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Revista da Faculdade de Educação

ISSN 0102-2555 versão impressa

Rev. Fac. Educ. v.24 n.2 São Paulo jul./dez. 1998


Como citar
este artigo
doi: 10.1590/S0102-25551998000200007

A criança e a cultura lúdica

Gilles Brougère*

1. INTRODUÇÃO

Toda uma escola de pensamento, retomando os grandes temas


românticos inaugurados por Jean-Paul Richter e E. T. A. Hoffmann, vê
no brincar o espaço da criação cultural por excelência. Deve-se a
Winnicott a reativação de um pensamento segundo o qual o espaço
lúdico vai permitir ao indivíduo criar e entreter uma relação aberta e
positiva com a cultura: "Se brincar é essencial é porque é brincando
que o paciente se mostra criativo"1. Brincar é visto como um
mecanismo psicológico que garante ao sujeito manter uma certa
distância em relação ao real, fiel, na concepção de Freud, que vê no
brincar o modelo do princípio de prazer oposto ao princípio de
realidade2. Brincar torna-se o arquétipo de toda atividade cultural
que, como a arte, não se limita a uma relação simples com o real3.

Mas numa concepção como essa o paradoxo é que o lugar de


emergência e de enriquecimento da cultura é pensado fora de toda
cultura como expressão por excelência da subjetividade livre de
qualquer restrição, pois esta é ligada à realidade. A cultura nasceria
de uma instância e de um lugar marcados pela independência em
face de qualquer outra instância, sob a égide de uma criatividade que
poderia desabrochar sem obstáculos. O retrato é, sem dúvida,
exagerado, mas traduz a psicologização contemporânea do brincar,
que faz dele uma instância do indivíduo isolado das influências do
mundo, pelo menos quando a brincadeira real se mostra fiel a essa
idéia, recusando, por exemplo, qualquer ligação objetiva muito
impositiva, caso do brinquedo concebido exteriormente ao ato de
brincar. Encontramos aqui de volta o mito romântico tão bem
ilustrado em L’enfant étranger, de Hoffmann, onde o brinquedo se
opõe ao verdadeiro ato de brincar. Alguns autores negam a qualquer
construção cultural estável até mesmo o termo "brincadeira", "jogo".
Seriam uma apropriação do "brincar", essa dinâmica essencial ao ser
humano.

Concepções como essas apresentam o defeito de não levar em conta


a dimensão social da atividade humana que o jogo, tanto quanto
outros comportamentos, não pode descartar. Brincar não é uma
dinâmica interna do indivíduo, mas uma atividade dotada de uma
significação social precisa que, como outras, necessita de
aprendizagem. Desejaríamos, nesta comunicação, explorar as
conseqüências desse ponto de vista e dele extrair um modelo de
análise da atividade lúdica.

2. O ENRAIZAMENTO SOCIAL DO JOGO

Brincar supõe, de início, que no conjunto das atividades humanas,


algumas sejam repertoriadas e designadas como "brincar" a partir de
um processo de designação e de interpretação complexo. Não é
objetivo desta comunicação mostrar que esse processo de
designação varia no tempo de acordo com as diferentes culturas. O
ludus latino não é idêntico ao brincar francês. Cada cultura, em
função de analogias que estabelece, vai construir uma esfera
delimitada (de maneira mais vaga que precisa) aquilo que numa
determinada cultura é designável como jogo. O simples fato de
utilizar o termo não é neutro, mas traz em si um certo corte do real,
uma certa representação do mundo. Antes das novas formas de
pensar nascidas do romantismo, nossa cultura parece ter designado
como "brincar" uma atividade que se opõe a "trabalhar " (ver
Aristóteles e Santo Tomás sobre o assunto), caracterizada por sua
futilidade e oposição ao que é sério. Foi nesse contexto que a
atividade infantil pôde ser designada com o mesmo termo, mais para
salientar os aspectos negativos (oposição às tarefas sérias da vida) do
que por sua dimensão positiva, que só aparecerá quando a revolução
romântica inverter os valores atribuídos aos termos dessa oposição.

