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POSSIBILIDADES
*
Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças e PUC/SP
filosofia e literatura marcadas com certezas claras e distintas, como
no cogito cartesiano?
Essa caracterização não é simples porque esbarra na
caracterização da própria filosofia. Alguns referenciais para traçar
essa distinção podem ser encontrados nas obras de G.G Granger ,
Gilles Deleuze e Felix Guatari e Frédéric Cossutta. É claro que a
escolha desses autores obedece, aqui, a escolha de um critério: no
caso, a pesquisa de obras que tinham por objetivo específico delinear
o que caracterizaria um discurso propriamente filosófico, ou ainda, o
que poderíamos entender por “Filosofia”.
Embora sustentando posições diferentes acerca do problema, é
possível encontrar um traço comum nos textos: para esses
pensadores, a especificidade do texto filosófico seria a construção de
um universo de significação que tem sua raiz na experiência vivida,
mas se desloca da mesma através de conceitos. Enquanto o artista
cria significações e nos faz vivê-las, o filósofo transpõe o vivido em
termos de abstrações conceituais.
Independentemente dos mecanismos de construção de um
texto filosófico, seja por meio de uma cadeia dedutivas de
argumentação ou por estilizações subjetivas e metafóricas, o que nos
permite identificar um texto como filosófico é a possibilidade da
construção e reconstrução dos conceitos. No universo conceitual
estaria a instância mediadora do vivido e do pensado, do particular e
do universal, do concreto e do abstrato que permite ao filósofo
deslocar, atribuir sentidos, destruir e construir significações. Há
também, em Granger e em Deleuze e Guattari, a tentativa de
diferenciar a filosofia, da ciência ou da arte, de forma que, seja
possível preservar as qualidades de um discurso propriamente
filosófico.
Deleuze e Guattari, no texto “O que é a filosofia?”,1 se opõem
ao tratamento que Granger dá ao conceito filosófico, uma vez que
consideram que o domínio da criação dos conceitos é próprio da
atividade filosófica, entendem que Granger apenas submete a filosofia
à primazia da lógica e da ciência.
A fim de tornar claro esse debate, partirei das afirmações de
Granger através da leitura do texto “Por um conhecimento filosófico”2
, para depois colocá-la sob o crivo das posições defendidas por
Deleuze e Guatari e, finalmente, adentrar no terreno que, aqui, nos
interessa: o das fronteiras e possibilidades de quem se coloca entre
duas formas de pensar.
1
DELEUZE, J. GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: ED. 34, 1992.
2
Cf. GRANGER, G. G. : Op. Cit.
Em terceiro lugar, diferentemente das ciências, a filosofia não
teria objeto específico, pois seu campo de aplicação seria o conjunto
da experiência humana. Mas não se trata de analisar um conjunto
global de fatos, como poderíamos supor. Por isso, Granger nos alerta
para uma intenção oculta que habitaria toda a filosofia, ou seja, a de
não organizar fatos, mas sim, significações entendidas como uma
experiência global que envolve experiências vividas colocadas em
perspectiva. Ora, se a filosofia não lida com fatos não haveria objetos
filosóficos.
Também não poderíamos confundir a filosofia com a arte. A arte
visa criar objetos concretos cuja existência seria inseparável dos
materiais que ela utiliza. Esse suporte material efetivamente
realizado, ou reconstituído pela imaginação, simboliza experiências
que nos transportam para além do sensível. Neste sentido, se
pudéssemos atribuir à filosofia o estatuto de arte, ela seria a “arte da
linguagem”, todavia, o discurso filosófico não suscita objetos
consistentes, apreensíveis sob múltiplos aspectos; objetos indutores
de experiência, capazes de evocar imagens e sentimentos. Contudo,
nos declara Granger:
3
GRANGER:Op. Cit p. 17.
bojo, as “significações em estado nascente”, o que poderia, talvez,
abrir o caminho para a filosofia em um universo marcado pelos fatos
e pelas informações.
