece aumentada. Os principais efeitos do treinamen-
grande importância na etiologia da obesidade, é evi- to físico no controle do peso corporal, porém, são obti-
dente que o fator ambiental é o principal determinante dos cronicamente. Alguns efeitos de grande importân-
da epidemia da obesidade, uma vez que algumas dé- cia referem-se ao aumento da atividade da enzima li-
cadas, período em que houve o aumento expressivo pase hormônio sensível (enzima responsável pela maior
da obesidade no mundo, não seriam suficientes para mobilização de lípides no tecido adiposo)(12) e ao au-
estabelecer alterações genéticas substanciais, enquan- mento da densidade mitocondrial, potencializando a
to a mudança nos hábitos e no estilo de vida foram oxidação de lípides e favorecendo, assim, o emagreci-
enormes. mento(13).
Na célula adiposa, o exercício físico aumenta a sen-
EXERCÍCIO FÍSICO E PERDA DE sibilidade ß-adrenérgica(14), o que sugere maior modu-
PESO CORPORAL lação do sistema nervoso simpático no tecido adipo-
so(15). Além disso, o treinamento físico acelera a perda
O exercício físico adiciona um déficit calórico sinér- de massa gorda em decorrência do aumento da capa-
gico à dieta hipocalórica, que produz equilíbrio ener- cidade de oxidação de ácidos graxos livres nas células
gético negativo expressivo com efetiva redução do peso musculares(12, 13).
corporal, potencializando a redução do peso corporal. Outro benefício alcançado pela associação de die-
Alguns estudos têm demonstrado o efeito da dieta ta hipocalórica e treinamento físico diz respeito à re-
e do exercício isoladamente ou combinados sobre a distribuição da gordura corporal. Observa-se em pro-
perda de peso corporal. Há consenso na literatura so- gramas de exercício físico que, apesar da redução de
bre o efeito da dieta na redução do peso corporal; en- todos os depósitos de gordura, há uma preferência para
tretanto, a inclusão de exercícios nem sempre resulta a redução de gordura na região abdominal. Essas cé-
em perda adicional de peso(8-10). lulas são ricas em receptores ß3-adrenérgicos e, por
O exercício produz gasto de energia por meio do isso, mais suscetíveis à lipólise(16).

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 13
Portanto, combinar res- Em nossa experiência, um programa de doze se-
trição calórica ao treina- manas de associação de treinamento físico aeróbio de
mento físico é uma exce- intensidade moderada e dieta hipocalórica foi capaz
lente intervenção não-far- de preservar a massa magra e o metabolismo de re-
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico macológica para se tratar pouso, reduzidos no emagrecimento por dieta hipoca-
e da dieta hipocalórica a obesidade. lórica isoladamente(26). A inclusão de treinamento físi-
na obesidade co em programas de emagrecimento, portanto, pode
EXERCÍCIO FÍSICO atenuar a redução de massa magra e minimizar a dimi-
E METABOLISMO nuição do metabolismo de repouso ocasionados pela
DE REPOUSO perda de peso(1).

