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(A Handful of Promises)
Jeanne Savery
Julia n° 1490
Inglaterra, 1860
Isabel Marchand tem vários motivos para querer se casar com Jeremy Quinn, o
marquês de Pearl, e um deles é obter a custódia de seus sobrinhos órfãos. Não
importa que Jeremy tenha passado os últimos dois anos num presídio e que não tenha
respondido às suas cartas. O que importa é a confiança que ela anseia por conquistar
e o amor apaixonado que sempre sentiu por aquele homem e que deseja partilhar com
ele...
Assim que é libertado, Jeremy é informado de que há uma mulher à sua espera, para
desposá-lo, e fica intrigado ao se deparar com a ex-noiva. Por que Isabel quer se casar
com ele agora? Jeremy não tem resposta para essa pergunta, assim como não tem
idéia de quem arquitetou o esquema cruel que resultou em sua prisão. Apesar disso, é
difícil pensar em vingança quando tudo o que ele deseja são os doces beijos de
Isabel...
Querida leitora.
Vítima de uma conspiração, Jeremy Quinn é levado preso, deixando para trás sua noiva, Isabel
Marchand, e uma vida de felicidade.
Libertado anos depois, Jeremy está determinado a trilhar caminhos desconhecidos para
descobrir o responsável por sua prisão e a reencontrar seu grande amor.
Acompanhe a trajetória de Jeremy e Isabel nesta envolvente rede de intrigas!
Leonice Pomponio
Editora
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.
Proibida a reprodução, total ou parcial, desta publicação, seja qual for o meio, eletrônico ou mecânico, sem a permissão expressa
da Editora Nova Cultural Ltda.
EDITORA
Leonice Pomponio
ASSISTENTE EDITORIAL
Patrícia Chaves Silvia Moreira
EDIÇÃO/TEXTO
Tradução: Dorothy Sobhie
Revisão: Miriam Rachel Ansarah
ARTE
Mônica Maldonado
ILUSTRAÇÃO
Thomas Schlück
MARKETING/COMERCIAL
Silvia Campos
PRODUÇÃO GRÁFICA
Sônia Sassi
Isabel deveria ter deixado Max na cama. Mas, depois do perturbador encontro com
Quinn, precisava do calor da criança. Aninhou-se ao corpinho do sobrinho, enquanto
tentava se acalmar.
Jeremy estava tão amargo! Estremeceu ao pensar nele, como fizera inúmeras
vezes, com ele ainda preso em uma cela úmida e escura. Winston havia lhe assegurado
que Quinn nunca seria negligenciado; como nobre, seria cuidado de forma apropriada.
Mas não fora assim. Os maiores receios de Isabel tinham se confirmado. Por que outra
razão Quinn mudara tanto? O que teria acontecido com as inúmeras cartas que havia lhe
enviado? Não tinham realmente chegado a ele?
Isabel passou a mão no rosto de Max e ouviu a respiração pausada e tranqüila,
sedado por sua inocência. Ela precisava agüentar até o dia seguinte. Casada, Robin e Max
estariam salvos, e o medo de perdê-los, afastado. Aí, teria tempo de lidar com Quinn e,
quem sabe... lhe reconquistar o coração.
Quinn viu lugares que tinha esquecido, desde as docas de Londres até a mais
espetacular vista da Catedral de St. James. Quando voltou à sua nova residência,
negociara seu colete por uma calça e uma camisa usadas; o cronômetro de ouro, ganho de
Winston, por um pastel de peixe. Depois de andar quilômetros e da cerveja que havia
tomado com o pastel, dormir não seria problema.
Chegou em casa agradecido ao mordomo que deixara acesa a luz sobre a porta
destrancada. Afinal de contas, era quase meia-noite.
Quinn entrou. A casa estava quieta e escura, havia apenas um candelabro aceso.
Fechou a porta e viu o mordomo à sua frente.
— Boa noite — ele disse.
— Boa noite, milorde.
— Esperava por mim?
— Ordens de milady. Agora apagarei a luz e trancarei a porta.
No andar superior, Quinn passou pela porta do quarto de Isabel e parou por um
segundo, lembrando-se do cardápio para o qual ela lhe pedira ajuda.
Tinha perdido o jantar. Isabel estaria irritada? Mas fora franco ao dizer que não o
incluísse na vida dela.
Seguiu para o próprio quarto e entrou. O fogo da lareira mantinha o aposento
aquecido e iluminado. Gostaria de saber se fora por recomendação de Isabel. Se fosse, ela
tinha mais certeza da volta dele do que ele próprio. Sentiu-se cansado e sentou-se na
beirada da cama para tirar as botas brilhantes, que não combinavam com o traje surrado.
Havia tentado negociá-las também por sapatos menos extravagantes, mas não encontrara
nada do seu tamanho.
Jogou-as sobre o tapete do quarto. Em seguida, levantou-se, tirou a camisa e
dirigiu-se ao banheiro, onde encontrou água fresca em uma bacia, sabonete, pijama e um
roupão.
Tirou a calça e esfregou a pele. Na noite passada, na casa de Winston, tinha
tomado um longo banho e, naquela manhã, antes de se vestir, tomara outro. Mas ainda
sentia como se carregasse toda a sujeira da prisão.
Estremeceu com a água fria, vestiu o roupão preto de seda e voltou ao quarto. Foi
até a lareira para se sentar ao pé do fogo, quando viu Isabel adormecida na poltrona, os
pés descalços apoiados em um banquinho; e a camisola e o roupão aberto exibiam os
tornozelos esbeltos. Ergueu a vista, a cabeça da jovem estava apoiada em um dos braços.
Quinn olhou para o rosto da esposa com atenção. Os cabelos longos estavam
presos, mas fios haviam se soltado sobre os ombros. Isabel parecia pálida e frágil. Ele foi
tomado pelo desejo de acariciar cada região desnuda do corpo dela para lhe sentir a
textura da pele. Então, ergueu-a nos braços e a carregou para a cama.
— Isabel — ele murmurou, com voz rouca.
Ela abriu os olhos e o fitou, os belos olhos verdes sombrios. Olhou ao redor e
sentou-se, apoiando os pés no chão.
— Você voltou.
— Parece que sabia que eu voltaria.
— Estava começando a duvidar.
— Eu tampouco tinha certeza.
Isabel começou a se levantar, mas ele lhe segurou o braço. Sabia que estava sendo
tolo, porém, não queria que ela se fosse. Ainda não.
— Por que me esperou?
Isabel o fitou.
— Precisa perguntar?
— Sim.
Os olhos de Isabel brilharam.
— Eu queria estar aqui quando voltasse. Para lhe dizer como é imbecil.
Quinn endireitou o corpo.
— Você decepcionou todo o pessoal esta noite.
— Não sou responsável por planos com os quais não concordei.
Ela caminhou até a poltrona. Dessa vez, ele não tentou impedi-la.
— Aceitou ser meu marido.
— Com o propósito de salvar nossos pescoços.
—Entretanto, existem certas situações inerentes a essa posição.
— Não tenho nada a ver com elas. Esqueceu-se de que evito as responsabilidades
da minha herança? Em que esse casamento vergonhoso altera isso?
— Este casamento não é vergonhoso. — Ela franziu o cenho. — E não pode evitar
seus deveres.
Quinn sentiu sua resolução começar a fraquejar. Isabel parecia tão frágil, de pé
perto dele, vestindo um roupão de renda branco. O perfume de lilás que emanava de
Isabel, o calor do fogo e o silêncio começaram a lhe minar as forças e ele desejou tomá-la
nos braços. Com determinação, deu um passo atrás para se conter.
— Não quero que este casamento interfira na minha liberdade — Quinn afirmou.
Ela corou.
— Não teria essa liberdade se...
— Se você não tivesse me libertado?
— Não era isso que eu ia dizer. — Isabel ergueu o queixo em desafio.
— Oh, mas era próximo demais. Se não necessitasse me libertar, eu ainda estaria
lá, não estaria?
— Realmente pensa assim? — perguntou, perplexa.
— Foram coincidências demais, minha querida. — Quinn lhe deu as costas. — Vá
dormir, Isabel.
O silêncio que se seguiu fez com que ele pensasse que a esposa saíra sem que
tivesse percebido.
— Sim, acho que vou — ela sussurrou, por fim.
Isabel atravessou o quarto, dirigindo-se ao outro aposento. Entrou e fechou a
porta.
Quinn realmente acreditava que a única razão para tê-lo libertado era por
necessitar de um marido?, lady Marchand pensava, encostada à porta de seu quarto.
Deus do céu, como chegara a uma conclusão tão ridícula? Precisava conversar
com Winston. Por certo ele seria capaz de explicar a Quinn quanto tempo haviam lutado
para libertá-lo.
Mas estavam no meio da noite. A noite do casamento.
Por que Quinn tinha tão pouca confiança nela? Isabel olhou para a porta que os
separava. O que Quinn faria se ela voltasse ao quarto dele? Não suportaria ser rejeitada
mais uma vez. Mas, ele a rejeitaria, caso se aproximasse dele como uma mulher procura
um homem?
Poderia reconquistá-lo? Fazê-lo perceber que não o abandonara na prisão? Que
havia tentado libertá-lo durante todos os dias da vida dela?
Isabel pôs a mão na maçaneta e a girou. Então abriu a porta que a separava do
marido. Tentou deixar de lado qualquer pensamento negativo e procurou se lembrar de
que aquele era o momento com que sonhara durante tanto tempo. Quinn estava ali.
Finalmente. Não podia desperdiçar nenhum minuto.
— Jeremy? — ela o chamou.
Capítulo II
Seu nome foi pronunciado em um sussurro? Quinn só teve certeza de que ouvira
bem quando se virou e deparou com Isabel à porta.
Envolta pela penumbra do quarto, ela parecia etérea. Um anjo que tinha vindo
resgatá-lo. Se isso ao menos fosse verdade...
Quieto, ele ergueu-se da cadeira e se aproximou dela.
Isabel havia voltado. E ele desejava o seu calor desesperadamente. Apesar das
diferenças e queixas, não podia rejeitá-la naquele momento.
— Jeremy... — ela disse mais uma vez. — Eu...
Quinn ergueu os dedos e tocou-lhe os lábios. Estava linda. E olhava para ele, cheia
de esperança.
— Isso é loucura, Isabel.
— Não. Não é...
Por um instante, ele quase acreditou. Queria muito acreditar.
— Você me quer quando nada tenho para oferecer, a não ser ódio dentro de mim?
— Quero o homem que conheci, com o qual me comprometi anos atrás.
— Aquele homem está morto.
— Não acredito. — Ela ergueu o queixo para mostrar segurança.
Tais palavras eram tudo que Quinn necessitava para tomá-la nos braços. Fitou os
olhos de Isabel e os viu se dilatarem. Seria choque? Medo, talvez?
— O homem que conheceu a seduziria com palavras gentis e ternura. Se ficar, o
homem que está diante de você tomará o que está oferecendo com fome e avidez.
— Mesmo assim, ficarei — Isabel sussurrou.
Notando que ela engolia em seco, Quinn hesitou, antes de dizer:
— Então é uma grande tola. Como eu. — Puxou-a contra si e a beijou.
Foi um beijo feroz, brutal e intenso. Queria o corpo de Isabel, seu gosto, seu
cheiro.
O gemido que ela soltou o fez perceber que estava sendo brusco demais. E
precisou de toda sua força de vontade para afrouxar o abraço. Levou as mãos aos ombros
da esposa e, depois de lhe acariciar os braços, fitou-a.
— Desculpe-me — murmurou, trêmulo. — Eu a avisei...
— Shhh — Isabel sussurrou, lançando os braços ao redor do pescoço dele. — Sei
que não me machucará.
— Isabel — Quinn gemeu.
— Faça amor comigo, Jeremy. Por favor.
Aquelas palavras lhe rasgaram o coração. Sentia a respiração ofegante, o sangue
fervendo, mas mesmo assim deu um passo para trás, atordoado.
— Eu... disse alguma coisa errada? — ela perguntou, insegura, deixando cair os
braços ao longo do corpo.
Se Quinn ainda tivesse bons sentimentos dentro dele, teria lhe assegurado que
fizera tudo certo. Seu corpo latejando era prova. Mas ele estava magoado demais para dar
a segurança que Isabel desejava.
Quinn estava morto por dentro. Morto demais para lhe oferecer qualquer coisa.
Morto demais para fazer amor com Isabel.
— É uma mulher sedutora — ele disse, dando mais um passo atrás. — No entanto,
fazer amor não faz parte do nosso acordo. Um coito rápido é tudo que posso oferecer.
Isabel olhou para Quinn, mortalmente ferida. A expressão se endurecera e os olhos
se estreitaram antes de ela se virar e pôr-se a caminhar. Entrou no próprio quarto e fechou
a porta. Naquele momento, Quinn soube que havia destruído qualquer afeição que Isabel
ainda sentia por ele. Mesmo assim, não impediu que ela se fosse.
Quinn fechou os olhos à cor rosada do amanhecer que surgia na janela. E tentou
não ouvir os sons da casa despertando: o abrir e fechar de portas, o ruído de uma das
criadas no corredor.
O que não conseguia evitar era o pensamento do que havia acontecido entre Isabel
e ele, na noite anterior. Permanecera acordado metade da noite. Frustrado, afastou as
cobertas e decidiu se levantar para enfrentar mais um dia. Porém, não sabia para quê se
levantar. O que tinha para fazer?
A uma batida na porta, ele respondeu:
— Quem é?
— Benns, milorde. Trouxe o cartão de visita de sir Winston Hill.
— Entre.
Benns obedeceu. Carregava uma bandeja com chá e pães, que depositou sobre a
mesa-de-cabeceira. E entregou o cartão de Winston.
— Sir Winston Hill gostaria de uma entrevista. Além disso, lady Isabel pediu-me
para oferecer ao senhor uma seleção de trajes que pertenceram ao cunhado dela, até que
os seus estejam prontos, para que possa receber seu convidado.
Quinn não tinha certeza de querer receber Winston. Mas acabou aceitando, por
achar que seria melhor do que ficar mergulhado nos próprios pensamentos.
Meia hora depois, entrou na sala de visitas, vestido com a roupa emprestada do
cunhado de Isabel: calça cinza, camisa branca e as próprias botas pretas.
Winston levantou-se para cumprimentá-lo.
— Rapaz, está com ótima aparência. A vida de casado lhe fez bem.
Jeremy apenas esboçou um sorriso.
— Eu queria lhe dar tempo para se adaptar à nova vida antes de vir visitá-lo —
Winston continuou. — Mas, infelizmente, todos na Cozinha estão tão excitados com o
seu retorno que me pediram para buscá-lo para uma visita.
A primeira resposta que veio à mente de Quinn foi um sonoro "não". O velho
Jeremy estava morto. A pessoa em que ele se transformara não tinha nada a ver com
filantropia. A mesma que o tinha atirado a uma vida de sofrimento.
Mesmo assim, relutou. Estava curioso. Winston contara como o campo de ação
deles havia aumentado. E, como Quinn se transformara em uma pessoa pobre, seria
benéfico entrar em contato com a nova classe social.
— Conversei com lady Isabel enquanto esperava o senhor — Winston prosseguiu.
— Ela me informou de que têm compromisso para esta noite, de modo que empenhei
minha palavra que o senhor voltará a tempo. Isto é, se concordar em me acompanhar à
Cozinha.
Quinn ergueu os ombros.
— Não tenho nada para fazer. Por que não?
Winston sorriu.
— Ótimo, rapaz. Então, vamos. Ou deseja informar lady Isabel a respeito de
nossos planos?
Não, Quinn não queria. Quanto menos contato com Isabel, melhor. Mas a cortesia
estava começando a atingi-lo de novo. Ou seria o fascínio que a jovem exercia sobre ele?
— Ela me disse que estaria no solarium — Winston informou.
Quinn notou que o amigo tinha percebido sua indecisão. Não apreciava ser
desvendado com tanta facilidade.
— Voltarei em um minuto — Quinn falou, por fim.
No vestíbulo, perguntou a Benns onde ficava o solarium. Quando o aroma das
flores chegou até ele, parou à porta e viu Isabel debruçada sobre um arbusto florido. Ela
vestia um traje diurno sob um avental branco, sujo de terra. O rosto e a ponta do nariz
também tinham terra. Ela parecia adorável.
Quinn retesou o corpo.
— Winston disse-me que falou com ele.
Isabel se assustou e olhou para Quinn.
— Por que tem que ser tão rude? Uma batida na porta ou um bom-dia seria mais
educado.
Ele vacilou. Sabia que a esposa estava certa.
— Teria preferido que eu saísse sem avisar? — Quinn perguntou, sem sentir
remorso.
— Vai sair? — Isabel parecia alarmada.
— Sim.
— E voltará?
— Winston lhe assegurou que voltarei.
— E você o que me diz? — Ela prendeu a respiração.
— Voltarei. — Ele notou que Isabel relaxou e começou a tirar as luvas.
— Oh, está bem. Obrigada por avisar-me. — Isabel hesitou. — Por favor,
cumprimente Anna por mim, se a vir.
Quinn não queria perguntar quem era Anna, apenas meneou a cabeça
afirmativamente. Então, sentindo que havia sido dispensado ao vê-la pegar o balde com
as ferramentas de jardinagem e se dirigir a outro arbusto, retirou-se.
Isabel suspirou, aliviada. Estava cansada das emoções confusas que ele lhe
despertava.
O marido a humilhara na noite passada. Droga! Por que ele não podia pelo menos
tentar superar tanta amargura?
Isabel havia perguntado a Winston o motivo de Quinn afirmar que não recebera
nenhuma carta dela enquanto tinha estado preso. Winston lhe assegurara não ter a menor
idéia, prometendo averiguar.
Ela queria, mais do que tudo, mostrar as cartas a Jeremy para lhe provar que tinha
sido fiel. Queria que ele acreditasse que ela tivera apenas intenções nobres e que, vendo
as correspondências, percebesse que o amava e que nunca o havia magoado
intencionalmente. Então, ele se daria conta de que também a amava e o antigo Quinn
ressurgiria.
