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Faz quatro horas que estou diante do teclado, quebrando a cabeça; faço pausas para o café,
circulo pelo escritório, o olhar vagueia. Ao meu lado, pilhas de material para a pesquisa:
informação de sobra para o artigo que em três dias, no máximo, precisa estar na mesa do
redator-chefe. Até agora, apenas uma palavra no monitor: criatividade - o assunto do texto. E
quanto mais remôo as idéias, menos tenho para pôr no papel!
O segredo das cabeças geniais já ocupava os cientistas no início do século XIX, em especial o
médico austríaco Franz Joseph Gall (1758-1828). Ele estava convicto de que o espírito criativo
teria de se manifestar em algum lugar no cérebro de quem o detivesse, de modo que seria
possível esquadrinhá-lo com base na forma, sulcos, circunvoluções e peso do órgão do
pensamento. Mas a tese de Gall era comprovadamente um erro: a confraria dos chamados
frenólogos jamais descobriu o abaulamento craniano que identificasse o gênio, e a massa
uniforme de células cinzentas nada tem a dizer sobre as próprias qualidades.
Duzentos anos mais tarde o tema criatividade parece mais atual que nunca. Líderes
empresariais e políticos exigem soluções inovadoras para problemas como o desemprego em
massa e o iminente colapso do sistema previdenciário. As empresas enviam seus
funcionários a workshops de criatividade, profissões criativas como designer ou músico
conquistam a preferência, mesmo em relação a médicos e advogados, e nas livrarias perde-
se a conta dos livros de conselhos e treinamento em áreas ligadas à criação.
Treinando a criatividade
Mesmo que isso não ajude muito a resolver minha falta de inventividade, os resultados das
pesquisas trazem em essência algum consolo e prometem esperanças para o futuro. Pois
criatividade não é um dom dos deuses e pode, isso sim, ser estimulada e treinada. Isso não
significa que haja em cada pessoa um gênio adormecido; mas o pensamento criativo, como
muitos outros processos criativos, segue regras definidas. Nesse ponto os cientistas estão
amplamente de acordo: é possível criar as condições básicas necessárias para se aproveitar
ao máximo o potencial criativo de cada um, bastando, para isso, mudanças na postura e nas
"condições circundantes" que se oferecem. E o que está em questão, de início, são coisas
aparentemente muito simples: curiosidade, a vontade de surpreender-se, a coragem de
derrubar certas muralhas intelectuais e a confiança em ser capaz.
Mas por que o "motor mental da criatividade" - segundo a designação de Smith para o órgão
do pensamento - para alguns está em atividade máxima permanente, enquanto outros lutam
dias a fio por um pouco de inspiração? Em todo caso, a inteligência em sentido convencional
parece não ser o critério decisivo. Alguns dos primeiros a perceber tal coisa foram os
militares americanos. Na II Guerra Mundial, a Força Aérea dos Estados Unidos saiu em busca
de pilotos de combate que se mostrassem capazes de encontrar soluções inusitadas,
também em situações de stress. Em uma emergência, por exemplo, esses candidatos não
deveriam simplesmente acionar o assento ejetor, mas encontrar uma possibilidade menos
esquemática de salvar a própria vida e a aeronave. Na seleção foi usado primeiro o teste
clássico de inteligência. Mas os militares logo notaram que esse método não era eficiente
para encontrar os pilotos criativos que procuravam. Um quociente de inteligência (QI) alto
não é de grande serventia quando se trata de resolver problemas que exijam soluções fora
do comum.
Isso também havia chamado a atenção do psicólogo americano Joy Paul Guilford (1897-
1987). Ele observou que a inteligência, com testes bem elaborados, pode ser mensurada de
maneira relativamente confiável, mas que o resultado não reflete a aptidão cognitiva da
pessoa como um todo. Sob tal ponto de partida, ele desenvolveu no final dos anos 40 um
modelo de entendimento humano que serviu de fundamento à pesquisa moderna sobre a
criatividade. O ponto decisivo na concepção de Guilford foi a distinção entre pensamento
convergente e divergente.
Idéias borbulhando
Sobre o conceito de pensamento divergente, que ainda continua sendo bastante nebuloso, os
especialistas definiram até hoje pelo menos seis traços característicos:
Suponha que você esteja lendo um poema de Goethe. O hemisfério esquerdo analisa a
seqüência de letras, compõem-nas de modo que formem palavras e frases segundo as regras
lógicas da linguagem escrita, averigua se a gramática e a sintaxe resultam sensatas, e
apreende o conteúdo concreto. Mas é apenas o direito que fará do poema mais que uma
mera sucessão de letras, conceitos e sentenças. Ele integra as informações a idéias e noções
próprias, faz surgir imagens na mente, reconhece o significado metafórico mais geral.
Mas se todos temos um hemisfério direito, e portanto as condições básicas para fazer brotar
idéias não ortodoxas sem parar, por que a criatividade é um bem tão raro e requisitado? Ora,
talvez porque seja melhor dizer que detínhamos essas condições! Na infância a força criadora
praticamente não tem limites. É só mexer um pouco aqui, misturar muita fantasia e
imaginação, e pronto: a mesa da sala e a velha toalha transformam-se - vapt, vupt - em um
castelo, o aspirador vira um cavalo, e a colher de pau uma espada. Educadores não cansam
de criticar que já nas primeiras séries se dê grande valor à solução correta das tarefas, mas
nem tanto a soluções criativas. A sociedade moderna, preocupada com resultados, exige
especialmente as qualidades da metade esquerda do cérebro, ou seja, pensamento lógico
orientado a um fim, habilidades matemáticas e talento para línguas.
Com o tempo parecemos internalizar cada vez mais essa maneira de agir - às custas do
potencial criativo. Pois o cérebro acostuma-se; e diante de um problema prefere recorrer ao
que já conhece, em vez de trilhar caminhos novos ou menos conhecidos. Por não treinarmos
nossa capacidade criativa, nosso espírito criativo vai ficando inerte, dificultando a superação
de bloqueios no pensamento. Michael Michalko, um dos mais importantes treinadores de
critatividade nos Estados Unidos, certa vez formulou a questão da seguinte maneira:
"Quando só se pensa como sempre se pensou, só se vai manter o que sempre se manteve -
as mesmas velhas idéias."
Se no meu caso não acontecem lampejos geniais, isso talvez ocorra porque meu hemisfério
esquerdo, aferido segundo a lógica, não deixa funcionar a máquina de criatividade que se
encontra do outro lado. Recentemente, Bruce L. Miller, da Universidade da Califórnia, em San
Francisco, constatou que a demência frontal-temporal danifica seletivamente os neurônios
dos lóbulos frontal e temporal - ou seja, regiões cerebrais que controlam, além da linguagem,
também o comportamento social. Em decorrência disso, os pacientes com essa rara forma de
demência apresentam déficit cognitivo, perda de memória, e sofrem a redução de suas
capacidades no convívio social. Tornam-se introvertidos, comportam-se de maneira
estereotipada e quase não têm barreiras quando se trata de ferir normas sociais. Em
contrapartida, suas forças criativas parecem desenvolver-se de uma maneira muito mais
desimpedida, como se somente a doença permitisse que se libertassem dos grilhões formais
de sua formação.
"O último lugar em que se esperam encontrar quaisquer aptidões desabrochando é o cérebro
de alguém cujas capacidades intelectuais estão se esvaindo por causa de uma demência",
surpreende-se. Mas neurocientista identificou pacientes que, sofrendo de demência
frontotemporal, desenvolveram um talento artístico surpreendente - e isso, no caso de
muitos, mesmo que nunca tivessem se interessado por questões artísticas.
Com auxílio de procedimentos por imagem, Miller constatou que também nesses pacientes a
perda de células nervosas atingia em primeira linha o lado esquerdo do cérebro, tornando-os
progressivamente anti-sociais. "Foi apenas com a perda das coerções sociais e com o
crescente desprendimento que essas aptidões adormecidas puderam se desenvolver",
explica, para em seguida traçar um paralelo com gênios criativos como van Gogh ou Goya,
que ignoraram normas sociais para viver de maneira plena suas idéias criadoras não
ortodoxas, contrariando as convenções de sua época. A capacidade de simplesmente
ultrapassar limitações sociais e cognitivas seria assim uma qualidade típica de grandes
artistas.
Mas engana-se quem pensa ser seu hemisfério esquerdo o único impedimento para que
afinal possa vir à tona o gênio latente em si mesmo. Embora as idéias novas borbulhem
predominantemente ao lado direito, nem toda idéia inovadora é necessariamente boa. Pelo
contrário, não é raro que lampejos intuitivos simplesmente passem ao largo do problema
proposto ou sejam mesmo malucos e nada mais.
Lampejos fundamentados
Com isso Edison descreve uma característica essencial da fase de preparação: ela é
desgastante e pode tomar muito tempo. Isso leva muitas pessoas a fracassar em sua busca
de boas idéias inovadoras. Identificado o problema, é preciso confrontar-se com ele e iluminá-
lo a partir de todos os ângulos conhecidos e também de novos e desconhecidos. Pois um
segredo da criatividade consiste em mudar a perspectiva e considerar as coisas sob uma
nova luz. É nesse ponto que as técnicas de desenvolvimento da criatividade procuram
centrar-se. Diante disso, não faz sentido enfocar em demasia a solução. O processo todo
deveria assemelhar-se a uma viagem de descobrimento que pudesse levar a todas as
direções possíveis. E aqui entra em jogo mais uma vez os conhecimentos sólidos de base, já
que soluções novas surgem à medida que sempre reordenamos idéias, noções e intuições
existentes, como peças de um jogo de montar.
Assim, elas não oneram a capacidade do cérebro, mas tampouco ingressam nos processos do
pensamento. Ora, como a criatividade é a capacidade de ligar frações de dados esparsas, e
então concatená-las de modo a formarem algo novo, uma inibição latente menos
pronunciada ajuda o espírito inventivo a dar saltos maiores. Com a inibição menor, o cérebro
criador recebe uma quantidade maior de material para processar.
No entanto, mesmo quem não foi agraciado por uma inibição mais tênue angaria vantagens
na procura por lampejos intelectuais quando se dedica a compilar o maior número possível
de idéias e impressões. E ao fazê-lo cada um deveria, sem falta, preocupar-se com olhar para
além das fronteiras de sua própria área de atuação, rumo a mundos diversos. Pois o excesso
de conhecimento especializado não deve impedir o caminho da criação inventiva.
Via de regra a criatividade não sabe lidar com pressão. É por isso que muitos achados geniais
nasceram também fora dos laboratórios - em situações que nada têm a ver com o trabalho.
Arquimedes estava deitado na banheira quando lhe ocorreu a lei do empuxo e ele bradou seu
famoso "Heureka!". August Kekulé sonhava com serpentes que mordiam o próprio rabo. A
grande descoberta ele fez no dia seguinte: a estrutura química do benzol tinha que ser
aneliforme.
Lampejos intelectuais criativos ocorrem para a maioria das pessoas em situações nas quais
elas estão justamente pensando em algo totalmente diverso: nas férias, no passeio de
domingo ou antes de adormecer. Esse fenômeno tem uma explicação: desde que o cérebro
tenha sido alimentado corretamente na fase de preparação, é notório que continua
trabalhando em uma solução, mesmo quando nos afastamos do problema por algum tempo.
Esse processo que antecede a descoberta inusitada se denomina incubação.
Estudiosos da criatividade supõem que nessa fase atenuam-se as ligações associativas entre
idéias e noções presentes na memória, as quais são sobrecarregadas e alteradas por outras
informações que chegam nesse entremeio. Portanto, um pouco de descontração e distância
temporal transformam o olhar que incide sobre o problema, sem que esse processo se torne
consciente; assim, garantem-se discernimentos alternativos e criam-se as condições para
uma nova tentativa de solução, talvez mais criativa.
Dessa maneira, segundo Steven M. Smith, nosso cérebro poderia superar as barreiras de
pensamento, durante a fase de incubação. Em um momento qualquer, novas associações
irrompem e o espírito criativo finalmente recebe a tão esperada recompensa: a iluminação, o
conhecimento intuitivo e repentino: "É isso!" Segundo o modelo de fases do pensamento
criativo, o cérebro é praticamente obrigado a nos agraciar com esse momento de revelação -
desde que haja uma fase de preparação adequada e, na seqüência, uma fase de incubação.
Fica uma pedra no caminho: os processos que se cumprem durante a fase de incubação
permanecem ocultos à nossa consciência, portanto não podem ser influenciados nem
acelerados de maneira ativa. Por isso, mesmo quem tem o mais criativo dos espíritos precisa
às vezes exercitar-se em uma determinada arte: a paciência.
Dicas para o pensamento criativo
Descobrir e espantar-se: Procure todos os dias encontrar algo que lhe cause
admiração. Pessoas especialmente criativas conservam por toda vida espírito
investigativo e curiosidade infantil. Diante disso, é importante questionar até os
conhecimentos que parecem seguros. Anotando o que lhe pareceu inusitado e estranho,
você poderá fortalecer sua percepção.
Creativity and the Mind: Discovering the Genius Within. T. Ward, S. Smith, R. Finke.
Perseus Publishing, 1995.