Seja como for, o jogo só existe dentro de um sistema de designação,


de interpretação das atividades humanas4. Uma das características
do jogo consiste efetivamente no fato de não dispor de nenhum
comportamento específico que permitiria separar claramente a
atividade lúdica de qualquer outro comportamento5. O que
caracteriza o jogo é menos o que se busca do que o modo como se
brinca, o estado de espírito com que se brinca. Isso leva a dar muita
importância à noção de interpretação, ao considerar uma atividade
como lúdica. Quem diz interpretação supõe um contexto cultural
subjacente ligado à linguagem, que permite dar sentido às atividades.
O jogo se inscreve num sistema de significações que nos leva, por
exemplo, a interpretar como brincar, em função da imagem que
temos dessa atividade, o comportamento do bebê, retomando este o
termo e integrando-o progressivamente ao seu incipiente sistema de
representação. Se isso é verdadeiro de todos os objetos do mundo, é
ainda mais verdadeiro de uma atividade que pressupõe uma
interpretação específica de sua relação com o mundo para existir. Se
é verdade que há a expressão de um sujeito no jogo, essa expressão
insere-se num sistema de significações, em outras palavras, numa
cultura que lhe dá sentido. Para que uma atividade seja um jogo é
necessário então que seja tomada e interpretada como tal pelos
atores sociais em função da imagem que têm dessa atividade.

Essa não é a única relação do jogo com uma cultura preexistente, não
é a única que invalida a idéia de ver na atividade lúdica a fonte da
cultura. O segundo ponto que gostaríamos de salientar tem seu
fundamento na literatura psicológica que atualmente insiste no
processo de aprendizagem que torna possível o ato de brincar6.
Parece que a criança, longe de saber brincar, deve aprender a
brincar, e que as brincadeiras chamadas de brincadeiras de bebés
entre a mãe e a criança são indiscutivelmente um dos lugares
essenciais dessa aprendizagem. A criança começa por inserir-se no
jogo preexistente da mãe mais como um brinquedo do que como uma
parceira, antes de desempenhar um papel mais ativo pelas
manifestações de contentamento que vão incitar a mãe a continuar
brincando. A seguir ela vai poder tornar-se um parceiro, assumindo,
por sua vez, o mesmo papel da mãe, ainda que de forma desajeitada,
como nas brincadeiras de esconder uma parte do corpo. A criança
aprende assim a reconhecer certas características essenciais do jogo:
o aspecto fictício, pois o corpo não desaparece de verdade, trata-se
de um faz-de-conta; a inversão dos papéis; a repetição que mostra
que a brincadeira não modifica a realidade, já que se pode sempre
voltar ao início; a necessidade de um acordo entre parceiros, mesmo
que a criança não consiga aceitar uma recusa do parceiro em
continuar brincando. Há, portanto, estruturas preexistentes que
definem a atividade lúdica em geral e cada brincadeira em particular,
e a criança as apreende antes de utilizá-las em novos contextos,
sozinha, em brincadeiras solitárias, ou então com outras crianças.
Não se trata aqui de expor a gênese do jogo na criança, mas de
considerar a presença de uma cultura preexistente que define o jogo,
torna-o possível e faz dele, mesmo em suas formas solitárias, uma
atividade cultural que supõe a aquisição de estruturas que a criança
vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para cada
nova atividade lúdica.

Que tentam provar esses exemplos senão a idéia de que antes de ser
um lugar de criação cultural, o jogo é um produto cultural, dotado de
uma certa autonomia? Conseqüentemente o primeiro efeito do jogo
não é entrar na cultura de uma forma geral, mas aprender essa
cultura particular que é a do jogo. Esquecemo-nos facilmente de que
quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um
universo simbólico particular. Isso se torna evidente se pensarmos no
jogo do xadrez ou nos esportes, em que o jogo é a ocasião de se
progredir nas habilidades exigidas no próprio jogo. Isso não significa
que não se possa transferi-las para outros campos, mas aprende-se
primeiramente aquilo que se relaciona com o jogo para depois aplicar
as competências adquiridas a outros terrenos não-lúdicos da vida. Por
isso é necessário aprender a contar antes de participar de jogos que
usam os números. O jogo supõe uma cultura específica ao jogo, mas
também o que se costuma chamar de cultura geral: os pré-requisitos.