Está bem documenta- EXERCÍCIO FÍSICO E FATORES DE


da, na literatura, a redução do metabolismo de repou- RISCO CARDIOVASCULAR
so com a perda de peso por dietas hipocalóricas(17-20).
Essa redução é de cerca de 20% e permanece em ní- Mesmo havendo consenso na literatura sobre os fa-
veis inferiores por longo período, mesmo após a inges- tores de risco associados ao sobrepeso e à obesida-
tão calórica normal ser restabelecida(18). de, ainda se discute muito sobre o melhor tratamento,
Os mecanismos que regulam a menor taxa meta- já que a maioria deles falha na manutenção da perda
bólica por baixo consumo calórico não estão totalmen- de peso em longo prazo. Os freqüentes insucessos na
te esclarecidos. No entanto, sabe-se que seu decrésci- manutenção da perda de peso e a realização de dietas
mo é proporcional à perda de massa magra, represen- consecutivas, levando ao conhecido efeito “iô-iô”, têm
tada na sua maior proporção pelo tecido muscular es- um potencial efeito negativo para a saúde.
quelético(21, 22). Isso ocorre porque qualquer perda de Dados epidemiológicos demonstram haver várias
peso resulta em perda de tecido muscular, adquirido co-morbidades ligadas à obesidade, entre elas o dia-
para suportar o excesso de tecido adiposo(18). Além dis- betes tipo II, a hipertensão, a dislipidemia e a doença
so, outras adaptações ocorrem durante a diminuição coronária. Além disso, a obesidade está associada com
de peso corporal, como a diminuição do efeito térmico o aumento de mortalidade por todas as causas(27).
dos alimentos, pela diminuição da quantidade total de A distribuição do tecido adiposo influencia na mor-
calorias ingeridas, e a menor quantidade de energia bidade e na mortalidade causadas pela obesidade. A
gasta nos movimentos e deslocamentos corporais pela obesidade andróide, ou seja, a obesidade com distri-
obtenção de um peso corporal menor(22). buição central de gordura, observada na circunferên-
É proposto que esse ajuste energético do metabo- cia abdominal acima de 88 cm na mulher e de 102 cm
lismo de repouso nas diversas situações nutricionais no homem, tem importante papel no risco de morte
serviria como defesa do organismo contra o ganho ou por doença cardiovascular(28, 29). Esse tipo de obesida-
a perda do peso e representaria uma característica in- de compõe o quadro de alterações metabólicas que
dividual de cada ser humano, talvez de origem genéti- caracterizam a chamada síndrome metabólica, e são
ca. elas intolerância à glicose, diabetes, hipertensão, bai-
Há evidências de que a inclusão de exercícios físi- xos níveis de lipoproteína de alta densidade (HDL), al-
cos nos programas de controle do peso corporal pode tos níveis de lipoproteína de baixa densidade (LDL) e
minimizar a redução da taxa metabólica de repouso de triglicérides, e resistência insulínica, que parece ser
que ocorre como conseqüência das dietas hipocalóri- o mecanismo primário da síndrome(30, 31). As alterações
cas(17, 19, 23). No entanto, a interferência do exercício físi- fisiológicas e, conseqüentemente, da saúde na obesi-
co no metabolismo de repouso é ainda controversa em dade são atribuídas, em parte, a maior ativação do sis-
razão de diferenças quanto ao tipo, à intensidade e à tema nervoso simpático, resistência à insulina e hipe-
duração do programa de treinamento(24). Os mecanis- rinsulinemia(32, 33).
mos que norteiam o efeito protetor do treinamento físi- Muitas vezes, a diminuição do peso corporal é sufi-
co sobre o metabolismo de repouso ainda não são to- ciente para normalizar a glicemia sanguínea e os ní-
talmente claros. Entretanto, é possível que a preserva- veis de pressão arterial(34). No entanto, a prática regu-
ção de massa magra, provocada pelo exercício físico, lar de exercício físico tem efeitos favoráveis nos fato-
auxilie na manutenção do metabolismo de repouso, uma res de risco de doenças cardiovasculares, mesmo quan-
vez que a musculatura esquelética é um dos compo- do não há diminuição do peso corporal(35). Estilo de vida
nentes corporais que mais contribui para o metabolis- ativo e capacidade física elevada podem atenuar o ris-
mo energético(21). Além disso, alguns estudos associ- co de morbidade e mortalidade em indivíduos com so-
am o aumento do metabolismo de repouso pelo treina- brepeso e obesos. Além disso, existem evidências re-
mento físico a maior “turnover” de noradrenalina(24, 25). centes de que a taxa de mortalidade é menor em indi-