Porém, a parte menos desprendida de Isabel desejava que ele lhe pedisse perdão
por não ter confiado nela.
Cortando a ponta do caule de uma rosa, ela suspirou. Não pretendia que seu amor
por Quinn morresse, mas não poderia viver ao lado dele, sabendo que não a queria.
Quinn parou na frente da Cozinha de Rachel. A fachada não era pior do que a das
outras lojas no bairro de East End. Talvez fosse até um pouco melhor. Em uma placa de
fundo branco, com letras pretas, pendurada sobre a porta dupla da entrada, lia-se:
"Cozinha de Rachel". E, na porta, estavam grafadas as seguintes palavras:
Alimento para o estômago,
Calor para o corpo,
Repouso para a fadiga,
A todos que entrarem por estas portas.
Quinn desceu a rua sem olhar para trás. Quanto mais pensava, menos vontade
tinha de voltar para casa. Tendo ainda algum tempo antes do compromisso da noite com
Isabel, decidiu ir até o cais. Sentia um forte desejo de estar com estranhos. Pessoas que
não o conheciam e que nada esperavam dele. Um pouco de cerveja também parecia
convidativo. E havia muitas tavernas para escolher.
Continuou a caminhar, ignorando o olhar que lhe era lançado por um imigrante
chinês que varria a calçada e vários moleques que brincavam na rua. Finalmente, deixou
o esquálido bairro para trás, aventurando-se a um lugar mais agradável, perto da ponte
Knight. A rua larga estava repleta de carruagens, carroças e comerciantes. Ali, entretanto,
os olhares que lhe lançavam eram de desprezo. Aristocratas nunca andavam a pé.
Ao avistar um coche aberto, vindo na sua direção com três homens rindo, Quinn
esperou que fossem lhe dizer alguma pilhéria. Estava ansioso para entrar em uma rixa.
Então, reconheceu Darius Martin, o visconde de Lincolnshire. Martin disse alguma coisa
para os outros e todos riram. O homem era brilhante, um farrista de primeira ordem e um
notório jogador.
Naquele exato momento, Martin olhou para Quinn e abriu a boca:
— Kendrick? É o senhor? — perguntou, fazendo o cocheiro parar o veículo de
repente, quase o derrubando.
— Martin — Quinn respondeu. — Como vai?
— Por Deus, é o senhor, mesmo!
Martin era cerca de dois anos mais novo que Quinn e muito bonito. Pulou do
veículo com agilidade e se aproximou de Quinn.
— Como está? Por onde tem andado? É bom vê-lo.
— Faz tanto tempo... — Quinn murmurou.
— Não me diga que apenas não tivemos nossos caminhos cruzados?
— Não. Deixei a cidade por ocasião da morte do meu pai e acabei de regressar.
Martin pegou Quinn pelo braço e o conduziu até seus amigos.
— Este é o irmão de John — Martin o apresentou. Todos se cumprimentaram.
— John não tinha um irmão em Marshalsea? — um dos rapazes perguntou.
— Realmente, ouvimos rumores, Quinn — Martin acrescentou. Quinn sentiu o
sangue ferver. Seria inútil esconder a verdade, mas, naquele momento, era melhor achar
uma alternativa.
— Trata-se de boato — ele respondeu. — Alguém começou essa brincadeira.
Surpreende-me que esse rumor tenha perdurado. Estive em Yorkshire, em uma das
minhas propriedades.
— Então, seja bem-vindo. — Martin lhe deu um tapinha nas costas. — Estamos a
caminho da casa de lady Marietta Dowd, para uma festa nos jardins. Junte-se a nós.
Quinn hesitou.
— Vamos, homem. — Martin sorriu, revelando por quê as mulheres se
apaixonavam por ele. — Está sem coche; sendo assim, não ia a nenhum lugar importante.
Além disso, precisamos de outro cavalheiro para o jogo de croquet. E temos que
comemorar o seu retorno. — Enquanto falava, empurrava Quinn em direção ao coche. —
Não vai decepcionar um velho amigo, vai?
Quinn sabia que deveria declinar, mas o bom humor de Martin era contagioso. A
reunião também serviria de precursora para outras recepções e para que se inteirasse de
como seria recebido na cidade. Acabou concordando e subiu no coche. Um dos rapazes
pôs uma pequena garrafa de uísque na mão dele. Devolveu o frasco de bebida sem abri-lo
e perguntou a Martin:
— John também irá à festa?
— Seu irmão? — Martin indagou, surpreso. — Não. A não ser que retorne hoje.
Ele está em Paris, perseguindo lady Patience Webster. Não sabia?
— Ouvi dizer que poderá voltar logo. — Quinn recostou-se no banco de couro.
— Creio que não. Patience está se divertindo à custa dele.
O coche virou em uma esquina, na direção de Denmark Hill e da Mansão Dowd.
Lorde Dowd, conde de Pimberly, era convidado freqüente da Mansão Pearl. Será que o
velho conde sabia da verdade? Mas era tarde para se arrepender de ter aceitado o convite
do amigo. O coche já entrava nos jardins da mansão, onde diversas pessoas caminhavam
e conversavam alegremente. Quando viram o coche de Martin, muitos se apressaram para
cumprimentá-los.
Quinn notou que a maioria dos rapazes tinha a sua idade ou um pouco menos. As
moças eram mais jovens, ainda debutantes, todas vestidas de azul, verde e amarelo,
segurando sombrinhas para proteger a pele delicada do sol.
— Ei, Martin! — gritou uma voz masculina. — Está atrasado.
— Às vezes o dever nos chama, companheiro — Martin respondeu, rindo.
Todos riram também e o coche parou. Martin desceu como um rei.
— Quem é ele? — uma voz feminina perguntou.
— É lorde Kendrick! — disse outra.
— Acertou. — Martin se antecipou a Quinn. — Direto de Marshalsea.
Todos riram de novo, e Quinn conseguiu sorrir e fazer uma reverência.
— Direto de Yorkshire, Martin. Nada tão romântico como Marshalsea.
— Prometi a ele muita diversão se viesse conosco. Devem recebê-lo bem.
Seguido pelos dois amigos, Martin foi cercado pelas várias admiradoras, enquanto
caminhava pelo belo gramado dos jardins.
— Então, vai enfrentar Darius no jogo de croquet? — uma jovem questionou
Jeremy.
Ele a olhou. Era alta, magra, não devia ter mais de dezoito anos, os cabelos ruivos
iam até a cintura, e estava muito sedutora no traje verde-claro.
Jeremy passou a mão na nuca, satisfeito pelo grupo ter se dispersado, mas ainda
inseguro sobre o que pensar a respeito da garota.
— Creio que vou tentar — ele respondeu.
Ela sorriu, os olhos verdes brilhantes.
— Então, vou lhe trazer um copo de limonada. Tenho certeza de que está com
sede. O dia está quente. — A jovem se abanou com a mão enluvada.
— Lady Marietta... necessitam da sua presença na mesa de refrescos!
Quinn olhou, sobre os ombros da garota, para um rapaz que estava claramente
enfurecido. Tinha as mãos nos quadris, os cabelos penteados para trás e o rosto
avermelhado.
— Oh, Larson, seja bonzinho e diga a Clair para fazer isso, está bem?
— Mas Marietta...
Ela lhe acenou e voltou a fitar Quinn.
— Ele pensa estar apaixonado por mim — a moça sussurrou.
— Talvez deva dar-lhe atenção.
— Não. — Ela olhava nos olhos de Quinn. — Prefiro homens mais velhos. São
mais misteriosos.
— Ah, entendo.
— Entende, mesmo? — Marietta sorria, e Quinn percebeu que a moça flertava
com ele. — Vai ficar nesse coche a tarde toda?
— Acho que não. — Ele pulou do veículo.
A moça não perdia tempo, e Quinn logo sentiu seu perfume. Era forte, intoxicante.
Muito diferente da suave fragrância de lilás de Isabel.
— Lady Marietta Dowd, presumo?
— Ouvi falar a respeito do irmão de John. Um herdeiro muito malcriado, não?
Quinn deu de ombros.
— Jeremy! — Martin o chamou. — Venha.
— Oh. — Marietta fez beicinho. — Fomos interrompidos. Eu tinha esperança de
que Daríus o tivesse esquecido.
— É mesmo?
— Caminhar comigo seria mais prazeroso, não acha?
— Seria mesmo?
— Precisa perguntar? — Ela olhou para ele, girando a sombrinha.
— Duvido que esteja preparada para isso.
— Ficaria surpreso se soubesse como estou preparada — a dama sussurrou,
achegando-se a ele.
As intenções de Marietta eram claras e como seu casamento era tão falso como os
lábios vermelhos dela, Quinn não viu motivo para evitá-la.
Marietta permaneceu na frente dele, jovem, fresca e fascinante.
Logo, Quinn sentiu-se arrependido. A moça parecia adorável, mas não era Isabel.
— Sou convidado de Martin. — Ele deu de ombros. —Talvez em outra ocasião.
— Tem certeza? — Ela parou de rodar a sombrinha.
— Tenho.
— Pior para o senhor.
— Posso assegurar-lhe de que já estou arrependido.
— Avise-me se houver outra oportunidade.
Eram mais de seis horas quando Quinn voltou para casa. Não tinha intenção de
chegar tão tarde, mas o tempo passara rápido. Todos foram muito simpáticos no croquet,
um jogo agradável, como havia dito Martin. Mas, durante um intervalo, as perguntas
começaram a surgir. E Larson Hartford, o protetor de Marietta, desafiou-o para um jogo
de palavras. O homem foi logo colocado no devido lugar, porém, o dano estava feito.
Alguns dos participantes da festa lançaram olhares de desprezo a Quinn. Martin lhe
ofereceu carona no coche para voltar para casa. Mas Quinn preferiu caminhar.
Acabou se atrasando mais do que desejava. Não que devesse agir como um marido
responsável. Mesmo assim, Benns olhou para ele, desgostoso.
— Benns — Quinn disse, ao entrar em casa e se dirigir à escada.
Ao subir os primeiros degraus, parou, sentindo a presença das crianças. Viu Max
sentado no cimo da escada, a cabeça entre as mãos.
— Max? — ele perguntou, subindo mais alguns degraus. — Alguma coisa o está
preocupando?
— Não, senhor — o garoto resmungou. Quinn não acreditou.
— Brigou com seu irmão? — Sentou-se ao lado do menino, que meneou a cabeça,
em negativa. — A srta. Griggs ralhou com você?
— Não.
— Então, o que aconteceu?
— O senhor quer mesmo saber? — O menino ergueu a cabeça.
— Claro que quero.
— O senhor fez tia Isabel chorar.
— O quê?
— O senhor a fez chorar. Fui vê-la, mas ela não percebeu que eu tinha chegado e a
ouvi dizer: "Droga, Jeremy!", e atirou alguma coisa na parede do quarto. Depois, chorou.
O senhor não nos quer, não é?
Quinn engoliu em seco.
— Tia Isabel nos disse que um novo titio a ajudaria a nos criar. Como papai e
mamãe. Para não precisarmos morar com o vovô. — Max respirou fundo. — O senhor
deve ser o novo titio, mas nunca está aqui. Não deve querer a gente.
— Max, eu...
— Não quer ser meu pai?
Quinn ergueu-se e passou as mãos pelos cabelos. Droga! Como entrara em uma
situação daquelas?
— Onde estava? — Quinn ouviu Isabel perguntar, desafiante. — Disse que
voltaria logo. Esqueceu-se de que temos um importante compromisso esta noite?
Depois do dia que havia passado, o ataque de Isabel era tudo de que ele precisava
para ficar na defensiva. Ela não tinha o direito de questioná-lo ou de fazer exigências.
Nem de chorar na frente de Max.
Deveria ter ficado com Marietta Dowd!
— Aonde vou e como passo meu tempo são problemas meus, Isabel. Não quero
ser indagado toda vez que saio.
Max correu para a tia, sempre olhando para Quinn, e foi abraçado por ela.
— Você me garantiu que voltaria.
— E voltei.
Max pareceu assustar-se com o tom da voz de Quinn. Isabel resmungou:
— Temos que sair daqui a uma hora.
— Estarei pronto.
Dito isso, ele se afastou, com a imagem de Isabel e Max vívidas na mente.
Meia hora depois, Quinn entrou na sala de visitas, pronto para sair. Quase tinha
explodido em mil pedaços, depois de deixar a tia e o sobrinho. A prisão talvez fosse
preferível, aos problemas que sua libertação lhe causava. Os pobres na Cozinha de
Rachel o consideravam um santo. Max queria que ele representasse a figura de um pai e,
Isabel, de um marido. Não era nenhum dos dois e nunca seria.
No entanto, depois da cena transcorrida na escada, tinha mudado de idéia a
respeito de ser um marido exemplar. Naquela noite, faria o possível para ajudar Isabel a
manter a guarda dos sobrinhos. Não desejava ser a causa da ansiedade dela ou de Max.
Mas nunca permitiria que ela pensasse ter algum tipo de poder sobre ele. Tinha
deixado bem claro na noite anterior. No momento, não se importaria de ajudá-la no
encontro com o avô de Max e Robin. Depois, poderia partir. Sem remorso.
Foi até a garrafa de conhaque em uma mesa lateral, decidindo que talvez Winston
tivesse razão a respeito da bebida. Serviu-se de uma boa dose. O conhaque desceu pela
sua garganta suavemente. Foi como se despertasse de um longo sono. Da mesma maneira
como seu corpo havia reagido a Isabel na noite anterior. Os músculos se retesaram ao
lembrar-se da suavidade da pele dela. E, pela enésima vez naquele dia, afastou tal
pensamento de sua mente. Desejá-la era uma fraqueza que ele não podia ter.
Olhou ao redor.
— Boa noite, milorde.
— Benns — Quinn respondeu, ao virar-se e dar com o mordomo, que entrava na
sala.
— Perdoe-me por não ter percebido sua presença. Deixe-me preparar seu drinque.
Deseja mais alguma coisa?
Paz, Quinn queria dizer. Mas ficou quieto e entregou a taça ao mordomo.
— Não, obrigado. Estou esperando milady e os sobrinhos.
— Gostaria que eu trouxesse a carruagem? — Benns perguntou, fazendo uma
mesura.
A simples pergunta o tomou de surpresa. Devia ter pensando nisso. Entretanto,
fazia tempo que não desempenhava esse tipo de tarefa. Jeremy apoiou o cotovelo na
lareira e olhou para o homem.
— Sim. E do que mais eu deveria me lembrar?
— Não sei, milorde.
— Ora, vamos. Ambos sabemos que estou fora do meu elemento, mas não sou
cego nem surdo. Sua desaprovação e o desejo de trazer minhas inadequações à luz são
evidentes. Não me importo. O que mais estou esquecendo?
Benns ergueu o queixo, mas Quinn notou um brilho de aprovação nos olhos do
criado.
— Bolsa de água quente para os pés, milorde. Está frio e as crianças podem
precisar.
— Bolsas de água quente, é claro — Quinn concordou. — Providencie, então.
Chame também um outro criado para ir conosco. Não se pode facilitar, nas ruas de
Londres.
— Sim, milorde — Benns assentiu, o brilho dos olhos se intensificando. — E
talvez um pouco de chocolate quente para a volta. Alguma coisa para acalmar e ocupar os
meninos.
— Boa idéia, homem.
— Providenciarei suas ordens, milorde. — Estendeu a taça de conhaque a Quinn.
Após pegá-la, ele ergueu-a, como que saudando o mordomo, quando este se
preparava para sair da sala.
Ficando só, pôs-se a pensar nas coisas que não poderia mudar, como ele mesmo.
Nos momentos que não poderia controlar, como aquele com Max, na escada. E nos
sonhos que não conseguiria realizar. Ter Isabel de roupão branco de renda, por exemplo.
Não conseguia se esquecer da suavidade dela nem do perfume sedutor. Passara a
noite desejando-a. A Cozinha e a festa nos jardins o haviam distraído, mas não foram
suficientes para afastar Isabel do seu pensamento. Mesmo assim, ela o enlouquecia, com
suas exigências.
— Você se aprontou depressa — disse uma voz feminina.
Quinn ergueu a cabeça. Isabel estava parada à porta.
— Sim, como prometi. Podemos ir?
Ela continuou parada à porta, maravilhosa no vestido azul de organdi. A pele era
muito clara em contraste com os cabelos quase negros, presos no alto da cabeça por
pequenos anéis. E o odor de lilás impregnou a sala. Quinn pensou em Marietta e concluiu
que preferia a sutileza ao excesso de poder.
— A srta. Griggs trará os meninos em alguns minutos. Podemos ensaiar nossa
história no caminho. Eles adoram passear no Hyde Park, portanto, estou certa de que não
nos perturbarão.
Passear no Hyde Park era a última coisa que ele queria, muito menos com Isabel e
os garotos. Concordara em ajudá-la naquela noite, para obter a custódia dos sobrinhos,
contudo, manter-se afastado da esposa ainda era imperativo. Não queria que ela se
iludisse a respeito de um possível futuro entre eles.
— Não desejo ficar confinado em uma carruagem ao lado de duas crianças
inquietas e a babá. Creio que não seria bom sermos vistos juntos. Fofocas poderão advir.
Percebeu que Isabel havia ficado decepcionada e acrescentou:
— Mas prefiro a carruagem a ficar aqui sentado.
— Muito bem. Apressarei a srta. Griggs.
— Benns já foi buscar a carruagem, bem como bolsas de água quente e chocolate
para a volta — ele a informou.
— Você pensou em todas essas coisas? — Isabel perguntou ao virar-se para
encará-lo.
— É impressionante como se pode recordar certos detalhes.
— E como se pode esquecer, também — ela disse, antes de sair da sala.
Quando o relógio bateu sete horas, todos saíram de casa para tomar a carruagem.
Mas Quinn preferia a solidão do seu quarto, novamente.