A idéia que gostaríamos de propor e tratar a título de hipótese é a


existência de uma cultura lúdica, conjunto de regras e significações
próprias do jogo que o jogador adquire e domina no contexto de seu
jogo. Em vez de ver no jogo o lugar de desenvolvimento da cultura, é
necessário ver nele simplesmente o lugar de emergência e de
enriquecimento dessa cultura lúdica, essa mesma que torna o jogo
possível e permite enriquecer progressivamente a atividade lúdica. O
jogador precisa partilhar dessa cultura para poder jogar.

3. TENTATIVA DE DESCRIÇÃO DA CULTURA LÚDICA

Tentaremos definir as características dessa cultura lúdica antes de


examinar as relações que ela estabelece com o conjunto da cultura, e
as conseqüências que isso pode ter sobre a relação da criança com a
cultura numa perspectiva não mais psicológica, mas antropológica.

A cultura lúdica é, antes de tudo, um conjunto de procedimentos que


permitem tornar o jogo possível. Com Bateson e Goffman7
consideramos efetivamente o jogo como uma atividade de segundo
grau, isto é, uma atividade que supõe atribuir às significações de vida
comum um outro sentido, o que remete à idéia de fazer-de-conta, de
ruptura com as significações da vida quotidiana. Dispor de uma
cultura lúdica é dispor de um certo número de referências que
permitem interpretar como jogo atividades que poderiam não ser
vistas como tais por outras pessoas. Assim é que são raras as
crianças que se enganam quando se trata de discriminar no recreio
uma briga de verdade e uma briga de brincadeira. Isso não é fácil
para os adultos, sobretudo para aqueles que em suas atividades
quotidianas se encontram mais afastados das crianças. Não dispor
dessas referências é não poder brincar. Seria, por exemplo, reagir
com socos de verdade a um convite para uma briga lúdica. Se o jogo
é questão de interpretação, a cultura lúdica fornece referências
intersubjetivas a essa interpretação, o que não impede
evidentemente os erros de interpretação.

A cultura lúdica é, então, composta de um certo número de esquemas


que permitem iniciar a brincadeira, já que se trata de produzir uma
realidade diferente daquela da vida quotidiana: os verbos no
imperfeito, as quadrinhas, os gestos estereotipados do início das
brincadeiras compõem assim aquele vocabulário cuja aquisição é
indispensável ao jogo.

A cultura lúdica compreende evidentemente estruturas de jogo que


não se limitam às de jogos com regras. O conjunto das regras de jogo
disponíveis para os participantes numa determinada sociedade
compõe a cultura lúdica dessa sociedade e as regras que um
indivíduo conhece compõem sua própria cultura lúdica. O fato de se
tratar de jogos tradicionais ou de jogos recentes não interfere na
questão, mas é preciso saber que essa cultura das regras
individualiza-se, particulariza-se. Certos grupos adotam regras
específicas. A cultura lúdica não é um bloco monolítico mas um
conjunto vivo, diversificado conforme os indivíduos e os grupos, em
função dos hábitos lúdicos, das condições climáticas ou espaciais.

Mas a cultura lúdica compreende o que se poderia chamar de


esquemas de brincadeiras, para distingui-los das regras stricto sensu.
Trata-se de regras vagas, de estruturas gerais e imprecisas que
permitem organizar jogos de imitação ou de ficção. Encontram-se
brincadeiras do tipo "papai e mamãe" em que as crianças dispõem de
esquemas que são uma combinação complexa da observação da
realidade social, hábitos de jogo e suportes materiais disponíveis. Da
mesma forma, sistemas de oposições entre os mocinhos e bandidos
constituem esquemas bem gerais utilizáveis em jogos muito
diferentes. A cultura lúdica evolui com as transposições do esquema
de um tema para outro.