14 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
víduos com sobrepeso ou cia de perda de peso corporal, promove aumento da
moderadamente obesos ação da insulina, o que reflete adaptação crônica ao
ativos que em indivíduos treinamento. A associação dessas duas condutas, por-
sedentários(36). tanto, é a melhor recomendação para o aumento da
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico Um dos principais me- sensibilidade à insulina na população obesa.
e da dieta hipocalórica canismos de diminuição
na obesidade de risco após emagreci- HIPERTENSÃO ARTERIAL
mento está na redução da
atividade nervosa simpáti- Tem sido descrito que existe alta associação entre
ca(26). a obesidade e a hipertensão arterial, e que indivíduos
normotensos obesos apresentam maior chance de se
DIABETES MELITO tornarem hipertensos que indivíduos normotensos não-
TIPO II obesos(48). Além do efeito direto da perda de peso na
tolerância à glicose, uma pequena redução do peso
Embora a relação entre obesidade e diabetes meli- corporal (5% a 10% do peso inicial) pode normalizar
to tipo II não esteja totalmente clara, dois fatos são in- os níveis de pressão arterial, mesmo quando não se
discutíveis. Excesso de gordura corporal leva ao au- alcança o peso corporal ideal(49). A diminuição da pres-
mento da resistência à insulina, e resistência à insuli- são arterial como causa da perda de peso corporal é
na predispõe ao diabetes(37, 38). resultado do aumento da sensibilidade à insulina e da
Tem sido demonstrado que a redução do peso cor- diminuição da atividade nervosa simpática, e ocorre
poral em indivíduos obesos promove diminuição da re- independentemente da restrição dietética de sal(50).
sistência à insulina(39, 40), prevenindo o aparecimento da A prática regular de exercícios físicos tem sido fre-
intolerância à glicose e do diabetes melito tipo II(41). Da qüentemente recomendada como uma conduta não-
mesma forma, dados epidemiológicos(42) têm indicado farmacológica no tratamento da hipertensão arterial,
que a prática regular de atividade física está associa- tanto em obesos como em não-obesos. O treinamento
da a menor peso corporal e maior sensibilidade à insu- aeróbio entre 50% e 70% do VO2máx pode resultar no
lina. O efeito sobre a sensibilidade à insulina, porém, decréscimo de 4 mmHg a 10 mmHg da pressão arteri-
ocorre mesmo sem o emagrecimento, o que sugere al sistólica(51). No entanto, os dados de literatura são
que o exercício físico isoladamente ou associado à controversos sobre a relativa contribuição do exercício
perda de peso corporal retarda a transição da diminui- físico e da dieta hipocalórica sobre o efeito hipotensor
ção da tolerância à glicose para o diabetes tipo II(35). em indivíduos obesos.
O aumento da sensibilidade à insulina ocasionado Os mecanismos responsáveis pela diminuição da
pelo treinamento físico já é observado 14 a 48 horas pressão arterial após o treinamento físico têm sido bas-
após uma única sessão de exercícios(39, 40). Dados de tante estudados. Reid e colaboradores(52) observaram
literatura, porém, fortalecem a hipótese de que o efeito que a queda pressórica em indivíduos obesos, alcan-
do treinamento físico sobre a sensibilidade à insulina çada com o treinamento físico ou com a associação de
reflete uma adaptação crônica(43). treinamento físico e dieta hipocalórica, se deve à redu-
Cizmic e colaboradores(44) demonstraram que duas ção da resistência vascular periférica, em decorrência
semanas de atividade física com freqüência de cinco da diminuição dos níveis de norepinefrina plasmática.
vezes por semana são suficientes para se ter melhora Também com relação à maior redução pressórica,
da sensibilidade da insulina e da capacidade aeróbia. os estudos apontam como melhor conduta a associa-
Acredita-se que os mecanismos responsáveis pelo ção da dieta hipocalórica e do exercício físico regular
efeito do treinamento físico em aumentar a ação da em obesos.
insulina sobre a captação de glicose são: aumento do
fluxo sanguíneo muscular(45); aumento da agregação DISLIPIDEMIA
da insulina a seu receptor, em decorrência de maior
número de receptores(46); aumento do metabolismo não- Os indivíduos obesos geralmente apresentam per-
oxidativo da glicose, em decorrência do aumento da fil lipídico desfavorável, isto é, hipertrigliceridemia, bai-
atividade da enzima glicogênio-sintase(47); e aumento xo HDL-colesterol e alta concentração de partículas pe-
da concentração de transportadores de glicose quenas e densas de LDL-colesterol, com grande po-
(GLUT4) na membrana celular(45). der aterogênico(53).
Em resumo, a redução de peso corporal por dieta As dislipidemias estão associadas particularmente
auxilia nesse contexto, aumentando a tolerância à gli- à obesidade abdominal e, conseqüentemente, relacio-
cose e a sensibilidade à insulina. Da mesma forma, a nam-se a distúrbios metabólicos. A obesidade visceral
prática regular de exercícios físicos, mesmo na ausên- leva ao aumento da oferta de ácidos graxos livres para