Era evidente que Max se esquecera da conversa que haviam tido na escada.
Levava, nas mãos, vários soldadinhos de madeira pintados de vermelho, as cores do
exército da rainha. Robin, sentado ao lado de Quinn, detalhava o gosto do avô por
cavalos de corrida.
— Mostrarei ao senhor a égua favorita dele — prometeu Robin.
— Tenho mais cem soldados no meu quarto — Max gritou ao mesmo tempo.
— Sr. Robin, sr. Max, comportem-se ou se sentarão ao meu lado — disse a srta.
Griggs.
Os meninos se acalmaram para permanecer ao lado de Quinn, que garantiu a
Isabel não se importar com a conversa dos garotos. Não queria passar a imagem de uma
pessoa desagradável. Até gostava da vivacidade dos meninos.
Max achegou-se a Quinn e lhe ofereceu um soldadinho.
— Podemos fingir que estão no meio de uma batalha.
— Talvez fosse melhor você brincar com Robin—Isabel propôs a Max do banco
oposto, onde se sentara ao lado da srta. Griggs.
Quinn notou que ela parecia tensa, como por ocasião da conversa com Max, na
escada. Ele não a tinha tranqüilizado, dizendo que desempenharia bem o seu papel de
marido.
Isabel não merecia, mas, mesmo assim, não apreciava vê-la tão nervosa. Ela
precisava estar calma para enfrentar a situação.
— Pretendo cumprir minhas obrigações esta noite — ele disse, esperando ser
ouvido apenas por ela. — Não precisa ficar tão ansiosa.
Isabel aquiesceu, demonstrando confiança nele. Aquilo o deixou um tanto
apreensivo. Não queria que o interpretasse erroneamente.
— Mansão Dunton! — anunciou o cocheiro, minutos depois.
Todos ficaram quietos dentro da carruagem, inclusive Max e Robin. Isabel
suspirou e até a srta. Griggs parecia mais reservada do que o habitual.
Quinn lembrou-se dos comentários de Isabel a respeito de Barnabus Ellerby, mas
apenas naquele momento teve consciência de que o homem deveria realmente ser um
grosseirão. Observou Robin pegar a mão do irmão. Desceram da carruagem e
caminharam juntos pelas pedras que levavam à bela mansão do século XIV.
Quinn ofereceu o braço à Isabel. Diante da hesitação dela, ele disse:
— Parece apreensiva por estar prestes a entrar na mansão ou pela minha presença
ao seu lado? Asseguro-lhe de que ainda me lembro de como age um cavalheiro, Isabel.
Ela franziu o cenho e deu o braço a ele.
Quando se tocaram, Quinn foi percorrido por um longo arrepio. Tinha se
preparado para aquela situação, mas não para sentir o corpo de Isabel tão próximo ao
dele.
O casal seguiu os dois meninos, que já se encontravam no vestíbulo, conversando
com um senhor que deveria ser Ellerby.
O homem, de estatura média, tinha as mãos atrás das costas e o peito estufado.
Andava em círculos ao redor de Robin, inspecionando-lhe a aparência. O menino estava
parado e tenso. Quando ergueu o queixo de Robin com um dedo, para lhe corrigir a
postura, as grossas sobrancelhas grisalhas formaram um “V" sobre os olhos escuros e
severos.
— Mantenha-se ereto, Robin. Será de grande importância para você, quando
chegar a ocasião de exercer sua posição. É sinal de força e superioridade.
Ao lado de Robin, Max ergueu o próprio queixo.
Quinn sentiu as unhas de Isabel cravarem-se no braço dele. Olhou para ela,
notando a expressão constrita. Era óbvio que ela não gostara da aula de Ellerby. Mesmo
assim, fez-lhe uma mesura. Logicamente para afastar, de Robin, a atenção do avô.
— Milorde — ela cumprimentou o velho.
— Isabel — ele retribuiu a mesura.
— Robert, Maximillian e eu estamos felizes em vê-lo — ela continuou. —
Permita-me apresentar-lhe meu marido, Jeremy Quinn, lorde Kendrick, marquês de Pearl.
Quinn gostaria de corrigi-la. Ele não era mais o marquês. Porém, aquela não era
ocasião para fazê-lo.
— Marido? A senhora me disse na carta, mas confesso que não acreditei.
—Trouxe-lhe a certidão de casamento como prova. Assinada pelo bispo Marley.
Ellerby sorriu com menosprezo.
Quinn teve vontade de dar um soco na barriga do homem. Em vez disso, falou:
— Casamo-nos recentemente. — Sorriu para Isabel e acariciou-lhe o rosto. Então
continuou: — Esperei durante anos.
Isabel permaneceu quieta quando ele lhe beijou uma das faces. Ao olhar de novo
para Ellerby, Quinn enlaçou Isabel pela cintura, puxando-a para mais perto.
Sempre com o peito estufado, o sexagenário mediu Quinn, com os olhos. Os
meninos continuaram imóveis.
—Também fiquei feliz ao me casar com minha última esposa, Penélope. Por
algum tempo. Pouco tempo. Agora, ela descansa em paz na sepultura.
Isabel enfiou as unhas no braço de Quinn outra vez e Robin olhou para o avô,
desgostoso.
— Bem... — Isabel interveio. — Lorde Kendrick, este é o avô de Robert e
Maximillian, lorde Ellerby, conde de Dunton.
— Muito prazer, milorde. — Quinn fez uma mesura. — Entristece-me saber que
sua esposa é falecida. E é encorajador saber que o senhor cuidou dela até o fim.
Ellerby retribuiu a mesura.
— Sou eu quem precisa de cuidados — o conde respondeu, irritado.
Em seguida, fez um sinal para o mordomo os preceder em direção à sala de visitas.
Quinn notou que os meninos esperavam que ele dissesse mais alguma coisa ao
avô.
— Ele deve ter ficado terrivelmente triste para precisar de cuidados — Quinn
sussurrou.
Robin e Max concordaram e continuaram a caminhar atrás do conde. Quinn
endireitou as costas e olhou para Isabel. Os olhos dela brilhavam. Provavelmente por ver
que ele ia ajudá-la a conseguir a guarda dos sobrinhos.
— Está sendo generoso — ela murmurou.
Quinn deu de ombros, constrangido pelo elogio. Mas manteve o passo lento ao
conduzi-la até a sala de visitas.
— Ele é agradável, não é? — Quinn disse em um tom de voz que apenas Isabel
podia ouvir.
— O conde não tem coração e é conhecido pelas explosões. — Isabel suspirou.
— Dê algum crédito a Max e Robin — ele aconselhou. — São meninos
inteligentes e saberão avaliar o avô.
Era a primeira vez que os dois entabulavam uma conversa desde a libertação de
Quinn. Na realidade, Isabel ouvia o ponto de vista dele com atenção.
Quinn sorriu. Um sorriso genuíno que valeu o esforço.
— Não acha que Ellerby faria muito mal aos garotos se viessem morar aqui? —
Isabel perguntou.
— Concordo — ele respondeu. — Mas não acho que Robin e Max o permitiriam.
— Kendrick — Ellerby chamou. — Ouvi dizer que esteve f ora da cidade por
algum tempo. Por onde andou? — O homem estava sentado em uma poltrona, perto da
lareira.
Robin e Max se acomodaram nas cadeiras ao lado do avô.
— Eu conhecia seu pai do Parlamento. Soube que ele faleceu. Fiquei surpreso pelo
fato de o senhor não ter ostentado o título dele, até agora.
Quinn pôs a mão nas costas de Isabel e a conduziu a um sofá, também próximo da
lareira. Soltou-a com relutância, mas ficou de pé, atrás dela, com a mão apoiada
protetoramente no seu ombro. Então deu atenção a Ellerby
— Eu estava fora quando meu pai morreu. Fui enviado a Yorkshire em uma
missão para ficar a par de minha herança.
— Homem inteligente! Não se pode aprender muita coisa daqui, não é mesmo? E
por que voltou?
— Para me casar com Isabel, é claro.
— Não estou certo de entender essa decisão. — O conde recostou-se na poltrona.
Aquelas palavras puseram Quinn em guarda. Ficou tenso, embora aparentasse
calma.
— Milorde está nos insultando? O que há para entender? Minha esposa é uma
linda mulher.
— Bah! — Ellerby exclamou. — Ela tem um nome insignificante. Sei de alguns
homens de sangue azul que escolhem pobres para se casar. O que me leva a questionar
seus motivos.
— Srta. Griggs. — Isabel quase pulou do sofá. Virou-se e viu a babá sentada em
uma cadeira à entrada da sala. — Por favor, leve Robin e Max daqui. Tenho certeza de
que eles gostariam de brincar. — Isabel olhou para os sobrinhos. — Robin, Max, por
favor, acompanhem a srta. Griggs.
Nenhuma das crianças discutiu. Ambos se levantaram, fizeram uma mesura ao avô
e acompanharam a babá. Isabel sentou-se de novo no sofá. Quinn notou que ela tremia e
sentou-se ao lado da esposa, tomando-lhe a mão.
— Poucas pessoas questionam meus motivos, Ellerby — ele disse, sabendo que
estava arriscando despertar a ira da esposa. Mas havia percebido que o conde o estava
desafiando para um jogo diferente.
Barnabus não admitiria que uma pessoa fraca criasse seus herdeiros. E Quinn não
iria permitir que ninguém, nem o homem que detinha o poder de decidir sobre a criação
de Robin e Max, o tratasse daquela maneira.
— Se o fizerem, arriscam-se muito. Acho que só tenho que responder a mim
mesmo. Contudo, como meus motivos são simples, posso lhe dizer que apenas desejo
viver em matrimônio com a mulher que amo e assisti-la na educação de seus amados
sobrinhos. Tenho riqueza suficiente e Isabel também possui bens. São muitos, para
mencioná-los aqui. Se está preocupado com a herança dos seus netos, fique tranqüilo, não
necessitamos nem desejamos os bens das crianças.
Lady Marchand mal podia respirar, admirada com as palavras de Quinn. Sabia
tratar-se de mentiras, usadas apenas para pacificar lorde Ellerby, porém, quando Quinn
lhe apertou a mão, Isabel desejou muito que fossem verdadeiras. Obrigou-se a espantar
aquele pensamento e ater-se às circunstâncias. Quinn estava apenas fazendo a parte dele
no acordo, para que ela pudesse manter a guarda dos sobrinhos.
— Milorde Ellerby — Isabel interveio. — Lorde Kendrick e eu nos conhecemos
desde a juventude. Era desejo de nossos pais que nos casássemos. Infelizmente, alguns
eventos impediram nossa união...
— Até há pouco — Quinn acrescentou ao ver que ela não conseguia continuar.
Isabel olhou para ele, admirando-lhe o brilho do olhar.
— Sim. É verdade — Isabel concordou. — O senhor pode ver como nos amamos?
— O que isso tem a ver com a guarda dos meus netos?
— Podemos cuidar de Robert e de Maximillian da mesma maneira. Eles terão
amor e afeição.
— Bah! — Ellerby exclamou novamente. — O que Robert precisa é de disciplina.
— Ele também a terá, posso lhe assegurar. — Quinn se manifestou. — Não sou
um homem de modos brandos.
— E o que acontecerá quando tiverem os próprios filhos? — Ellerby os desafiou.
— Meus herdeiros serão ignorados.
— Isso nunca acontecerá a Robin e Max! — Isabel exclamou, espantada. — Eles
são como nossos filhos.
— O jantar está servido, milorde — o mordomo anunciou, da porta.
Isabel suspirou, tentando se acalmar. A noite havia apenas começado e já se sentia
insegura.
— Venha, querida — Quinn disse, sorrindo para a esposa. — Estou com fome e
imagino que a cozinheira do conde seja soberba.
— Sim, claro — Ellerby concordou, levantando-se, todos seguindo o mordomo até
a sala de jantar.
— Não entre em pânico, Isabel — Quinn falou em voz baixa. — A noite está
apenas começando.
— Ellerby não é um homem razoável.
— Mas somos mais sábios do que ele.
— Somos?
Quinn parou e a fez olhá-lo, acariciando os ombros dela.
— Tem tão pouca fé? — ele questionou.
Isabel ficou surpresa com a generosidade dele. Infundira-lhe coragem, mas tudo o
que ela podia pensar era na própria descrença no marido.
— Como pode me perguntar uma coisa dessas? — ela sussurrou.
— Não renego as minhas promessas.
Frustrada, Isabel suspirou, mas não pôde resistir a fazer uma carícia no rosto do
marido. Tenso, Quinn deu-lhe um beijo na mão.
— Guardem tais demonstrações de afeto para o quarto de dormir! — Ellerby
avisou.
Isabel dirigiu-se à escada em espiral que levava ao seu quarto. Tinha auxiliado a
srta. Griggs a pôr os meninos na cama e agora sentia o peso da longa noite e da incerteza
do resultado.
Ellerby não tomara uma decisão. E todos iam ter que suportar mais um dia na
companhia dele! Culpa de Quinn, por ter concordado com o conde em desafiar os
meninos a uma guerra de soldadinhos. Ellerby havia ficado intrigado com a aposta dos
garotos e insistira em se juntar a eles, na batalha, à uma hora da tarde do dia seguinte.
Para desespero de Isabel, ele tinha adiado a decisão até lá.
Desse modo, Barnabus marcara uma visita para a próxima tarde, e Quinn havia
dito não ter problema.
É claro que tinha problema. Ela precisava de uma resposta! Gostaria de saber se
Quinn percebera que teria que ficar mais um dia na companhia deles.
Ele havia ido para o quarto, depois de ter carregado Robin até a cama. Na
carruagem, não tiveram oportunidade de discutir o assunto.
Quinn poderia ter dito que um segundo ato "não fazia parte do acordo", como lhe
dissera na noite do casamento. Mas havia sido um perfeito cavalheiro, como o antigo
Jeremy.
Quinn seria tão cruel? Afinal de contas, instigara o desafio entre Robin e Max
durante o trajeto até a Mansão Dunton. Mesmo com toda a sua amargura, não poderia
prometer aos meninos um jogo e depois os abandonar. Ninguém o havia forçado, nem
sugerira que passasse algum tempo com os garotos.
Cansada, Isabel entrou no quarto fracamente iluminado pelo fogo da lareira. Jogou
a bolsa em uma mesa e tirou o colar de pérolas e os brincos. Colocou-os na mesa
também, notando como brilhavam. Teve a sensação de estar casada com a pérola negra.
Uma jóia rara. Ainda presa à concha e repleta de animosidade e veneno.
Seria ela capaz de anular a amargura de Quinn e ajudá-lo a encontrar seu caminho
novamente?
Sem querer perturbar Marisa, sua criada, àquela hora da noite, Isabel começou a
desabotoar as costas do vestido. Alguns minutos depois, tinha os braços doloridos e ainda
não conseguira se despir.
Subitamente, ouviu uma risada rouca. Virou-se e caminhou até o quarto de vestir,
entre o quarto dela e o de Quinn. A porta estava aberta e ele se achava sentado em uma
cadeira, observando-a.
— Precisa de ajuda? — ele teve a audácia de perguntar.
— Como se atreve... — Isabel resmungou. — Estava sentado aí o tempo todo?
— Não havia muito para observar, posso lhe assegurar.
Ela franziu o cenho e apoiou as mãos nos quadris.
— E o que teria feito se tivesse muito para observar?
— Observaria. — Quinn riu.
— Oh, seu... seu...
— Marido?
— Apenas no papel!
— Não pensava assim na noite passada.
— Como ousa me lembrar! Eu estava tentando... Era nossa noite de núpcias!
Ele se levantou e caminhou até o quarto dela. Isabel o olhava, apreensiva. Quinn
parou quando estava suficientemente perto para que ela lhe sentisse a morna respiração
no rosto, os maravilhosos olhos azuis mergulhados nos dela e a fragrância masculina
invadindo-lhe as narinas.
Então, sem uma palavra, ele a segurou pelos ombros e a girou. Admirada demais
para protestar, o corpo delicado tremeu quando Quinn se pôs a lhe desabotoar o vestido.
O corpete ficou solto e Isabel o segurou, para não se expor aos olhos dele.
Quinn deu um passo para trás e ela sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
Precisava do calor do corpo másculo. Permaneceu parada sem saber o que esperar e o que
fazer.
— Vou voltar para a minha cadeira. Quando estiver pronta, junte-se a mim.
O que ele teria em mente?, Isabel pensou, segurando o vestido aberto, enquanto
Quinn voltava para o próprio quarto.
Sentindo-se fora da visão dele e agradecida por não ter acendido as velas quando
entrara no quarto, ela se despiu. O farfalhar do tecido era o único som que quebrava o
silêncio. Além das batidas aceleradas do seu coração.
Ela fez uma pequena oração, pedindo sabedoria. Deveria se juntar a ele ou não?
Quinn fora bastante compreensivo e atencioso nas últimas horas; tanto que Isabel achava
ter sido fruto de sua imaginação. Fora perfeito na casa de Ellerby. Talvez o Quinn que ela
havia conhecido tivesse voltado.
Mas outra voz em sua mente lhe dizia que devia ser cautelosa. Ele já a havia
rejeitado, humilhado e acusado-a de ser desprezível. Irada, Isabel tirou o roupão de um
cabide, vestiu-o e endireitou as costas. Juntar-se-ia a ele, mas, sob suas condições. Não se
deixaria iludir, achando que ele continuaria a ser cordial.
Calçando chinelos, ergueu o queixo e caminhou até o quarto, onde Quinn a
esperava.
— É tarde, milorde — ela começou. — Estou muito cansada. Necessita de alguma
coisa?
Quinn a olhou e soube do que precisava. Isabel estava maravilhosa e era
tremendamente feminina. Respirando fundo, ele falou:
— Sente-se.