Finalmente a cultura lúdica compreende conteúdos mais precisos que


vêm revestir essas estruturas gerais, sob a forma de um personagem
(Superman ou qualquer outro) e produzem jogos particulares em
função dos interesses das crianças, das modas, da atualidade. A
cultura lúdica se apodera de elementos da cultura do meio-ambiente
da criança para aclimatá-la ao jogo.

Essa cultura diversifica-se segundo numerosos critérios.


Evidentemente, em primeiro lugar, a cultura em que está inserida a
criança e sua cultura lúdica. As culturas lúdicas não são (ainda?)
idênticas no Japão e nos Estados Unidos. Elas se diversificam também
conforme o meio social, a cidade e mais ainda o sexo da criança. É
evidente que não se pode ter a mesma cultura lúdica aos 4 e aos 12
anos, mas é interessante observar que a cultura lúdica das meninas e
dos meninos é ainda hoje marcada por grandes diferenças, embora
possam ter alguns elementos em comum.

Pode-se analisar nossa época destacando as especificidades da


cultura lúdica contemporânea, ligadas às características da
experiência lúdica em relação, entre outras, com o meio-ambiente e
os suportes de que a criança dispõe. Assim desenvolveram-se formas
solitárias de jogos, na realidade interações sociais diferidas através
de objetos portadores de ações e de significações. Uma das
características de nosso tempo é a multiplicação dos brinquedos8.
Podem-se evocar alguns exemplos como a importância que
adquiriram os bonecos, freqüentemente ligados a universos
imaginários, valorizando o jogo de projeção num mundo de miniatura.
Esse tipo de jogo não é novo, entretanto a cultura lúdica
contemporânea enriqueceu e aumentou a importância dessa
estrutura lúdica. Não podemos deixar de citar os video-games: uma
nova técnica cria novas experiências lúdicas que transformam a
cultura lúdica de muitas crianças. Tudo isso mostra a importância do
objeto na constituição da cultura lúdica contemporânea.

4. A PRODUÇÃO DA CULTURA LÚDICA

Seria interessante tentar levantar hipóteses sobre a produção dessa


cultura lúdica. Na realidade, como qualquer cultura, ela não existe
pairando acima de nossas cabeças, mas é produzida pelos indivíduos
que dela participam. Existe na medida em que é ativada por
operações concretas que são as próprias atividades lúdicas. Pode-se
dizer que é produzida por um duplo movimento interno e externo. A
criança adquire, constrói sua cultura lúdica brincando. É o conjunto de
sua experiência lúdica acumulada, começando pelas primeiras
brincadeiras de bebê, evocadas anteriormente, que constitui sua
cultura lúdica. Essa experiência é adquirida pela participação em
jogos com os companheiros, pela observação de outras crianças
(podemos ver no recreio os pequenos olhando os mais velhos antes
de se lançarem por sua vez na mesma brincadeira), pela manipulação
cada vez maior de objetos de jogo. Essa experiência permite o
enriquecimento do jogo em função evidentemente das competências
da criança, e é nesse nível que o substrato biológico e psicológico
intervêm para determinar do que a criança é capaz.. Os jogos de
ficção supõem a aquisição da capacidade de simbolização para
existirem. O desenvolvimento da criança determina as experiências
possíveis, mas não produz por si mesmo a cultura lúdica. Esta,
origina-se das interações sociais, do contato direto ou indireto
(manipulação do brinquedo: quem o concebeu não está presente,
mas trata-se realmente de uma interação social). A cultura lúdica
como toda cultura é o produto da interação social 9 que lança suas
raízes, como já foi dito, na interação precoce entre a mãe e o bebê.

