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CAPÍTULO I

HOBBES E O ESTADO DE NATUREZA:

1. SOBRE A NOÇÃO DE ESTADO NATURAL:

Embora os filósofos da modernidade não tenham sido os primeiros a tratar de um estado em


que os homens estavam entregues apenas à própria natureza humana, é notória sua influência sobre a
questão:

Antes de Hobbes não se desconhecia o estado de natureza, mas só Hobbes fez dele um elemento essencial do
sistema. Do ponto de vista do procedimento construtivo, a imitação elaborada por Locke sobre os preceitos
teóricos de Hobbes parece-me evidente. (Bobbio, 1997, p. 169)

No estado natural preconizado tanto por Hobbes quanto por John Locke, os homens
são iguais, senão de fato, ao menos de direito1. Assim, ambos os filósofos ingleses negam que seja
natural a autoridade civil, ou seja, negam a natural superioridade moral de alguns homens sobre
outros, postulando, ao contrário, um estado onde each and every man deve ser igual a todos os
demais2. Apenas mediante a criação de uma fictio juris é que se chega ao estado civil, em que há
autoridade moral.

O contraste entre os dois estados, o de natureza e o civil, é um dos marcos da


filosofia política moderna, e outra coisa não significa além de uma divisão da história em duas
realidades diferentes, uma pretérita à outra:
Teríamos, assim, dois momentos, na história política da sociedade: um anterior à sociedade civil, como que da
‘pré-história’, no qual o homem se encontra em estado natural, e outro, o do estado civil, ao qual se ascende
através de uma convenção. (Ulhoa, 1996, p. 39)

A descrição da passagem do estado de natureza para o estado civil é, em resumo, e de forma um pouco
rudimentar, uma filosofia da história, ou seja, uma reconstrução racional do curso histórico da humanidade,
embora reduzido a categorias extremamente simples, a esquemas por demais rígidos. (Bobbio, 1997, p. 184)
Para Hobbes, na mais antiga destas realidades, ou seja, no estado natural, os
homens vivem sem qualquer espécie de poder normativo, sendo absolutamente livres para gozarem
de todas as coisas do mundo, ou seja, cada homem tem direito a todas as coisas (jus in omnia). O
problema, todavia, é que, segundo o caráter violentamente passional da natureza humana, este direito
1
É nesse sentido da Igualdade como um dever ser que Laslett considera o uso do verbo should, no § 4 do Segundo Tratado: “Creatures
of the same species (...) should also be equal one amongst the another.” (Laslett, 2000, p. 269).
2
Como veremos adiante, não há, para Hobbes, leis de caráter normativo no estado de natureza.
a tudo acaba por significar direito a nada, pois nenhum homem é obrigado a não ter algo, podendo
empreender todos os meios que julgar necessário para gozar de qualquer bem disponível na natureza.
Tão violenta atmosfera é equiparada a um verdadeiro estado de guerra, confrontando o leitor com um
quadro que só pode justificar o absolutismo.

Para Locke, por sua vez, os homens do estado natural sentem, ou seja, são capazes
de derivar de sua experiência terrena, o desconforto de não ter um juiz imparcial para julgar os
inevitáveis conflitos que pautam a vida social. Após perceber tal inconveniente, os homens, criaturas
racionais que são, só podem seguir racionalizando sua experiência, e optam por transferir à sociedade
política, e, por conseguinte, ao Governo civil, um poder que Deus naturalmente depositou nas mãos
de todos os homens, o poder de punir os infratores à lei da Razão.3

Para ambos, é mediante um pacto, ou seja, pela adesão de sua vontade, que os
homens consentem com a criação de uma nova situação, na qual todos passam a dever sujeição a um
poder comum. Somente pelo pacto o Estado se legitima, somente por ele os homens deixam o estado
de natureza para ingressar no estado civil.

Mas, quid ist o estado de natureza? Em linhas gerais, pode-se defini-lo como “o
estado em que o homem se encontrava, ou se encontraria em determinadas circunstâncias, sem o
apoio de um poder civil, sem qualquer outro guia além das leis naturais.” (Bobbio, 1997, p. 169)

A partir dessa noção inicial, muito variam as características que cada autor
imprimirá à vida dos homem no tal estado natural. Após reconhecer que há um estado natural, ou
seja, após estabelecer que há um ponto, quer na história, quer no plano meramente especulativo, em
que todos os homens devam ser iguais, hipótese não admitida por Aristóteles ou Filmer, Hobbes e
Locke passam a desenvolver uma série de conjecturas acerca das características de tal estado: como
os homens se comportam, que atributos humanos mais se destacam etc. Para ambos, há no estado de
natureza uma série de inconveniências, e é delas que advém o fundamento da estrutura de poder sob a
qual os homens decidem viver.

Há, portanto, razões por que a humanidade supera o estado natural, assim
entendido aquele em que não existe um Poder comum, e avencem a criação de um Poder a que todos
podem e devem se reportar. Dá-se, assim, a passagem para o estado civil, no qual os homens passam
a conviver sob as asas de um poder artificial, ou seja, um poder inexistente na natureza, criado no
intuito específico de amenizar as inconveniências do estado natural.

Uma série de implicações deriva desta polarização entre as noções de estado de


3
Em Locke, essa lei tem caráter normativo, como será visto adiante.
natureza e estado civil. Definitivamente, uma coisa é acreditar, alguns séculos antes da passagem do
Cristo, como cria Aristóteles, que os homens são naturalmente diferentes, ou seja, acreditar que o
próprio conceito de Humanidade é repartido, pela natureza, em homens aptos a exercer o governo e
homens fadados a serem governados, e daí extrair uma justificativa para o Poder do Estado. Outra
coisa, bem diferente, é reconhecer, mais de 15 séculos após o avento do Cristianismo, e com espeque
específico nas Escrituras, como o fazem Hobbes e Locke, que os homens são mesmo iguais, e que o
Poder Comum só poderia se originar de algo que fosse também comum, ou seja, algo que fosse
partilhado por todos os homens indistintamente, algo que pudesse servir como uma prova da
igualdade natural entre os homens.

Para Hobbes, esse algo comum é o conjunto das paixões, sustentáculo da força
arbitrária do Leviatã, direcionada para a paz da comunidade.4 Para Locke, a Razão, faculdade que
“filtra” e orienta a experiência dos indivíduos, estipulando uma bitola à conduta do Governo. Para
ambos, a trajetória dos homens inicia-se em um estado dito “de natureza”, destituído de uma
autoridade imparcial, tendo, algum tempo depois, se transmudado para um estado chamado “civil”.
Nota-se, assim, um momento de ruptura, de grande transformação na vida social, aquele em que os
homens consentem em se sujeitar ao Poder Comum.

Pela própria definição de estado de natureza, os adeptos de tal doutrina pensam,


diferentemente dos gregos, que a normatização da vida em sociedade não se efetiva de maneira
natural, mas apenas a partir do momento em que os homens criam, como artífices, a figura do Poder
Comum. Por outros termos: a figura de uma autoridade estatal não existe por natureza, é como os
edifícios ou as lavouras, verdadeira obra de arte dos homens, no sentido de ser um artifício, uma
criação artificial.5

1.1. Sobre a Existência Histórica do Estado de Natureza:

Falar do estado de natureza, e de sua transmutação, via contrato, para o estado civil,
não é, como pode parecer, falar de um estado em que não havia qualquer tipo de poder ou autoridade.
Na verdade, os teóricos que se agarram à concepção do estado de natureza não negam a existência
natural de alguns outros tipos de poder, entre eles o poder paterno e o eclesiástico. Todavia, esses
poderes naturais teriam força para constranger apenas alguns indivíduos, sejam os descendentes do

4
The Passions that encline men to Peace, are Fear of Death; Desire of such things as are necessary to commodious living; and a Hope
by their industry to obtain them. (Hobbes, 1997, pp. 71-72)
5
Na Introdução ao Leviatã, Hobbes fala do Estado como uma máquina, e do fiat dos Homens em relação ao Estado como o fiat de
Deus em relação ao homem: For by art is created that great Leviathan (...), by which the parts of this Body Politique were at first
made, set together, and united, resemble that Fiat, or the Let us make man, pronounced by God in the Creation. (Hobbes, 1997, p. 9)
pater familiae, ou os membros de uma congregação religiosa. O poder do Magistrado civil, por sua
vez, é o único que abrange todos os membros da comunidade. Muito do trabalho dos filósofos
contratualistas reside, então, em tentar compreender a essência desta última espécie de poder, cujo
principal atributo seria a autoridade para punir não só os filhos do pai, ou os adeptos de uma seita,
nem sequer apenas os filhos da terra, mas até mesmo os estrangeiros.6

Pode-se indagar, com o propósito de infirmar quantas teorias se fundem no estado


natural, se algum dia houve realmente homens no estado de natureza. Se opusermos à noção de
homem civil o conceito de homem em estado natural como pensado por Hobbes e Locke, teremos
dificuldade em encontrar alguém tão socialmente isolado a ponto de não dever obediência a nenhum
outro homem.

A dúvida acerca da existência histórica do estado natural não fugiu à percepção dos
filósofos. No capítulo XIII do Leviatã, após equiparar o estado de natureza ao estado de guerra,
Hobbes se vale de dois argumentos para sustentar a validade teórica de sua doutrina.

Primeiro, apesar de reconhecer que sua hipótese certamente não se confirmaria pela
análise do desenvolvimento de todas as sociedades do mundo, lembra que, no momento histórico em
que viveu, ou seja, no século XVII, a colonização da América dava provas da existência de muitos
homens que não contavam com a autoridade de qualquer poder comum:

Poderá porventura pensar-se que nunca existiu um tal tempo, nem uma condição de guerra como esta, e
acredito que jamais tenha sido geralmente assim, no mundo inteiro; mas há muito lugares onde atualmente se
vive assim. Porque os povos selvagens de muitos lugares da América, com exceção do governo de pequenas
famílias, cuja concórdia depende da concupiscência natural, não possuem qualquer espécie de governo, e
vivem em nossos dias daquela maneira embrutecida que acima referi. Seja como for, é fácil conceber qual seria
o gênero de vida quando não havia poder comum a recear, através do gênero de vida em que os homens
anteriormente viveram sob um governo pacífico costumam deixar-se cair, numa guerra civil. (Hobbes, 1979, p.
71)
Depois, como que antecipando as questões acerca daquilo que se convencionou
chamar de pessoas jurídicas de direito público externo, lembra que, mesmo se os exemplos acima
não fossem historicamente verificáveis, há de se levar em conta que os Príncipes soberanos sempre
viveram, como de fato ainda vivem, sem um poder comum que a todos pudesse ou possa fazer calar.
Em outras palavras, em relação uns aos outros, todos os Reinos da face da Terra ainda vivem no mais
perfeito estado de natureza:

Mas mesmo que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa condição de
guerra de todos contra todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as pessoas dotadas de autoridade

6
Para Locke, a possibilidade de punição dos estrangeiros é um dos atributos do Poder Civil. Neste sentido, ver 2T, § 9 e § 75.
soberana, por causa de sua independência vivem em constante rivalidade, e na situação atitude dos gladiadores,
com as armas assestadas, cada um de olhos fixos no outro; isto é, seus fortes, guarnições e canhões guardando
as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no território de seus vizinhos, o que constitui uma
atitude de guerra. (Idem, ibidem)

Locke, por seu turno, também enfrenta a espinhosa questão da historicidade de um


período em que restava ausente o poder comum7`, demonstrando “absoluta consciência de não haver
comprovação da existência de um ‘estado de natureza’ do tipo descrito em sua teoria” (Laslett, 2001,
p 143, nota 7). Sua postura diante do problema era a de assumir que

tenha sido esta a condição original de toda a humanidade, pois, onde quer que se encontre uma autoridade
coletiva estabelecida e permanente, descobre-se sempre que se trata do resultado da reflexão dos homens e das
medida que deliberaram a fim de garantir e estabelecer o domínio da racionalidade e da lei da natureza.
(Laslett, 2001, p. 143)

Ora, se a criação de um Poder Comum, ou seja, a substituição do estado natural


pelo civil, é fundada em uma deliberação racional dos homens8, é porque este estado natural não era
tão dramático a ponto de impedir o próprio uso da razão, que não tem a natureza incandescente das
paixões preconizadas por Hobbes. Portanto, Locke refuta a equiparação entre estado de natureza e
estado de guerra, o que representa uma das grandes distinções de sua doutrina em relação à de
Hobbes, não só no que diz respeito à origem, mas também no que tange às conclusões acerca dos
limites ao poder do Governo:

Na verdade, essa condição de vida comunitária orientada pela razão, sem um superior comum na Terra, em
assistência mútua, paz, boa vontade e preservação (II, §19), é o pano de fundo universal contra o qual é preciso
compreender o governo. Ela nos revela o que é e como procede o governo, mostrando-nos o que ele não é, e
como não procede. (Laslett, 2001, p. 145)

De todo modo, Locke concorda com Hobbes quando assevera que, na ausência de
normas de direito internacional passíveis de aplicação por Cortes supranacionais, cujas decisões
tivessem o condão de estabelecer o fim de qualquer litígio entre dois ou mais Governos soberanos,
reside a prova mais cabal da perene existência de um número razoável de homens no estado de
natureza:

Pergunta-se muitas vezes, como objeção importante, onde estão, ou em algum tempo estiveram os homens em
tal estado de natureza. Ao que bastará responder, por enquanto, que, dado que os príncipes e chefes de governo

7
No estado de natureza segundo Locke, já existe um poder político, que é o poder “de usar, para a preservação de sua propriedade, os
meios que julgar convenientes e que a natureza lhe permita, e de punir a transgressão da lei da natureza em outros de modo (de acordo
com o melhor de sua razão) a conduzir da maneira mais acertada possível a conservação de si mesmo e do resto da humanidade”
(Locke, 2001, p. 538 – 2T, § 171). O que não existe é uma pessoa supra-individual que exerça tal poder com exclusividade e
imparcialidade. Usarei, portanto, o termo Poder Comum, ou Autoridade Comum, em detrimento de poder político, para me referir à
pessoa do Governo civil, que é o que realmente inexiste no estado natural lockeano.
8
Deliberação racional que só se dá após o estímulo das circunstâncias, como será visto no capítulo II.
independentes no mundo inteiro encontram-se num estado de natureza, claro está que o mundo nunca esteve
nem jamais estará sem um certo número de homens nesse estado. (Locke, 2001, p. 392 – 2T, § 14) – grifo do
original

Além de os Governos soberanos se encontrarem em pleno estado de natureza em


relação uns aos outros, Locke se vale de mais um expediente para conferir verossimilhança à sua
hipótese. Segundo crê, ao se observar as comunidades nacionais, as próprias lacunas da historiografia
não podem ser tomadas como o bastante para afastar a existência do estado natural. Nessa segunda
tentativa de expor a questão, o argumento se desenvolve com menções às limitações culturais dos
homens em estado natural, notadamente no que se refere à incapacidade de registro de dados escritos
nas sociedades primitivas:

Duas objeções, ao que vejo, se fazem ao que foi exposto acima: em primeiro lugar, que na história não se
encontram exemplos de um agrupamento de homens independentes e iguais entre si que se tenham reunido e,
desse modo, iniciado e estabelecido um governo. (Locke, 2001, p. 472 – 2T, § 100) – grifos do original.
À primeira objeção cabe a seguinte resposta: não é absolutamente de se estranhar que a História nos apresente
apenas um relato muito breve acerca dos homens que viviam juntos em estado de natureza. (...) O governo é,
por toda a parte, anterior aos registros históricos, e raramente a escrita se introduz num povo antes de um longo
período de sociedade que tenha provido, por outras artes mais necessárias, segurança, conforto e abundância. E
então começam os povos a estudar a história de seus fundadores e a procurar suas origens, após terem
sobrevivido à lembrança de tais fatos – pois passa-se com as comunidades o mesmo que se passa com as
pessoas particulares, que costumam ignorar seu próprio nascimento e infância. (Locke, 2001, pp. 472-473 –
2T, § 101)

Assim, tanto para Hobbes quanto para Locke, a existência de um período em que os
homens viviam sem um poder comum é axiomática: deve-se reconhecê-la para que seja possível
caminhar rumo à compreensão da passagem para o estado civil. Mas não é por confiar em um axioma
que Locke deixa de especificar comunidades que, segundo ele, só podem ter atingido a vida em
sociedade após a superação consensual do estado natureza:

Revela uma estranha inclinação a negar a evidência dos fatos, quando não concordam com a sua hipótese,
aquele que não admite que o início de Roma ou de Veneza deu-se mediante a união de vários homens livres e
independentes uns dos outros, entre os quais não havia nenhuma superioridade ou sujeição naturais. E se
pudermos aceitar a palavra de José Acosta, ele nos diz que em muitas partes da América não havia nenhum
governo. (Locke, 2001, p. 474 – 2T, § 102).

Espero que se admita que todos aqueles que saíram de Esparta com Palanto, mencionados por Justino (L. 3,
c.4), eram homens livres, independentes uns dos outros, e estabeleceram um governo sobre si por seu próprio
consentimento. (Locke, 2001, p. 475 – 2T, § 103)
Um resumo da passagem histórica sugerida por Locke seria, então, o seguinte: em
alguns agrupamentos, os homens viveram um tempo sem se sujeitar ao poder de uma autoridade
comum e imparcial, situação repleta de inconvenientes. Entre tais inconvenientes, sobressai-se o fato
de o poder executivo da lei da natureza estar colocado nas mãos de todos os homens indistintamente.
Em uma tentativa de melhorarem sua condição natural, os homens então reúnem-se para criar um
instrumento que possa lhes garantir melhores condições de vida. Este mecanismo é o Poder Comum,
instituição artificial, criada pelos homens, que marca um novo período na história, o estado civil.

Mas sejam quais forem as conclusões acerca da historicidade do estado de natureza,


não é por elas que se deve medir a proposta filosófica dos autores contratualistas. O que realmente
conta, quando investigamos uma filosofia baseada em tal conceito, não é qualquer espécie de
comprovação temporal. No caso específico do Segundo Tratado, obra que, conforme visto, faz parte
de uma refutação deliberada de Locke ao paternalismo de Filmer, tais exemplos funcionam como um
plus à argumentação, importante pelo fato de os defensores do patriarcalismo terem sido os primeiros
a recorrer a algumas escassas experiências históricas para demonstrar a solidez de sua tese:

Portanto, apresentei diversos exemplos tirados da História de pessoas livres e no estado de natureza, as quais,
tendo-se juntado, incorporaram-se e deram início a uma sociedade política. E, se a falta de exemplos fosse um
argumento para provar que o governo não começou nem poderia ter começado assim, suponho que seria
melhor os defensores do império paterno deixarem isso de lado, em vez de o utilizarem contra a liberdade
natural. (Locke, 2001, p. 475 – 2T, § 103)

Trata-se, na verdade, de verificar a coerência lógico-formal de uma doutrina erigida


sobre a noção de natureza humana, noção que, como afirma o próprio Locke, tem de se preocupar em
discernir não como as coisas de fato são, mas como deveriam ser:

Pois, se [os defensores do patriarcalismo] pudessem tirar da História tantos exemplos de governos iniciados
com base no direito paterno (embora um argumento baseado no que foi, em vez de naquilo que deveria por
direito ser, não tenha muita força), creio que poderia, sem grande perigo, dar-lhes ganho de causa. Mas se me
fosse permitido aconselhá-los, neste caso, fariam bem em não investigar demasiado a origem dos governos, tal
como começaram de fato, para não encontrarem, na base da maioria deles, algo muito pouco favorável à causa
que promovem e a um poder tal como o que defendem. (Idem ibidem) – grifos meus.

Assim, o que realmente importa na investigação de uma filosofia política fundada


na noção de estado natural é: partindo da visão hobbesiana de estado de natureza, chega-se às ilações
acerca do Estado deitadas no Leviatã? E a proposta lockeana de estado natural? Se dela partirmos,
chegaremos às limitações do Governo sugeridas no Segundo Tratado? Estas são as perguntas que
pretendo responder, primeiramente, de modo mais conciso, no que diz respeito a Hobbes, depois, de
maneira mais detida, no que tange a Locke. Por ser este último o objeto da dissertação, antecipo um
parágrafo que, segundo ele, condensa não só as características do estado natural que justificam a
criação de um Poder Comum, como também as razões que limitam sua interferência na propriedade
privada:

Pois sempre que houver dois homens que não tenham uma regra estabelecida e um juiz comum a quem apelar
na Terra, para determinar as controvérsias de direito entre eles, esse homens se encontrarão no estado de
natureza e sob todos os inconvenientes deste, apenas com esta infeliz diferença para o súdito, ou antes, escravo
de um príncipe absoluto: enquanto no estado de natureza ordinário tem ele a liberdade de julgar seu próprio
direito e, de acordo com o que estiver a seu alcance, sustentá-lo, neste caso, sempre que sua propriedade for
invadida por vontade ou ordem de seu monarca, ele não só não tem a quem apelar, tal como devem ter os que
vivem em sociedade, mas é como se fosse degradado do estado comum das criaturas racionais, sendo-lhe
negada a liberdade de julgar e defender seu próprio direito, de modo que fica exposto a todas as misérias e
inconvenientes que um homem possa temer por parte de alguém que, além de encontrar-se num estado
irrestrito de natureza, é ainda corrompido pela adulação e está armado com o poder. (Locke, 2001, pp. 461-463
– 2T, § 91).

2. O ENFOQUE DE THOMAS HOBBES:

Para compreender o enfoque que Thomas Hobbes dá ao conceito de estado natural,


é necessário compreender que o filósofo inglês pretende, antes de mais nada, contestar o argumento
de Aristóteles, segundo o qual, conforme uma das mais famosas proposições da filosofia universal, “o
homem é um animal político”, ou seja, os seres humanos somos, por natureza, aptos ao convívio
social. Para o autor da Política, a alguns seres humanos, chamados “escravos”, cabia viver, desde seu
nascimento, sob o jugo de outros homens, os “senhores”:

É um escravo por natureza quem é susceptível de pertencer a outrem (e por isto é de outrem), e participa da
razão somente até o ponto de apreender esta participação, mas não a usa além deste ponto (os outros animais
não são capazes sequer desta apreensão, obedecendo somente a seus instintos). (Aristóteles, 1985, p. 19)

Mas isto não é tudo. Para justificar sua tese, o Estagirita também se vale de
observações fisiológicas e anatômicas:

A intenção da natureza é fazer também o corpo dos homens livres e dos escravos diferentes – os últimos fortes
para as atividades servis, os primeiros erectos, incapazes para tais trabalhos mas aptos para a vida de cidadãos.
(...) É claro, portanto, que há casos de pessoas livres e escravas por natureza, e para estas últimas a escravidão
é uma instituição conveniente e justa. (Idem, ibidem)

Revela-se, assim, que, para Aristóteles, e para tantos outros que se viram, por suas
próprias contingências históricas, forçados a justificar os regimes escravocratas, não poderia soar
artificial, tampouco improvável, a composição dos conflitos sociais por meio da subserviência ou da
escravidão. Decorrência da visão segundo a qual os homens são, por natureza, diferentes, é a
suposição de que o equilíbrio das tensões entre os habitantes da pólis se daria sem grandes traumas,
de maneira mais ou menos pacífica, pois natural seria a aptidão de cada indivíduo para mandar ou
obedecer.

Séculos mais tarde, Hobbes expressamente se opõe a essa concepção. Em sua


opinião, julgar que os homens são, por natureza, mais ou menos aptos ao Governo e à vida em
sociedade, é raciocínio tão sólido quanto uma estátua de gelo. Não por outro motivo, já no capítulo
inicial do De Cive escancara sua crítica:
A maior parte daqueles que escreveram alguma coisa a propósito das repúblicas ou supõe, ou nos pede ou
requer que acreditemos que o homem é uma criatura que nasce apta para a sociedade. Os gregos chamam-no
zoon politikón, e sobre este alicerce eles erigem a doutrina da sociedade civil, como se, para preservar a paz e o
governo da humanidade, nada mais fosse necessário do que os homens concordarem em firmar certas
convenções e condições em comum, que eles próprios chamariam, então, leis. Axioma este que, embora
acolhido pela maior parte, é contudo sem dúvida falso – um erro que procede de considerarmos a natureza
humana muito superficialmente. (Hobbes, 1998, pp. 25-6).9

Destaca-se, no trecho acima, a escolha pelo advérbio superficialmente. Com ele,


Hobbes quer dizer que a análise de Aristóteles não prima pela profundidade ou exatidão. Para
Hobbes, é um erro supor que os homens são criaturas singelas a ponto de, pelo simples ato de se
contemplarem em um espelho d’água, deverem se reconhecer como senhores ou escravos de outrem.
Destaca-se também o uso da expressão “natureza humana”.

Para os gregos, os escravos, ainda que dotados de verbo e anatomia humana,


guardavam essencial dessemelhança em relação aos homens livres. Vê-se, portanto, que ambos os
grupos, cidadãos e cativos, encontravam-se abarcados sob o mesmo conceito genérico de “homem”,
embora não houvesse apenas “homens”, mas “homens diferentes”. Percebe-se, assim, que, para
Aristóteles, não haveria uma natureza humana, mas, no mínimo duas: a natureza dos senhores, e a
natureza dos escravos.

Analogamente, pode-se falar também de duas espécies diferentes de doutrina


política. Uma, em que o filósofo aceita que os homens já nascem com as vestes das diferenças. A
outra, em que os pensadores partem de um ponto onde a nudez da natureza a todos iguala. Aristóteles
está no primeiro grupo, Hobbes e Locke, no segundo.

9
A mesma crítica é repetida no capítulo XV do Leviatã: I know that Aristotle in the first book of his Politics, for a foundation of his
doctrine, maketh men by nature, some more worthy to command, meaning the wiser sort, such as he thought himself to be for his
philosophy; others to serve, meaning those that had strong bodies, but were not philosophers as he; as master and servant were not
introduced by consent of men, but by difference of wit: which is not only against reason, but also against experience. For there are very
few so foolish that had not rather govern themselves than be governed by others. (Hobbes, 1997, pp. 84-5).
Quem acredita que os homens são naturalmente diferentes pode chegar, em última
instância, a defender a escravidão, o escravismo, e os regimes escravocratas. Por outro lado, o
corolário imediato da aceitação de uma natureza humana, ou seja, de um substrato indistintamente
presente em todos os homens, é nada menos que a consolidação do princípio da igualdade, pois se há
mesmo esta coisa chamada “natureza humana”, da qual nenhum homem escapa, decorre, em última
análise, que todos os homens compartilhamos algo comum, carregamos algo idêntico, somos iguais,
enfim.

Essa noção é importante porque permite enxergar a humanidade sob um prisma que
os antigos gregos nunca puderam atingir, qual seja, a de que os homens, todos os homens, são iguais.
Entendido esse ponto, passo a analisar o conceito hobbesiano de natureza humana, bem assim o tipo
de Estado que dele se origina.

2.1. Da Absoluta Identidade entre os Homens e de suas Conseqüências Práticas


– A Expressão homo homini lupus:

Revestem-se de caráter eminentemente psicológico as primeiras considerações de


Hobbes em busca da compreensão do que seja a natureza humana. Partindo da observação dos
homens de sua época, Hobbes aponta a existência de uma identidade entre todos eles no que tange às
suas atitudes em respeito aos seus próprios negócios e à pessoa do próximo:
Como e com que desígnio os homens se congregam, melhor se saberá observando-se aquelas coisas que fazem
quando estão reunidos. Pois, quando se reúnem para comerciar, é evidente que cada um não o faz por
consideração a seu próximo, porém apenas a seu negócio; se é para desempenhar algum ofício, uma certa
amizade comercial se constitui, que tem em si mais de zelo (jealousy), que de verdadeiro amor, e por isso dela
devem brotar fações, às vezes, mas boa vontade nunca; se for por prazer ou recreação da mente, cada homem
está afeito a se divertir mais com aquelas coisas que incitam à risada, razão por que pode (conformemente à
natureza daquilo que é ridículo) mais subir em sua própria opinião quando se compara com os defeitos e
deficiências de outrem, e embora isto, por vezes se faça de modo inocente e sem ofender, é manifesto que tais
homens não se deleitam tanto com a sociedade, mas com sua própria vã glória. (Hobbes, 1998, p. 26)

Ao investigar o comportamento dos homens quando reunidos com seus pares,


Hobbes descarta a possibilidade de eles serem naturalmente tendentes a um convívio social que possa
ser caracterizado como solidário, ou ao menos pacífico. Ao contrário, a vida em sociedade é um
ambiente onde vem à tona a natureza egoísta do ser humano:

Por outro lado, os homens não tiram prazer algum na companhia uns dos outros (e sim, pelo contrário, um
enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a todos em respeito. Porque cada um pretende
que seu companheiro lhe atribua o mesmo valor que ele se atribui a si próprio, e, na presença de todos os sinais
de desprezo ou de subestimação, naturalmente se esforça, na medida em que a tal se atreva (o que, entre os que
não têm um poder comum capaz de o submeter a todos, vai suficientemente longe para levá-los a destruir-se
uns aos outros), por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando dano, e dos outros
também, através do exemplo. (Hobbes, 1979, p. 75)

Para compreender a premissa número 1 de Hobbes, qual seja, a de que os homens


são iguais, quadra ser dito que o comportamento acima descrito não se refere a uma classe específica
de homens, ou apenas a alguns indivíduos, porém a todos os homens indistintamente.

Essa igualdade deriva das paixões que pautam a vida dos homens, entre as quais se
destaca o medo que cada homem tem de ser morto violentamente por um de seus semelhantes,
situação que tem como corolário a absoluta falta de segurança no estado de natureza:

A causa do medo recíproco consiste, em parte, na igualdade natural dos homens, em parte na sua vontade de se
ferirem – do que decorre que nem podemos esperar dos outros, nem prometer a nós mesmos, a menor
segurança. Pois se examinarmos homens já adultos, e considerarmos como é frágil a moldura de nosso corpo
humano (que, perecendo, faz também perecer toda a nossa força, vigor, e mesmo sabedoria), e como é fácil até
o mais fraco dos homens matar o mais forte, não há razão para que qualquer homem, confiando em sua própria
força, deva conceber feito por natureza superior a outrem. São iguais aqueles que podem fazer coisas iguais um
contra ou outro; e aqueles que podem fazer as coisas maiores (a saber: matar) podem fazer coisas iguais.
Portanto, todos os homens são iguais entre si; a desigualdade que hoje constatamos encontra sua origem na lei
civil. (Hobbes, 1998, p. 29)

Desta igualdade natural entre todos os homens, Hobbes extrai a plena liberdade
individual. Uma vez que os homens são iguais, a nenhum é lícito tentar se impor aos demais, o que
defere a cada indivíduo a liberdade de gozar de tudo quanto sua razão determinar.10

Sendo iguais, todos os homens têm, no estado de natureza, direito a todas as coisas.
Mas o direito a tudo, ou seja, a liberdade absoluta, significa, no fim das contas, que ninguém tem
plena garantia que poderá efetivamente gozar de qualquer um de seus inúmeros direitos. Daí, a
pintura do estado de natureza como o estado de guerra: se todos podem tudo, a falta de garantia é
uma desgraça no mínimo tão grande quanto seria uma total falta de direitos, o que torna a condição
do homem idêntica à do soldado miserável escondido na trincheira, que nunca sabe de onde poderá
vir o próximo ataque, muito menos conhecer antecipadamente o poder de fogo de seu inimigo.

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nosso fins. Portanto
se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por ambos, eles
se tornam inimigos. E no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes
apenas seu deleite) esforçam-se por destruir ou subjugar um ao outro. E disso se segue que, quando o invasor
10
By Liberty, is understood, according to the proper signification of the word, the absence of externall Impediments: which
impediments, may oft take away part of a mans power to do what he would; but cannot hinder him from using the power left him,
according as his judgement, and reason shall dictate to him. (Hobbes, 1997, p. 72).
nada mais tem a recear que o poder de um único outro homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui
um lugar conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para
desapossá-lo ou privá-lo não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida, e de sua liberdade. Por
sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo em relação aos outros. (Hobbes, 1979, pp. 74-5)

Assim, o elemento que justifica a vida em sociedade não é a natural tendência à


colaboração, e sim, o conjunto das paixões humanas, como dito em linhas volvidas11. Mas uma vez
que este trabalho não comporta um maior enfrentamento da teoria de Hobbes acerca da passagem
para o estado civil, escolhi enfrentar mais detalhadamente apenas a questão do medo como sendo um
componente da força que une os homens rumo à formação de um corpo político único:

Toda a associação, portanto, ou é para o ganho ou para a glória – isto é: não tanto para o amor de nossos
próximos, quanto pelo amor de nós mesmos. (...) Devemos, portanto, concluir que a origem de todas as
grandes e duradouras sociedades não provém da boa vontade recíproca que os homens tivessem uns para os
outros, mas do medo recíproco que uns tinham dos outros. (Hobbes, 1998, p. 28)

2.2. A questão do medo:

A filosofia de Hobbes pretende demonstrar como o homem troca o estado de


natureza, que é um estado de medo perene, e portanto um estado de guerra, em prol da construção do
estado civil. Isto é feito por meio da equiparação entre a liberdade natural e a plena ausência de
normatização da vida social. Antes, porém, é preciso investigar como o medo se torna uma das pedras
angulares do edifício teórico de Hobbes, ou seja, descobrir em que medida ele colabora para a
construção da sociedade civil.

A primeira dúvida que surge é: que medo seria este capaz de aglutinar os homens
sob um corpo social? Não deveríamos pensar justamente o contrário, ou seja: quanto maior o medo,
mais afastados do convívio social não se colocariam os homens? Hobbes não ignora a objeção,
respondendo, com sua habitual perspicácia:

A isto se objeta: é tão improvável que os homens chegassem à sociedade civil devido ao medo que, tivessem
eles medo, nem mesmo suportariam o olhar uns dos outros. Mas quem assim pensa presume, creio eu, que
temer é exatamente o mesmo que apavorar-se. (Hobbes, 1998, p. 359)

Em outras palavras, segundo Hobbes, o medo que pauta o estado natural não
redunda, de maneira alguma, em uma espécie de freio que mantenha cada homem distante dos
demais, como os participantes de um safári por certo haveriam de se manter afastados das feras que
habitam as savanas africanas. Na verdade, o medo descrito por Hobbes tem justamente o condão de

11
Cf. p. 25, nota 23 supra.
fazer com que cada homem, após medir, pelo uso de sua razão e experiência, a real possibilidade de
ser vítima das paixões alheias, acabe por aderir, com sua vontade, em prol da constituição de um
poder supremo, apto a regular a vida em sociedade, e manter afastado o temor da morte violenta.

Compreendo, porém, na palavra medo, uma certa antevisão de um mal futuro; por isso não penso que fugir seja
o único efeito do medo; a quem sente medo também ocorre desconfiar, acautelar-se e até mesmo agir de modo
a não mais temer. Quem vai dormir, fecha as portas; quem parte em viagem leva uma espada – porque tem
medo de ladrões. Os reinos guardam suas costas e fronteiras com fortes e castelos; as cidades se fecham com
muralhas, e tudo isso por medo dos reinos e cidades vizinhos, mesmo os exércitos mais fortes, e mais
preparados para o combate, eventualmente negociam a paz, por temerem o poder do adversário, e para não
serem derrotados. É pelo medo que os homens se protegem, até mesmo pela fuga, e escondendo-se pelos
cantos, se não têm outro jeito de escapar, mas, o mais das vezes, utilizando-se de armamentos e armas
defensivos. Assim acontece que, se eles têm a coragem de se mostrar, cada um vem a conhecer em que
disposição está o outro; de modo que assim, se lutarem, a sociedade civil nasce da vitória, e, se concordarem,
vem de seu acordo. (Idem, ibidem)

A mesma crítica é repetida no capítulo XIII do Leviatã, onde Hobbes retorna às


digressões sobre a conseqüência, nas relações sociais, do medo que os homens naturalmente sentem
de seus semelhantes:

Poderá parecer estranho a alguém que não tenha considerado bem estas coisas que natureza tenha assim
dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos outros. E poderá portanto talvez
desejar, não confiando nesta inferência, feita a partir das paixões, que a mesma seja confirmada pela
experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e
procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas porta; que mesmo quando está em casa tranca
seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer
injúria que lhe possa ser feita. Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus
concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres? (Hobbes, 1979, p.
76)

Como visto, Hobbes chega à conclusão relativa ao medo após tecer, tanto no De
Cive, quanto no Leviatã, longas considerações acerca da natureza humana, ou seja, depois de
enunciar, de maneira minuciosa, aquilo que poderíamos chamar de “a antropologia hobbesiana”:
homo homini lupus. Fiel à sua crítica aos antigos, o filósofo de Malmesbury se propõe a examinar
com maior profundidade a questão sobre a qual, em sua opinião, os gregos haviam se detido de
maneira rasa e simplificada, tencionando, assim, ver mais que a ponta do iceberg legada pela
tradição.

A segunda pergunta que pode ser feita é: como justificar a universalidade do medo,
enquanto nos salta aos olhos que a força física de alguns há de ser sempre maior que a de outros, da
mesma forma que tampouco a esperteza e a inteligência foram dadas a todos em igual medida? Em
outras palavras, não seria mais razoável aceitar que o medo não move todos os homens, mas apenas
os mais fracos?

Para refutar tais objeções, Hobbes não aceita que os atributos físicos ou as
faculdades do espírito sejam suficientes para desigualar os homens. Por termos diversos: a premissa
de igualdade hobbesiana é cabal, e cabalmente axiomática, não admitindo exclusões.

Quanto às eventuais diferenças de força corporal, afirma que, em qualquer tempo,


os mais fracos possam se unir contra o mais forte – em termos vulgares, dez fracotes não
encontrariam, no estado natural, maiores dificuldades para surrar um fortão, ao menos quando este
último estivesse imerso em seu sono noturno. No que tange às faculdades espirituais, maior ainda
seria a igualdade, porque

A prudência nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente oferece a todos os homens,
naquelas coisas a que igualmente se dedicam. O que talvez possa tornar inaceitável essa igualdade é
simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase todos os homens supõem possuir em
maior grau do que o vulgo; quer dizer, em maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que,
ou devido à fama ou devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação (Hobbes 1979, p. 74)

De tal modo, nos termos da abstração original proposta por Hobbes, ou seja, a
ficção concernente à condição de natural igualdade entre os homens, todos os homens têm, no estado
de natureza, indistintamente, as mesmas condições de existência, além do mesmíssimo direito a todas
as coisas:

Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à esperança de atingirmos nossos fins.
Portanto, se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ela ser gozada por
ambos, eles tornam-se inimigos. (Idem, ibidem)

Ora, se todos são iguais, a ninguém é dado reclamar a condição de proprietário


exclusivo de coisa alguma. No estado natural hobbesiano, se eu tenho uma maçã em minha mão, é a
mera posse que me faz seu dono, mas tanto não é o bastante para impedir que qualquer outro homem,
ou grupo de homens, se julgue merecedor dessa mesma maçã. Assim sendo, o que poderia parecer, à
primeira vista, uma formidável condição, sendo razoável imaginar que, tendo direito a tudo, de tudo
cada um poderia efetivamente gozar, revela-se, afinal, contrário ao interesse privado de cada homem:

Mas foi pequeno o benefício para os homens assim terem um comum direito a todas as coisas, pois os efeitos
desse direito são os mesmos, quase, que se não houvesse direito algum. Pois, embora qualquer homem possa
dizer, de qualquer coisa “isto é meu”, não poderá porém desfrutar dela, porque seu vizinho, tendo igual direito
e igual poder, irá pretender que é dele essa mesma coisa. (Hobbes, 1998, p. 33)
2.3. Liberdade, Direito e Lei:

Para Hobbes, existe um direito natural, que é o direito a todas as coisas, sinônimo
de liberdade irrestrita.12

No estado natural, cada homem, tendo direito a todas as coisas, é juiz absoluto da
quantidade de bens que entende necessária à sua felicidade e à sua preservação. O estado de natureza,
é, assim, um estado de pleno arbítrio individual

A situação não seria tão ruim se todos os homens não pensassem o mesmo ao
mesmo tempo, ou seja, se o estado de natureza trouxesse a marca da desigualdade aristotélica, com
alguns senhores naturais, e outros tantos naturalmente dispostos a se sujeitar à escravidão. Todavia, o
quadro proposto por Hobbes é um tanto mais complexo, pois sendo cada homem senhor de tudo, a
cada homem não se pode negar o direito de usar de toda a sua força para garantir aquilo que a ele, e
só a ele, cabe definir como imprescindível à sua existência. Demonstra-se, portanto, que o estado de
natureza é, em última análise, um estado de juízes supremos13, não sendo difícil imaginar as
conseqüências práticas de uma tal situação.

Se cada homem não tem senão em seu próprio juízo os limites de sua atuação, a
única realidade que pode se desenrolar é um permanente estado de medo recíproco, em que todos se
armam até os dentes, pois nunca se sabe a que horas o próximo há de julgar conveniente um assalto,
ou mesmo um homicídio.14

Assim, no estado de natureza hobbesiano, onde o homem é o lobo do homem, não


há melhor defesa que o ataque, motivo suficiente para que todos ajam por antecipação:

E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros, nenhuma maneira de se garantir é tão razoável como
a antecipação; isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que puder, durante o
tempo necessário para chegar ao momento em que não veja qualquer outro poder suficientemente grande para
ameaçá-lo. (Hobbes, 1979, p. 75)

12
The right of nature, which writers commonly call Jus Naturale, is the Liberty each man hath, to use his own power, as he will
himselfe, for the preservation of his own Nature, that is to say, of his own Life, and consequently, of doing any thing, which is his own
Judgement, and Reason, he shall conceive to be the aptest means thereunto. (Hobbes, 1997, p. 72)
13
And seeing every man is presumed to do all things in order to his own benefit, no man is a fit arbitrator in his own cause: and if he
were never so fit, yet equity allowing to each party equal benefit, if one be admitted to be judge, the other is to be admitted also; and so
the controversy, that is, the cause of war, remains, against the law of nature. (Hobbes, 1997, p. 86).
14
And because the condition of man (as hath been declared in the precedent chapter) is a condition of war of every one against every
one, in which case every one is governed by his own reason, and there is nothing he can make use of that may not be a help unto him in
preserving his life against his enemies; it followeth that in such a condition every man has a right to every thing, even to one another's
body. (Hobbes, 1997, p. 72)
A extrema tensão do estado natural postulada por Hobbes eleva à máxima potência
a validade do adágio romano si vis pacem, para bellum, é dizer: se queres a paz, prepara-te para a
guerra. Contudo,

o termo guerra indica mais a ausência de paz do que a beligerância generalizada. O caráter belicoso do estado
natural hobbesiano consiste no potencial agressivo que cada homem representa para o semelhante. Guerra é,
para Hobbes, o espaço e o tempo em que os indivíduos atuam no estado natural, ou seja, não se trata de uma
série de batalhas, mas da aferição das condições que levam inevitavelmente ao confronto. (Heck, 2000, p. 17)

Uma vez que a atitude humana de se armar até os dentes, à espera de um conflito,
confunde-se com uma certa ausência de compaixão, e esta usualmente se revela como algo
reprovável, pode parecer, à primeira vista, que Hobbes sugere não passarem os homens, no estado de
natureza, de seres “malvados”, carentes da disciplina do poder público para que possam alcançar a
plenitude da bondade. Tanto não se dá, todavia.

Na verdade, em momento algum, Hobbes emite qualquer juízo axiológico sobre a


natureza humana, ou seja, nunca se diz que o homem é naturalmente mau, nem que a construção da
sociedade civil seria fundada na necessidade de se atingir o bem. Esta absoluta ausência de valoração
do homem é importante para que se conceda ao conceito de igualdade o devido lugar na obra do
pensador inglês:

Os homens não violam a palavra dada, quebram acordos ocasionais e se agridem reciprocamente por serem
ruins, mas simplesmente porque não conseguem descobrir como os outros vão agir e reagir em cada momento,
razão pela qual é melhor atacá-los antes de algum deles fazê-lo. (Heck, 2000, p. 19)

Além de iguais, os homens são o que são, e isto, longe de ser a solução, é um
grande problema, o maior de todos, aliás: precisamente por não haver, em sua condição natural,
qualquer diferença entre os homens, não existe um referencial que possa conferir razoabilidade às
tentativas de se impingir a qualquer um, nem mesmo àqueles que roubam ou matam em defesa de sua
vida ou de seu conforto, a pecha de “mau”. Em outras, palavras, não há, no estado de natureza,
quaisquer noções de certo e errado, justiça ou injustiça.15 No sistema hobbesiano, não há, antes da
instituição do Soberano, questões morais a serem resolvidas, pois

para cada consciência individual vale a distinção entre ações justas e injustas, entendendo por justo o
comportamento que está a serviço da autoconservação e injusto o agir que a cerceia. (Heck, 2000, p. 15)

A plena igualdade, entre os homens, no estado natural, faz ruir quaisquer tentativas
de se catalogar os indivíduos em “bons”, “maus”, “melhores” ou “piores”, eis que tais adjetivações
seriam cabíveis apenas após a instituição da lei civil, que é prerrogativa do Soberano:
15
The notions of Right and Wrong, Justice and Injustice have there no place. Where there is no common Power, there is no Law: where
no Law, no Injustice. (Hobbes, 1997, p. 71)
A questão de decidir quem é o melhor homem não tem lugar na condição de simples natureza, na qual
(conforme acima se mostrou) todos os homens são iguais. A desigualdade atualmente existente foi introduzida
pelas leis civis. (Hobbes, 1979, p. 91)

Sobre a absoluta inexistência, na condição natural, de qualquer obrigação moral do


indivíduo a respeito da vida e das posses de seus semelhantes, o filósofo não exagera. Ao contrário,
como dito acima, o autor sugere e consegue demonstrar, com sua habitual perspicácia, que, na
ausência de um poder comum,

no caminho para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas seu deleite), [os
homens] esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. E disto segue que, quando um invasor nada mais
tem a recear que o poder de um único homem, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar
conveniente, é provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas, para
desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também de sua vida e de sua liberdade.
(Hobbes, 1979, pp. 74-75)

Conclui-se que, tão-somente por ser um estado de iguais, o estado de natureza é um


permanente estado de guerra, no qual resta absolutamente imponderável a certeza de quem vencerá
qualquer disputa por seja lá qual for o bem. Na condição natural, cada contendor tem exatos 50% de
chance em todo e qualquer embate. Destarte, se um homem deseja um bem, nada existe na natureza
que o impeça de engendrar todos os meios que julgue cabíveis para obtê-lo. Em Hobbes, o estado
natural é um de plena liberdade, ausente qualquer coerção, não se prevendo a presença de um vetor
que possa efetivamente regular a conduta dos homens em relação aos demais. Esta é a maior
diferença entre os dois sistemas: no de Locke, existe uma lei natural normativa, i.e., a lei fundamental
da Razão, ao passo que, no de Hobbes, não.

Não se quer dizer, com isto, que Hobbes ignore o conceito de lei natural, pois no
capítulo XIV do Leviatã, a lei da natureza é definida como

um preceito ou regra geral, estabelecido pela razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que
possa destruir sua vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que pense poder
contribuir melhor para preservá-la. (Hobbes, 1979, p. 78)16

Todavia, a peculiaridade do sistema hobbesiano é que a lei natural, preexistente à


lei civil, não tem caráter normativo. A equiparação entre o estado natural e o estado de guerra só é
possível se se considera, como Hobbes, que a lei natural tem o condão de obrigar os homens:

O estado dos homens, considerados fora da sociedade civil, é de guerra, e nessa condição, ninguém estando

16
No original: A law of nature (Lex Naturalis,) is a Precept, or generall Rule, found out by Reason, by which a man is forbidden to do,
that, which is destructive to his life, or taketh away the means of preserving the same. (Hobbes, 1997, p. 72). Também no De Cive há
uma definição de lei natural como sendo “aquela que Deus declarou a todos os homens através de sua palavra eterna, com eles nascida
– ou seja, através da razão natural.” (Hobbes, 1998, p. 219)
sujeito a ninguém, não há nenhuma lei além dos ditados da razão natural, que é a lei divina. (Hobbes, 1998, p.
219)

Em outras palavras, no estado natural, as leis da natureza não têm força senão na
consciência de cada homem17. Mas se para saber o que é naturalmente justo e/ou legal, cada homem
só está obrigado a consultar sua própria consciência, o quadro é o mesmo de não haver lei nenhuma:

O desempenho mediador universal das leis naturais, como dictamina rectae rationi, é sufocado por Hobbes no
embrião, isto é, por mais que valham no plano da consciência, os ditames da reta razão não vinculam a conduta
dos homens, razão por que apenas impropriamente são chamadas de lei. Por não conterem obrigatoriedade,
permanecem desassistidas de vinculação subjetiva. (Heck, 2000, p. 8)

Como dito acima, é da inexistência de uma lei natural normativa que Hobbes
consegue derivar a equivalência entre o estado de natureza e o estado de guerra:

Para Hobbes, as leis naturais são aquelas que, no estado da natureza, ainda não têm vigência, e no estado civil,
deixaram de viger. No estado de natureza ainda não têm vigência: é verdade, porque nele só existem as leis
naturais – Hobbes cita cerca de vinte no início de seus dois livros –; elas só obrigam em consciência, o que
significa, para Hobbes, que só obrigam a ter a intenção de observá-las. Sua observância efetiva só é devida
quando estamos seguros de que os outros também as observarão. O estado da natureza, porém, é marcado pela
insegurança contínua – a situação famosa de bellum omnium contra omnes. Com tal insegurança, não tenho
qualquer garantia de que os outros cumprirão as leis naturais, portanto não estou obrigado a cumpri-las.
(Bobbio, 1997, p. 42)

Ao estabelecer que aos homens cabe, no estado de natureza, dirigir livremente sua
vontade sem qualquer espécie de constrangimento advindo por parte de outros homens, Hobbes
introduz a noção de direito como sinônimo de liberdade:

Liberdade, no sentido jurídico, é, para Hobbes, a faculdade de fazer tudo o que não é ordenado ou proibido
pelas leis. (...) Libertas é, para Hobbes, sinônimo de jus, termo contraposto a lex. (Bobbio, 1997, p. 173)

Em Hobbes, os termos direito e lei são, então, contrapostos, o primeiro significando


a liberdade de gozar de todas as coisas, sem restrições de qualquer espécie, ao passo que o segundo
significa exatamente a restrição à liberdade original. O estado de natureza seria, assim, um de pleno
vácuo normativo, em que todos têm amplos e irrestritos direitos, eis que não há uma lei
positivamente coercitiva.

Para ele não havia, no estado natural, uma lei normativa, assim entendida uma que
pudesse impor freios à conduta humana. Por serem iguais entre si, os homens não devem obediência
a qualquer pessoa ou coisa, senão ao seu próprio juízo. De tal sorte, todos têm, no estado de natureza,

17
The Lawes of Nature oblige in foro interno; that is to say, they bind to a desire they should take place: but in foro externo, that is, to
the putting of them in act, not alwayes. (Hobbes, 1997, p. 87)
direito a tudo. Direito é, então, sinônimo de liberdade, ou seja, ter direito a algo significa gozar de
liberdade para obter algo.

No estado de natureza, os homens podem fazer ou deixar de fazer qualquer coisa


que lhes vier à cabeça, pois não há qualquer força que lhes possa impor uma proibição ou uma
obrigação. Ninguém pode constranger ninguém a fazer ou deixar de fazer algo. O estado natural é,
assim, uma condição de ausência de proibição e/ou coerção.

Tal é a diferença, portanto, entre lei (lex) e direito (jus). O direito corresponde à
plena liberdade, não tendo, portanto, força para vincular os homens. A lei civil, assim entendida a
vontade do Leviatã, por sua vez, é um artifício criado no intuito específico de regular a liberdade
original. O direito é como a gravidade, existe sem que ninguém o tenha criado. A lei civil, por sua
vez, é uma obra de arte, no sentido de ser criação do homem.

Mas que tipo de criação é a lei civil? Uma criação restritiva, o mecanismo de
controle por excelência: antes da lei, tudo era permitido, e os direitos de cada homem eram amplos e
irrestritos. Agora, sob a égide da lei civil, a liberdade já não é plena, já não há direito a tudo. Para
Hobbes, portanto, a primeira preocupação do Leviatã deve ser aquilo que a ciência jurídica catalogou,
séculos mais tarde, como “normas proibitivas” – a lei é uma restrição ao direito natural, ou seja, uma
limitação ao direito sobre todas as coisas.

Em linhas gerais, é esse o caminho seguido por Hobbes no desenvolvimento de sua


teoria absolutista, a qual se justifica pela equiparação entre estado natural e estado de guerra, a ser
melhor enfrentada nas seções seguintes. Por ora, basta dizer que tal equiparação marca a
impossibilidade da coexistência entre os homens na ausência de uma lei civil: “Se na verdade o
homem tivesse sido capaz de viver pacificamente no estado da natureza, não teria necessidade de
instituir a sociedade civil.” (Bobbio, 1997, p. 172)

No estado natural, os homens são livres, ou seja, gozam de pleno direito a todos as
coisas. Mas de acordo com a antropologia hobbesiana, os homens naturalmente amam não só a
liberdade, mas o próprio domínio sobre seus semelhantes18.

É essa característica de todos e cada um dos homens que confere à vida no estado
natural sua precariedade: o que pode, aprioristicamente, parecer uma grande benesse, acaba por se
revelar insuportável, pois o direito a todas as coisas não é exclusivo de uma só pessoa, ou seja, todos
os homens se julgam senhores de tudo, até mesmo da vida de seus semelhantes. Daí, a necessidade da

18
The finall Cause, End, or Designe of men, (who naturally love Liberty, and Dominion over others, in the introduction of that
restraint upon themselves), (...) is the foresight of their own preservation... (Hobbes, 1997, p. 93)
lei civil, que para outra coisa não serve senão viabilizar a vida em sociedade, através da restrição da
liberdade natural de cada indivíduo:

O estado de natureza é marcado por uma insegurança contínua. (...) Com tal insegurança, não tenho qualquer
garantia de que os outros observarão as leis naturais, portanto não estou obrigado a cumpri-las. Por isso, a
obrigação só vale quando reciprocamente respeitada. Em um estado em que não há tal garantia de
reciprocidade não cabe a obrigação. (Bobbio, 1997, p. 42)
Num estado em que todos têm direito a tudo, cada indivíduo tudo pode contra os
demais, o que importa dizer que ninguém tem segurança alguma. Para me proteger, posso tudo, até
mesmo matar a qualquer instante qualquer um de meus semelhantes. Todavia, devo reconhecer que
os mesmos direitos irrestritos cabem a todos eles, inclusive o direito de ceifar-me a vida a qualquer
momento. Demonstra-se, assim, que a falta de segurança é cabal.

2.4. O Estado de Guerra:

Partindo da natural igualdade entre os homens, bem como das conseqüências acerca
do medo que cada indivíduo sente de semelhantes, Hobbes estabelece um dos marcos de sua teoria,
qual seja, a equiparação do estado natural ao estado de guerra:

Se agora, a essa propensão natural dos homens a se ferirem uns aos outros, que eles derivam de suas paixões,
mas acima de tudo, de uma vã estima de si mesmos, somarmos o direito de todos a tudo, graças ao qual um
com todo o direito invade, outro, com todo o direito, resiste, e portanto surgem infinitos zelos e suspeitas de
toda a parte; se consideramos que tarefa árdua é nos resguardarmos de um inimigo eu nos ataca com a intenção
de nos oprimir e arruinar, ainda que ele venha com pequena tropa e escasso abastecimento; não haverá como
negar que o estado natural dos homens, antes de ingressarem na vida social, não passava de guerra, e esta não
ser uma guerra qualquer, mas uma guerra de todos contra todos. Pois o que é a guerra, senão aquele tempo em
que a vontade de contestar o outro pela força está plenamente declarada, seja por palavras, seja por atos? O
tempo restante é denominado paz. (Hobbes, 1998, p. 33)19

Ao definir como “guerra” o estado de natureza, Hobbes não crê que os homens
saiam a matar seus semelhantes, promovendo diuturnas carnificinas. Para ele, a constância da ameaça
é o que basta para que se configure o estado de beligerância, o que significa dizer que, ainda que não
faça parte do cotidiano da maior parte dos homens cometer agressões contra seus semelhantes, cada

19
No mesmo sentido, o texto do Leviatã: “Hereby, it is manifest that during the time men live without a common power to keep them
all in awe, they are in that condition which is called Warre; and such a warre, as if of every man, against every man. For Warre
consisteth not in Battell onely, or the act of fighting; but in a tract of time, wherein the Will to contend by Battell is sufficiently known:
and therefore the notion of Time, is to be considered in the nature of Warre; as it is in the nature of Weather. For as the nature of Foule
weather, lyeth not in a showre or two of rain; but in an inclination thereto of many dayes together: So the nature of War, consisteth not
in actuall fighting; but in the known disposition thereto, during all the time there is no assurance to the contrary. All other time is
PEACE.” (Hobbes, 1997, p. 70)
indivíduo funciona, em última análise, à maneira de um barril de pólvora, apto a explodir a qualquer
momento. As últimas palavras de ambas as citações acima nos autorizam a dizer que a instauração do
poder civil é o único remédio que poderia garantir “o tempo restante”, ou seja, um tempo em que se
coíbem tais explosões individuais, garantindo a paz social. Como veremos no item seguinte, o natural
desequilíbrio que caracteriza o estado de natureza torna imprescindível um mecanismo de controle
das paixões humanas, aptas que são a colocar em risco a existência de todos.

2.5. Da Necessidade e da Criação do Poder Comum:

Sendo impossível a segurança, e por conseguinte, a paz entre os homens na


ausência de algo ou alguém que lhes possa impor algum controle, posto que no estado de natureza
todos são iguais, circunstância que, como visto, impõe a todos o constante medo de sofrer um ataque
violento advindo de outrem, os homens têm a necessidade de criar um mecanismo 20 que os ponha a
salvo de seus próprios semelhantes, garantindo, assim, a possibilidade de sua sobrevivência. Surge,
assim, o Soberano Civil, não como um ser natural, mas como um artifício criado pelo gênio humano,
com uma razon d’etre e uma finalidade muito bem definidas:

Porque pela arte é criado aquele grande Leviatã, a que se chama Estado ou Cidade (em latim Civitas), que não
é senão um homem artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e
defesa foi projetado. (Hobbes, 1979, p. 5)

Neste ponto, é possível perceber que a força do Soberano, mesmo sendo absoluta,
não pode ser tomada como um fim em si mesma, estando, ao contrário, a serviço da paz social.
Assim, para a instituição do Poder Comum, Hobbes não dispensa a noção de legitimidade,
postulando a necessidade de os homens renunciarem a uma parte de seu patrimônio jurídico em busca
da superação do state of war.

De fato, a soberania em Hobbes não é um ato de vontade do próprio soberano,


sendo necessário, para validá-la, que cada um renuncie ao seu primitivo jus in omnia e satisfaça-se
com uma parcela menor de direitos. Assim, ao homem natural seria mais vantajoso ceder seu direito a
todas as coisas em busca do gozo pacífico de sua existência a ter de lidar diuturnamente com o medo
da morte violenta:

Desta lei fundamental da natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que procurem a paz, deriva
esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros também o façam, e na medida em que tal considere

20
Mais que “poder comum”, uma expressão que melhor explicita o Soberano hobbesiano é “poder visível”, usada no primeiro
parágrafo do capítulo XVII do Leviatã, em que o estado de natureza é tido como um estado “where there is no visible power to keep
them [men] in awe.” (Hobbes 1997, 93)
necessário para a paz e para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas, contentando-se,
em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos outros homens permite em relação a si mesmo.
(Hobbes, 1979, p. 79)

O Estado é criado, portanto, no momento em que cada homem cede seu natural
direito a todas as coisas a um ser artificial que é, em força e poder, comum e superior a todos os
homens. Esse ser artificial é o Soberano, que acaba por existir, em última análise, exatamente como
uma pessoa.21

A grande peculiaridade da doutrina de Hobbes é a inexistência de limites à atuação


dessa pessoa criada para regular a vida em sociedade. O Soberano é apenas o objeto, assim entendido
o resultado, do contrato entre os homens. Em outras palavras, o pacto é estabelecido apenas entre os
homens, não cabendo ao Soberano quaisquer vínculos obrigacionais em relação a cada um dos
súditos individualmente considerados.22 Caso lhe seja concedida autoridade sem limites, ficará ao seu
exclusivo talante o poder de decidir os meios que levarão a seus fins, quais sejam, a paz e a defesa da
sociedade23.

2.6. Crítica a Hobbes:

A concepção do Estado segundo Hobbes pode ser assim sumarizada:

a) contrariamente ao proposto por Aristóteles, os homens não nascem um mais e


outros menos aptos ao governo, o que significa que não são naturalmente aptos
ao convívio social, pois há entre eles uma tensão imanente;
b) na ausência de um poder comum, ou seja, na ausência de uma normatização da
vida social, os homens, justamente por serem iguais, têm total direito a todas as
coisas;
c) no estado de natureza, cada homem é juiz absoluto de suas demandas e dos
meios necessários à sua preservação e a seu conforto, o que lhes coloca a todos

21
A multitude of men are made one person when they are by one man, or one person, represented; so that it be done with the consent of
every one of that multitude in particular. For it is the unity of the representer, not the unity of the represented, that maketh the person
one. (Hobbes, 1997, p. 90).
22
Because the Right of bearing the Person of them all, is given to him [the Soveraigne], by Covenant only of one to another, and not of
him to any of them; there can happen no breach of Covenant on the part of the Soveraigne; and consequently no none of his Subjects,
by any pretence of forfeiture, can be freed from his Subjection. (Hobbes 1997, 97).
23
And because the End of this Institution is the Peace and Defence of them all, and whosoever has right to the End, has right to the
Means, it belongeth of Right, to whatsoever Man, or Assembly that hath the Soveraignty, to be judge both of the meanes of Peace and
Defence; and also of the hindrances, and disturbances of the same; and to do whatsoever he thinks necessary to be done, both before
hand, for the preserving of Peace and Security, by prevention of Discord at home, and Hostility from abroad; and when Peace and
Security are lost, for the recovery of the same. (Hobbes, 1997, p. 98)
indistintamente, à mercê das paixões e do apetite de seus semelhantes;
d) o estado de natureza é um estado de guerra, apenas superável quando os homens
abrem mão do jus in omnia e pactuam a criação de um Soberano capaz de
manter a paz e a segurança. Em outras palavras, ao deixar o estado de natureza,
que é sinônimo de um estado de guerra, os homens avençam a criação de um
mecanismo regulatório, até então inexistente.
e) o Soberano inaugura a normatização social, ou seja, ele é o primeiro e único ser
que tem poderes para efetivamente regular a vida em sociedade. O Soberano,
por ser a materialização da própria Lei, não tem obrigações para com seus
criadores, o que importa dizer que seu poder é ilimitado, ou seja, absoluto.

Por mais rigoroso que seja seu discurso, há algo de difícil aceitação na justificativa
de Hobbes para o poder absoluto do Leviatã. De fato, a formulação de um contrato que não obriga o
próprio Soberano, por mais sólida que pareça, revela-se divorciada de uma noção elementar do
direito das obrigações, segundo a qual as pessoas vinculadas a um contrato mantém, via de regra,
algum tipo de obrigação para com os demais contratantes.

O que Hobbes pretende fazer é, após dizer que o soberano existe exatamente como
uma pessoa, mantê-lo à margem das obrigações do contrato, justamente por ser o seu objeto, e não
um de seus sujeitos. Pergunta-se, porém, que contratantes seriam estes a ponto de não perceberem a
criação contratual de um objeto que, sem deixar de ser uma pessoa, terminará concentrando a
garantia de todos os direitos para os quais o contrato foi originariamente concebido.

Usando a metáfora do edifício que o próprio Hobbes utiliza no Leviatã24, pode ser
dito que o homem do estado natural está para a superestrutura política como o homem das cavernas
está para as obras de engenharia: nula é a sua arte, nada há que ele criou, e para se esconder dos
perigos inerentes à vida, sua única proteção é aquilo que Deus lhe deu, as leis da natureza ou os
abrigos naturais.

Os homens, porém, não são como os demais animais, eternamente sujeitos às


condições impostas pela natureza: ao perceberem que sua proteção original não basta para seu pleno
desenvolvimento, inovam o mundo, ou seja, nele introduzem, mediante o pacto, um “abrigo supra-
individual”, que é o Poder Comum.

24
For the understanding whereof, we may consider, that there is in men's aptness to society a diversity of Nature, rising from their
diversity of Affections; not unlike to that we see in stones brought together for building of an Edifice. For as that stone which by the
asperity, and irregularity of Figure, takes more room from others than it selfe fills; and for the hardnesse cannot be easily made plain,
and thereby hindereth the building, is by the builders cast away as unprofitable and troublesome: so also, a man that by asperity of
Nature, will strive to retain those things which to himself are superfluous, and to others necessary, and for the stubbornness of his
passions cannot be corrected, is to be left or cast out of society as combersome thereunto. (Hobbes, 1997, pp. 83-4)
O problema, contudo, surge quando Hobbes afirma que, a partir do momento em
que constróem o super-abrigo que é o Leviatã, os homens devem respeitar todas e cada uma das
determinações de seu zelador: a sujeição ao Leviatã não é tarefa fácil, como o próprio Hobbes faz
questão de reconhecer.25 Contudo, a vida sob o teto de um soberano absoluto é uma condição melhor
que a vida sob a luz do sol ou da noite sem lua ou estrelas, quando a ninguém era dado se proteger do
assalto letal.

Estranha doutrina a de Hobbes: é certo que as proposições do Leviatã, dispostas no


blueprint que é um texto filosófico, parecem seguras como a liga do aço, firmes como o concreto
bem seco. Incorrem, todavia, por motivos que refogem ao âmbito deste trabalho, no erro de postular,
com base em um argumento contratualista, um soberano perpétuo, e fora do controle de quem o
criou:

Hobbes insistira em que a pessoa ou pessoas que detivessem o poder soberano em qualquer ocasião deveria se
perpetuar. Naturalmente, isso colocava os detentores do poder soberano sempre fora do controle da população,
ou de qualquer segmento da população; e este fato, ainda que desafortunado, era, na opinião de Hobbes,
inevitável. Considerava o poder que se perpetuava como sendo atributo essencial da soberania. (Macpherson,
1979, p. 102)

Mas a maior crítica a Hobbes, ainda que implícita, será feita por Locke, que se
esforçará para demonstrar que a inexistência de controle sobre a atuação do Soberano, bem assim sua
perpetuação no Poder, têm como conseqüência a manutenção do problema que o pacto pretendia
resolver, pois que não tendo a quem recorrer no caso de algum desvio na conduta do Estado, os
súditos permaneceriam em no mais perfeito estado natural em relação à pessoa do Soberano.26 É por
essa via que, crendo em uma solução mais consentânea com a verdadeira natureza dos homens, John
Locke logra, ao se voltar contra o paternalismo filmeriano, refutar toda forma de absolutismo, o de
Hobbes inclusive.

Para Locke, o estado natural, por não ser um estado de plena liberdade, tampouco é
o caos, ou muito menos a guerra. Em seu estado de natureza, já há uma lei normativa, qual seja, a lei
fundamental da razão, havendo também um poder político, que é justamente o poder de executar esta
lei (2T, § 171).
25
But a man may here object, that the Condition of Subjects is very miserable; as being obnoxious to the lusts, and other irregular
passions of him, or them that have so unlimited a Power in their hands. (...) Man can never be without some incommodity or other; and
that the greatest, that in any forme of Government can possibly happen to the people in generall, is scarce sensible, in respect of the
miseries, and horrible calamities, that accompany a Civil Warre; or that dissolute condition of masterlesse men, without subjection to
Lawes, and a coercive Power to tye their hands from rapine and revenge. (Hobbes, 1997, p. 102).
26
But whatever Flatterers may talk to amuze Peoples Understandings, it hinders not Men, from feeling: and when they perceive, that
any Man, in what Station soever, is out of the Bounds of the Civil Society which they are of; and that they have no Appeal on Earth
against any harm they may receive from him, they are apt to think themselves in the state of Nature, in respect of him, whom they find
to be so; and so to take care as soon as they can, to have that Safety and Security in Civil Society, for which it was first instituted, and
for which only they entered into it. (Locke, 2000, p. 329 – 2T, § 94)
Como será visto adiante, enquanto, para Hobbes, a transição do estado de natureza
para o estado civil se dá para que os homens iniciem uma experiência com o poder político, para
Locke, essa mesma transição se dá em busca de algo bem mais singelo: trata-se apenas de buscar um
juiz imparcial que consiga exercer, com equidistância das partes, um poder político existente por
natureza, o poder de executar a lei fundamental da natureza.

Ditas essas coisas sobre Hobbes, é possível adentrar o pensamento de John Locke,
que usará o mesmo ponto de partida contra-aristotélico, ou seja, a mesma premissa hobbesiana de
que os homens são iguais, para refutar não só as idéias paternalistas de Filmer, mas também o
contratualismo absolutista do próprio Hobbes.27 No fim da contas, pode-se dizer que estes dois
ingleses são como as duas faces de uma mesma moeda, causando espécie o fato de Locke partir de
concepções hobbesianas, para, ao final, estabelecer uma sua verdadeira antítese:

Nunca se insistirá demais na raiz hobbesiana de Locke, porque o Locke maduro representa, em certo sentido, a
antítese dessa posição, isto é, defende a tese de que o indivíduo não transfere ao soberano toda a sua liberdade
natural. Portanto, o pacto comum não atribui ao soberano o direito de guardar a autoridade e o direito natural
dos indivíduos singulares. (Bobbio, 1997, p. 102)

27
Uma menção específica de Locke a Aristóteles pode ser colhida na passagem que critica a idéia de que os homens racionais seriam
apenas aqueles aptos à compreensão de silogismos: “If syllogism must be taken for the only proper instrument of reason and means of
Knowledge, it will follow that before Aristotle there was not one Man who could know anything by Reason; and since the invention of
Syllogisms, there is not one of Tem thousand that doth.” (Locke, 1979, p. 671).

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