— Prefiro permanecer de pé. Estou certa de que não demorará. Creio que deseja
discutir os acontecimentos desta noite ou o dia de amanhã... Ou ambos. Deixe-me dizer o
quanto apreciei seu apoio. Espero que Ellerby mantenha a promessa de tomar uma
decisão. — Isabel passou as mãos pelas têmporas. — Espero também que não tenhamos
nos equivocado ao dizer que as crianças ficariam melhor na nossa companhia. Ele pode
ter se sentido ameaçado. Quanto ao dia de amanhã...
— Isabel...
— Sei que será aborrecido para você enfrentar mais um dia conosco, mas peço-lhe
que considere a situação. Pode imaginar o que seria a vida dos meninos com o conde,
se...
— Isabel...
— Sim? — Ela parou de falar e lhe deu atenção.
— Pedi que viesse aqui para lhe assegurar minha cooperação, amanhã. Não quero
que passe a noite preocupada. Estaria exausta quando o dia raiasse, um dia que será
decisivo.
Isabel fitou-o, boquiaberta.
— Ellerby chegará à uma hora — Quinn continuou. — Espero que logo depois já
esteja bêbado. Se você se juntar a nós por volta das três horas, forçarei uma decisão da
parte dele.
As palavras do marido a desarmaram, e Isabel sentou-se na beirada de uma
cadeira.
— Acha que dará certo?
— Sim, apenas chegue na hora certa.
Ela franziu o cenho. Tinha outra escolha a não ser confiar nele? Ambos sabiam
que não.
— Está bem.
— Agora vá para a cama.
Irritada com o tom autoritário do marido, Isabel pôs-se de pé e cruzou os braços
sobre o peito.
— Irei para a cama quando eu desejar.
Quinn levantou-se também.
— Se não se retirar neste instante, não garanto que poderá ir depois. — Tais
palavras foram seguidas pelo olhar de cobiça com que ele a mediu dos pés à cabeça.
Alarmada, Isabel lutou contra a sensação e endireitou as costas.
— Você me rejeitou na noite passada. Acha que agora suas palavras me
incomodam?
— Ontem à noite fui um tolo. Não o serei de novo.
Quinn percebeu que Isabel engolia em seco, como se estivesse indecisa se devia
acreditar nele. Para demonstrar que falava sério, ele deu a volta na mesa que os separava.
Ela ergueu o queixo e disse com voz rouca:
— Você não me quer.
— Tem razão — Quinn mentiu. — Mas quero o que tem para oferecer.
— Não estou oferecendo nada.
— Então, vá. Antes que eu me aposse de tudo.
Dessa vez ela foi. Quinn tremia. Havia tranqüilizado Isabel, afirmando que a
apoiaria no dia seguinte, mas a mesma afirmação o magoara. O que estava pensando?
Aquele dia deveria ter sido o último, antes da sua completa liberdade. Em vez disso,
desafiara Robin e Max para uma guerra com os soldadinhos. As crianças procuravam
tanto atrair a atenção dele que havia sido difícil ignorá-los. Mas era o que deveria ter
feito.
Desapontar Robin e Max não teria sido grande coisa. Tampouco deveria ter se
envolvido com Isabel e Ellerby. Tinha de ir embora. Porém, não era como os outros que o
haviam abandonado. Não podia partir antes que Ellerby confiasse a guarda dos meninos a
Isabel. A farsa devia continuar. Apenas mais um dia, disse a si mesmo.
Naquela noite, quase enlouquecera, fazendo-se passar por marido de Isabel. Tinha
se torturado, incapaz de evitar acariciá-la, beijá-la e chamá-la por palavras carinhosas.
Tudo era uma farsa, mas sentira-se bem, desempenhando aquele papel.
Sentou-se na cadeira e tirou as botas. Esperava poder dormir, entretanto, duvidava.
— Outro dia — murmurou.
Depois se libertaria, para sempre.
Capítulo III
Ofegante, Quinn entrou em casa. Tinha dormido pouco, como previra, e havia
aproveitado para fazer uma caminhada matinal, em busca de serenidade. Tudo que tinha a
fazer era enfrentar a tarde e convencer Ellerby de que seus herdeiros ficariam melhor sob
os cuidados de Isabel e dele.
Aquela seria a parte mais fácil da farsa. Fingir ser o marido apaixonado de Isabel
consistiria em uma agonia. Ela era uma mulher rara; encantara-o desde a juventude. Pena
ser traiçoeira.
— Tio Jeremy!
Quinn fechou a porta da frente e viu Max descendo a escada, correndo.
— Olá, rapazinho, cuidado... — disse, temendo que o menino caísse.
Um tombo não seria bom para começar o dia da visita de Ellerby.
Max riu e ignorou o aviso de Quinn, fazendo com que este tomasse medidas
decisivas para impedir que o garoto caísse. Com rapidez, ele subiu a escada e estendeu os
braços. Max se jogou contra ele, rindo alto.
— O senhor me pegou! — gritou, feliz. — Vamos fazer isso de novo!
— Acho que não — Quinn respondeu, ofegante.
No cimo da escada, Isabel e Robin olhavam a cena.
— Papai me pegava. — Max se contorcia no colo de Quinn. — Ponha-me no
chão!
Quinn concordou. Mas, antes que pudesse recuperar o fôlego, o menino subiu
cinco degraus, preparando-se para se jogar nos braços dele outra vez.
— Max, não! — Isabel gritou.
Pelo canto do olho, Quinn a viu descendo a escada rapidamente. Mas ele
continuou com os olhos fixos em Max e preparou-se para pegar o menino no ar.
— Opa! — Quinn agarrou o garoto.
A inocente risada de Max ressoava nos seus ouvidos, fazendo com que ele, apesar
do desconforto que sentia, sorrisse também. Então, ouviu um grito feminino.
— Tia Isabel! — Robin exclamou. — Cuidado!
As palavras vieram tarde. Quinn perdeu o equilíbrio e caiu no frio e duro piso de
granito. Max caiu sobre ele, seguido de Isabel, que deu outro grito.
— Tia Isabel! A senhora está bem? — Robin desceu a escada, aproximando-se
deles. — Lorde Kendrick? Max?
— Ohhhhhhh — Isabel gemeu no chão. — Max, você está bem? A risada do
garoto ressoou, enchendo o ambiente de alegria.
Quinn respirou fundo, e não conteve a própria risada. Olhou para Isabel, ao lado
dele, e ergueu a mão para tocar o rosto dela.
— Tudo bem com você? — ele perguntou.
— Oh... céus... — ela balbuciou.
Max riu ainda mais alto.
Quinn tentou abafar a própria risada, mas não conseguiu, ao ver que Robin
também começara a rir. Isabel estava completamente aturdida com o que acontecia. Por
fim, ele cedeu ao inevitável e riu muito quando Robin lhe pulou sobre as costas,
agarrando a todos.
— Maximillian Ellerby — Isabel conseguiu dizer. — É um garoto levado... — E
caiu na risada.
Os quatro no chão, Quinn ficou de joelhos e começou a fazer cócegas nos dois
meninos. Robin deu um soco no braço de Quinn, enquanto Max pulava sobre as costas
dele e o agarrava pelo pescoço. Isabel também passou a fazer cócegas nos garotos, e
Quinn a agarrou pela cintura, puxando-a de encontro a ele. Os três começaram a fazer
cócegas nela. Todos rolavam e riam, até ficarem ofegantes. De repente, viram Barnabus
Ellerby na porta, observando a cena.
— Milorde! — Isabel exclamou, enquanto os outros permaneciam estáticos.
Ela corou, os cabelos desalinhados, enquanto se desvencilhava dos outros e
tentava se pôr de pé.
— Nós estávamos... É que... — Isabel arrumou a saia e tirou as mechas de cabelo
que haviam lhe caído sobre o rosto.
— Nós estávamos lutando, Ellerby — Quinn falou, calmo.
Então, também se levantou e ajudou Robin e Max a se porem de pé.
— Max começou — Robin acusou o irmão.
— Você pulou em Quinn — Max disse. — Eu apenas voei para cima dele.
— Você fez com que ele caísse.
— Foi tia Isabel.
— Meninos — Quinn os interrompeu, apoiando as mãos nos ombros de ambos,
para que parassem de discutir. — Procurem a srta. Griggs e se recomponham. Temos uma
batalha de soldadinhos pela frente.
Os meninos riram de novo.
— Sim, senhor — Robin respondeu, pegando Max pela mão e subindo a escada.
— Peço desculpas por nosso comportamento — Isabel falou, quando os meninos
já haviam se retirado.
Quinn aproximou-se da esposa, enlaçando-a pela cintura.
— Não há necessidade de se desculpar, querida. Estávamos apenas nos divertindo.
Não é verdade, Ellerby?
O conde pigarreou.
— É verdade, Kendrick — ele respondeu.
— Bem, se me dão licença, vou me arrumar e localizar Benns... — Isabel parou e
olhou ao redor. — Ele deveria estar aqui para... Bem, mandarei trazer alguns refrescos.
— Acompanharei o conde até a sala de visitas, meu amor — Quinn se prontificou.
— Sim, obrigada.
Isabel fez menção de se retirar, mas Quinn a pegou pelo braço, puxando-a para
perto dele. Não se importava com que Ellerby os observasse. Não ia desperdiçar os
momentos que podiam partilhar, como se tudo estivesse normal.
Erguendo o queixo da esposa, notou uma mancha. Teria que perguntar a ela.
Talvez tivesse se machucado ao se chocar com Max. Ou batido nos degraus. Mas,
naquele momento, queria um beijo. Apenas um beijo.
Seus olhares se encontraram quando ele abaixou a cabeça e beijou os lábios da
esposa. Ela estava tão alarmada como quando levara o tombo.
Quinn gostou do que viu.
Quinn cavalgou bastante. Rápido e para longe. O rapaz que cuidava do estábulo
lhe dera uma égua lustrosa, que parecia precisar de liberdade, como ele. O animal lhe deu
o melhor, afastando-o de Londres. Se ao menos pudesse ter deixado seu rancor para trás...
Mas não... A dor e a revolta estavam no âmago de sua alma.
Fez a égua parar para admirar a Mansão Pearl, no vale abaixo, e as terras dos
Kendrick. O crepúsculo se aproximava, mas ainda era possível ver as campinas
verdejantes que cercavam a mansão e os velhos bosques que se alongavam a perder de
vista. Bosques nos quais ele brincara quando criança, correndo pelos canteiros de flores e
pescando no riacho.
O pomar de maçãs ficava à direita da casa e, à esquerda, os estábulos, que
abrigavam o gado e os puros-sangues.
Durante muito tempo, Quinn pensara que a propriedade era seu destino. E ficou
indeciso se devia continuar sua visita. Nem sabia se desejava voltar para casa. Seu pai
não estava mais lá e seu irmão, tampouco. Nunca tinha sido um lar feliz. Mas, Quinn
sempre sentira a presença da mãe, o brilho do sol nos quartos que ela havia decorado, o
profundo amor que lhe tinha dedicado. Ela lhe ensinara a ter fé, a acreditar nas coisas que
não se pode ver.
Fazia meses que Quinn havia lido a Bíblia e meses desde que virara as costas a
Deus, por tê-lo abandonado. Estaria errado? Por que não podia acreditar que Isabel
permanecera fiel a ele, fazendo o possível para libertá-lo, mesmo não conseguindo prová-
lo?
O demônio da desconfiança rugia como um leão, querendo devorá-lo. Quinn sabia
disso. Sofrimentos e tribulações eram bênçãos, significavam força e vigor. Por que, então,
não conseguia enfrentar seus demônios? As perguntas continuavam a importuná-lo, sem
respostas.
A noite se aproximava e começou a esfriar, lembrando de que ele estava no cimo
da colina.
Isabel batia o pesado tapete feito à mão com uma vassoura larga. A sra. Peale
avisara Isabel de que iam passar o dia limpando a casa e a olhava com o cenho franzido.
Isabel ignorava a mulher que havia dito às outras criadas que iriam começar
fazendo o inventário da roupa de cama, mesa e banho, dos candelabros de prata, que
iriam polir os metais de ouro e prata e os lustres, para então limpar os tapetes.
Tinham trabalhado toda a manhã e Isabel estava determinada a deixar o tapete,
pendurado a sua frente, sem nenhum grão de poeira. Pensar em Quinn lhe dava toda a
inspiração de que precisava. Ele e seu ódio. Quinn a humilhara, a rejeitara e a
abandonara. Bateu no tapete com mais força ainda. Quinn era realmente vil. E ela que
havia pensado estar apaixonada por ele! Riu sarcasticamente, fazendo a sra. Peale
arregalar os olhos. E Isabel continuou a bater no tapete, com a vassoura.
— Eu... acho que esse tapete já está limpo, milady — a governanta balbuciou.
Isabel parou, a vassoura no ar, antes de apoiá-la no chão.
— Muito bem, traga-me o próximo.
— Não, milady. — A sra. Peale tentou convencer a patroa, enquanto dois criados
removiam o tapete limpo para substituí-lo por outro. — Não acha que já trabalhou o
suficiente, por hoje? Posso terminar.
Isabel sabia que a boa mulher devia pensar que ela enlouquecera. Nunca tinha se
oferecido para cuidar dos afazeres domésticos. Mas, depois de esperar em vão pelo
regresso do marido, precisava de alguma coisa que a mantivesse ocupada. Ou realmente
enlouqueceria.
— Estou bem, sra. Peale. E não pretendo afastá-la dos seus encargos. Por favor,
pode continuar com o seu serviço.
— Mas... isso não é... Quero dizer, a senhora não tem outras coisas para ver?
Robin e Max já regressaram da visita ao museu.
— Já? É tão tarde assim?
— Sim, milady.
Isabel franziu o cenho.
— Então suponho que devo ir me arrumar.
A criada não perdeu tempo em tirar a vassoura das mãos da jovem.
— Faça isso, milady.
Isabel finalmente cedeu, entrando em casa a pensar em como o tempo passara tão
depressa.
Onde estaria Quinn? Tinha ficado o dia todo fora, sem avisá-la. Isabel passou pelo
vestíbulo e subiu a escada, pensando que talvez fosse melhor nunca mais vê-lo. Cansara
das artimanhas dele, de ficar sozinha. Encontraria outro modo de cuidar dos meninos.
Mas isso significaria abandonar seus sonhos e tudo o que ela mais queria: Jeremy.
Entrou no quarto, decidida a não mais pensar naquele impasse. Tomaria um banho
e passaria o resto do dia com seus sobrinhos. Prendeu os cabelos com uma tira de pano,
foi até o banheiro e tirou a roupa. Lá, refrescou-se em uma bacia de água fresca.
Ao ouvir passos abafados do lado de fora, a curiosidade levou a melhor e ela
entreabriu a porta. Arregalou os olhos ao ver Quinn sentado na beirada da cama, fitando-
a. Prendeu a respiração e apressou-se a se cobrir com um roupão, antes de entrar no
quarto de vestir.
— O que está fazendo aqui? — ela perguntou.
Quinn afrouxou o colarinho da camisa e suspirou. Ela parecia tão deliciosa e
perfumada depois do banho! Era uma visão à qual ele, cada vez mais, não conseguia
resistir.
— Necessito de uma razão para ver minha esposa?
— Sim, pois não temos um relacionamento normal. Supondo que terei que pôr
trancas nas portas.
Quinn não tinha voltado para brigar. Tinha perguntas, sim, mas se sentia no
controle da situação. E planejava permanecer daquela maneira.
— De hoje em diante, baterei antes de entrar.
— Verdade? — ela indagou, inclinando a cabeça para o lado.
— Se isso lhe agradar.
— Sim, é melhor.
Porém, Quinn não conseguiu afastar o olhar do ombro e do pescoço de Isabel,
quando o roupão se abriu um pouco.
— O que está fazendo aqui? — ela repetiu, ajeitando o robe.
— Pensou que eu não fosse mais voltar?
— Sim, isso me ocorreu.
Lentamente, Quinn tirou a gravata.
— Você continua a ser um estorvo para mim — ele afirmou.
— O quê? Não fiz nada.
Jeremy pôs a gravata no bolso do casaco.
— Ah, fez, sim — ele replicou. — Nas últimas vinte e quatro horas... Não...
Durante os últimos anos você importunou minha mente. Manteve minhas cordas
esticadas como as de uma pianola.
— O quê?
Ele se levantou.
— Onde estou, você também está. Não tenho paz.
Isabel engoliu em seco.
— Asseguro-lhe, Jeremy, que não é por minha causa que não tem paz. Talvez seja
por ter me abandonado.
— Abandonado você?
— Sim. — Ela cruzou os braços sobre o peito.
— Eu não a abandonei. Eu saí.
— Está bem... Saiu. — Ela largou os braços ao longo do corpo. — Qual é a
diferença?
— Há uma grande diferença. — Quinn franziu as sobrancelhas. — Apenas saí para
tentar me recompor.
— Ah, e eu deveria saber disso? Para se recompor é necessário tanto tempo? —
Isabel deu um passo na direção da cama e apontou o dedo para ele. — Ou tem outro
termo para isso também?
Quinn cerrou os punhos. O perfume de lilás lhe impregnava as narinas e fazia seu
sangue ferver.
— Sabe a razão de eu ter saído.
— Ah!... — ela exclamou, tentando parecer negligente. — Sei das desculpas para
sua saída.
— Isabel, está brincando com fogo.
Ela cutucou o peito dele com um dos dedos.
— É mais brasa do que fogo.
Quinn lhe agarrou o pulso, os olhos soltando faíscas.
Isabel ficou quieta e o encarou.
— Não — ela sussurrou e tremeu.
Mas o tremor não era de medo. E Quinn pôde sentir o desejo que a esposa nutria
por ele.
— Isabel — ele também sussurrou —, é tentadora demais para eu continuar a
resistir. Entende o que estou dizendo?
— Jeremy — ela disse, pondo a mão sobre o braço dele. — Não me deixe
novamente.
Quinn sentiu-se um tolo ao notar que também tremia. Largou o pulso de Isabel e
se afastou, recuperando o controle.
— Jeremy? — Isabel abraçou-o por trás, encostando a cabeça nas costas dele.
