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Gilles Brougère*
1. INTRODUÇÃO
Essa não é a única relação do jogo com uma cultura preexistente, não
é a única que invalida a idéia de ver na atividade lúdica a fonte da
cultura. O segundo ponto que gostaríamos de salientar tem seu
fundamento na literatura psicológica que atualmente insiste no
processo de aprendizagem que torna possível o ato de brincar6.
Parece que a criança, longe de saber brincar, deve aprender a
brincar, e que as brincadeiras chamadas de brincadeiras de bebés
entre a mãe e a criança são indiscutivelmente um dos lugares
essenciais dessa aprendizagem. A criança começa por inserir-se no
jogo preexistente da mãe mais como um brinquedo do que como uma
parceira, antes de desempenhar um papel mais ativo pelas
manifestações de contentamento que vão incitar a mãe a continuar
brincando. A seguir ela vai poder tornar-se um parceiro, assumindo,
por sua vez, o mesmo papel da mãe, ainda que de forma desajeitada,
como nas brincadeiras de esconder uma parte do corpo. A criança
aprende assim a reconhecer certas características essenciais do jogo:
o aspecto fictício, pois o corpo não desaparece de verdade, trata-se
de um faz-de-conta; a inversão dos papéis; a repetição que mostra
que a brincadeira não modifica a realidade, já que se pode sempre
voltar ao início; a necessidade de um acordo entre parceiros, mesmo
que a criança não consiga aceitar uma recusa do parceiro em
continuar brincando. Há, portanto, estruturas preexistentes que
definem a atividade lúdica em geral e cada brincadeira em particular,
e a criança as apreende antes de utilizá-las em novos contextos,
sozinha, em brincadeiras solitárias, ou então com outras crianças.
Não se trata aqui de expor a gênese do jogo na criança, mas de
considerar a presença de uma cultura preexistente que define o jogo,
torna-o possível e faz dele, mesmo em suas formas solitárias, uma
atividade cultural que supõe a aquisição de estruturas que a criança
vai assimilar de maneira mais ou menos personalizada para cada
nova atividade lúdica.
Que tentam provar esses exemplos senão a idéia de que antes de ser
um lugar de criação cultural, o jogo é um produto cultural, dotado de
uma certa autonomia? Conseqüentemente o primeiro efeito do jogo
não é entrar na cultura de uma forma geral, mas aprender essa
cultura particular que é a do jogo. Esquecemo-nos facilmente de que
quando se brinca se aprende antes de tudo a brincar, a controlar um
universo simbólico particular. Isso se torna evidente se pensarmos no
jogo do xadrez ou nos esportes, em que o jogo é a ocasião de se
progredir nas habilidades exigidas no próprio jogo. Isso não significa
que não se possa transferi-las para outros campos, mas aprende-se
primeiramente aquilo que se relaciona com o jogo para depois aplicar
as competências adquiridas a outros terrenos não-lúdicos da vida. Por
isso é necessário aprender a contar antes de participar de jogos que
usam os números. O jogo supõe uma cultura específica ao jogo, mas
também o que se costuma chamar de cultura geral: os pré-requisitos.
Que conseqüências extrair desta rápida análise que tinha por objetivo
fornecer um quadro de referências a uma interpretação sócio-
antropológica do jogo?
O jogo é antes de tudo o lugar de construção (ou de criação, mas esta
palavra é, às vezes, perigosa!) de uma cultura lúdica. Ver nele a
invenção da cultura geral falta ainda ser provado. Existe realmente
uma relação profunda entre jogo e cultura, jogo e produção de
significações, mas no sentido de que o jogo produz a cultura que ele
próprio requer para existir. É uma cultura rica, complexa e
diversificada.
2 "Toda criança que brinca se comporta como um poeta, pelo fato de criar um mundo só
seu, ou, mais exatamente, por transpor as coisas do mundo em que vive para um
universo novo em acordo com suas conveniências." Sigmund Freud, "La création
littéraire et le rêve éveillé" (1908), in Essais de psychanalyse appliquée, tr. fr., Paris :
Gallimard, 1973, p. 70.
3 O poeta age como a criança que brinca; cria um mundo imaginário que leva muito a
sério, isto é, que dota de grandes qualidades de afetos, sem deixar de distingui-lo
claramente da realidade." Ibidem.
4 Ver sobre o assunto Jacques Henriot, Sous couleur de jouer - La métaphore ludique,
Paris, José Corti, 1989.
5 Ö caráter lúdico de um ato não vem da natureza do que é feito, mas da maneira como
é feito... O brincar não comporta nenhuma atividade instrumental que lhe seja própria.
Ele tira suas configurações de comportamentos de outros sistemas afetivos
comportamentais." P. C. Reynold, "Play, language and human evolution", citado por J.
S. Bruner, Le développement de l’enfant - Savoir faire, savoir dire, Paris : P.U.F., 1983,
p.223.
6 Pode-se certamente citar novamente Jerome Bruner, particularmente em sua tão bela
obra Child’s talk: learning to use language, Oxford University Press, Oxford, 1983, que
utilizei do ponto de vista de uma análise do jogo em Gilles Brougère, "How to change
words into play", Communication & Cognition, vol.27, n.3 (1994), p.273-86.
7 Gregory Bateson, "A theory of play and fantasy", in Steps of an ecology of mind,
St.Albans, Herts, Al: Paladin, 1973. Erving Goffman, Frame Analysis - An Essay of the
Organization of Experience, Nova York: Harper and Row, 1974.
10 A esse respeito ver Gilles Brougère, "Désirs actuels et images d’avenir dans le jeu",
in L’éducation par le jeu et l’environnement, n.47, 3. trimestre 1992.
11 Ver, por exemplo, S. John Hutt et al., Play, exploration and learning - A natural
history of pre pre-school, London : Routledge, 1989
13 Sobre esse assunto, cf. Pierre Tap, Masculin et féminin chez l’enfant, Toulouse:
Privat, 1985.