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 15
o fígado. Esse aumento so(58). Para essa população jovem também é aconse-
estimula diretamente a lhada a dieta hipocalórica associada ao treinamento
produção de glicose hepá- físico em conjunto com mudança comportamental(58).
tica, ocasionando hiperin- Dentro desse quadro, as famílias devem ser motivadas
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico sulinemia. Essa combina- a mudar os hábitos sedentários, aumentando os níveis
e da dieta hipocalórica ção de hiperinsulinemia e de atividade física e melhorando a alimentação(59).
na obesidade aumento da oferta de áci-
dos graxos livres para o PROGRAMA DE EXERCÍCIO FÍSICO
fígado pode resultar em PARA O PACIENTE OBESO
produção exacerbada de
partículas ricas em triglicé- Em nossa experiência, quatro meses de treinamento
rides(33). físico aeróbio associado a dieta hipocalórica, mesmo
Embora existam ainda pontos controversos quanto sem haver a normalização do peso corporal, propiciam
ao efeito específico do exercício físico sobre os lípides grandes benefícios adaptativos, principalmente pelo
sanguíneos, sabe-se que a associação do exercício fí- aumento da capacidade física representado pelo au-
sico regular à dieta hipocalórica é uma conduta impor- mento do consumo de oxigênio de pico(26).
tante para a redução do peso corporal, o que leva, in- Sugerimos para o paciente obeso que, antes de ini-
dubitavelmente, à redução dos níveis de lípides circu- ciar um programa de exercício físico, se submeta a um
lantes(54). teste ergométrico ou, melhor ainda, a um teste ergoes-
O exercício físico melhora o perfil lipídico a partir de pirométrico, para a avaliação do funcionamento do sis-
mudanças na atividade da enzima lipase lipoprotéica tema cardiovascular durante o exercício e a análise da
presente no músculo esquelético. Essa enzima, que é capacidade física de pico. A avaliação cardiovascular
responsável pela reposição dos estoques de triglicéri- tem por objetivo diagnosticar uma doença cardiovas-
des intramiofibrilares, tem sua atividade aumentada cular subclínica, enquanto a avaliação cardiopulmonar
após uma sessão de exercício. Isso explica a diminui- serve para determinar a capacidade física, além de for-
ção aguda dos níveis plasmáticos de triglicérides após necer parâmetros para a prescrição mais adequada de
o exercício físico. Tal efeito ocorre, principalmente, após treinamento físico.
exercícios prolongados e com intensidade moderada, O programa de treinamento físico tem como parte
situação caracterizada pelo aumento da utilização de principal exercícios aeróbios, cíclicos e contínuos, que
gordura como fonte energética. O aumento da ativida- envolvam grandes grupos musculares, tais como ca-
de da lipase lipoprotéica e o catabolismo de triglicéri- minhada, ciclismo, natação. É importante a inclusão de
des também resultam em um dos maiores efeitos do exercícios de resistência muscular localizada, de bai-
exercício no colesterol plasmático, que é o aumento do xa sobrecarga e muitas repetições, pois auxiliam na
HDL-colesterol(55). manutenção da massa magra.
Programas de exercício físico com gasto energéti- O volume e a intensidade do exercício físico devem
co de 1.200 kcal a 2.200 kcal por semana podem au- ser aumentados gradativamente, para que haja adap-
mentar o HDL-colesterol e diminuir os triglicérides. No tações adequadas ao exercício. O tempo total da ses-
entanto, o colesterol total e o LDL-colesterol melhoram são de exercício físico é de aproximadamente 60 mi-
quando se associa exercício físico a uma dieta balan- nutos, podendo progredir para uma duração de 90 mi-
ceada. Um interessante estudo, com 18 mulheres obe- nutos. A sessão pode ser subdividida em um período
sas, demonstrou que um programa de exercício físico de aquecimento, em torno de 5 minutos, seguido por
a 70% do VO2máx diminui os níveis de ácidos graxos período específico de exercício aeróbio, com duração
não esterificados, de gordura corporal, de triglicérides, de 40 minutos, período de exercícios de resistência
do “pool” de lipoproteínas de densidade muito baixa muscular localizada, com duração em torno de 15 a 20
(VLDL) apoB, além de melhorar a sensibilidade à insu- minutos, e período de relaxamento com duração apro-
lina(56). ximada de 5 minutos. O tempo gasto pode aumentar,
Dados recentes demonstram que exercício físico principalmente no exercício específico aeróbio, com a
moderado a intenso em longo prazo melhora o quadro finalidade de aumentar o gasto energético e melhorar
de dislipidemia, com melhora do HDL e diminuição dos a adaptação cardiovascular.
triglicérides em adultos com sobrepeso e obesos com A freqüência sugerida é de no mínimo três dias por
síndrome metabólica(57). semana, podendo chegar à freqüência de cinco ou mais
Devemos atentar também para a gravidade da pre- dias semanais.
valência da obesidade infantil. Um estudo australiano A intensidade do exercício deve se basear no resul-
demonstrou que mais de 20% das crianças e adoles- tado do teste ergométrico/ergoespirométrico. Com base
centes desse país são obesas ou estão com sobrepe- no teste ergométrico, a intensidade do treinamento fí-

16 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005
sico deverá ser de 50% a tados na tentativa de se evitar lesões durante a sessão
70% da freqüência cardíaca de treinamento.
de reserva. Essa freqüência
cardíaca de treino é calcula- CONSIDERAÇÕES FINAIS
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico da pela fórmula de Karvonen,
e da dieta hipocalórica que corresponde a: Em conjunto, uma dieta hipocalórica e baixa em
na obesidade gorduras, associada ao exercício físico regular, cons-
FCALVO = titui a base do tratamento para diminuição dos riscos
(FCMÁX - FCREP) x % + FCREP, de doenças cardiovasculares em indivíduos obesos.
Os benefícios obtidos com a inclusão de um pro-
onde FCALVO = freqüência grama de exercícios nos programas de emagrecimen-
cardíaca de treino, FCMÁX = to podem favorecer o controle metabólico, facilitando
freqüência cardíaca máxima atingida no teste ergomé- a manutenção da perda de peso, além de provocar
trico, e FCREP = freqüência cardíaca de repouso. Quan- adaptações favoráveis, diminuindo com isso o qua-
do for possível o teste ergoespirométrico, a intensida- dro geral do risco cardiovascular associado à obesi-
de de exercício deve progredir do limiar anaeróbio até dade.
10% abaixo do ponto de compensação respiratória.
Essa intensidade poderá ser aferida nas sessões de CLASSIFICAÇÃO DE OBESIDADE
treinamento pela freqüência cardíaca correspondente
ao limiar anaeróbio e os 10% abaixo do ponto de com- A Organização Mundial de Saúde(60) classifica o adulto
pensação respiratória. como obeso de acordo com o cálculo do peso relacionado a
Cuidados preventivos relativos a problemas osteo- sua altura (índice de massa corporal) e correlaciona tais nú-
mioarticulares, comuns na obesidade, devem ser ado- meros a riscos de saúde para o indivíduo (Tab. 1).

Tabela 1. Índice de massa corporal e risco de morbidade e de mortalidade.

IMC (peso/
Classificação altura² = kg/m²) Riscos de co-morbidades

Baixo peso < 18,5 Baixo (porém maiores riscos


de outros problemas clínicos)
Normal 18,5-24,9 Ausente
Excesso de peso > 25
Pré-obeso ou com sobrepeso 25-29,9 Aumentado
Obeso classe I 30-34,9 Moderado
Obeso classe II 35-39,9 Grave
Obeso classe III > 40 Muito grave

IMC = índice de massa corporal.

Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo — Vol 15 — No 1 (supl) — Janeiro/Fevereiro de 2005 17
PHYSICAL EXERCISE AND HYPOCALORIC DIET
EFFECTS ON OBESITY
TROMBETTA IC e col.
Efeito do exercício físico
e da dieta hipocalórica
na obesidade IVANI CREDIDIO TROMBETTA, PAULO HIRAI SUZUKI

Obesity is a multifactorial disease that is associated with other cardiovascular


risk factors. The increased prevalence of obesity has been caused by combination of
genetic susceptibility and environmental factors. The non-pharmacological treatment
of obesity by low fat hypocaloric diet, associated to physical exercise, has been
considered as basic treatment for the reduction of cardiovascular disease risk fac-
tors in obese individuals. The main effects of physical exercise are the metabolic
adaptations, which benefit the control of cardiovascular risk factors. Despite the fact
that exercise training does not provoke as great body weight reduction as hypocalo-
ric diet, it preserves lean body mass during hypocaloric diet, attenuates significantly
other cardiovascular risk factors, and avoids body weight regain. In consequence,
exercise training can be considered an independent benefit in some co-morbidity of
obesity, such as hypertension, hyperglicemia and insulin resistance. Therefore, an
active life style, and consequently, a high physical capacity can attenuate morbidity
and mortality in obese individuals.

Key words: obesity, physical training, hypocaloric diet, cardiovascular risk.

(Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo. 2005;1 Supl A:12-20)


RSCESP (72594)-1515

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