O autocontrole de Quinn desmoronou, com um gemido, ele a pegou pelos braços
e, antes que Isabel pudesse pronunciar uma só palavra, segurou-lhe o rosto entre as mãos
e curvou-se para beijá-la.
Isabel o enlaçou no pescoço para, em seguida, afagar-lhe os cabelos.
Quinn entreabriu os lábios e, quando suas línguas se encontraram, pensou ter se
rompido em dois.
— Isabel — murmurou, estreitando ainda mais o abraço. Passou a beijar o pescoço
dela, que se oferecia a ele.
— Faça amor comigo, Jeremy Quinn. Agora. Nem pense em se afastar e dizer que
não me quer.
— Não direi — ele sussurrou. — Não desta vez.
Quinn a pegou no colo e a levou para a cama, deitando-a com delicadeza. Sem
afastar os olhos dela, tirou os sapatos e a camisa, ficando apenas de calça. Tentando se
conter para não parecer brusco, deitou-se sobre Isabel.
— Esta noite você será minha.
— Sim, sim — Isabel gemeu.
Ele continuava a beijá-la com sofreguidão. Os lábios, o pescoço, o colo.
— Oh, Jeremy...
Pondo-se de lado, ele desamarrou o roupão de Isabel, expondo os seios aos seus
carinhos. Passou o polegar ao redor dos bicos túrgidos.
— Beije-me, Jeremy. Beije-me toda...
Quinn não discutiu e arrancou o roupão de Isabel.
— Você é linda — sussurrou, antes de beijar-lhe e sugar-lhe os seios, além de
passar a língua ao redor dos mamilos.
Ela se contorcia sob o corpo de Quinn. Então, ele a tocou por inteiro, beijou-a,
acariciou-a, de frente, de lado, de costas.
Quando Isabel gemeu mais intensamente, ele terminou de se despir e a beijou do
umbigo até o joelho e na parte interna das coxas.
— Jeremy...
— Isabel...
— Sinto dor pelo corpo todo.
Quinn gemeu e posicionou-se sobre ela.
Isabel gritou de prazer e de dor, quando ele a possuiu. Quinn silenciou-a com um
beijo, até que os dois se moveram juntos, como se fossem uma só pessoa.
— Isabel! — Quinn pronunciou o nome dela, enquanto a penetrava cada vez mais
fundo, até chegar ao orgasmo.
Ela gritou, atingindo o clímax ao mesmo tempo que ele. Em seguida, ficou imóvel
sob o corpo másculo, nua e saciada.
Após um momento, Quinn rolou para o lado e apoiou a cabeça no peito de Isabel.
Ele sentiu como se tivesse viajado a um mundo estranho.
— Você está bem?
— Nunca estive tão bem em minha vida — ela respondeu, com voz firme.
— Não a machuquei?
— Doeu um pouquinho.
— Perdoe-me por ter duvidado da sua pureza. Foi inconsciente.
— Sim, eu o perdôo. — Ela acariciou o peito de Quinn, que agora estava deitado
de costas. — Jamais teria me entregado a outro. Mas não posso aceitar suas desculpas, a
não ser que aceite as minhas. Por qualquer coisa que eu lhe tenha feito. Sinto muito, de
verdade. Eu nunca o magoaria.
Ele olhou para o dossel da cama e Isabel não lhe viu o olhar atônito. Céus, ela
estava se desculpando. Quinn já havia desistido de um dia ouvir um pedido de desculpa
da parte de Isabel, de John e de Winston, devido à atitude deles enquanto estivera preso.
— Por que está se desculpando?
— Não tenho certeza — ela balbuciou. — Mas pensou que eu o tivesse traído. Só
posso dizer que não o fiz, e sinto muito que tenha pensado que agi de maneira tão ignóbil.
Quinn se lembrou do primeiro encontro deles, depois da sua libertação. Ela havia
dito que lhe enviara cartas e ele não tinha acreditado. Agora não estava tão seguro. Se
Isabel houvesse lhe mandado cartas, o que teria acontecido com elas? Precisava descobrir
a verdade, mesmo querendo acreditar apenas nas palavras dela.
— Não precisa se desculpar — ele sussurrou. — Prefiro fazer seu corpo planar.
Isabel acordou ao sentir que Quinn não estava mais na cama. Abriu os olhos na
escuridão da noite e viu-lhe a sombra vestindo a calça e pegando as botas e a camisa do
chão.
— Vai sair? — ela perguntou.
— Preciso — ele respondeu, virando-se.
— É parte do seu plano? — Isabel ergueu-se, cobrindo o corpo com o lençol. —
Voltar por uma noite antes de sair novamente?
— Preciso de respostas — Quinn a informou, pondo a camisa.
— Eu também.
— Se eu encontrar as minhas, também terá as suas.
Insatisfeita, Isabel franziu o cenho. Não ia segurá-lo se ele quisesse partir, mas,
depois da noite de amor, tinha pensando que...
— Espero que as encontre — ela disse.
Já calçado com as botas, Quinn fitou-a mais uma vez, aproximou-se da cama e a
beijou. Um momento depois, Isabel estava sozinha.
Levantou-se. Não tinha nenhuma pista de para onde ele fora, especialmente
porque ainda não havia amanhecido. Mas estava determinada a segui-lo. Não ia permitir
que seu homem fosse embora sem lutar por ele, depois das horas que passaram juntos.
Correu para o guarda-roupa e tirou um vestido verde-claro. Amarrou os cabelos
com uma fita e esperou que ele saísse do próprio quarto. Então o seguiu, afastada o
suficiente para não ser notada pelo marido. Ou... amante.
Céus! Ela corou ao descer a escada. Que noite gloriosa tivera com o único homem
que podia amar! Quinn estaria se sentindo da mesma maneira?
Isabel o seguiu até o estábulo, agradecida por ele ter decidido cavalgar em vez de
caminhar. Em poucos minutos, Quinn selou o animal e partiu. Rapidamente, ela pediu a
um empregado que selasse o cavalo dela e seguiu o marido, enquanto o sol começava a
nascer.
Havia pouco tráfego nas ruas e, na junção da Park Lane, Isabel se dirigiu a
Piccadilly. Lá, carruagens de aluguel e carroças eram numerosas. Ela parou, quando um
vendedor de ovo e leite atravessou seu caminho. Incerta sobre qual direção tomar, viu
Quinn dirigindo-se para o leste. Instigou o cavalo a apressar o passo, até emparelhar com
do o marido.
— Bom dia — ela disse, prendendo a respiração.
Quinn inclinou a cabeça para o lado, calmo demais, para surpresa dela.
— Vai a algum lugar? — ele perguntou.
Isabel engoliu em seco antes de responder:
— Pensei em acompanhá-lo.
— Não me recordo de tê-la convidado.
— E não me recordo de ter pedido — Isabel respondeu, mantendo a cabeça
erguida. — Mesmo assim fui impelida a fazê-lo.
Quinn franziu o cenho, mas continuava a cavalgar, para alegria de Isabel.
— Levou um tempo considerável para me alcançar. E se eu não tivesse mantido o
cavalo a passo lento?
— Sabia que eu o estava seguindo? — ela indagou, incrédula. — Esperava-me?
Um ligeiro sorriso foi a resposta de Quinn.
Isabel se conteve para não xingá-lo. Não ia arruinar sua vitória.
— Aonde vamos? — ela questionou.
Ele ficou em silêncio durante algum tempo.
— Vamos a Pearl Hall — Quinn finalmente respondeu.
Então, Isabel entendeu a seriedade dele. Era evidente que o marido sabia que teria
que enfrentar o passado, se quisesse prosseguir seu caminho. Isso a deixou esperançosa.
Mesmo assim, sentia-se insegura. Não tinha certeza se ele estaria pronto para mais
uma decepção. E imaginava que John não seria útil ao irmão. Mais de uma vez, John
sugerira que a desejava. Por isso Isabel havia deixado de pedir auxílio a ele, passando a
recorrer a Winston.
Mas não havia nada de tangível para provar sua intuição. E ela olhou para Quinn,
esperando que tudo acontecesse da melhor maneira possível.
A estrada para Gravesend estava congestionada. Eles pararam para tomar chá e
comer torta de maçã, antes de continuarem a viagem. Sem trocar uma só palavra.
Quinn achava que deveria ter mandado Isabel para casa. Era tolice permitir que ela
o acompanhasse na primeira visita ao lar, pois não sabia o que iria encontrar.
Porém, na verdade, queria partilhar o trajeto com ela. No início, Quinn dissera a si
mesmo que queria que ela visse o fruto da sua traição. A porta da Mansão Pearl seria
fechada no rosto dele e Timmons, o mordomo da família havia mais de três décadas,
confirmaria que ele não era mais o sucessor de seu pai.
Naquele dia, Quinn queria ser sincero com ele mesmo. E queria Isabel com ele. A
esposa tinha a força que lhe faltava.
Poderia Isabel tê-lo traído e amá-lo como havia feito na noite anterior? Era
impossível mentir daquela maneira. E ele nunca se esqueceria daquela noite. Nunca
desejara tanto uma mulher. Seu coração nunca tinha sido tão terno, e a alma nunca
estivera tão satisfeita.
A aceitação fazia isso com um homem? Quinn sabia apenas o que era rejeição.
E o que era aceitação, senão amor?
Olhou para a esposa, cavalgando ao lado dele. Determinada. Firme. Se ele
encontrasse a prova que desejava, talvez pudessem ter um futuro juntos. Poderiam ter
Robin e Max e, quem sabe, mais tarde, um filho ou uma filha. Querendo afastar tal
pensamento, fez o cavalo parar e, de cima da colina, olhou para Pearl Hall, como fizera
no dia anterior.
Sempre tivera orgulho de sua herança e fora criado e educado para ser o sucessor
do pai. Teria errado? Deveria ter se rendido às exigências do pai? Devia ter abandonado a
Cozinha de Rachel e os pobres, para se ater às responsabilidades de um marquês?
Estaria William, o décimo marquês de Pearl, errado, ao esperar que o filho
cuidasse de sua herança?
Havia muitas perguntas que Quinn não sabia responder. Reconhecia que o pai
nunca brincara com ele, nem com John. Nem havia rolado com eles no chão, dando
gargalhadas. Mas tampouco tinha sido um tirano. E Quinn fora um filho obediente e
respeitoso, na maior parte da vida. Nem havia motivo para não ser, até o dia em que uma
mulher pobre colocara a filha nos braços dele, pedindo que cuidasse da criança. Tudo
havia mudado na vida de Quinn: suas perspectivas e o respeito pelo pai.
Com Isabel ao lado dele, dirigiram-se à entrada da portentosa mansão. Antes que
chegassem, um exército de criados se posicionara na frente da casa, cheios de
curiosidade. Quinn reconheceu Timmons pela cintura grossa e pelas pernas tortas, quando
o mordomo se afastou dos demais criados. Sua esposa, a governanta da casa, o seguiu,
mantendo certa distância. Não tinham certeza de quem eram os visitantes, até que, de
repente, o reconheceram. A sra. Timmons abriu a boca e a cobriu com a mão. Timmons
parou, atônito, antes de começar a andar novamente.
Quinn puxou a rédea do cavalo e esperou que o homem se aproximasse.
— Por Deus, não posso acreditar nos meus olhos — o mordomo disse, pegando a
rédea do animal. — É o senhor, mesmo?
Quinn meneou a cabeça, assentindo, mas não desmontou.
— Bem-vindo ao lar, milorde. — Abriu um largo sorriso.
O mordomo parecia mais velho do que Quinn imaginava, mas simpático como
sempre. Vestia o uniforme dos Kendrick: preto, azul real e branco, com o brasão da
família bordado na lapela.
Aliviado, Quinn apeou do cavalo. Em seguida, ajudou Isabel a fazer o mesmo.
Timmons entregou os animais a um criado.
Quando o mordomo olhou novamente para o patrão, seus olhos estavam úmidos.
Ele nunca fora um criado muito discreto, razão pela qual a mãe o tinha contratado.
Timmons agarrou a mão que o patrão lhe estendeu com firmeza.
— Eu já tinha perdido a esperança, milorde.
A sra. Timmons se juntou a eles, chorando.
— Oh, obrigada, meu Deus! — Ela abraçou Quinn, deixando-o embaraçado.
— Shhh... sra. Timmons. — O mordomo tentou acalmar a mulher, com um tapinha
nas costas. — Estamos aturdidos — desculpou-se.
Após alguns segundos, a governanta soltou Quinn. E passou o braço ao redor dos
ombros de Isabel.
— Preciso lhes dizer... — Quinn olhou para os criados—que não tinha certeza de
que seria tão alegremente recebido.
— Sentimos muito sua falta, meu rapaz. Como poderia ser de outra maneira?
Quinn sorriu e apresentou Isabel como sua esposa, o que deixou os criados ainda
mais atônitos. Aquela recepção calorosa o surpreendeu. Porém, John não se encontrava
em casa. Ele sabia que seria diferente se seu irmão estivesse presente.
— Desejo trocar algumas palavras com você, Timmons — Quinn disse, depois
que todos se refizeram da surpresa.
— Será um prazer para mim, milorde. — Timmons olhou para Quinn como se
soubesse de alguma coisa.
Os dois entraram na casa e Quinn parou para observar o vestíbulo e a imponente
escada. Havia uma mesa em frente à escadaria, com um vaso de cristal repleto de flores
frescas. O piso era coberto por um tapete de cores vibrantes e, as paredes, por quadros.
Um botão de rosa havia sido colocado na frente do retrato de sua mãe, como de costume.
— Que linda! — Isabel sussurrou.
Quinn sentiu-se orgulhoso.
— Minha mãe decorou toda a casa, antes de morrer. Ela adorava flores. Colocou
todos os quadros nas paredes, com exceção do retrato dela. Meu pai queria, mas ela
considerava exibicionismo. Ele o pendurou depois da morte dela.
— Seu pai deve tê-la amado muito — Isabel opinou.
— Sim, creio que sim. Venha.
Ele conduziu Isabel até a sala de visitas. Ela se sentou e ele continuou a olhar tudo
atentamente. Os retratos dos antepassados e do pai com o semblante muito sério. Alguma
vez o vira sorrir?
— Chá, sra. Timmons, por favor — o mordomo se apressou a pedir.
A governanta sorriu e se afastou.
Quinn sentou-se em uma das quatro cadeiras perto da lareira e pediu que Timmons
se juntasse a ele e Isabel.
O mordomo hesitou diante do convite incomum. Mas, à insistência do patrão,
obedeceu.
— Sabe onde estive? — Quinn perguntou.
O mordomo mexeu-se na cadeira, inquieto.
— Nunca disse a ninguém, mas sim, sei que o senhor estava em Marshalsea.
Entretanto, pelo amor do Todo Poderoso...
— Como descobriu?
— O senhor sabe que as paredes falam. — O homem baixou o olhar. — E seu pai
não era um homem quieto. Ele estava enfurecido.
— Conhece as circunstâncias da minha prisão?
— Ah, lorde Jeremy... não acreditei nem por um momento que seu pai ia deixá-lo
lá. Nem por um minuto.
— Por que diz isso?
— Simplesmente sei. — O criado bateu no peito. — Sei no meu coração. Mas
então ele morreu.
Quinn levantou-se e parou atrás da cadeira de Isabel, passando a mão na nuca.
— Em que cidade da França John está?
O mordomo permaneceu em silêncio.
— Onde? — Quinn insistiu.
— Ele não está mais na França, milorde. Lorde John chegou em casa na noite
passada. Nós deveríamos acordá-lo para receber o senhor, mas...
— John está em casa?
— Ele não ficará satisfeito comigo.
— O senhor não podia saber que eu chegaria.
— Eu deveria ter enviado um criado para despertá-lo.
— Por que não o fez? — Quinn sentiu a mão de Isabel sobre a sua.
— Milorde... Eu poderia?
— Dou-lhe permissão. Antes, conte-me o que sabe e, ainda mais importante, o que
pensa.
O mordomo suspirou.
— Estou aqui desde antes do seu nascimento. Sinto saudade da senhora sua mãe
até hoje, era uma santa mulher. E o senhor é como um filho para mim. O senhor e sir
John.
Quinn permaneceu em silêncio para que Timmons continuasse.
— Seu pai, milorde, embora às vezes ríspido, jamais o teria prejudicado. Sua
morte repentina foi após outra discussão com John. O médico disse que o coração dele
não suportou. Mas depois... — Fez uma pausa. — Depois, perguntei a lorde John se não
ia tentar libertá-lo, se ia deixá-lo naquele lugar horrível. Ele disse que eu me preocupasse
com meus afazeres. E que o senhor estava no lugar em que merecia estar.
— John disse isso?
— Não pude acreditar nos meus ouvidos, milorde. Então, entrei em contato com
sir Hill. E ele me assegurou estar fazendo todo o possível para obter sua libertação. Falei
com ele várias vezes.
Timmons ficou em silêncio. Isabel levantou-se e segurou no braço de Quinn. Ele
se esforçava para manter a compostura, mas estava tenso.
— Agradeço seus esforços, Timmons. Mais do que possa imaginar.
— Há mais, senhor. — O mordomo cofiou o queixo.
— Continue.
— Depois do funeral, o sr. Franklin leu os desejos finais do seu pai a lorde John.
Ele não ficou satisfeito ao saber que o senhor ainda era o sucessor. Assegurou a Franklin
que iria visitar o senhor para avisá-lo, mas, quando o advogado se foi, lorde John se
embriagou. Naquela mesma noite, nos fez levar os pertences dele para o quarto do pai. —
Timmons meneou a cabeça, inconformado. — Ele não é mais o rapaz que conheci... Não
meu pequeno John. Acho que está atormentado...
Um silêncio opressivo tomou conta do ambiente. Quinn e John nunca haviam sido
próximos, mas Quinn nunca poderia pensar que o irmão fosse capaz de sentir um ciúme
tão poderoso, a ponto de conspirar contra ele para mantê-lo encarcerado. Achava que o
pai fosse o único manipulador. Sempre pensara que John, Isabel e Winston não haviam se
esforçado o suficiente para libertá-lo. Mas John nem tentara?