Isso significa que essa experiência não é transferida para o indivíduo.


Ele é um co-construtor. Toda interação supõe efetivamente uma
interpretação das significações dadas aos objetos dessa interação
(indivíduos, ações, objetos materiais), e a criança vai agir em função
da significação que vai dar a esses objetos, adaptando-se à reação
dos outros elementos da interação, para reagir também e produzir
assim novas significações que vão ser interpretadas pelos outros. A
cultura lúdica, visto resultar de uma experiência lúdica, é então
produzida pelo sujeito social. O termo "construção" é mais
legitimamente empregado em sociologia, mas percebe-se aqui uma
dimensão de criação, se concordarmos sobre a definição desse termo.
Voltaremos ao assunto.

Mas a cultura lúdica, mesmo que esse isolamento conceitual


corresponda mais a uma necessidade de clareza na exposição do que
a uma realidade, é também objeto de uma produção externa. De fato,
essa experiência se alimenta continuamente de elementos vindos do
exterior, não oriundos do jogo. A cultura lúdica não está isolada da
cultura geral. Essa influência é multiforme e começa com o ambiente,
as condições materiais. As proibições dos pais, dos mestres, o espaço
colocado à disposição da escola, na cidade, em casa, vão pesar sobre
a experiência lúdica. Mas o processo é indireto, já que aí também se
trata de uma interação simbólica, pois, ao brincar, a criança
interpreta os elementos que serão inseridos, de acordo com sua
interpretação e não diretamente.

Alguns elementos parecem ter uma incidência especial sobre a


cultura lúdica. Trata-se hoje da cultura oferecida pela mídia, com a
qual as crianças estão em contato: a televisão e o brinquedo. A
televisão, assim como o brinquedo, transmite hoje conteúdos e às
vezes esquemas que contribuem para a modificação da cultura lúdica
que vem se tornando internacional. Mas, embora arriscando-me a
repetir, eu diria que o processo é o mesmo. Barbie intervém no jogo
na base da interpretação que a criança faz das significações que ela
traz10. De uma certa forma, esses novos modos de transmissão
substituíram os modos antigos de transmissão oral dentro de uma
faixa etária, propondo modelos de atividades lúdicas ou de objetos
lúdicos a construir. Não estamos dizendo que o sistema antigo foi
menos impositivo, de forma alguma.

Na realidade, há jogo quando a criança dispõe de significações, de


esquemas em estruturas que ela constrói no contexto de interações
sociais que lhe dão acesso a eles. Assim ela co-produz sua cultura
lúdica, diversificada conforme os indivíduos, o sexo, a idade, o meio
social. Efetivamente, de acordo com essas categorias, as experiências
e as interações serão diferentes. Meninas e meninos não farão as
mesmas experiências e as interações (como com os brinquedos que
ganham) não serão as mesmas. Então, portadores de uma
experiência lúdica acumulada, o uso que farão dos mesmos
brinquedos será diferente. Observamos meninas e meninos brincando
com bonecos fantásticos idênticos (da série He-Man, Mestres do
Universo) Os meninos inventavam jogos de guerra bastante
semelhantes a outros jogos com outros objetos, já as meninas, em
numerosos casos, utilizavam os bonecos para reproduzir os atos
essenciais da vida quotidiana (comer, dormir), reproduzindo os
esquemas de ação usados com as bonecas. Descobre-se assim uma
combinação, uma negociação entre as significações veiculadas pelos
objetos lúdicos e as de que as crianças dispõem graças à experiência
lúdica anterior.

Evidentemente deve-se desconfiar das palavras que usamos e evitar


que a cultura lúdica se constitua em substância: ela só existe
potencialmente – trata-se do conjunto de elementos de que uma
criança pode valer-se para seus jogos. Da mesma maneira que a
linguagem com suas regras e palavras, ela existe apenas como
virtualidade.

Mas o jogo deixa menos marcas que a linguagem, e há os que


pensam que ele só pode ser associado à subjetividade de um
indivíduo que obedece ao princípio do prazer. Trata-se de fato de um
ato social que produz uma cultura (um conjunto de significações)
específica e, ao mesmo tempo, é produzido por uma cultura.

Limitamo-nos à cultura lúdica infantil, mas existe também uma


cultura lúdica adulta, e é preciso igualmente situá-la dentro da cultura
infantil, isto é, no interior de um conjunto de significações produzidas
para e pela criança. A sociedade propõe numerosos produtos (livros,
filmes, brinquedos) às crianças. Esses produtos integram as
representações que os adultos fazem das crianças, bem como os
conhecimentos sobre a criança disponíveis numa determinada época.
Mas o que caracteriza a cultura lúdica é que apenas em parte ela é
uma produção da sociedade adulta, pelas restrições materiais
impostas à criança. Ela é igualmente a reação da criança ao conjunto
das propostas culturais, das interações que lhe são mais ou menos
impostas. Daí advém a riqueza, mas também a complexidade de uma
cultura em que se encontram tanto as marcas das concepções
adultas quanto a forma como a criança se adapta a elas. Os analistas
acentuam, então, uns, o condicionamento, outros, a inventividade, a
criação infantil. Mas o interessante é justamente poder considerar os
dois aspectos presentes num processo complexo de produção de
significações pelas crianças. É claro que o jogo é controlado pelos
adultos por diferentes meios, mas há na interação lúdica, solitária e
coletiva, algo de irredutível aos constrangimentos e suportes iniciais:
é a reformulação disso pela interpretação da criança, a abertura à
produção de significações inassimiláveis às condições preliminares.

5. ALGUMAS CONSEQÜÊNCIAS DE NOSSA ANÁLISE

Que conseqüências extrair desta rápida análise que tinha por objetivo
fornecer um quadro de referências a uma interpretação sócio-
antropológica do jogo?
O jogo é antes de tudo o lugar de construção (ou de criação, mas esta
palavra é, às vezes, perigosa!) de uma cultura lúdica. Ver nele a
invenção da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente
uma relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de
significações, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele
próprio requer para existir. É uma cultura rica, complexa e
diversificada.

Mas esse jogo, longe de ser a expressão livre de uma subjetividade, é


o produto de múltiplas interações sociais, e isso desde a sua
emergência na criança. É necessária a existência do social, de
significações a partilhar, de possibilidades de interpretação, portanto,
de cultura, para haver jogo. Isso supõe encontrar uma definição mais
restritiva que o habitual para a palavra jogo, e separá-lo, como fazem
cada vez mais os pesquisadores11, da exploração – comportamento
(comportamento de exploração) encontrado no animal e no homem, e
que pode ser anterior à emergência de uma interação social. Para
nós, acompanhando nesse ponto Bateson, o jogo supõe um acordo a
respeito do estatuto da comunicação, não sendo impossível que
certas espécies animais sejam capazes desse comportamento social
elementar. Mas acima de seu substrato natural, biológico, o jogo,
como qualquer atividade humana, só se desenvolve e tem sentido no
contexto das interações simbólicas, da cultura.

Que é feito então da criatividade atribuída ao jogo desde a revolução


romântica? Se definirmos a noção de criatividade a partir das teses
de Chomsky12 , poderemos retomar essa questão relativamente ao
jogo. A partir de palavras e estruturas gramaticais conhecidas, o
locutor pode pronunciar enunciados que jamais ouviu, que são novos
para ele, embora milhares de outras pessoas possam tê-los
pronunciado antes dele. Esse exemplo permite-nos redefinir a noção,
que se tornou usual, de criatividade. Ela é compatível com a noção de
regra, pois nasce do respeito de um conjunto de regras. É essencial e
corrente na língua. A criatividade é a possibilidade de usar a
linguagem para produzir enunciados pessoais, específicos, novos, e
não a de repetir enunciados ouvidos ou aprendidos, seja qual for o
valor intrínseco desses enunciados. Criatividade não significa
originalidade. Dizer pela primeira vez, sem tê-lo ouvido antes, um
enunciado produzido por outros, milhares de vezes, é usar a
dimensão criativa da língua, sem com isso ser original. Cada pessoa
pode criar no seu nível pessoal, sem que isso signifique uma criação
da humanidade tomada globalmente. Reservar a criatividade à
aparição de um enunciado absolutamente novo na história da
humanidade seria reduzi-la à exceção. O romantismo sobrevalorizou a
noção de criatividade, associando-a estreitamente à arte, e isso no
contexto de uma nova visão da atividade artística de que somos os
herdeiros. A arte torna-se o exemplo privilegiado da criatividade e,
em troca, não há verdadeira criatividade fora da arte. Assim, o poder
criador da linguagem só se expressaria realmente na poesia. Para
Schlegel, a língua comum é uma forma de arte primordial, mas só a
poesia revela as potencialidades criativas da língua. Não há
verdadeiramente criação e imaginação se não houver poesia. Além do
mais, a criança e o poeta estão em relação estreita. Relativamente à
análise do jogo, é preciso voltar a uma noção não "romantizada" da
criatividade. Trata-se de abordar a dimensão criativa do jogo,
conferindo a essa noção o sentido chomskyano da criatividade,
aceitando as semelhanças entre jogo e linguagem. Aceitemos a
banalidade da criatividade. Segundo esse modelo, quem brinca se
serve de elementos culturais heterogêneos para construir sua própria
cultura lúdica com significações individualizadas.

Resta uma última questão, a de saber se o jogo poderia ser um meio


privilegiado de acesso à cultura. É indiscutível que a cultura lúdica
participa do processo de socialização da criança. Deve-se considerar
que sua contribuição é essencial? Parece-me difícil de provar. Os que
defendem esse ponto de vista parecem movidos mais pelo interesse
pelo jogo do que por resultados científicos. Mas dizer que o jogo e a
cultura lúdica contribuem para a socialização nada significa, na
medida em que se pode dizer o mesmo de todas as experiências da
criança. A título de hipótese pode-se ir mais longe. A importância das
diferenças sexuais na cultura lúdica pode indicar-nos o papel que ela
pode representar na construção da identidade sexual13. Mas parece-
me interessante ressaltar um outro aspecto mais estrutural. O
processo usado na construção da cultura lúdica tem todos os
aspectos mais complexos da construção de significações pelo ser
humano (papel da experiência, aprendizagem progressiva, elementos
heterogêneos provenientes de fontes diversas, importância da
interação, da interpretação, diversificação da cultura conforme
diferentes critérios, importância da criatividade no sentido
chomskyano), e não é por acaso que o jogo freqüentemente é tomado
como modelo de funcionamento social pelos sociólogos. Pode-se
então considerar que através do jogo a criança faz a experiência do
processo cultural, da interação simbólica em toda a sua
complexidade. Daí a tentação de considerá-lo sob diversas formas
como origem da cultura. Pode-se imaginar que isso não pode ocorrer
sem produzir aprendizagens nesse campo, o que coloca o problema
delicado da transferenciabilidade. Seja como for, a experiência lúdica
aparece como um processo cultural suficientemente rico em si
mesmo para merecer ser analisado mesmo que não tivesse influência
sobre outros processos culturais mais amplos.

(Recebido em 27 de outubro de 1998; aprovado em 19 de novembro de 1998.)

* Professor da Universidade Paris-Nord.

Tradução de Ivone Mantoanelli e revisão de Tizuko Morchida Kishimoto.


1 Winnicott, Jeu et réalité, tr. fr., Paris : Gallimard, 1975, p. 26.

2 "Toda criança que brinca se comporta como um poeta, pelo fato de criar um mundo só
seu, ou, mais exatamente, por transpor as coisas do mundo em que vive para um
universo novo em acordo com suas conveniências." Sigmund Freud, "La création
littéraire et le rêve éveillé" (1908), in Essais de psychanalyse appliquée, tr. fr., Paris :
Gallimard, 1973, p. 70.

3 O poeta age como a criança que brinca; cria um mundo imaginário que leva muito a
sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, sem deixar de distingui-lo
claramente da realidade." Ibidem.

4 Ver sobre o assunto Jacques Henriot, Sous couleur de jouer - La métaphore ludique,
Paris, José Corti, 1989.

5 Ö caráter lúdico de um ato não vem da natureza do que é feito, mas da maneira como
é feito... O brincar não comporta nenhuma atividade instrumental que lhe seja própria.
Ele tira suas configurações de comportamentos de outros sistemas afetivos
comportamentais." P. C. Reynold, "Play, language and human evolution", citado por J.
S. Bruner, Le développement de l’enfant - Savoir faire, savoir dire, Paris : P.U.F., 1983,
p.223.

6 Pode-se certamente citar novamente Jerome Bruner, particularmente em sua tão bela
obra Child’s talk: learning to use language, Oxford University Press, Oxford, 1983, que
utilizei do ponto de vista de uma análise do jogo em Gilles Brougère, "How to change
words into play", Communication & Cognition, vol.27, n.3 (1994), p.273-86.

7 Gregory Bateson, "A theory of play and fantasy", in Steps of an ecology of mind,
St.Albans, Herts, Al: Paladin, 1973. Erving Goffman, Frame Analysis - An Essay of the
Organization of Experience, Nova York: Harper and Row, 1974.

8 Sobre a análise do brinquedo moderno pode-se consultar Gilles Brougère (dir.), Le


Jouet, Autrement, n.133, novembro de 1992, Brian Sutton-Smith, Toys as culture, Nova
York : Gardner Press, 1986, Stephen Kline, Out of the garden - Toys and children’s
culture in the age of TV marketing, Toronto: Garamond Press, London: verso, 1993.

9 Referimo-nos de maneira implícita à corrente do interacionismo simbólico, tal como


vem definido em Herbert Blumer, Symbolic Interactionism - Perspective and Method,
[1969], Berkeley : University of California Press, 1986.

10 A esse respeito ver Gilles Brougère, "Désirs actuels et images d’avenir dans le jeu",
in L’éducation par le jeu et l’environnement, n.47, 3. trimestre 1992.

11 Ver, por exemplo, S. John Hutt et al., Play, exploration and learning - A natural
history of pre pre-school, London : Routledge, 1989

12 N. Chomsky, La linguistique cartésienne [1966], tr. fr. Paris, Le Seuil, 1969.


Segundo esse autor, há dois tipos de criatividade, aquela que modifica as regras,
freqüentemente considerada com exclusão da outra, e a que é engendrada pelas próprias
regras. Chomsky mostrou como, de Descartes a Humboldt, a lingüística dos séculos
XVII a XIX percebeu essa dimensão criativa que a lingüística moderna nem sempre
tomou em consideração. O aspecto criador da língua evidencia, segundo Chomsky, na
trilha de Descartes e seus discípulos, a capacidade humana de inovar. Para a filosofia
clássica é essa característica que distingue o homem do autômato ou do animal. A
conseqüência é que a língua não fica reduzida a uma função de comunicação (reação
adequada a estímulos ) mas é igualmente "um instrumento para exprimir livremente o
pensamento e para reagir a situações novas" (op. cit., p.36). É essa característica da
língua que permite ao homem evadir-se ao mesmo tempo da situação presente e dos
modelos de uso da língua com que está familiarizado. Pode personalizar suas
mensagens, evocar o que não existe, inventar, inovar, permanecendo numa situação de
comunicação possível, isto é, de ser compreendido por outros, o que supõe o respeito
das regras lingüísticas e gramaticais. Criação e respeito às regras caminham lado a lado.

13 Sobre esse assunto, cf. Pierre Tap, Masculin et féminin chez l’enfant, Toulouse:
Privat, 1985.

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