Contudo, continuemos perseguindo a análise de Granger: da
mesma forma como não podemos confundir a filosofia com a arte,
temos que ter um cuidado redobrado ao afirmarmos que a “filosofia é
uma arte”, uma vez que só existiria filosofia à medida em que
fazemos filosofia. Afirma Granger: “um programa filosófico, se já não
for em si mesmo sua execução, é impostura”.
Isto constituiria um dos principais problemas do ensino de
filosofia, pois se podemos extrair esquemas das obras científicas
originais, o mesmo não pode ser efetuado com as obras filosóficas. O
conteúdo filosófico só poderia se manifestar nas próprias obras
filosóficas. Sendo assim, o autor considera a filosofia um estilo:
4
Idem. p. 19.
“Se o conhecimento filosófico é relativo, não é por ser o
simples e puro reflexo de uma época ou de um
temperamento (...) O conhecimento filosófico é a
interpretação de uma experiência de uma época. (...)
mas torna essa experiência singular assimilável como
figura intemporal de uma consciência formulada
através de conceitos, não como a figura fugaz das suas
condições históricas. (...) O ceticismo impõe-se
somente quando muitas afirmações inconciliáveis se
justapõem, com a pretensão – incerta - de serem
reconhecidas como verdade. Se as teses filosóficas não
se situam num plano em que as verdades possam ser
definidas, o ceticismo perde seu sentido.”5
Visto que a própria natureza conceitual da filosofia a
salvaguardaria das interpretações equivocadas que conduzem ao
relativismo ou ao ceticismo, seria necessário, então, nos
perguntarmos sobre a natureza do conceito filosófico. Granger afirma
que, por oposição às impressões e aos afetos, o conceito seria o
modo de representação que a ciência utiliza. Resta-nos, saber, na
perspectiva de Granger, o que caracterizaria um conceito filosófico em
oposição a um conceito científico. Ou melhor, como um conceito não
científico seria possível?
Granger designa o conceito filosófico como metaconceito:
5
Idem. p. 21.
6
Idem. p.164.
privilegiada da filosofia frente à ciência ou à arte continua preservada
mesmo quando Granger denomina os conceitos filosóficos como
“conceitos frouxos”. Embora a filosofia seja conhecimento, não pode
ser entendida como um sistema dedutivo de uma Mathesis
Universalis , mas deve ser analisada por uma análise de modos de
raciocínio pelo qual opera, a citar: o funcionamento de noções
filosóficas num sistema simbólico e sobre um conceito inexato – sobre
o qual o conceito filosófico seria uma “perspectiva estilística”, isto é,
desenvolvido, como instrumento filosófico.
Quanto à primeira operação, afirma Granger, que a palavra que
veicula o conceito tem por referência a totalidade de uma experiência
e não um objeto separado que seria decomposto. Quanto à segunda,
pode-se ler:
8
DELEUZE e GUATTARI: op.cit., p. 9
mais apresentando-se como uma nova Atenas e se
desviando sobre os Universais da comunicação que lhe
forneceriam as regras de um domínio imaginário dos
mercados e da mídia (idealismo inter-subjetivo). Toda
criação é singular, e o conceito como criação
propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O
primeiro princípio da filosofia é que os Universais não
explicam nada, eles próprios devem ser explicados.”9
9
Idem. p. 15.
10
Idem. p. 19.
11
Idem. ibidem.
12
Idem, p.27.
componentes -, como também não podemos pensar em um conceito
sem que ele nos remeta a um problema que possibite sua criação e
sem uma história em “zigue-zague” que remete a pedaços vindos de
outros conceitos, ou ainda, em um devir que bifurcará o conceito
sobre outros conceitos.
Sendo assim, afirmam Deleuze e Guattari ser o conceito, ao
mesmo tempo, absoluto e relativo. Relativo a seus componentes, aos
outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas
que tenta resolver. Absoluto pela condensação que opera, pelo lugar
que ocupa no plano de imanência, pelas condições que impõe ao
problema. “É absoluto como todo, mas relativo enquanto
fragmentário”.13
Finalmente, afirmam que o conceito não é discursivo porque a
filosofia não seria formação discursiva que encadeia proposições.
Consideram uma “idéia infantil” da filosofia, entender os conceitos
medidos por uma “gramática filosófica”. Os conceitos não seriam
proposições encadeadas porque só teriam consistência fora de
coordenadas, uma vez que entram livremente em “relações de
ressonância” (os componentes de um se tornam conceitos de outros
componentes heterogêneos), sendo assim, não há razão para que os
conceitos se sigam. O conceito, portanto, se define por sua
consistência, mas não tem referências; é auto-referencial, põe a si
mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado.
Ora, diante dessa caracterização, fica fácil entender porque
Deleuze e Guattari atribuem à filosofia o domínio da criação de
conceitos e negam a existência dos conceitos científicos. Neste
contexto, torna-se transparente a crítica que fazem a Granger:
13
Idem, p.34.
sua própria insuficiência por um vago apelo ao vivido.
Assim Gilles Gaston Granger começa por definir o
conceito como uma proposição ou uma função
científicas, depois concede que pode até mesmo haver
conceitos filosóficos que substituam a referência do
objeto pelo correlato de uma ‘totalidade do vivido’.14
14
Idem. p. 47.
15
Os autores afirmam que os conceitos filosóficos são totalidades fragmentárias
que não se ajustam umas às outras, já que suas bordas não coincidem. Acerca do
plano de imanência que permite a criação conceitual afirmam: “os conceitos
ladrilham, ocupam e povoam o plano, pedaço por pedaço enquanto do próprio
plano é o meio indivisível em que os conceitos povoam sem romper-lhe a
integridade, a continuidade: eles ocupam sem contar (a cifra do conceito não é
número), ou se distribuem sem dividir.” Cf. DELEUZE e GUATTARI: op.cit., p. 52.
selecionaria movimentos infinitos do pensamento, dando consistência
ao virtual por meio de conceitos. Já, no caso da ciência, haveria
necessidade de renunciar ao infinito, para ganhar uma referência
capaz de atualizar o virtual, como uma parada de imagem, uma
desaceleração. “É por desaceleração que a matéria se atualiza, como
também o pensamento científico, capaz de penetrá-la por
proposições”. – “Desacelerar é colocar um limite no caos”.16
Portanto, a primeira diferença entre a filosofia e a ciência
refere-se, no caso do conceito, a um plano de imanência. No caso da
função, a um plano de referência.
A segunda diferença diz respeito ao papel das variáveis no
conceito e na função: No conceito temos um “conjunto de variáveis
inseparáveis sob uma razão contingente”; na função, um “conjunto de
variáveis independentes sob uma razão necessária”.17 Também é
preciso destacar uma diferença singular entre filosofia e ciência,
apresentada por Deleuze e Guattari, para buscarmos entender a
diferença entre prospectos e juízos: se na filosofia nos remetemos
aos “personagens conceituais”,18 na ciência convivemos com
“observadores parciais”. Sendo assim, o papel do observador parcial
na ciência é perceber e experimentar, embora as percepções e
afecções não sejam a do sujeito, mas pertencem a coisa que ele
estuda. “Os observadores científicos seriam pontos de vista nas
coisas mesmas.”
Neste contexto, não poderíamos confundir “conceitos” com
“prospectos”. O conceito, na perspectiva de Deleuze e Guattari, não é
uma função científica porque não é uma proposição lógica (pertence
16
Idem. p.155.
17
Cf. Idem, p 163 – (grifo nosso)
18
Ao escreverem sobre personagens conceituais, Deleuze e Guattari, se referem à
tradição filosófica, que traz à tona o apelo aos conceitos criados nesta trajetória
não linear. Afirmam: “O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é
mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem
conceitual e de todos os outros, que são intercessores, os verdadeiros sujeitos de
sua filosofia. Os personagens conceituais são os ‘heterônomios’ do filósofo, e o
nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.” Idem: p. 86.
ao sujeito e não ao conjunto); não pertence a nenhum sistema
discursivo, não tem referência. “Os conceitos são monstros que
renascem de seus pedaços”19 , da mesma forma que, “a filosofia é
devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de
sistemas”20.
Ao abordarem a arte, enquanto criadora de perceptos e afectos,
a definem de forma intrigante: “A arte conserva, e é a única coisa no
mundo que conserva”. Para os pensadores o que se conserva, a obra
de arte, é um bloco de sensações, ou melhor, um conjunto de
perceptos e afectos. Tanto os perceptos não são percepções, como os
afectos não são sensações porque a arte transborda a força dos que
são atravessados por ela, é capaz de existir apesar da inexistência do
homem, ou seja, o criador a mantém “em pé sozinha”. Apesar de
pintarmos, esculpirmos, compormos e escrevermos com sensações e
a partir de percepções. Tais percepções não nos remeteriam a um
objeto (referência): “se assemelham a algo, é uma semelhança
produzida por seus próprios meios, e o sorriso na tela é somente feito
de cores, de traços, de sombras e de luz”.21
O objetivo da arte seria o de arrancar o percepto das
percepções do objeto e de arrancar o afecto das afecções, extrair um
puro ser de sensações. Apesar de considerarem estar o escritor em
uma posição diferenciada do pintor ou do escultor, pois o material de
suas obras são as palavras, o caracterizaria um romance, como obra
de arte, não seria a memória, mas a fabulação. Desta forma,
afirmam: “Os personagens não podem existir, e o autor só pode criá-
los porque eles não percebem, mas entraram na paisagem e fazem
eles mesmos parte do composto das sensações.”22
Uma posição parecida pode ser encontrada no texto de Sartre,
“O que é literatura?” quando o autor se propõe a distinguir o poeta do
19
Idem, p.183.
20
Idem. p.78.
21
Idem. p.216.
22
Idem. p. 219.
prosador para reafirmar a possibilidade de uma literatura
comprometida com a filosofia da existência; o que, para Franklin
Leopoldo e Silva23, permitiria se instaurar entre a literatura e a
filosofia em Sartre uma espécie de “vizinhança comunicante” pelo
qual Sartre poderia dizer e não dizer as mesmas coisas – vizinhança
fundamental para seu projeto existencialista:
23
Cf. SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e Literatura em Sartre: ensaios
introdutórios. São Paulo: UNESP, 2004, pp. 11 – 32.
24
SARTRE, J. P. O que é literatura?. SP: Ática,1999, p. 14.
25
DELEUZE e GUATTARI: Op. Cit. p. 254.
equivalente ficcional. A filosofia, através do conceito, propõe a
“reconstrução desse discurso” e não simplesmente sua suspensão e
substituição. Exatamente por isso, Granger alerta para o perigo do
uso de metáforas na construção do texto filosófico, pois o uso
excessivo da imagem interrompe a exposição abstrata e a substitui
por um equivalente concreto. A metáfora alude às imagens que
podem ser compreendidas sem exatidão, a situação poética poderia
ser um problema para o rigor filosófico e, conseqüentemente, para os
mecanismos da demonstração filosófica, necessários para a
reconstrução do vivido.
Já, para Frédéric Cossuta a função da metáfora, no interior do
texto filosófico, teria que ser examinada de uma forma mais
complexa. Entende que a desconfiança que os filósofos teriam no uso
metafórico da linguagem teria sua origem na recusa do mito, ou seja,
“haveria uma antinomia original entre o esforço filosófico de
inteligibilidade e o peso concreto da imagem que veicularia a
ignorância e a irracionalidade”.26 Mas também recupera dos filósofos
“tradicionais” a impossibidade de um “pensamento puro”, totalmente
livre, da força das imagens. Sendo assim, o autor busca analisar nos
textos filosóficos de diferentes pensadores (Descartes, Kant,
Nietzsche, dentre outros) as possíveis funções do emprego das
metáforas. Sem dúvida, se trata de um convite interessante, mas nos
limitaremos a tratar do que autor denomina como “função filosófica
do uso da metáfora”.
Para Cossutta, a metáfora, em alguns textos, pode assumir uma
função mediadora intradiscursiva. Neste caso, o emprego da metáfora
seria fraco, uma vez que, somente alguns aspectos da doutrina
seriam metaforizados, a dominância não seria metafórica. Seria como
uma espécie de desdobramento dos conteúdos filosóficos que se
efetua por formas expressivas diferenciadas, o que supõe para a
26
COSSUTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p.99.
metáfora funções pedagógicas ou funções ornamentais e persuasivas.
“A função didática, por sua vez, torna-se possível pela tradução, em
formas de expressão figuradas, de um conteúdo que só será acessível
posteriormente”27 no interior do texto filosófico, em sua circularidade.
Mas a metáfora poderia assumir também, na filosofia, uma
mediação extradiscursiva ou desintegradora do discurso:
27
Idem. p. 123.
28
Idem. p. 124 - 125.
que a filosofia não é “sorriso sem o gato” Por outro lado, defendem
que tais “pontos de vista”, se é que assim podemos chamar, podem
ser desligados de sua relação referencial e considerados em si. O
conceito, neste caso, torna-se reflexivo, torna-se “auto- referente”.
No texto sistemático – entendido como texto filosófico - os
conceitos reflexivos servem reciprocamente para a organização dos
sentidos da experiência. Se a filosofia ganha em rigor, paga o preço
de uma abstração capaz de distanciar o conceito de seu campo
referencial de experiência. Creio estar aqui o nó que os professores
de filosofia do Ensino Médio tentam desfazer, ou seja, aproximar o
conceito filosófico de um campo referencial de experiência que se
mostra cada vez mais fragmentado.
Mas seria possível admitir um universo conceitual num texto de
ficção? Exatamente por poder substituir as referências do discurso
descritivo por “pseudo- referências”, o texto literário supõe uma
maleabilidade em relação aos conceitos. Apresenta-se, desta forma,
possibilidades de uso de conceitos e, com isso, possibilidades de
diferentes formas para a organização da experiência. O real e a ficção
se entrelaçam: a unidade da ficção não é a unidade de uma
consistência sistemática, mas sim uma unidade que se configura
como equivalente de uma experiência. Essa unidade pode subverter
os esquemas da realidade em camadas sobrepostas no texto literário.
A literatura pode não somente apresentar conceitos, mas
também problematizar conceitos e representar condensações pré-
conceituais. No texto literário é possível encontrar a tematização de
experiências pré-conceituais e se abrir ao universo de
problematização e criação de conceitos. Talvez por esse motivo, a
filosofia quando duvida da validade dos grandes sistemas explicativos
se aproxima da literatura. Esse exemplo está em Voltaire e em
Benjamin, mas poderíamos pensar em Nietzsche, Sartre e muitos
outros filósofos.
Ora, se admitirmos com Voltaire que a filosofia é livro a ser
escrito, o que supõe uma atividade criadora e criativa, a literatura
teria muito a ensinar à filosofia e poderia apontar caminhos para seu
ensino Neste sentido, é preciso aprender com Carlos Drumond de
Andrade para não transformar as aulas de filosofia no espetáculo da
“opinião em palácio” e oferecer conceitos condensados em apostilas a
serem decoradas.
Mas seria ingênuo de nossa parte supor que toda e qualquer
literatura poderia se prestar a um trabalho de introdução à filosofia.
Seria, pois, necessário verificar as condições que permitiram ao leitor
de um texto de ficção adentrar pelas portas do conceito.
29
STIERLE, K. “O que significa a recepção dos textos ficcionais?”. In: LIMA, Luiz
Costa. A literatura e o leitor – Textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2002, p.132.
em ilusão. Isso se faz claro quando nos lembramos do leitor iniciante,
ou seja, a criança às voltas com o mundo da imaginação: para a
criança, os contos infantis seriam a pura presença do imaginário, pois
elas não se dão conta da mediação; os contos infantis se apossam
das crianças concretizando experiências de angústia, esperança,
pavor, etc.
Mas se o texto de ficção se abre ao leitor no sentido de uma
leitura ingênua, é claro que também a ficção pode ganhar uma
pragmática própria orientada para a fusão com a ilusão. O exemplo
mais próximo seria o da literatura de consumo que só funcionaria
como provocadora para a criação de uma realidade ilusória:
30
Idem, p. 134 e 135.
análises de Adorno. Trata-se, somente, de tentarmos delinear o que
nos parece mais adequado, sabendo reconhecer a validade desses
textos para impulsionar o hábito da leitura em um país de não
leitores.
O que nos parece mais adequado, ainda percorrendo as pistas
do texto, seria a potencialidade do texto “pseudo-referente” de vir a
ser “auto-referente”. Para que isso seja possível, seria preciso uma
segunda leitura fazendo aparecer camadas sobrepostas que
obedecem uma ordem complexa, cujos alinhamentos constituem, pela
expansão, a própria poética do texto. Só mediante uma segunda
leitura, seria possível ao leitor, situar o texto já trabalhado e o texto
não explorado e, assim, converter a primeira leitura (quase
pragmática), causadora da ilusão, em uma leitura captadora da
ficção. Desta forma, o texto de ficção auto-referencial deve ser
internamente trabalhado, enquanto o texto pragmático deve ser
trabalhado tendo em vista uma intenção que o transcende. O texto de
ficção deveria abrir espaço para a multiplicação de possibilidades de
relacionamento, possibilidades de significação que poderiam tornar-
se, para o leitor, espaço de reflexão que permitiria a penetração no
texto, sem esgotamento. Seu limite estaria na capacidade do leitor de
retirar “suas forças germinativas”, como afirma Benjamin acerca da
narrativa, ou, ainda, do leitor apreendê-lo como um conjunto de
relações constitutivas de sentido. Os espaços vazios, o “não dito” do
texto não só permite, como também exige do leitor que indague, que
supere o horizonte da experiência cotidiana para instaurar um
movimento de reflexão que têm, como ponto de partida, a
provisoriedade do texto nas suas diferentes camadas.
Desta forma, seria preciso admitir que assim como há textos de
ficção que só se concebem a partir de uma recepção quase
pragmática, há outros cuja própria forma exigiria uma recepção
reflexiva. Mallarmé é, apontado no texto, como o precursor de uma
tradição na ficção moderna que bloqueia a possibilidade de uma
recepção quase pragmática:
31
Idem, p. 154.
sistema do texto e o sistema do leitor cada vez mais se
afastam. Assim o texto recebe do passado um
horizonte do futuro que o ultrapassa.”32
Desta forma, seria preciso buscar na literatura, uma forma de
narração capaz de convidar o jovem leitor ao deslocamento, ao
incômodo, à reflexão, uma vez que a ficção não poderia ser
entendida, na leitura de Karlheinz Stierle, como “um reflexo do
mundo, nem como representação de um mundo bem diverso”. Ao
contrário, ela descreveria, numa configuração que não se esgota, a
mediação entre dois campos. “É, nesta fronteira, que se articulam as
figuras de experiência possível (...) que, ao mesmo tempo, se define
pela intimidade de uma concepção prévia do mundo e pela estranheza
do outro, oposto àquele”.33
Ora, se a hipótese deste trabalho estaria em encontrar na
possibilidade do uso da narrativa, elementos para um convite à
filosofia que pudesse ter elementos suficientes para o encontro e o
desencontro, para a identidade com o texto e para o estranhamento
necessário à reflexão, fica claro que não poderíamos recorrer a
qualquer texto. “A ficção, que não se presta diretamente ao papel de
sermão ou guia de boas maneiras, é a que importa para a função de
distanciamento orientador”.34
Talvez, por isso, Voltaire em seu “Micrômegas”,
sarcasticamente, ofereça aos filósofos um livro em branco sobre a
finalidade de todas as coisas e atribua a este conto, o subtítulo de
“conto filosófico”. Mas se ainda podemos nos perguntar sobre as
32
Idem, pp. 158 - 159.
33
Idem, p. 161.
34
Idem, p. 163.
finalidades do conto de Voltaire, é preciso recorrer a Walter
Benjamin:
Bibliografia