Quinn olhou para Isabel, porém, não pôde interpretar as lágrimas que ela tinha nos
olhos. Seriam de culpa? Ou de tristeza
A sra. Timmons chegou com o chá.
— Cartas, Timmons — Quinn disse. — Viu alguma carta de lady Isabel para mim?
Ou de outros? Talvez na escrivaninha de John ou na mesinha-de-cabeceira?
— Cartas, milorde? Apenas as de milady para sir John.
— De Isabel a John?
— Sim — afirmou a sra. Timmons, servindo o chá.
— Para falar sobre você — Isabel explicou. — No começo encontrei John
pessoalmente, implorando que ele fizesse uma petição à rainha e ao parlamento. Ele me
assegurou estar fazendo todo o possível. Então sir Hill me livrou das cansativas visitas a
John e passou a fazê-las no meu lugar. Continuei enviando cartas a ele semanalmente e,
diariamente, a você, em Marshalsea.
Quinn tentou digerir tudo que ouvia. Não aceitou o chá e caminhou até a janela,
olhando para o vasto vale e para os bosques. Brincara naqueles bosques, quando criança.
Ele e John. Agora o irmão havia regressado da França. E dormia no quarto do marquês.
— Gostaria de ver John — Quinn disse. — Timmons, pode anunciar minha
chegada ou eu mesmo devo ir até o quarto? O que achar melhor.
Timmons era o mais sábio dos dois homens e desapareceu em direção ao quarto de
John, deixando Quinn e Isabel em silêncio. A sra. Timmons também saiu da sala.
Isabel observava as costas do marido, que continuava olhando pela janela. Queria
abraçá-lo, para acalmar sua angústia. E também desejava sair antes de John chegar. Em
vez disso, sentou-se e nada fez.
Momentos depois, John entrou na sala, apressado. Vestia um roupão. Ele não
notou Isabel sentada perto da lareira. Ao ver o irmão, seus olhos se arregalaram. Então
sorriu.
— Pensei que Timmons tivesse enlouquecido quando anunciou que você estava
aqui.
Ele era mais baixo do que Quinn e bonito, pelo padrão da sociedade.
Quinn, alto e digno, pôs as mãos atrás das costas. Isabel sentiu o coração disparar.
John atravessou a sala até o irmão.
— Estou chocado.
— Imagino — Quinn respondeu.
Seu tom era cordial, porém frio. Ele lançou um olhar para a esposa.
— Isabel? — John olhou para ela também. — Não a tinha visto. Como...? Quando
você foi libertado?
Quinn foi até a cadeira de Isabel e se posicionou atrás dela.
— Alguns dias atrás. Disseram-me que estava na França.
— Realmente. — John meneou a cabeça, concordando. — Uma viagem que não
devia ter feito.
— Por quê?
— Acho que viajei para nada.
— Perseguia Patience Webster?
— Sabe a respeito de Patience?
— Apenas que estava na França com ela.
O irmão mais jovem foi até o armário de bebidas, passando a mão pelos cabelos.
— Um drinque? — ele perguntou.
— É um pouco cedo — Quinn respondeu.
— Não para mim — John replicou, com sarcasmo.
Serviu-se de uísque, bebeu um grande gole e encheu o copo novamente. Quando
se virou, deu um profundo suspiro e sorriu de novo.
— Você está bem, Jeremy. Estou satisfeito que o dinheiro que mandei para a
prisão, a fim de assegurar seu bem-estar, tenha sido bem aplicado.
— A que dinheiro se refere? — Isabel perguntou, com animosidade.
Quinn olhou para ela, enquanto John enrubescia.
— Não sei do que está falando, querida Isabel. Mas nada disso importa, agora. Por
Deus, é bom vê-lo, Quinn. Sente-se e conte-me tudo.
Quinn permaneceu no mesmo lugar. Foi John que se sentou no braço do sofá.
— Fizemos o possível para libertá-lo. Alguém deve ter finalmente nos escutado.
Mas quem? Você sabe?
— O sr. Sarces — Isabel respondeu. — Talvez o senhor saiba o motivo.
—Eu, querida Isabel?—John cruzou as pernas com afetação — Por que eu
saberia?
—Talvez porque todos tenham conhecimento de sua ligação com ele — foi a vez
de Quinn responder.
John tinha as mãos trêmulas. Rapidamente, serviu-se de outra dose de uísque e,
depois de beber, pôs o copo sobre um mesa.
— Sua prisão foi uma atitude de papai. Sabe disso. Minhas mãos estavam atadas.
— Estavam?
— O desprezível carrasco se recusou a me receber. Então, implorei que alguns
nobres informassem à Coroa a respeito do fato de que papai não havia estipulado tempo
para a sua soltura, antes de morrer. Mais uma vez fui ignorado.
—Quem são esses nobres, posso perguntar? — Quinn o pressionou.
— Eu... — John franziu o cenho. — Os nomes estão registrados nos meus
documentos. Tenho que procurá-los. Mas por que se preocupar com isso, agora?
Devemos celebrar. — Fez menção de se levantar.
— Isabel e eu não ficaremos para celebrar.
— Não? — Os olhos de John brilhavam.
— Minha esposa e eu temos outros planos.
— Esposa? Como pôde... Assim, tão de repente?
Quinn rodeou a cadeira de Isabel e tocou no braço dela, indicando que devia se
levantar.
— Para compensar os dois anos em que fiquei encarcerado.
John também se levantou.
— Suponho que tenha razão. Está vivendo com sua esposa na cidade?
— Por algum tempo — Quinn respondeu. John sorriu de novo.
—Bem, é claro. Esta é sua propriedade, mas, na sua ausência, cuidei de tudo.
Devo continuar a fazê-lo?
— Por enquanto, nada deverá mudar.
— Ótimo. Tenho que saber quem conseguiu que o sr. Sarces finalmente o
libertasse. Para agradecer adequadamente.
Isabel teve vontade de esbofeteá-lo. Nunca ficara tão revoltada na vida. Afastou-se
dos dois homens, para poder se controlar. Ao chegar no vestíbulo, sentiu Quinn às suas
costas.
— Venham nos visitar de novo, milady — Timmons pediu, abrindo a porta.
— Sim, Timmons — Isabel respondeu, esperando que um dia pudesse viver ali
com seu marido e filhos.
Então, virou-se para olhar para Quinn e viu a dor que ele trazia no semblante.
Entendeu que aquilo seria improvável.
Na tarde seguinte, Isabel tentava manter-se calma. Quinn não aparecia desde o
retorno deles de Pearl Hall, vinte e quatro horas antes. Ele nunca prometera ficar, e ela
tinha que aceitar aquele fato. Quinn não era capaz de aceitar a traição de John. E achava
que também ela o havia traído. O pensamento lhe causou muita dor e sentiu raiva, por ele
não acreditar nela.
Com o coração pesado, entrou na Cozinha de Rachel e tentou tirar Quinn da sua
mente. Sentia-se bem, ali. Havia calor humano, solidariedade, além do aroma de
temperos e de pão recém-saído do forno. Diversos conhecidos a cumprimentaram e Isabel
se esforçou para responder, sorrindo.
— Milady! — alguém a chamou.
Virando-se, viu sir Hill deixar seu posto, ao lado dos outros voluntários e caminhar
na sua direção.
— Não a estava esperando. Imaginei que estivesse ocupada demais para servir de
voluntária, hoje.
Isabel não quis dizer que nada tinha para fazer. Que Quinn havia ido embora. Em
vez disso, entregou a Winston duas colchas.
— Perdi o meu turno? — ela perguntou.
— Quase todas as camas têm uma dessas, agora — Hill disse sorrindo, ao pegar as
colchas. — Agradecido pelo trabalho.
— Não precisa agradecer. Vou pegar meu avental. — Ela olhou para a sala, repleta
de gente.
Isabel era voluntária desde a prisão de Quinn. Adorava estar em um lugar onde ele
tinha estado. Adorava ajudar os menos afortunados. Conhecia a maioria dos assistidos
pela Cozinha, inclusive os recém-chegados. Também se informava a respeito da situação
dos pobres, em Londres. Doía-lhe saber que os operários que trabalhavam nas fábricas
não tinham o suficiente para cuidar das famílias. Felizmente, lorde Shaftesbury, o
fundador de uma escola para pobres, era outro reformador que, como Quinn, procurava
fazer alguma coisa pelo semelhante carente. Suas escolas em Bedfordberry e Charing
Cross nunca recusavam uma criança, na tentativa de mantê-las afastadas da pobreza.
Isabel era madrinha de vários órfãos e, uma vez por mês, os visitava.
Dirigiu-se ao lugar onde ficavam os aventais e voltou à fila de distribuição de
sopa. Então, levou um susto. Seu marido estava servindo um homenzinho curvado. Quinn
tinha um ótimo aspecto. Barbeado, bem vestido e calçava botas melhores do que as que
usava, desde seu retorno.
— O que está fazendo aqui? — Isabel perguntou, as mãos apoiadas nos quadris.
Muitas pessoas olharam para ela, incluindo Quinn.
Isabel não se importou que o mundo notasse sua raiva. O vilão não ia escapar, com
mais um pedaço do seu coração. Mesmo sentindo alívio por ver que ele estava bem.
— O que está fazendo aqui? — tornou a repetir.
O olhar de Quinn mostrou que ele também havia se surpreendido com a presença
dela, na Cozinha.
— Eu poderia lhe fazer a mesma pergunta. — Ele a encarou.
—Sim, mas eu não responderia antes de ouvir a sua resposta.
Quinn ergueu as sobrancelhas, surpreso com a atitude da esposa.
— Ambos estamos irritados hoje? — ele perguntou. — De novo?
— Com razão — ela disse. — Detesto homens que ficam fora a noite toda, sem ter
a cortesia de enviar uma palavra.
Quinn se virou para o caldeirão, antes de dizer:
— Estou servindo sopa. Satisfeita agora? E parece que você vai fazer a mesma
coisa.
— É tão esquisito assim? — Isabel indagou, posicionando-se atrás de outro
caldeirão.
— Já fez isso antes?
— Costumo fazer uma vez por semana.
— Quando começou? — Quinn a observava pelo canto do olho.
— Quando Winston me contou tudo sobre a Cozinha. Coisa que você nunca fez.
— Ela pegou a tigela das mãos de uma garota, encheu-a de sopa e a devolveu, com um
sorriso. — Ele foi gentil o suficiente para visitar-me, depois de sua prisão. Eu não tinha
idéia do que havia acontecido entre você e seu pai. Winston me contou tudo e me trouxe
aqui.
Quinn resmungou e franziu o cenho.
Isabel sorriu para um homem e sua doentia mulher, enchendo as tigelas dos dois.
— Parece que sempre sou a última a saber de qualquer coisa relacionada a você.
Nem sei onde passa a noite. — Ela suspirou.
— Tenho minhas razões para não envolvê-la.
— Razões que não são mais válidas. Saber onde você está me pouparia horas de
preocupação. Este lugar permitiu que eu me sentisse mais perto de você, nos primeiros
meses de sua ausência.
— Este não é ambiente para você.
— Por que não? — Isabel se virou para ele. — Foi bom para você. Fiquei tão
orgulhosa quando soube do seu trabalho!
— Não me julgue tão nobre, Isabel.
— Como assim? — ela perguntou, perplexa.
— Deixa para lá. Discutiremos isso mais tarde.
— Talvez. — Ela ergueu o queixo. — Estou cansada desse assunto.
— Eu também. Por que não ficou em casa se preparando para o baile desta noite?
— O baile? Você disse que...
— Eu disse que ia lhe fazer mais esse favor.
Isabel largou a concha e pôs as mãos nos quadris.
— Do que está falando, Jeremy? Quando me informou a esse respeito?
— Você deveria saber.
— Verdade? — Ela quase riu.
— Verdade.
— Jeremy Quinn, é o mais... Oh, olá, sra. March. — Isabel se controlou e sorriu
para uma frágil senhora que se aproximava do caldeirão.
— Bom dia, lady Isabel. Eu não esperava encontrá-la aqui, hoje. Queria lhe contar
que meu filho me visitou ontem. Está vivo e bem.
— Oh, sra. March, isso é maravilhoso! — Isabel exclamou.
— Ele não pôde ficar muito tempo. Seu navio estava de partida. Mas foi bom vê-
lo.
— Sei o quanto a senhora sentia saudade dele.
— Cinco anos sem notícias.
Isabel encheu a tigela da mulher, olhando para Quinn, enquanto respondia:
— Tenho certeza de que ele entende como está difícil para a senhora. Talvez se
mostre mais sensível e lhe escreva de vez em quando.
— Ele prometeu. Se eu receber cartas, posso trazê-las aqui para que a senhora as
leia para mim?
— É claro, sra. March. Será uma honra ler a carta do seu filho.
A mulher meneou a cabeça, assentindo, e se dirigiu à mesa, onde todos comiam.
Satisfeita, Isabel lançou um olhar orgulhoso para o marido.
Quinn, por sua vez, passou a mão pelos cabelos e, quando notou que ninguém os
podia ouvir, disse:
— Nunca soube que tinha tantas facetas, Isabel. Doce, em um minuto, e obstinada,
no seguinte.
—Sempre fui muito previsível, até você entrar na minha vida — ela retrucou.
Querendo ou não, Quinn teve que admitir que Isabel tinha razão. Mas a resposta
dela fez com que ele derrubasse sopa na beirada do caldeirão. Resmungando, foi pegar
um trapo para limpar a sujeira, ao mesmo tempo em que anunciava:
— Nós iremos ao baile.
— Iremos? — Isabel olhou para ele, admirada.
—E eu gostaria que Max e Robin se juntassem a nós no jantar, antes de sairmos.
Por volta das seis.
— Quer mesmo?
Quinn sabia que a estava deixando confusa. Qualquer um ficaria. Após a
angustiante visita a Pearl Hall no dia anterior, Quinn tinha levado Isabel para casa e saíra
para procurar Darius Martin, a fim de ajudá-lo a matar sua poderosa sede. Havia levado a
noite toda para obter a informação que desejava.
De manhã voltara a Pearl Hall, tomou banho no próprio quarto e se vestiu com as
próprias roupas. Novamente com dinheiro no bolso, foi à Cozinha para falar com
Winston. O homem prontamente lhe entregou uma concha e o colocou atrás de um
caldeirão, para que servisse sopa.
Então, Isabel tinha chegado, indignada.
— Sim — Quinn afirmou. — Fiz alguns arranjos para que Timmons envie minhas
roupas para a casa da cidade. Jantaremos com os meninos, antes de enfrentarmos o baile,
juntos.
Isabel continuava a olhar para ele, incrédula, mas com um brilho diferente nos
olhos. E Quinn se pôs a pensar no que estaria fazendo. Ainda queria entender os detalhes
de sua prisão, como também encontrar as cartas e compreender a correspondência entre
Isabel e John. Estava cada vez mais difícil considerar a esposa suspeita. Era indiscutível
que ela poderia ter encontrado um homem mais apropriado para casar. E não o fizera. E
havia permanecido casta! Quinn sentia uma estranha pressão no peito. Como uma espécie
de dor, onde o coração pulsava. Queria ficar com Isabel. Pelo menos, mais aquela noite.
Um homem e uma mulher de meia-idade se aproximaram de Isabel. As roupas do
casal estavam sujas e puídas e o homem, ao sorrir, mostrava dentes quebrados e
manchados. Quinn tinha certeza de que não tomavam banho havia semanas.
Mesmo assim, Isabel os tratou com cordialidade, como se fossem queridos
amigos. Conversavam a respeito do filho, Dickey, e de como, aos dez anos de idade, ele
conseguia fugir dos policiais que o perseguiam por cheirar os pães doces e os peixes
defumados que os comerciantes vendiam.
— Pensam que ele é um batedor de carteiras. Mas não o meu Dickey — dizia a
mulher. — Eu o eduquei bem.
— Tenho certeza disso, sra. Bickerman — Isabel respondeu.
— Bem, temos que ir agora — a mulher acrescentou. — Deus a abençoe por ter
matado a nossa fome, mais uma vez. Tom vai começar a trabalhar no moinho e logo não
precisaremos voltar aqui.
— Que notícia maravilhosa! — Isabel exclamou.
Quinn estava encantado com a amizade deles. E com a confiança que depositavam
em Isabel.
— Emprego? — ele indagou, quando o casal já não o podia ouvir. — O que acha
que ele vai fazer?
— Tom Bickerman? Há meses ela diz que o marido vai começar a trabalhar.
— E ele nunca começa?
— É claro que não. Não que ele não queira, mas o pobre homem mal consegue
andar.
— Por que ela mente?
— Não sabe?
— Acho que não.
O orgulho era um demônio feroz, Quinn sabia disso. Largou a concha e pegou na
mão de Isabel.
— É hora de irmos para casa.
— Ainda posso ver os olhos de lorde Ellerby e seu rosto pálido quando a jovem
Margaret caiu, derramando o ponche sobre ele — Isabel dizia, ofegante, em meio às
gargalhadas.
Quinn sorria, as mãos ainda enlaçando a cintura dela.
— Pensei que lady Drayton fosse estrangular Margaret ali mesmo.
— Oh, mas não foi culpa da moça. — Isabel enxugava uma lágrima que lhe
escorria pela face. — Ela tem apenas dezessete anos. A mãe não deveria ter feito sua
estréia em uma festa tão grande.
— Pelo menos nos livramos de Ellerby. — Quinn conduziu Isabel em direção à
porta.
— Sim. Foi perfeito. Ele teve de ir embora. Suas roupas ficaram molhadas e sujas.
Achei ótimo você ter dito que alugaria uma carruagem para nos trazer de volta. — Isabel
parou de repente e o fitou. — Ouvi Ellerby dizer que crianças só servem para perturbar os
adultos, depois, que Margaret derrubou o ponche. Foi bom. Desse modo, ele não mudará
a decisão de deixar a guarda dos meninos conosco.
