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DO FILOSÓFICO AO LITERÁRIO: FRONTEIRAS E

POSSIBILIDADES

Dalva Aparecida Garcia*


dalva@cbfc.org.br

“O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o


poder com a Opinião Pública.
- Chamem a Opinião Pública – ordenou aos serviçais
Eles percorreram as praças da cidade e não a
encontraram. Havia muito que a opinião deixara de
freqüentar os lugares públicos. Recolhera-se ao beco
sem saída, onde furtivamente, abria só um olho, isso
mesmo lá de vez em quando.
Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela
consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde sua
Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe
disse:
- Preciso de ti.
A Opinião muda como entrara, muda se conservou.
Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-la. O
rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o
que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em
discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas
coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça:
Não tinha opinião.
- Vou te obrigar a ter opinião – disse o Rei, zangado. –
Meus especialistas te dirão o que deves pensar e
manifestar. Não posso mais reinar sem teu concurso.
Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo
assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em
particular e sobre a problemática geral, tu me serás
indispensável.
E virando-se para os serviçais:
-Levem esta senhora para o curso intensivo de
Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de
decorar bem as apostilas.” (DRUMMOND, 1985)

Quando nos perguntamos o que é literatura, ou mesmo o que é


a filosofia, tendemos a afirmar que o campo da racionalidade e dos
sistemas explicativos seria o campo da filosofia e o espaço das
emoções e dos afetos seria o campo da arte e da literatura, capaz de
nos arrebatar. Aqui convém questionar: estariam as relações entre

*
Centro Brasileiro de Filosofia para Crianças e PUC/SP
filosofia e literatura marcadas com certezas claras e distintas, como
no cogito cartesiano?
Essa caracterização não é simples porque esbarra na
caracterização da própria filosofia. Alguns referenciais para traçar
essa distinção podem ser encontrados nas obras de G.G Granger ,
Gilles Deleuze e Felix Guatari e Frédéric Cossutta. É claro que a
escolha desses autores obedece, aqui, a escolha de um critério: no
caso, a pesquisa de obras que tinham por objetivo específico delinear
o que caracterizaria um discurso propriamente filosófico, ou ainda, o
que poderíamos entender por “Filosofia”.
Embora sustentando posições diferentes acerca do problema, é
possível encontrar um traço comum nos textos: para esses
pensadores, a especificidade do texto filosófico seria a construção de
um universo de significação que tem sua raiz na experiência vivida,
mas se desloca da mesma através de conceitos. Enquanto o artista
cria significações e nos faz vivê-las, o filósofo transpõe o vivido em
termos de abstrações conceituais.
Independentemente dos mecanismos de construção de um
texto filosófico, seja por meio de uma cadeia dedutivas de
argumentação ou por estilizações subjetivas e metafóricas, o que nos
permite identificar um texto como filosófico é a possibilidade da
construção e reconstrução dos conceitos. No universo conceitual
estaria a instância mediadora do vivido e do pensado, do particular e
do universal, do concreto e do abstrato que permite ao filósofo
deslocar, atribuir sentidos, destruir e construir significações. Há
também, em Granger e em Deleuze e Guattari, a tentativa de
diferenciar a filosofia, da ciência ou da arte, de forma que, seja
possível preservar as qualidades de um discurso propriamente
filosófico.
Deleuze e Guattari, no texto “O que é a filosofia?”,1 se opõem
ao tratamento que Granger dá ao conceito filosófico, uma vez que
consideram que o domínio da criação dos conceitos é próprio da
atividade filosófica, entendem que Granger apenas submete a filosofia
à primazia da lógica e da ciência.
A fim de tornar claro esse debate, partirei das afirmações de
Granger através da leitura do texto “Por um conhecimento filosófico”2
, para depois colocá-la sob o crivo das posições defendidas por
Deleuze e Guatari e, finalmente, adentrar no terreno que, aqui, nos
interessa: o das fronteiras e possibilidades de quem se coloca entre
duas formas de pensar.

Onde está a filosofia?

Granger inicia seu trabalho buscando responder a um problema


comum, presente em toda a história da filosofia: como o
conhecimento filosófico seria possível? O primeiro passo seria o de
diferenciar a filosofia da ciência e, portanto, caracterizar o que
poderia ser denominado “ciência”.
Para o pensador, as ciências visam construir modelos abstratos
dos fenômenos, representados como estruturas distanciadas do
vivido, de tal forma que, seja possível calcular, ou melhor, evocar “a
idéia de operações definidas e reguladas”. A filosofia não pode propor
verdadeiros modelos dos fenômenos e, segundo Granger, quando
tentou se lançar a essa tarefa, o resultado foi o fracasso.
Em segundo lugar, as ciências definem os fatos que tratam de
maneira que seja possível pôr em dúvida, informar, ou, mesmo,
confirmar o que se afirma, por meio de operações submetidas à
regras e protocolo. Já a filosofia não pretende explicar fatos.

1
DELEUZE, J. GUATTARI, F. O que é a filosofia?. Rio de Janeiro: ED. 34, 1992.
2
Cf. GRANGER, G. G. : Op. Cit.
Em terceiro lugar, diferentemente das ciências, a filosofia não
teria objeto específico, pois seu campo de aplicação seria o conjunto
da experiência humana. Mas não se trata de analisar um conjunto
global de fatos, como poderíamos supor. Por isso, Granger nos alerta
para uma intenção oculta que habitaria toda a filosofia, ou seja, a de
não organizar fatos, mas sim, significações entendidas como uma
experiência global que envolve experiências vividas colocadas em
perspectiva. Ora, se a filosofia não lida com fatos não haveria objetos
filosóficos.
Também não poderíamos confundir a filosofia com a arte. A arte
visa criar objetos concretos cuja existência seria inseparável dos
materiais que ela utiliza. Esse suporte material efetivamente
realizado, ou reconstituído pela imaginação, simboliza experiências
que nos transportam para além do sensível. Neste sentido, se
pudéssemos atribuir à filosofia o estatuto de arte, ela seria a “arte da
linguagem”, todavia, o discurso filosófico não suscita objetos
consistentes, apreensíveis sob múltiplos aspectos; objetos indutores
de experiência, capazes de evocar imagens e sentimentos. Contudo,
nos declara Granger:

“Afirmar que a obra filosófica não se confunde com a


obra do artista não significa, contudo que se queria
recusar à obra de arte todo o valor, todo o alcance
filosófico. Mas, na poesia e no romance, por exemplo,
só se acha a representação de um mundo preparado
pelo trabalho filosófico. O que o artista mostra, mais do
que faz, ordinariamente, o mundo vivido é aquilo sobre
o que deve se exercer o trabalho do filósofo. Enquanto
criador de objetos a partir de materiais emprestados da
experiência (...) o artista faz parecer significações e nos
leva a vivê-las como ele em nosso próprio imaginário.
Em troca, o filósofo se propõe como tarefa transpor
essas significações vividas, essas significações em
estado nascente, em termos de abstrações
conceituais.”3
Esta afirmação nos parece interessante, pois se a filosofia não
poderia confundir-se com a arte; a arte, por sua vez, traria em seu

3
GRANGER:Op. Cit p. 17.
bojo, as “significações em estado nascente”, o que poderia, talvez,
abrir o caminho para a filosofia em um universo marcado pelos fatos
e pelas informações.
Contudo, continuemos perseguindo a análise de Granger: da
mesma forma como não podemos confundir a filosofia com a arte,
temos que ter um cuidado redobrado ao afirmarmos que a “filosofia é
uma arte”, uma vez que só existiria filosofia à medida em que
fazemos filosofia. Afirma Granger: “um programa filosófico, se já não
for em si mesmo sua execução, é impostura”.
Isto constituiria um dos principais problemas do ensino de
filosofia, pois se podemos extrair esquemas das obras científicas
originais, o mesmo não pode ser efetuado com as obras filosóficas. O
conteúdo filosófico só poderia se manifestar nas próprias obras
filosóficas. Sendo assim, o autor considera a filosofia um estilo:

“Entendemos por estilo que, sendo um trabalho de


execução, o que a filosofia produz se expressa, ao
mesmo tempo, ao nível dos conteúdos manifestos que
o filósofo organiza explicitamente num sistema de
conceitos e, ao nível latente de um por em forma mais
livre, elementos não designados, não pertinentes na
própria expressão”.4
Mas a questão do estilo poderia nos conduzir a alguns perigos
comuns no entendimento desse fazer. Granger nos adverte: se a
palavra verdade não se sustenta no “fazer filosofia” poderia, de
alguma forma, ser aplicada às ciências porque, em última análise, os
fenômenos acham-se limitados a um quadro de operações que lhes
permitem ser posto à prova. Porém, não poderíamos afirmar que, as
teses filosóficas seriam enunciados provisórios e revisáveis porque a
precariedade da filosofia seria de outra ordem: implicaria na liberdade
de uma escolha global, de uma perspectiva sobre o significado de
nossa experiência.
Isso não significa professar o relativismo, nem mesmo o ceticismo:

4
Idem. p. 19.
“Se o conhecimento filosófico é relativo, não é por ser o
simples e puro reflexo de uma época ou de um
temperamento (...) O conhecimento filosófico é a
interpretação de uma experiência de uma época. (...)
mas torna essa experiência singular assimilável como
figura intemporal de uma consciência formulada
através de conceitos, não como a figura fugaz das suas
condições históricas. (...) O ceticismo impõe-se
somente quando muitas afirmações inconciliáveis se
justapõem, com a pretensão – incerta - de serem
reconhecidas como verdade. Se as teses filosóficas não
se situam num plano em que as verdades possam ser
definidas, o ceticismo perde seu sentido.”5
Visto que a própria natureza conceitual da filosofia a
salvaguardaria das interpretações equivocadas que conduzem ao
relativismo ou ao ceticismo, seria necessário, então, nos
perguntarmos sobre a natureza do conceito filosófico. Granger afirma
que, por oposição às impressões e aos afetos, o conceito seria o
modo de representação que a ciência utiliza. Resta-nos, saber, na
perspectiva de Granger, o que caracterizaria um conceito filosófico em
oposição a um conceito científico. Ou melhor, como um conceito não
científico seria possível?
Granger designa o conceito filosófico como metaconceito:

“Esta qualificação de metaconceito deve evocar a


hipótese de que tais conceitos nunca visam
verdadeiramente nem para designar um vivido
enquanto tal, nem para representá-lo absolutamente
pela mediação das estruturas, isto é, por exemplo,
relações de conjunto entre os objetos. Sua função é
fornecer pontos de apoio para uma linguagem que quer
falar dos conceitos naturais, descobrindo ‘seu sentido’,
isto é, construindo, uma organização totalizante.”6
Ora, essa afirmação de Granger devolve à filosofia um lugar
privilegiado frente às ciências, pois a coruja de Minerva poderia ver à
distância, em pleno entardecer, o trabalho minucioso e fragmentado
que as ciências formulam de perto, quase “microscopicamente” e,
assim, recuperar o “sentido” da história. Novamente, em uma outra
perspectiva, o papel da filosofia estaria alargado. A posição

5
Idem. p. 21.
6
Idem. p.164.
privilegiada da filosofia frente à ciência ou à arte continua preservada
mesmo quando Granger denomina os conceitos filosóficos como
“conceitos frouxos”. Embora a filosofia seja conhecimento, não pode
ser entendida como um sistema dedutivo de uma Mathesis
Universalis , mas deve ser analisada por uma análise de modos de
raciocínio pelo qual opera, a citar: o funcionamento de noções
filosóficas num sistema simbólico e sobre um conceito inexato – sobre
o qual o conceito filosófico seria uma “perspectiva estilística”, isto é,
desenvolvido, como instrumento filosófico.
Quanto à primeira operação, afirma Granger, que a palavra que
veicula o conceito tem por referência a totalidade de uma experiência
e não um objeto separado que seria decomposto. Quanto à segunda,
pode-se ler:

“A análise filosófica parte realmente do simbolismo


como de um fato. Mas nunca à maneira do filólogo que
descreve como igual este estado de fato, nem bem
entendido, à maneira do homem da ciência, que na
ocasião destrói e reforma os simbolismos naturais
visando construir um modelo abstrato de nosso mundo
de objetos (...) A filosofia se dedica a explicitar em que
e como, simbolismos incluindo os que constroem
deliberadamente a ciência, são e representam (...)
nesse sentido, que ela não tem objetos, nem os cria,
mas elabora significações. De tal sorte que os conceitos
filosóficos, talvez mais essencialmente do que os
conceitos objetivos, formam um sistema. Sua própria
função é de levar a uma totalidade (que é preciso
construir). Em um sentido, uma filosofia não é nada
mais que uma linguagem, isto é, um sistema simbólico,
mas organizado de uma maneira que o distingue de um
sistema formal. E essa linguagem funciona como meta-
linguagem.”7
Talvez seja o sentimento de crise perante os meta-discursos
que tenham feito Deleuze e Guattari retomar a caracterização da
filosofia enquanto atividade conceitual em uma perspectiva diferente
de Gilles Gaston Granger. Talvez pelos mesmos motivos tenham
iniciado o projeto do texto “O que é filosofia?” com a seguinte
afirmação:
7
Idem. p. 206.
“Tínhamos muita vontade de fazer filosofia, não nos
perguntávamos o que ela era, salvo por exercício de
estilo; não tínhamos atingido este ponto de não-estilo
em que se pode dizer enfim: mas o que é isso que fiz
toda minha vida?”.8
Problematizando a idéia de philia, os autores afirmam ser, o
filósofo, o amigo do conceito ou o conceito em potência. Isso implica
em dizer que os conceitos não são achados, produtos ou formas, mas
criações e, por isso mesmo, nos remetem ao filósofo como àquele que
os tem em potência. Justamente porque não haveria “um céu para os
conceitos” que eles não seriam nada sem a assinatura de quem os
criou.
Definida a filosofia como criação de conceitos, resta aos autores
definir o que ela não seria e, provavelmente, esse é o lugar em que
os autores iniciam um suposto debate frente a caracterização de
Granger. Prosseguimos, então, tentando resgatar o procedimento que
nos ensinaram os autores da Teoria Crítica, ou seja, o tentar ler nas
entranhas do texto:
Para Deleuze e Guattari, a filosofia não seria contemplação, pois
contemplações são as coisas mesmas, vistas na criação dos conceitos.
Também não poderia ser reflexão, pois isso seria o mesmo que nada
dizer a seu respeito, uma vez que ninguém depende da filosofia para
refletir o que quer que seja. Finalmente, não poderiam ser
comunicação, pois a comunicação seria útil para criar o consenso e
não o conceito. Afirmam, finalmente:

“A filosofia não contempla, não reflete, não comunica,


se bem que tenha que criar conceitos para estas ações
ou paixões. A contemplação, a reflexão, a comunicação
não são disciplinas, mas máquinas de construir
Universais em todas as disciplinas. Os Universais de
contemplação, e em seguida de reflexão, são como
duas ilusões que a filosofia já percorreu em seu sonho
de dominar as outras disciplinas (idealismo objetivo e
idealismo subjetivo), e a filosofia não se engrandece

8
DELEUZE e GUATTARI: op.cit., p. 9
mais apresentando-se como uma nova Atenas e se
desviando sobre os Universais da comunicação que lhe
forneceriam as regras de um domínio imaginário dos
mercados e da mídia (idealismo inter-subjetivo). Toda
criação é singular, e o conceito como criação
propriamente filosófica é sempre uma singularidade. O
primeiro princípio da filosofia é que os Universais não
explicam nada, eles próprios devem ser explicados.”9

Se, encontramos nesta citação, o mesmo ímpeto demolidor que


balança os alicerces do poder redentor da filosofia, presente em
Benjamin, é preciso cuidado, pois os autores não decretam a falência
da filosofia, antes retomam sua vivacidade, trazendo à tona os rivais
da filosofia em sua densa história, a citar: a sociologia, a
epistemologia, a lingüística, a psicanálise e a análise lógica e, por fim,
a informática, o design, a publicidade e todas as disciplinas da
comunicação. Mas, a “velha senhora” quanto mais tropeça em rivais
mais encontra força para criar conceitos que “são antes meteoritos
que mercadorias”.10.

“Fala-se hoje em falência dos sistemas, quando é


apenas o conceito de sistema que mudou. Se há lugar e
tempo para a criação de conceitos, a essa operação de
criação sempre se chamará filosofia, ou não se
distinguirá da filosofia, mesmo se lhe for dado outro
nome”.11
A imagem dos conceitos como meteoritos abala a idéia de
totalidade presente em Granger, embora seja preciso considerar que
os autores afirmam que os conceitos nos indiquem uma espécie de
corte no caos, de articulação e superposição; afirmam o todo porque
o conceito totaliza seus componentes, mas um “todo fragmentário” –
“uma condição para sair do caos que não cessa de espreitá-lo, de
aderir a ele, para reabsorvê-lo12.”
Desta forma, não poderíamos pensar no conceito sem seus
componentes - sem um contorno irregular definido pela cifra de seus

9
Idem. p. 15.
10
Idem. p. 19.
11
Idem. ibidem.
12
Idem, p.27.
componentes -, como também não podemos pensar em um conceito
sem que ele nos remeta a um problema que possibite sua criação e
sem uma história em “zigue-zague” que remete a pedaços vindos de
outros conceitos, ou ainda, em um devir que bifurcará o conceito
sobre outros conceitos.
Sendo assim, afirmam Deleuze e Guattari ser o conceito, ao
mesmo tempo, absoluto e relativo. Relativo a seus componentes, aos
outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas
que tenta resolver. Absoluto pela condensação que opera, pelo lugar
que ocupa no plano de imanência, pelas condições que impõe ao
problema. “É absoluto como todo, mas relativo enquanto
fragmentário”.13
Finalmente, afirmam que o conceito não é discursivo porque a
filosofia não seria formação discursiva que encadeia proposições.
Consideram uma “idéia infantil” da filosofia, entender os conceitos
medidos por uma “gramática filosófica”. Os conceitos não seriam
proposições encadeadas porque só teriam consistência fora de
coordenadas, uma vez que entram livremente em “relações de
ressonância” (os componentes de um se tornam conceitos de outros
componentes heterogêneos), sendo assim, não há razão para que os
conceitos se sigam. O conceito, portanto, se define por sua
consistência, mas não tem referências; é auto-referencial, põe a si
mesmo e põe seu objeto, ao mesmo tempo em que é criado.
Ora, diante dessa caracterização, fica fácil entender porque
Deleuze e Guattari atribuem à filosofia o domínio da criação de
conceitos e negam a existência dos conceitos científicos. Neste
contexto, torna-se transparente a crítica que fazem a Granger:

“Começamos por atribuir o poder do conceito à ciência,


definimos o conceito pelos procedimentos criativos da
ciência, medimo-la pela ciência, depois perguntamos se
não resta uma possibilidade para que a filosofia forme,
por sua vez, conceitos de segunda zona, que suprem

13
Idem, p.34.
sua própria insuficiência por um vago apelo ao vivido.
Assim Gilles Gaston Granger começa por definir o
conceito como uma proposição ou uma função
científicas, depois concede que pode até mesmo haver
conceitos filosóficos que substituam a referência do
objeto pelo correlato de uma ‘totalidade do vivido’.14

Não nos cabe adentrar nesse debate de gigantesmas. É preciso


considerar que Granger, para salvaguardar o domínio filosófico,
submete a filosofia à uma análise muito parecida com “o tribunal
kantiano”. Em contrapartida, Deleuze e Guattari parecem nos querer
livrar das amarras do “transcendental” para colocar a filosofia no chão
de uma “composição fragmentada de ladrilhos”.15
Mas... se à filosofia cabe o domínio da criação dos conceitos, o
que seria, nessa perspectiva, a ciência e a arte?
A tese é que a filosofia cria conceitos (que não se confundem
com idéias gerais ou abstratas), enquanto a ciência tira prospectos
(proposições que não se confundem com juízos), e a arte cria
perceptos e afectos (que também não se confundem com percepções
ou sentimentos). Ora, neste universo de engodos, continuemos a
tentar prosseguir o caminho traçado, cientes de nossos possíveis
erros de interpretação e leitura e “das inevitáveis confusões” que
podem se seguir.
A ciência tem por objeto funções que se apresentam como
proposições nos sistemas discursivos. Teríamos, então, que delimitar
as possíveis diferenças entre a ciência e a filosofia no interior dessa
perspectiva.
A primeira refere-se ao plano de imanência, primordial para a
criação dos conceitos: o crivo filosófico recortaria o caos e

14
Idem. p. 47.
15
Os autores afirmam que os conceitos filosóficos são totalidades fragmentárias
que não se ajustam umas às outras, já que suas bordas não coincidem. Acerca do
plano de imanência que permite a criação conceitual afirmam: “os conceitos
ladrilham, ocupam e povoam o plano, pedaço por pedaço enquanto do próprio
plano é o meio indivisível em que os conceitos povoam sem romper-lhe a
integridade, a continuidade: eles ocupam sem contar (a cifra do conceito não é
número), ou se distribuem sem dividir.” Cf. DELEUZE e GUATTARI: op.cit., p. 52.
selecionaria movimentos infinitos do pensamento, dando consistência
ao virtual por meio de conceitos. Já, no caso da ciência, haveria
necessidade de renunciar ao infinito, para ganhar uma referência
capaz de atualizar o virtual, como uma parada de imagem, uma
desaceleração. “É por desaceleração que a matéria se atualiza, como
também o pensamento científico, capaz de penetrá-la por
proposições”. – “Desacelerar é colocar um limite no caos”.16
Portanto, a primeira diferença entre a filosofia e a ciência
refere-se, no caso do conceito, a um plano de imanência. No caso da
função, a um plano de referência.
A segunda diferença diz respeito ao papel das variáveis no
conceito e na função: No conceito temos um “conjunto de variáveis
inseparáveis sob uma razão contingente”; na função, um “conjunto de
variáveis independentes sob uma razão necessária”.17 Também é
preciso destacar uma diferença singular entre filosofia e ciência,
apresentada por Deleuze e Guattari, para buscarmos entender a
diferença entre prospectos e juízos: se na filosofia nos remetemos
aos “personagens conceituais”,18 na ciência convivemos com
“observadores parciais”. Sendo assim, o papel do observador parcial
na ciência é perceber e experimentar, embora as percepções e
afecções não sejam a do sujeito, mas pertencem a coisa que ele
estuda. “Os observadores científicos seriam pontos de vista nas
coisas mesmas.”
Neste contexto, não poderíamos confundir “conceitos” com
“prospectos”. O conceito, na perspectiva de Deleuze e Guattari, não é
uma função científica porque não é uma proposição lógica (pertence

16
Idem. p.155.
17
Cf. Idem, p 163 – (grifo nosso)
18
Ao escreverem sobre personagens conceituais, Deleuze e Guattari, se referem à
tradição filosófica, que traz à tona o apelo aos conceitos criados nesta trajetória
não linear. Afirmam: “O personagem conceitual não é o representante do filósofo, é
mesmo o contrário: o filósofo é somente o invólucro de seu principal personagem
conceitual e de todos os outros, que são intercessores, os verdadeiros sujeitos de
sua filosofia. Os personagens conceituais são os ‘heterônomios’ do filósofo, e o
nome do filósofo, o simples pseudônimo de seus personagens.” Idem: p. 86.
ao sujeito e não ao conjunto); não pertence a nenhum sistema
discursivo, não tem referência. “Os conceitos são monstros que
renascem de seus pedaços”19 , da mesma forma que, “a filosofia é
devir, não história; ela é coexistência de planos, não sucessão de
sistemas”20.
Ao abordarem a arte, enquanto criadora de perceptos e afectos,
a definem de forma intrigante: “A arte conserva, e é a única coisa no
mundo que conserva”. Para os pensadores o que se conserva, a obra
de arte, é um bloco de sensações, ou melhor, um conjunto de
perceptos e afectos. Tanto os perceptos não são percepções, como os
afectos não são sensações porque a arte transborda a força dos que
são atravessados por ela, é capaz de existir apesar da inexistência do
homem, ou seja, o criador a mantém “em pé sozinha”. Apesar de
pintarmos, esculpirmos, compormos e escrevermos com sensações e
a partir de percepções. Tais percepções não nos remeteriam a um
objeto (referência): “se assemelham a algo, é uma semelhança
produzida por seus próprios meios, e o sorriso na tela é somente feito
de cores, de traços, de sombras e de luz”.21
O objetivo da arte seria o de arrancar o percepto das
percepções do objeto e de arrancar o afecto das afecções, extrair um
puro ser de sensações. Apesar de considerarem estar o escritor em
uma posição diferenciada do pintor ou do escultor, pois o material de
suas obras são as palavras, o caracterizaria um romance, como obra
de arte, não seria a memória, mas a fabulação. Desta forma,
afirmam: “Os personagens não podem existir, e o autor só pode criá-
los porque eles não percebem, mas entraram na paisagem e fazem
eles mesmos parte do composto das sensações.”22
Uma posição parecida pode ser encontrada no texto de Sartre,
“O que é literatura?” quando o autor se propõe a distinguir o poeta do

19
Idem, p.183.
20
Idem. p.78.
21
Idem. p.216.
22
Idem. p. 219.
prosador para reafirmar a possibilidade de uma literatura
comprometida com a filosofia da existência; o que, para Franklin
Leopoldo e Silva23, permitiria se instaurar entre a literatura e a
filosofia em Sartre uma espécie de “vizinhança comunicante” pelo
qual Sartre poderia dizer e não dizer as mesmas coisas – vizinhança
fundamental para seu projeto existencialista:

“Fundido à palavra, absorvido pela sua sonoridade ou


pelo seu aspecto visual, adensado, degradado, o
significado também é coisa, incriada, eterna: para o
poeta, a linguagem é estrutura de mundo exterior. O
falante está em situação na linguagem, investido pelas
palavras; são prolongamentos de seus sentidos, suas
pinças; ele as manipula a partir de dentro, sente-as
como sente seu corpo, está rodeado por um corpo
verbal do qual mal tem consciência e que estende sua
ação sobre o mundo. O poeta está fora da linguagem,
vê as palavras do avesso, como se não pertencesse à
condição humana e, ao dirigir-se aos homens, logo
encontrasse a palavra como barreira”.24
Desta forma, não haveria como confundir a arte com a filosofia.
Mas, Deleuze e Guattari, parecem apontar para a questão que se
pretende abordar neste trabalho, ao afirmarem:

“Os três pensamentos se cruzam, se entrelaçam, mas


não em síntese, nem em identificação. A filosofia faz
surgir acontecimentos com conceitos, arte ergue
monumentos com suas sensações, a ciência constrói
estado de coisas com suas funções. Um rico tecido de
correspondência pode estabelecer-se entre os planos.”25

Para além das fronteiras

A elaboração dos conceitos, no interior do texto filosófico,


permite-nos distinguir filosofia e literatura. Segundo Granger, na
literatura temos a suspensão dos referenciais do vivido e a
substituição destas referências do discurso descritivo por um

23
Cf. SILVA, Franklin Leopoldo e. Ética e Literatura em Sartre: ensaios
introdutórios. São Paulo: UNESP, 2004, pp. 11 – 32.
24
SARTRE, J. P. O que é literatura?. SP: Ática,1999, p. 14.
25
DELEUZE e GUATTARI: Op. Cit. p. 254.
equivalente ficcional. A filosofia, através do conceito, propõe a
“reconstrução desse discurso” e não simplesmente sua suspensão e
substituição. Exatamente por isso, Granger alerta para o perigo do
uso de metáforas na construção do texto filosófico, pois o uso
excessivo da imagem interrompe a exposição abstrata e a substitui
por um equivalente concreto. A metáfora alude às imagens que
podem ser compreendidas sem exatidão, a situação poética poderia
ser um problema para o rigor filosófico e, conseqüentemente, para os
mecanismos da demonstração filosófica, necessários para a
reconstrução do vivido.
Já, para Frédéric Cossuta a função da metáfora, no interior do
texto filosófico, teria que ser examinada de uma forma mais
complexa. Entende que a desconfiança que os filósofos teriam no uso
metafórico da linguagem teria sua origem na recusa do mito, ou seja,
“haveria uma antinomia original entre o esforço filosófico de
inteligibilidade e o peso concreto da imagem que veicularia a
ignorância e a irracionalidade”.26 Mas também recupera dos filósofos
“tradicionais” a impossibidade de um “pensamento puro”, totalmente
livre, da força das imagens. Sendo assim, o autor busca analisar nos
textos filosóficos de diferentes pensadores (Descartes, Kant,
Nietzsche, dentre outros) as possíveis funções do emprego das
metáforas. Sem dúvida, se trata de um convite interessante, mas nos
limitaremos a tratar do que autor denomina como “função filosófica
do uso da metáfora”.
Para Cossutta, a metáfora, em alguns textos, pode assumir uma
função mediadora intradiscursiva. Neste caso, o emprego da metáfora
seria fraco, uma vez que, somente alguns aspectos da doutrina
seriam metaforizados, a dominância não seria metafórica. Seria como
uma espécie de desdobramento dos conteúdos filosóficos que se
efetua por formas expressivas diferenciadas, o que supõe para a

26
COSSUTA, F. Elementos para a leitura dos textos filosóficos. São Paulo: Martins
Fontes, 2001, p.99.
metáfora funções pedagógicas ou funções ornamentais e persuasivas.
“A função didática, por sua vez, torna-se possível pela tradução, em
formas de expressão figuradas, de um conteúdo que só será acessível
posteriormente”27 no interior do texto filosófico, em sua circularidade.
Mas a metáfora poderia assumir também, na filosofia, uma
mediação extradiscursiva ou desintegradora do discurso:

“Quando, ao contrário, é impossível substituir, apagar,


traduzir e, por outro lado, os critérios de importância se
unem para dar à metáfora um lugar privilegiado, esta
não é mais um desdobramento de uma doutrina na
escrita; ela provoca uma ruptura de encadeamento
discursivo e indica regiões de ser ou formas de
experiência inacessíveis por outros meios (...) A
metáfora não é um desvio interno nem uma ruptura,
não combina com a língua empregada pelo filósofo,
nem com a construção do espaço da doxa, mas
constitui um momento indispensável de análise.28
Essa análise nos conduz a um texto que se realizaria no fundo
de sua própria impossibilidade, como nos aponta Jeanne Marie
Gagnebin, ao apontar Kafka como narrador, em sua leitura de
Benjamin. Essa inclinação poética da filosofia poderia nos conduzir a,
pelo menos, dois caminhos: poderia implicar no fim da filosofia ou na
possibilidade de uma renovação.
Mesmo considerando os riscos, que nos aponta Granger,
preferimos entender esse procedimento como possibilidade de
renovação. Para tornar um pouco mais clara essa posição, voltemos
para relação entre a filosofia e os conceitos.
Para Granger, os conceitos seriam pontos de vista sob o qual a
experiência se organiza e podem ser entendidos como feixes em
busca de significações para as experiências, sendo assim é preciso
admitir que os conceitos só podem ser criados a partir das referências
vividas na experiência.
Apesar de Deleuze e Guattari afirmarem que a filosofia se
coloca sob um a plano de imanência e não de referencias, admitem

27
Idem. p. 123.
28
Idem. p. 124 - 125.
que a filosofia não é “sorriso sem o gato” Por outro lado, defendem
que tais “pontos de vista”, se é que assim podemos chamar, podem
ser desligados de sua relação referencial e considerados em si. O
conceito, neste caso, torna-se reflexivo, torna-se “auto- referente”.
No texto sistemático – entendido como texto filosófico - os
conceitos reflexivos servem reciprocamente para a organização dos
sentidos da experiência. Se a filosofia ganha em rigor, paga o preço
de uma abstração capaz de distanciar o conceito de seu campo
referencial de experiência. Creio estar aqui o nó que os professores
de filosofia do Ensino Médio tentam desfazer, ou seja, aproximar o
conceito filosófico de um campo referencial de experiência que se
mostra cada vez mais fragmentado.
Mas seria possível admitir um universo conceitual num texto de
ficção? Exatamente por poder substituir as referências do discurso
descritivo por “pseudo- referências”, o texto literário supõe uma
maleabilidade em relação aos conceitos. Apresenta-se, desta forma,
possibilidades de uso de conceitos e, com isso, possibilidades de
diferentes formas para a organização da experiência. O real e a ficção
se entrelaçam: a unidade da ficção não é a unidade de uma
consistência sistemática, mas sim uma unidade que se configura
como equivalente de uma experiência. Essa unidade pode subverter
os esquemas da realidade em camadas sobrepostas no texto literário.
A literatura pode não somente apresentar conceitos, mas
também problematizar conceitos e representar condensações pré-
conceituais. No texto literário é possível encontrar a tematização de
experiências pré-conceituais e se abrir ao universo de
problematização e criação de conceitos. Talvez por esse motivo, a
filosofia quando duvida da validade dos grandes sistemas explicativos
se aproxima da literatura. Esse exemplo está em Voltaire e em
Benjamin, mas poderíamos pensar em Nietzsche, Sartre e muitos
outros filósofos.
Ora, se admitirmos com Voltaire que a filosofia é livro a ser
escrito, o que supõe uma atividade criadora e criativa, a literatura
teria muito a ensinar à filosofia e poderia apontar caminhos para seu
ensino Neste sentido, é preciso aprender com Carlos Drumond de
Andrade para não transformar as aulas de filosofia no espetáculo da
“opinião em palácio” e oferecer conceitos condensados em apostilas a
serem decoradas.
Mas seria ingênuo de nossa parte supor que toda e qualquer
literatura poderia se prestar a um trabalho de introdução à filosofia.
Seria, pois, necessário verificar as condições que permitiram ao leitor
de um texto de ficção adentrar pelas portas do conceito.

Entre Caminhos: entremeios...

Entre o texto de ficção e o texto filosófico é necessário se


considerar camadas sobrepostas e complexas. O suporte para
buscarmos conhecê-las não pode ser facilmente encontrado na
análise do texto filosófico. Busquei, então, um referencial na análise
do texto literário, mais propriamente em um texto de Karlheinz
Stierle, intitulado “O que significa a recepção dos textos ficcionais?”
publicado em uma coletânea organizada e traduzida por Luis Costa
Lima – “A literatura e o leitor: textos de Estética da Recepção”.
São várias as nuances desse texto que busca contrapor e
analisar algumas teorias referentes ao delineamento do que poderia
caracterizar uma estética da recepção. Tomo a liberdade de deixar
esse debate de lado, pois isso implicaria em uma digressão que, creio
eu, não nos poderia auxiliar para a compreensão de nosso problema,
ou seja: de qual literatura estaríamos falando para buscarmos sua
correspondência com a filosofia?
Passemos aos aspectos do texto que nos permitem almejar
chegar ao lugar de onde partimos. O primeiro passo é tentar
esquadrinhar o que se denomina “a recepção ingênua do texto
pragmático”.
Nos textos pragmáticos, o autor (sujeito da produção) levaria
em conta a imagem do leitor e seu papel em um contexto de ação;
sendo assim, a produção textual se coloca em um horizonte de
perspectiva que ultrapassa o próprio texto. Na articulação do texto, o
horizonte do autor se condensa em expectativa, permitindo ao leitor
esclarecer seu horizonte pela distância em que se encontra do texto.
Os textos pragmáticos se orientariam para além de si mesmos:
o texto poderia ser pragmaticamente utilizável, pois seu núcleo se
encontra fora de si, na esfera da ação, ou seja, o leitor seria levado
para fora do texto que pode ser assim abandonado como forma vazia
– o texto se esgotaria.
Já a marca básica do texto de ficção não é uma simples função
da realidade a ser retratada, pois não haveria como haver uma
correção por meio de um conhecimento minucioso da materialidade
dos fatos a que se refere:

“Os textos ficcionais são, no sentido próprio, textos de


ficção apenas quando se possa contar com a
possibilidade de um desvio de dado, desvio na verdade
não sujeito à correção, mas apenas interpretável ou
criticável (...) Em sua essência, a ficção não significa
identidade entre a materialidade dos fatos e o estado
dos fatos, fosse apenas parcial; significa, sim,
diferença.” 29
Mas, é preciso considerar que o estatuto do discurso ficcional e
pragmático, não se mostra tão claro quando nos referimos à recepção
do leitor, pois haveria uma forma de recepção que poderia ser
denominada “recepção quase pragmática”.
Na recepção quase pragmática, o texto ficcional é ultrapassado
em direção a uma ilusão textual, despertada no leitor pelo texto.
Desta forma, a recepção da ficção se configuraria, em última análise,

29
STIERLE, K. “O que significa a recepção dos textos ficcionais?”. In: LIMA, Luiz
Costa. A literatura e o leitor – Textos de Estética da Recepção. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2002, p.132.
em ilusão. Isso se faz claro quando nos lembramos do leitor iniciante,
ou seja, a criança às voltas com o mundo da imaginação: para a
criança, os contos infantis seriam a pura presença do imaginário, pois
elas não se dão conta da mediação; os contos infantis se apossam
das crianças concretizando experiências de angústia, esperança,
pavor, etc.
Mas se o texto de ficção se abre ao leitor no sentido de uma
leitura ingênua, é claro que também a ficção pode ganhar uma
pragmática própria orientada para a fusão com a ilusão. O exemplo
mais próximo seria o da literatura de consumo que só funcionaria
como provocadora para a criação de uma realidade ilusória:

“Nesta literatura, que conta com a recepção quase


pragmática, os diferentes momentos são organizados
de forma a liberar os estereótipos da imaginação e da
emoção e, simultaneamente, a ocultar que a própria
linguagem os tenha desencadeado (...) O narrador
afirma a história por sua tomada de posição; a história
se afirma a si própria por meio da decorrência; os
conceitos da história reciprocamente se afirmam por
meio de sua correlação inequívoca e não problemática;
as expectativas do mundo ilusório engendrado pelo
texto são afirmadas por seu resgate; por fim, a visão
de mundo do leitor é afirmada à medida que o texto lhe
devolve seus estereótipos (...) O leitor responde ao
estímulo do texto com estereótipos de sua experiência,
que, por assim dizer, se formam independentes de si, e
que provocam a evidência da ilusão30.
Ora, diante dessa análise, fica fácil compreender o sucesso dos
chamados “best-sellers” da literatura como “O Código Da Vinci” ou
“Harry Porter” e, arriscaria, inserir aqui, “O mundo de Sofia” - de
Jostein Gaardner - que busca intercalar os elementos do “romance
banal” com a história da filosofia, de tal forma que, seja possível, ao
leitor, abandonar a “filosofia” e perseguir o mundo da personagem
em seu mistério e suas angústias.
É claro, que diante dessa colocação, não pretendo retomar uma
posição elitista e antipática, como muitas vezes nos reportamos às

30
Idem, p. 134 e 135.
análises de Adorno. Trata-se, somente, de tentarmos delinear o que
nos parece mais adequado, sabendo reconhecer a validade desses
textos para impulsionar o hábito da leitura em um país de não
leitores.
O que nos parece mais adequado, ainda percorrendo as pistas
do texto, seria a potencialidade do texto “pseudo-referente” de vir a
ser “auto-referente”. Para que isso seja possível, seria preciso uma
segunda leitura fazendo aparecer camadas sobrepostas que
obedecem uma ordem complexa, cujos alinhamentos constituem, pela
expansão, a própria poética do texto. Só mediante uma segunda
leitura, seria possível ao leitor, situar o texto já trabalhado e o texto
não explorado e, assim, converter a primeira leitura (quase
pragmática), causadora da ilusão, em uma leitura captadora da
ficção. Desta forma, o texto de ficção auto-referencial deve ser
internamente trabalhado, enquanto o texto pragmático deve ser
trabalhado tendo em vista uma intenção que o transcende. O texto de
ficção deveria abrir espaço para a multiplicação de possibilidades de
relacionamento, possibilidades de significação que poderiam tornar-
se, para o leitor, espaço de reflexão que permitiria a penetração no
texto, sem esgotamento. Seu limite estaria na capacidade do leitor de
retirar “suas forças germinativas”, como afirma Benjamin acerca da
narrativa, ou, ainda, do leitor apreendê-lo como um conjunto de
relações constitutivas de sentido. Os espaços vazios, o “não dito” do
texto não só permite, como também exige do leitor que indague, que
supere o horizonte da experiência cotidiana para instaurar um
movimento de reflexão que têm, como ponto de partida, a
provisoriedade do texto nas suas diferentes camadas.
Desta forma, seria preciso admitir que assim como há textos de
ficção que só se concebem a partir de uma recepção quase
pragmática, há outros cuja própria forma exigiria uma recepção
reflexiva. Mallarmé é, apontado no texto, como o precursor de uma
tradição na ficção moderna que bloqueia a possibilidade de uma
recepção quase pragmática:

Pela desorganização do material semântico, torna-se


mais visível a força organizatória no campo sintático, à
medida que este surge, semanticamente, como
estrutura possibilitadora de perspectivação de estados
de fato (...) Uma literatura experimental, ao explorar as
possibilidades da própria ficção e da reflexibilidade
tematizada por ela, representa, ao mesmo tempo, para
a recepção o desafio de abordá-la de modo reflexivo, e
31
assim, ampliar o próprio potencial da recepção”.
O estranhamento seria, portanto, um dos modos pelo qual a
ficção se manifesta. Embora toda obra de ficção pressuponha um
leitor que se baseie na orientação de sua própria experiência, o que
garante a comunicabilidade do texto, também se corre o risco do
leitor colocar, de forma irrefletida, o seu repertório, falseando a
ficção. O texto “do passado”, desta forma, impõe desafios ao leitor
contemporâneo, justamente porque estaria vedada a gratificação
“quase pragmática”. Por isso, afirma Stierle, Nietzsche teria visto uma
vantagem na recepção que se volta ao próprio texto. Em Aurora,
Nietzsche afirma: “uma obra nova de qualidade, enquanto se encerra
na atmosfera úmida de seu tempo, não vale quase nada, justamente
por ainda trazer consigo o cheiro das feiras e das inimizades e as
opiniões e toda efemeridade entre o hoje e amanhã.”
Continua Stierle:

“Precisou-se de um filósofo que fosse um filólogo, de


um filólogo que fosse um filósofo, ou seja, de um
questionador de todos os estereótipos da experiência,
para que se revelasse a aridez como qualidade estética
do texto, qualidade que, sem nenhuma metáfora, é a
experiência estética básica do leitor, raríssimas vezes
refletida. E a esta só se alcança pela recepção orientada
para a própria ficção, não mais para a ilusão ficcional.
Walter Benjamin, seguindo Nietzsche, renovou a
distância temporal entre a obra e a recepção (...)
Enquanto na perspectiva do leitor contemporâneo, o
sistema paradigmático do leitor pode ser partilhado
pelo autor, com o crescimento da distância temporal o

31
Idem, p. 154.
sistema do texto e o sistema do leitor cada vez mais se
afastam. Assim o texto recebe do passado um
horizonte do futuro que o ultrapassa.”32
Desta forma, seria preciso buscar na literatura, uma forma de
narração capaz de convidar o jovem leitor ao deslocamento, ao
incômodo, à reflexão, uma vez que a ficção não poderia ser
entendida, na leitura de Karlheinz Stierle, como “um reflexo do
mundo, nem como representação de um mundo bem diverso”. Ao
contrário, ela descreveria, numa configuração que não se esgota, a
mediação entre dois campos. “É, nesta fronteira, que se articulam as
figuras de experiência possível (...) que, ao mesmo tempo, se define
pela intimidade de uma concepção prévia do mundo e pela estranheza
do outro, oposto àquele”.33
Ora, se a hipótese deste trabalho estaria em encontrar na
possibilidade do uso da narrativa, elementos para um convite à
filosofia que pudesse ter elementos suficientes para o encontro e o
desencontro, para a identidade com o texto e para o estranhamento
necessário à reflexão, fica claro que não poderíamos recorrer a
qualquer texto. “A ficção, que não se presta diretamente ao papel de
sermão ou guia de boas maneiras, é a que importa para a função de
distanciamento orientador”.34
Talvez, por isso, Voltaire em seu “Micrômegas”,
sarcasticamente, ofereça aos filósofos um livro em branco sobre a
finalidade de todas as coisas e atribua a este conto, o subtítulo de
“conto filosófico”. Mas se ainda podemos nos perguntar sobre as

32
Idem, pp. 158 - 159.
33
Idem, p. 161.
34
Idem, p. 163.
finalidades do conto de Voltaire, é preciso recorrer a Walter
Benjamin:

“Cada manhã recebemos notícias de todo o mundo. E,


no entanto, somos pobres em histórias surpreendentes.
A razão é que os fatos já nos chegam acompanhados
de explicações. Em outras palavras: quase nada do que
acontece está a serviço da narrativa, quase tudo está a
serviço da informação. Metade da arte narrativa está
em evitar explicações”
De qualquer forma, entre caminhos, temos, enquanto
professores de filosofia, algumas pistas para buscar meios para
nossa inesgotável tarefa de se introduzir os jovens no trabalho
crítico e criador da filosofia. Estas pistas nos apontam um olhar
desconfiado para textos imediatamente capazes de seduzir e iludir,
como os textos de ficção “quase pragmáticos” que nos aponta
Stierle. Ou ainda, para a desconfiar do primado da informação que
se esgota em explicações, como nos aponta Benjamin.

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