— Tem razão! — Quinn exclamou.
Ele estava apreciando aquela conversa com Isabel. E o fato de possuírem um
objetivo comum tornava tudo mais excitante. Mas ficara com ela tempo demais no meio
de outras pessoas. Ansiava por tê-la nos braços e beijá-la. Aquela conversa, entre outras
coisas, poderia continuar no quarto.
Isabel não sabia de seus desejos. Estava excitada demais com as vitórias daquela
noite. Vitória contra Ellerby e a conquista do apoio de lady Julia. Além do mais, haviam
sido bem recebidos pelos nobres presentes no baile.
Quinn se questionou por que não contara a Isabel a respeito de seu relacionamento
com a duquesa. Talvez por não ter certeza de qual seria a atitude de lady Julia Percival,
apesar de ser madrinha dele. Teriam todos conspirado para mantê-lo na prisão? Ou, como
Julia tinha dito, acreditavam que ele já havia sido libertado? Teria que conversar a esse
respeito com a madrinha. Mas, naquele momento, desejava saborear cada momento com
Isabel. Celebrar o triunfo dos dois. Fazer amor com ela.
— O conde se gabou com lorde e lady Watterman de que levaria Robin à corrida
de cavalos da próxima semana. Creio que teremos de permitir que Ellertty desfrute da
companhia dos garotos — Isabel disse. — Imagino que, de vez em quando todos serão
beneficiados. O conde está ficando velho e muito sozinho. Não acha?
Quinn sabia bem o que era solidão.
— Acho que tem razão. Mas acredito que, a esta hora, ele esteja xingando toda a
humanidade.
— Oh, pobre Margaret! Jamais esquecerá esta noite.
— Nem eu — Quinn disse, os olhos brilhando.
Então, pegou-a nos braços, incapaz de disfarçar o desejo que o consumia.
— Estou levando-a para a cama, minha esposa. Alguma objeção?
— Não, milorde — Isabel respondeu, passando os braços ao redor do pescoço
dele.
Quinn não perdeu tempo. Benns abriu a porta da frente e eles entraram. Quinn
subiu os degraus de dois em dois e escolheu o quarto de Isabel, por ser o mais próximo.
Ficaria louco se tivesse que esperar mais tempo para despi-la. Beijou-a no pescoço e a
pôs na cama, deitando-se sobre ela.
— Isabel, quero você como nunca quis ninguém neste mundo — ele sussurrou,
tentando tirar a gravata.
A jovem ergueu-se para ajudá-lo.
— Sempre fui sua, Jeremy. Sempre.
— Esta noite. Seja minha esta noite. — Ele jogou a gravata longe e enterrou o
rosto no pescoço dela.
E Isabel gemeu.
Horas mais tarde, completamente exausta, Isabel olhava para o dossel da cama.
Nunca se sentira tão completa. Depois de tudo que havia lhe acontecido, depois de tanta
dor, tinha Quinn. O seu Jeremy Quinn, não o homem que fora libertado da prisão. Sentia
isso com todo o seu ser. Haviam feito amor várias vezes.
Isabel tinha o braço sobre o peito dele. Quinn lhe acariciava a mão, também
olhando para o dossel da cama. Os dois ficaram deitados, quietos e juntos, até o
amanhecer.
Naquele momento, Isabel virou-se de lado e olhou para ele.
— Em quê está pensando? — perguntou, apoiando a cabeça no peito do marido.
— Que não quero sair dessa cama — ele sussurrou.
— Hum. — Ela sorriu. — Podemos pedir que os criados tragam comida. Seria
simples.
— Parece perfeito.
— Exceto por Max. Ele adora entrar no meu quarto e se enfiar na minha cama.
— Vou me esconder debaixo das cobertas. Assim ele não saberá que estou aqui.
Isabel riu, deliciada, quando Quinn lhe fez cócegas. Então, ela afagou o cabelo
dele e os dois se aquietaram novamente. Se saíssem da cama, a realidade tomaria conta
de suas vidas. O conde não tinha mais exigências, e Quinn poderia partir.
— Jeremy? — Isabel se aventurou, não tendo nada a perder.
— Conte-me o que quis dizer quando declarou não ser um homem nobre. Que
outra razão teve para abrir a Cozinha?
Quinn não parecia satisfeito.
— Jeremy — ela disse, segurando a cabeça dele entre as mãos.
— Não se afaste de mim. Sinta. — Pôs a mão de Quinn sobre o coração dela. —
Meu coração bate por você. Forte e verdadeiro.
— Isabel — ele resmungou, sentando-se na cama. Passou a mão pelos cabelos e se
cobriu com a colcha. — Não sabe o que está perguntando.
Ela também se cobriu e descansou a cabeça no travesseiro.
— Considerar um projeto para ajudar os pobres é admirável, Jeremy. Colocar esse
projeto em prática é ainda mais notável. Certamente o torna nobre.
— Não — ele disse. — Faz-me sentir culpado.
— Culpado?
Quinn suspirou e também recostou a cabeça no travesseiro.
— Não comecei a Cozinha por desejo de ajudar os pobres — ele confidenciou,
relutante em abandonar a mais incrível noite de sua existência, mas consciente de que era
chegada a hora da verdade.
— Está dizendo que tinha motivos pessoais para ajudar os pobres? — Isabel
perguntou. — Não acredito.
— Não?
A imagem de uma mulher com a filha nos braços surgiu na mente de Quinn.
O dia tinha sido frio; ele e o pai esperavam a carruagem depois de terem passado a
tarde disputando uma partida no campo de tiro da mansão de lorde Faversham, quando o
grito de uma mulher chamou a atenção deles. Quinn se virou a tempo de ver a mulher
cair de joelhos, na frente dele. Aturdido, deu um passo para trás. Mas a mulher o segurou
pela roupa.
— Fique com ela, milorde. Imploro-lhe que fique com minha filha.
Com dezesseis anos de idade e inexperiente, Quinn pegou o fardo, sem saber o
que pensar. Achou que a mulher queria ajuda.
— Está maluco, menino? — o pai gritou. — Não toque nessa mendiga!
Quinn olhou para o marquês. Mendiga? Era apenas um bebê.
— Devolva-a! — o pai ordenou.
Quinn estendeu os braços para a mulher a fim de devolver a menina.
— Tenha piedade, milorde. O senhor pode alimentá-la e aquecê-la. Pode salvá-la.
— Que loucura, mulher! — gritou mais uma vez o marquês. — Cuide dela a
senhora. É sua filha! Entregue-a, rapaz — o marquês repetiu, antes de tirar a criança dos
braços do filho.
A mulher se levantou, meneando a cabeça, em negativa.
Os olhos azuis do marquês brilhavam de ódio, o rosto vermelho. Pôs a criança no
chão e virou-se para o filho.
Quinn continuou ouvindo os lamentos da mulher, enquanto o pai se afastava,
arrastando-o com ele. A pobre mulher dizia que a criança morreria de frio e fome. Nada
tinha para oferecer à filha. Por que os ricos não ajudavam?
Pai e filho se afastaram sem mais nenhuma palavra, a indiferença estampada no
rosto do marquês, sem nenhuma compaixão.
E Quinn jamais esqueceu o olhar derrotado da mulher com a criança nos braços,
olhando para ele à janela da carruagem.
Alguns dias depois, quando voltaram à propriedade de lorde Faversham, a mulher
estava agachada no portão da rica mansão. E sua filha estava morta. Chamava-se Rachel.
Quinn fechou os olhos.
— Não pude me conformar com minha atitude.
— Oh, Jeremy. — Isabel o abraçou. — A morte de Rachel não foi culpa sua.
— Eu poderia tê-la salvado.
— Como qualquer outra pessoa naquele dia. Você era jovem e nunca desafiara seu
pai, antes.
— Ah... Mas, se eu o tivesse feito, Rachel estaria viva.
— Ela está viva. Ela vive por meio da Cozinha.
— Não seja condescendente comigo, Isabel.
— Eu o admiro por tudo o que tem feito, Jeremy.
Antes que ele pudesse fazer qualquer comentário, Max entrou no quarto.
Quinn decidiu que iriam pescar, apesar dos trovões e da ameaça de chuva. Isabel
acrescentou um piquenique, ao plano. Ela suspeitava de que Quinn estivesse usando a
excursão para superar a dor da confissão. Quando ele propôs o passeio, ela perguntou:
— E quanto ao fato de que você poderia partir agora, neste minuto?
—É verdade. — Depois de o coração dela quase parar, Quinn acrescentou: —
Sempre haverá um amanhã.
Max adorou a idéia, e foi procurar Robin.
Agora estavam todos indo ao riacho em Pearl Hall: Robin entre ela e Quinn, Max
no colo da tia. Isabel ignorou as nuvens ameaçadoras, prestando atenção à conversa sem
fim dos garotos. Não pôde deixar de pensar em como aquela família era encantadora. Seu
sonho se realizaria. Não podia terminar.
— Mamãe, olhe quantos passarinhos — Max disse quando saíram dos arredores
de Londres.
— Estou vendo — Robin anunciou, apontando para o céu onde um bando de
pássaros azuis e vermelhos voava sobre eles.
— São chamados de tentilhões — informou a srta. Griggs. Max não parava de se
mexer no colo de Isabel. Então, as primeiras gotas de chuva começaram a cair. —Iremos
para casa e esperaremos o tempo melhorar — disse, quando os pingos ficaram mais
freqüentes e intensos.
— Mas a pescaria... — Robin choramingou.
— Pescaremos, eu prometo — Quinn respondeu. — Nem que for ao anoitecer.
— Oba, oba! — Max gritou.
Timmons os recebeu, entusiasmado, com a presença dos meninos. Estavam um
pouco molhados de chuva, mas ninguém reclamava.
O mordomo os fez entrar, sorrindo, e Quinn cuidou das apresentações. Isabel
informou ao mordomo que fariam um piquenique no chão da sala de visitas, enquanto
esperariam o tempo melhorar.
Ela e Robin entraram atrás de Timmons e Quinn esperava Max, quando o garoto
disse:
— Papai?
Os adultos estacaram. Quinn olhou primeiro para Timmons e então para Isabel,
antes de se ajoelhar na frente de Max.
— Sim, querido? — ele indagou, o coração batendo forte. Mas quando Max
colocou as mãozinhas rechonchudas nos ombros de Quinn e inclinou-se para falar no seu
ouvido, ele não pôde deixar de rir. Meneou a cabeça e olhou para os dois adultos
novamente.
— Max e eu pedimos licença por alguns minutos — disse, levantando-se e
pegando o menino pela mão.
— Desculpe-me, milorde, mas creio que eu deveria me juntar a vocês — Robin
interveio.
— Certamente, Robin. — Quinn estendeu a outra mão, que Robin logo pegou.
Quinn se emocionou e Isabel ficou com os olhos umedecidos.
— Com licença — Quinn disse, depois de pigarrear.
— Papai?—Max o chamou novamente, enquanto Isabel fungava e Quinn conduzia
os garotos pelo corredor.
— Sim, Max?
— O senhor morava aqui?
— Sim, toda a minha vida.
Quinn aparentou calma durante todo o trajeto de volta a Londres. Por dentro, a
realidade era outra. Enfrentava emoções mais poderosas do que a raiva com a qual vivera
durante o tempo em que tinha ficado na prisão.
Nunca pensara ser possível, mas fora assediado, nos últimos dias, por sentimentos
que iam, do orgulho e da alegria, ao terror. Naquele momento, era perseguido pelo
remorso. Nunca havia imaginado que Isabel acabasse sabendo da festa nos jardins de
Marietta. Nem que o irmão contasse a ela os "detalhes" do seu envolvimento com a
dama.
— Lady Marietta é uma pessoa agradável — ele disse, com se estivesse se
desculpando. — Entretanto, é franca demais suas tentativas de deixar o berço de ouro em
que nasceu.
Isabel apenas suspirou, sem nada comentar. No seu colo, adormecido, Max gemeu.
— Isabel — Quinn tentou de novo.
Mas ela o impediu de continuar.
— Não tenho necessidade de explicações, milorde. Seu relacionamento com
Marietta não é da minha conta. — Tirou cabelos de Max da testa, enquanto passava o
braço sobre ombros de Robin, para fazer com que ele apoiasse a cabeça nela.
— Robin, durma. Teve um dia cheio.
Quinn desistiu de tocar no assunto. Não faria bem a nenhum dos dois rememorar o
evento. Nem estava certo de que poderia explicar apropriadamente o que havia
acontecido.
Tinha a mente confusa. Seu desejo por Isabel era excessivo e a luta que travava
entre o homem que ele fora e o homem que era agora, intensa demais. Tinha consciência
de que o motivo de ter aberto a Cozinha fora aplacar a culpa que o atormentava! Teria
havido razões mais benevolentes, como Isabel sugerira? Ela tinha mais fé no caráter dele
do que ele próprio. Ou era a amargura que não o deixava ver com clareza? Quinn não
tinha certeza de nada. Não sabia se deveria ficar ou partir. Assumir sua herança ou
abandoná-la para sempre. Apenas tinha conhecimento de que poderia facilmente perder-
se nos braços de Isabel. Ela era como o sol depois da chuva, a primavera depois de um
longo e intenso inverno. Isabel até poderia fazê-lo se esquecer de Marshaisea. Mas seria o
maior tolo se permitisse que aquilo acontecesse.
Um minuto depois de John ter saído, Quinn levou Isabel para o quarto. Pegou-lhe
o rosto entre as mãos e a beijou longamente. Seu corpo pedia por ela, como sempre. Mas,
ainda mais importante, seu coração se regozijava. Isabel não o havia abandonado.
Confusa e ofegante, depois que seus lábios se separaram, Isabel olhou para o
marido.
— Eu... não entendo — ela murmurou.
— Por que não me contou antes? — Quinn perguntou, afagando os belos cabelos
da esposa. — Só agora estou realmente livre.
— Como assim? — ela sussurrou. — John disse...
— Isabel... Se tivesse me contado que pagou meus débitos, lutou com Sarces e
vendeu suas jóias, eu saberia que não tinha se esquecido de mim.
— Mas eu lhe disse. Nas cartas. Todos os dias. Contei sobre cada vez que nos
aproximamos da sua libertação e cada vez que falhamos.
Quinn gelou. As cartas... Ela tinha tentado fazer com que ele acreditasse naquelas
cartas.
— Estou me referindo a depois da minha libertação.
Agora Quinn entendia a importância daquelas cartas. As informações deveriam tê-
lo fortalecido.
— Enviou as cartas diretamente para Marshalsea? — ele perguntou.
— No princípio, eu as entreguei a John. Ele me garantiu que as mandaria. Quando
perdi a confiança nele, comecei a dá-las a sir Winston. Ele, pessoalmente, as levava até a
prisão quando ia tentar persuadir Sarces a soltá-lo.
Quinn tocou os lábios de Isabel com dois dedos, para silenciá-la.
— Winston nunca as entregou para mim. Por quê?
Isabel suspirou, claramente irritada.
— Sir Winston me informou de que Sarces prometia entregá-las. E, todas as vezes
que ele pedia para vê-lo, o carrasco dizia que você estava comprometido.
— Comprometido?
Muitas famílias nobres pagavam uma quantia mensal para manter seu pródigo
estilo de vida. Quinn sabia que, em outro andar, nobres tinham as próprias camas, criados
vindos de casa e alimento de suas propriedades. Ele mesmo tinha alguns poucos
privilégios, prova de que alguém pagava uma mensalidade em seu favor. Sim, e,
enquanto ficava na sua cela, a raiva o corroendo, ele havia se esquecido daqueles fatos.
Por isso perdera a fé.
— Por que Sarces não exigiu mais nada, da última vez? — Quinn indagou.
Isabel meneou a cabeça, em negativa.
— Não sabemos. Sir Winston e eu ficamos surpresos. Sarces lhe disse que estava
cansado de esperar.
— Esperar o quê?
— Tampouco sabemos.
— Será que alguém o pagava para me manter encarcerado?
— O quê? — Isabel gritou.
Quinn esperou a própria raiva aflorar. A raiva o impedira de desistir de viver,
quando estava na prisão. Mas o que o atingia naquele momento era um sentimento de
perda. De ter sido privado da companhia de Isabel, de ter perdido a oportunidade de
ajudá-la nos momentos difíceis e solitários.
Era maravilhosa a liberdade que sentia. Pegando a mão da esposa, Quinn a levou
até uma cadeira perto da janela, onde sentou, colocando-a no colo.
— Obrigado — ele sussurrou. Isabel fitou-o, ainda perplexa.
— Ainda não entendeu, não é?
Quando ela meneou a cabeça, negando, ele sorriu.
— Não acreditar que você fazia todo o possível para me soltar escravizou-me.
Uma escravidão que nada tinha a ver com meu encarceramento.
— Eu teria feito qualquer coisa por você.
Quinn pôs Isabel no chão e ergueu-se da cadeira.
— Eu mostraria minha gratidão a você de centenas de maneiras diferentes, mas
agora temos uma nova ameaça a enfrentar.
— Como pôde confiar em John? Não percebeu que ele nada fez para libertá-lo?
Nada?
— Shhh. — Quinn sorriu. — É claro que não confio em John.
— Não? Então por que concordou com o plano dele?
Quinn afastou uma mecha de cabelo da testa de Isabel.
— Eu precisava de tempo. John só me espera na cabana amanhã. Quando eu não
aparecer, ele terá que vir à cidade a minha procura. Aí imagino ter algumas respostas.
— Mas, como, com Sarces em seu encalço?
Quinn a beijou, antes de responder:
— Explicarei mais tarde — ele sussurrou. — Agora quero apenas beijar seus
lábios.
Horas mais tarde, Quinn rodava em uma carruagem de aluguel, determinado a tirar
Isabel de sua mente e se concentrar no trabalho que tinha pela frente. Odiava deixá-la. Já
sentia saudade, e continuava maravilhado com a abnegação da esposa para resgatá-lo da
prisão. Mas não podia pensar naquilo, agora. Tinha de sobreviver a mais uma ameaça.
Depois de resolver o que estava pendente, talvez todo o resto se encaixasse nos devidos
lugares.
— Seu mau cheiro é terrível, rapaz — Winston disse, no banco oposto ao de
Quinn. — Não acha que exagerou no vestuário?
Quinn inalou o ar e olhou para as roupas esfarrapadas que estava usando, camisa
amassada e sapatos rotos. Seu disfarce de indigente fez com que o cocheiro olhasse para
ele de maneira irada.
Michael Rosengarten, primo de Winston, era o mesmo cocheiro que o trouxera de
Marshalsea, e Winston tivera quase que brigar para que o homem permitisse a entrada de
Quinn no coche.
— Não procurei roupas fétidas, Winston, mas acho que servem para o nosso
propósito. Pelo menos, ninguém vai querer se aproximar de mim, enquanto eu estiver
cheirando tão mal.
— E ninguém vai reconhecê-lo como o marquês de Pearl. — Winston sorriu, com
malícia. — Seu plano é bom, Jeremy. Tenho certeza de que será um sucesso.
— Tente não respirar fundo — Quinn disse ao amigo. Olhou pela janela, notando
que o cocheiro diminuíra a velocidade. — Chegamos ao escritório do sr. Franklin.
Winston sentou-se na beirada do banco, esperando que o cocheiro abrisse a porta
do coche.
— Direi a ele que você deseja uma entrevista.
Quinn meneou a cabeça, assentindo, e suspirou, com impaciência.
— Esperarei aqui.
Winston desceu para ouvir mais uma reclamação do cocheiro:
— Ele vai deixar meu coche cheirando mal. Por que seu amigo não se veste como
o senhor?
— Mick, tenha paciência. — Winston apertou o braço do primo. — É muito
importante.
— Melhor que seja. Agora, apresse-se.
Recostado no banco, Quinn olhou Winston entrar no pequeno escritório de
advocacia. Se o que Isabel e Timmons tinham dito fosse verdade, Franklin o receberia.
Caso contrário, falaria com o homem, de qualquer maneira. Apenas gostaria de saber até
que ponto ia a lealdade do advogado.
Em poucos minutos, Winston voltou.
— Venha, o sr. Franklin vai recebê-lo.
Rapidamente Quinn desceu do coche e entrou no escritório, onde um cheiro de
cera de abelha sobrepujava o fedor das suas roupas. Olhou para a mesa de mogno coberta
por pilhas de documentos, atrás das quais havia um recepcionista sentado. Atrás dele,
uma porta.
O recepcionista ergueu o rosto e recostou-se na cadeira.
— O senhor pode entrar, agora — ele disse.
Quinn agradeceu e entrou. Franklin levantou-se de trás de uma escrivaninha
também abarrotada de papéis para cumprimentá-lo. Logo, deixou de sorrir.
— Lorde Kendrick. — Franziu o nariz.
Quinn estendeu a mão para retribuir o cumprimento.
— Asseguro-lhe que minha mão está limpa. São apenas minhas roupas
emprestadas que cheiram mal. Achei o disfarce necessário, mas peço-lhe desculpas.
—Sir Winston me explicou brevemente, milorde—Franklin respondeu, antes de
pigarrear. — Apenas, bem... eu não esperava que sua aparência fosse tão...—Apertou a
mão que Quinn lhe oferecia.
— Entendo. — Quinn sorriu.
— Por favor, milorde, sente-se. — O advogado indicou uma cadeira. Franklin era
um homem alto, magro e calvo. — Permita-me lhe falar do meu alívio em vê-lo livre.
— Obrigado. — Quinn sentou-se diante do advogado, Winston ao lado. —
Infelizmente, não sei até quando gozarei dessa liberdade, pois, segundo meu irmão, estou
sendo procurado de novo.
— Faremos o possível para mantê-lo fora de Marshalsea.
Quinn confiava em Franklin e conseguiu relaxar.
— Estou certo de que há algumas medidas legais que o senhor pode tomar —
Quinn afirmou. — Eu o autorizo a fazer tudo o que for necessário. Mas, antes, quero
discutir a respeito do meu pai.
— Sim. — Franklin levantou-se da cadeira e foi até um armário. Abriu uma gaveta
e tirou uma pasta de papéis. — Aqui estão os documentos do seu pai. Como herdeiro, o
senhor tem direito a eles.
— Por que esses documentos nunca foram levados até mim, enquanto eu estava
em Marshalsea? — Quinn perguntou ao pegar a pasta.
— Garantiram-me que tinham sido entregues, milorde — Franklin respondeu. —
As cópias, é claro. Seu irmão me assegurou que os entregaria ao senhor.
Quinn franziu as sobrancelhas. Teria John enganado a todos com o propósito de
mantê-lo na cadeia?
Abriu a pasta, sabendo que deveria conter instruções de seu pai. Não tinha certeza
de querer ler a respeito da traição, mas começou a examinar os documentos. Escrituras
das propriedades dos Kendrick junto com decretos de sucessão de monarcas a respeito de
terras e outras propriedades. Um documento sobressaiu aos outros. O pergaminho era
mais novo. Quinn pôs-se a lê-lo.
— Como pode ver, milorde — disse o advogado. — As últimas instruções do seu
pai foram efetuadas durante o tumultuado período da desavença entre os dois. Mas ele
ainda o considerava seu herdeiro. Nunca pensou de outra maneira.
— Por que, então, ele deixou que eu fosse preso?
— Seu pai me disse que precisava lhe dar uma lição, lorde Kendrick. — Franklin
voltou a sentar-se. — Logicamente, não pretendia morrer.
— Papai ficava muito irritado com nossas desavenças?
— Uns dias mais, outros menos. — Franklin ergueu os ombros, sorrindo. — Havia
ocasiões em que ele achava o senhor um oponente valioso. Referia-se às suas diferenças
como um jogo de xadrez. E elogiava o modo com o senhor sabia manobrá-lo.
Quinn sorriu.
— Mas ele tinha de fazer a jogada final. O xeque-mate.
— Como disse, Marshalsea seria apenas uma lição. Nunca esperávamos que ele
fosse morrer. Jamais o compensaremos por isso, milorde. Peço-lhe mil perdões.
Quinn aceitou as desculpas do advogado. Não era culpa dele.
— Então, depois da morte de meu pai, eu, como seu herdeiro, deveria ter sido
solto para honrar minhas dívidas com a minha herança. Não havia nada que alguém
pudesse fazer? — Quinn parecia alarmado.
Franklin abaixou os olhos.
— Seu irmão poderia ter pago seus débitos, milorde. — Franklin apontou para um
trecho do documento na mão de Quinn. — Veja isto. A declaração atesta que, se o senhor
estivesse impedido por alguma razão, como doença ou ausência, John poderia agir como
responsável pelas propriedades dos Kendrick.
— E meu irmão sabia dessa cláusula?
— Eu mesmo a li para ele, milorde.
— Por Deus, é muita covardia — Winston opinou.
— Por certo — o advogado concordou.
Quinn jogou a pasta sobre a escrivaninha. Já ouvira e vira o suficiente. Era a prova
da traição de John. Mas devia haver uma explicação para tal conduta. John sentiria tanto
ódio por ele?
— Devemos ir a Pearl Hall — Winston propôs. — É necessário um confronto com
seu irmão. Devemos exigir satisfações!
Quinn ficou surpreso com a raiva de Winston, sempre muito reservado e calmo.
— Ainda não... Ainda não.
Capítulo V
Isabel suspirou, aliviada, quando Quinn voltou a andar. Achava que ele a tinha
visto. Deus, isso teria sido desastroso. Ele não iria gostar.
Avisou o cocheiro de que deveria continuar e, de quando em quando, olhava pela
janela enquanto Quinn continuava a caminhar pelo bairro. Ele andava a passos rápidos.
Devia ter assimilado o que o médico lhe dissera.
O que importava naquele momento era seu próximo destino e sua segurança.
Consciente da seriedade de sua missão, Isabel olhava para todos os lados, à procura de
sinais de perigo.
Winston percebeu a ausência de Quinn quando fez uma ronda pelas mesas,
cumprimentando freqüentadores da Cozinha.
Droga, Winston pensou. Teria que procurá-lo. Quinn estava muito perto da
verdade. E era teimoso demais para ouvir seus conselhos.
Não era um bom presságio.
* * *
Se Isabel tivesse mais ânimo, continuaria a seguir Quinn, apesar da raiva.
Qualquer um poderia receber John e fazê-lo voltar à cabana de caça. Mas não
desobedeceria ao marido outra vez. Ele precisava saber que podia confiar nela.
Desse modo, pôs-se a caminhar pelo quarto, desejando ter alguma atividade para
passar o tempo. Então, ouviu o som de uma carruagem parando na frente da casa. Correu
até a janela a tempo de ver Winston descer do veículo. Sentiu um arrepio na espinha ao se
lembrar da última vez que vira uma cena semelhante. Naquela ocasião, Quinn estava com
ele. Um Quinn diferente. Desafiador, amargo e abatido. Tanta coisa tinha ocorrido depois
daquele dia!
Isabel apressou-se a descer a escada, cumprimentando Winston, que entrava pela
porta da frente.
— Odeio me intrometer — ele disse, o cenho franzido. — Mas estive procurando
Jeremy a noite toda, sem sucesso. Então, pensei que talvez ele tivesse voltado para casa.
Isabel sorriu, os braços relaxados ao longo do corpo.
— Pensei que estivesse trazendo más notícias. Que Sarces tinha capturado Jeremy.
— Suponho, milady, que essa seja uma possibilidade. Ele estava na Cozinha e, em
seguida, desapareceu. Jeremy estava observando Anna e eu ia apresentá-lo a ela. Mas a
sra. Galway precisou dos meus serviços e quando fiquei livre, ele já tinha saído.
— Então por esse motivo ele saiu da Cozinha tão agitado!
— Como? — Winston perguntou.
— Eu esperava Jeremy do lado de fora da Cozinha ontem à noite. Quando ele saiu,
parecia perturbado. O senhor disse que ele observara Anna. Tenho certeza de que essa foi
a causa.
— E o que a senhora fazia, esperando-o do lado de fora da Cozinha?
— Bem, eu o estava espionando, se deseja saber a verdade. Queria protegê-lo.
— Minha querida milady. — Winston meneou a cabeça em desaprovação. — A
senhora correu perigo. Tenho certeza de que, se Jeremy souber disso, vai ficar irado.
— Ele já sabe — Isabel o admitiu, sem poder disfarçar um sorriso. — Ele me
pegou antes do amanhecer. Eu não devia ter cochilado, mas ele ficou muito tempo na
casa de Darius.
— Jeremy estava na casa de Darius Martin?
Isabel o confirmou.
—Eu o segui até lá depois de ter saído da casa do dr. Laidlaw.
Winston passou a mão pelo cabelo.
— Então ele foi sem mim. Pena.
Isabel estranhou as palavras de Winston.
— E onde ele está, agora? — o homem perguntou.
— Eu... — Isabel hesitou, subitamente desconfiada do homem que fora seu aliado
durante tanto tempo. Ele agia de modo diferente. Mesmo assim, contou o que sabia: —
Quinn está a caminho de Pearl Hall para conversar com o pessoal, enquanto John o
aguarda na cabana.
Winston suspirou e resmungou.
— Algum problema? — Isabel perguntou, ainda mais perplexa.
Depois de um momento, ele a encarou.
— Minha querida milady. Temo que Jeremy tenha caído em uma armadilha. O sr.
Sarces está indo a Pearl Hall. Devemos nos apressar.
— Mas e quanto a John? E se ele vier aqui?
— Duvido que isso aconteça. Acredito que ele esteja mentindo. Agora, venha
comigo e espero que não seja tarde demais.
Isabel observava a agitação de Winston, que batia com o dedo indicador no joelho.
Nunca o vira naquele estado. Mas não ia perguntar a ele se toda aquela preocupação era
devido à segurança de Quinn.
— Rosengarten! Acho que é ele! — Winston gritou ao cocheiro.
Isabel se assustou.
— O que há? — ela perguntou.
— O senhor está certo, milorde. E ele também nos viu — o cocheiro gritou.
— Pare, homem! Pare!
Isabel olhou para Winston, que não havia respondido à sua pergunta. Segurou-se,
tentando olhar para fora através da janela, quando sentiu um par de mãos segurar seus
ombros, impedindo-a.
— Fique onde está, Isabel — ele disse. — Não quero machucá-la.
Ela arregalou os olhos e seu coração disparou. Era a primeira vez que Winston a
ameaçava.
— O que está acontecendo? — perguntou, aturdida.
Winston a soltou, abriu a porta da carruagem e desceu.
Quando se virou para olhar para ela, Isabel viu o cocheiro em uma das janelas.
Eles haviam trancado as portas da carruagem.
— Fique aí dentro, ouviu? — Winston ordenou, deixando-a na escuridão.
— Sir Winston? — Isabel gritou, tentando abrir uma das portas, mas não obteve
sucesso. — Sir Winston, solte-me.
Frustrada, tentou pensar. Um momento depois, ouviu som de vozes. Baixas e
masculinas. Prestou mais atenção e ouviu passos na relva. Então, a porta se abriu.
— Jeremy? — ela disse, antes que um homem aparecesse na moldura da janela.
Isabel se afastou ao ver John.
Quinn andou pelas redondezas de Pearl Hall de cabeça baixa, para não ser
reconhecido pelos homens que trabalhavam nos estábulos nem pelos jardineiros. Quando
avistou a sra. Timmons varrendo os degraus da entrada de serviço, soube que a primeira
parte de sua estratégia estava completa. Ela e o marido eram leais e, se John estivesse em
casa, não lhe diriam nada sobre a presença de Quinn.
— Credo! — a sra. Timmons se assustou, ao vê-lo.
— Um copo de água para um velho mendigo, senhora? — ele disse, antes de a
mulher sorrir.
— Milorde? — ela perguntou, perscrutando-o.
— Sim, sou eu. Estou disfarçado. Pode encontrar seu marido para mim?
Quinn entrou na casa e sentou-se em uma mesa para descansar os pés. Alguns
minutos depois, Timmons atravessava a porta.
— Perdoe-me a intrusão — Quinn falou.
— Nunca se desculpe, milorde, nunca. A sra. Timmons disse que o senhor parecia
uma visão.
Quinn se esforçou para não rir. Poderia explicar a situação, mas naquele momento,
havia coisa mais importante a fazer.
— John está em casa?
— Saiu há uma hora.
— Ótimo. Preciso de um banho e das minhas roupas.
— É claro, milorde.
Quinn saiu da mesa mancando, devido à dor nos pés.
— Depois, meu amigo, quero a chave do quarto de John, da escrivaninha do meu
pai e da caixa-forte.
Timmons pareceu surpreso por um momento, mas logo sorriu com os cantos da
boca.
— Sim, milorde. Mandarei os criados levarem a banheira para seu quarto.
Depois de limpo e vestido, Quinn pegou as chaves que pedira ao mordomo.
— Quero que me acompanhe, Timmons. Seja mais um par de olhos e ouvidos para
servir de testemunha de minhas ações. Acredito que John tenha algo que me pertence.
Necessito dessa prova para me libertar completamente.
— Será uma honra para mim acompanhá-lo, milorde.
— Começaremos pelo quarto de John.
O mordomo girou a chave e os dois entraram. As cortinas estavam cerradas. Quinn
esperou que seus olhos se acostumassem à escuridão. Suspirando, abriu a gaveta da
mesa-de-cabeceira. Havia lenços, velas e uma pequena garrafa de óleo. Tinha até
biscoitos embrulhados em um guardanapo. Quinn fechou a gaveta, sentindo um misto de
decepção e alívio. Continuou a busca, sempre na presença de Timmons.
— Se eu fosse John e quisesse esconder alguma coisa, que lugar escolheria? —
Quinn murmurou para si mesmo.
— O sr. John fica no escritório durante muito tempo — Timmons informou.
— Então é para lá que vamos.
Quinn abriu a caixa-forte do pai. Havia muitas moedas de ouro, ações, uma cópia
do testamento. O que mais chamou sua atenção foi a Bíblia, presente da esposa ao
marquês, no dia do casamento. Quinn folheou o livro, perguntando-se se o pai alguma
vez a abrira. E ficou surpreso ao ver algumas páginas gastas pelo manuseio. Talvez o
homem tivesse lutado para tomar as decisões certas na vida adulta.
Devolveu a Bíblia ao lugar e trancou a caixa-forte, antes de ir até a escrivaninha.
Ainda podia ver o velho sentado ali na cadeira de couro. Agora, aquela escrivaninha
deveria ser sua.
Quinn sentou-se e destrancou todas as gavetas. Na primeira, havia o livro das
propriedades. Quinn o examinou, vendo as meticulosas anotações do irmão. Colocou-o
de lado e pegou outro menor. Abrindo-o, viu duas colunas na primeira página. Uma
coluna tinha a letra "S", no topo. E, abaixo, uma lista de números e datas. A segunda
coluna não era menos estranha. No alto estavam as letras "WH", e os números e datas
coincidiam com os da primeira coluna.
Percebendo que o tempo transcorria, passou para outra gaveta, onde encontrou
uma lista dos empregados e seus salários. Mas, quando ia fechá-la, alguma coisa chamou
sua atenção. Abriu-a de novo. A profundidade da gaveta de cima era muito menor em
relação à gaveta de baixo. Quinn removeu todo o seu conteúdo e passou a mão nas
laterais. Acabou encontrando um compartimento fechado. Tirou uma tampa falsa e olhou,
surpreso, para várias cartas.
Pegou um punhado, sabendo de antemão se tratar das cartas de Isabel.
— Encontrou alguma coisa, milorde?—Timmons murmurou.
Quinn leu a quem a carta era endereçada:
Lorde Kendrick, Prisão de Marshabea, setembro de 1858.
Trêmulo, abriu o envelope: