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O escritor espanhol Enrique Vila-Matas "entrou" para a literatura de uma forma muito
especial.
Logo nos primeiros anos de colégio, apaixonou-se por uma daquelas adolescentes lindas
e inalcançáveis que só quem já foi adolescente apaixonado sabe como é difícil (e
necessário) alcançar.
Traçou um plano.
Copiou numa folha de caderno um poema do grande lírico espanhol Luis Cernuda, tendo,
contudo, o cuidado de inserir, no meio do poema, um verso de sua própria autoria.
Ofereceu-o à moça.
No dia seguinte, quando recebeu os calorosos cumprimentos da, já não tão inacessível,
jovem, pode compensar a sensação de fraude com a deliciosa sensação de que, em
verdade, uma pequena parte daqueles elogios era de fato merecida, já que era autor de
um dos versos do poema.
Na semana seguinte: a mesma estratégia e outro poema de Luis Cernuda foi copiado no
caderno, agora "infiltrado" por dois versos do próprio Vila-Matas.
A coisa seguiu assim até que a moça, totalmente conquistada, já recebia poemas inteiros
de Vila-Matas, sem a presença, agora incômoda, de Luis Cernuda.
A moça passou, mas Vila-Matas nunca mais abandonou a literatura. Embora, após a
adolescência, tenha trocado a poesia pela prosa. Inclusive porque sempre há outras
musas a conquistar, a quem dedicar poemas... algumas de nomes muito conhecidos:
"Glória", "Revolução", "Verdade"... Voltaremos a falar delas.
***
É uma pena que nem a jovem e nem Vila-Matas tenham guardado os "originais" desses
poemas. Assim teríamos uma idéia mais clara de como o autor de Bartleby e companhia
foi afirmando sua própria voz no meio do cânone, representado ali pela grandeza de Luis
Cernuda.
Afirmar sua própria voz em meio a uma tradição de tão poderosos solistas, os Baudelaire,
os Drummond, os Shakespeare, as Ana Cristina Cesar, os César Vallejo, os Paulo
Leminski, as Emily Dickinson etc, não é brincadeira...
Não é brincadeira, mas Borges conseguiu, Thomas Bernard conseguiu, Czeslaw Milosz
conseguiu, Paulo Henriques Britto conseguiu, Lu Menezes conseguiu... e não importam
aqui hierarquizações do tipo "quem é mais importante que quem"... Deixemos essa ociosa
tarefa para os que acham alguma graça em hierarquizar coisas que podem muito bem ser
vistas de uma perspectiva não-hierárquica...
Num de seus textos mais interessantes, T. S. Eliot dizia que toda vez que encontrava um
sujeito que gostava de absolutamente "todos" os autores bons, e desprezava
absolutamente "todos" os autores "não-bons", sentia que estava diante de alguém que era
mais um "bom aluno" do que um verdadeiro amante da poesia... Alguém que aprendeu
tudo direitinho...
Para ele, o sujeito realmente apaixonado por poesia deveria desgostar de pelo menos um
poeta maior, daqueles que todo mundo gosta... e deveria, por algum motivo misterioso,
trazer bem dentro do coração algum poeta menor, daqueles que ninguém gosta...
Porque na poesia acontece um pouco como no amor. Você tem todos os motivos para
gostar daquela pessoa que seria perfeita pra você... mas não gosta... Ao invés disso,
adora aquele ser que todos dizem (e você bem sabe) que não presta...
Como diz o poema "A acácia-meleira rosa", do poeta norte-americano William Carlos
Williams, um grande poeta que inventou seu lugar no meio da mais esplendorosa geração
de poetas dos Estados Unidos:
"E assim,
como esta flor,
eu persevero –
pela importância que isso possa ter.
Não sou,
e bem o sei,
na galáxia dos poetas
uma rosa,
mas quem, entre os demais,
me negará
o meu lugar."
***
Poesia?
Glória?
Revolução?
Verdade?
"Revolução" também não. É o tipo de garota que no final pode se voltar contra você.
Mesmo sabendo que você daria a vida por ela.
Quanto à "Verdade"... bem que poderia acusá-la de falta de imaginação. De viver copiando
os outros. De viver dizendo o que é certo e o que é errado. Sem falar que seus dois
irmãos, "Realismo" e "Naturalismo", são dois sujeitos fortões que não permitem a menor
liberdade com "Verdade". Mas acho que o golpe fatal que pode ser dado nessa garota é
outro: com o tempo, sempre é desmentida.
Mas não fique assim, desanimado... repare naquele outro grupinho, o das "garotas más":
"Mentira", "Fantasia", "Invenção"... e no grupo de "rapazes maus": "Logro", "Fingimento",
"Falso Testemunho"... Essa turma é boa...
É claro que não são coisas que você vai querer encontrar na chamada "vida real". Mas
para a "vida simbolizada", aquela dos poemas, dos contos, dos romances, são
ingredientes fantásticos.
*
Alguém pode perguntar assim: "Mas quer dizer então que aquele pungente e emocionante
sentimento que encontramos, por exemplo, num poema belíssimo como "Algo preto", no
qual o francês Jacques Roubaud fala do desaparecimento de sua esposa, é fingimento?"
De jeito nenhum.
Mas pense bem. Se você descobrisse que aquilo era uma invenção do Roubaud, que
nunca houve essa esposa... que era tudo ficção... o poema seria menos "belíssimo"?
Ou melhor: é menos belíssima por ser inventada a história de Anna Karenina? A história e
o final trágico de Madame Bovary são menos pungentes por sabermos que Madame
Bovary nunca existiu, ou, como dizia Flaubert, Madame Bovary era ele?
Um dos poemas mais famosos do romantismo francês é "O lago", de Lamartine, que dizia
tê-lo escrito de um jato, fulminado por uma inspiração, quando caminhava à beira de um
lago. Depois de sua morte, pesquisadores encontraram, entre os seus papéis, rascunhos
que atestam que o poema levou um bom tempo, no mínimo quatro meses, entre seu
nascimento e sua versão final... muito diversa da primeira...
Se você disse sim, então talvez você goste menos de poesia do que de processos
mediúnicos... Tem gente que não acha graça nenhuma no fato do homem ter colocado um
foguete de centenas de toneladas na lua, e tê-lo trazido de volta... mas basta alguém lhe
dizer que presenciou um copo que se movia sozinho sobre uma mesa de vidente que cairá
de joelhos maravilhado...
Se você está escrevendo um romance, um poema ou um conto, não importa se o que está
narrando aconteceu ou não... O importante é saber se em algum momento, para ser mais
"fiel" ao fato real, você aceitou desligar a chave da imaginação... isso sim é imperdoável...
***
Cabe, aliás, perguntar: será verdadeira aquela história contada por Enrique Vila-Matas?
***
Bem, se você chegou até aqui, parece que está preparado para o jogo da oficina literária.
E como todo jogo, este deve começar com as regras sendo muito bem esclarecidas.
A oficina será composta por dez módulos (aulas). Em cada módulo apresentaremos um
tema específico (por exemplo: o poema em prosa, poesia e pintura, poesia e cinema,
monólogo dramático, enumeração caótica na poesia moderna etc.).
Daremos sugestões de leitura crítica sobre o tema, para aqueles que desejarem se
aprofundar no assunto.
E, é claro, pediremos que escrevam poemas em prosa. Com sugestões técnicas que
podem ser seguidas ou não. Em geral serão sugestões que ajudem a quebrar a rigidez
dos modelos... afinal, ninguém está aqui para ser um bom aluno, todo mundo está aqui
querendo escrever poemas, falar sobre poesia...
***
Na verdade, nosso processo será um pouco como o do Vila-Matas, exposto nos primeiros
parágrafos deste texto.
Lembram do episódio Bíblico (Gênesis, 18), quando Deus queria destruir Sodoma?
Abraão intercedeu pela cidade, dizendo que se houvesse cinqüenta justos na cidade, eles
não poderiam pagar pelos injustos.
Abraão depois fala em quarenta e cinco, depois quarenta, depois trinta, e no final fica
combinado que a cidade seria salva se ali houvesse dez homens justos.
Pois bem. Digam-me se não foi inserindo a própria voz e poesia nessa história tão antiga
que Jorge Luis Borges escreveu seu poema "Os justos":
OS JUSTOS
***
Esta primeira aula eu acho que contou mais como uma exposição de motivos, não é? Mas
penso que abordamos questões importantes. De todo modo, se você já quiser um
exercício ou sugestão para um poema, que tal usar o "procedimento Vila-Matas"?
Pegue um poema de algum poeta de sua preferência e insira nele uma estrofe inteira de
sua autoria... depois, pegue sua estrofe e faça o seu próprio poema... podemos considerar
que os poetas nascem uns dos outros, e que do casulo de um sai a borboleta de outro...
Não se prenda a questões como "angústia da influência", "atentado à originalidade"... tente
só se divertir um pouco...
Até breve...
Uma das definições mais conhecidas de "poesia lírica" afirma que ela é "a expressão do
EU do poeta".
Mas o que fazer com tal definição hoje, depois do tal "EU" ter passado, nos séculos 19 e
20, pelo bombardeio pesado da psicanálise, da lingüística e da filosofia?
Se ele (ou seja, o "EU") não desapareceu totalmente, como proclamaram com certa
afoiteza os que consideravam que o poema era escrito metade pela linguagem e metade
pela sociedade (na qual o poeta teria a função de ser uma espécie de "impressora"),
depois desse bombardeio ele perdeu muito de sua pose, de sua pretensão. De
"inalterável" e "sempre idêntico a sim mesmo" passou a ser "variável e ambíguo". De
"íntegro e indivisível" passou a ser "fragmentado, estilhaçado".
Carlos Drummond de Andrade se deu conta disso e batizou uma seção de sua Antologia
poética de "Um Eu todo retorcido", imagem que não deixa de lembrar aquelas estátuas
derretidas, retorcidas, quebradas, destruídas, das cidades bombardeadas na Segunda
Guerra Mundial, estátuas que antes ostentavam, em bronze e mármore, uma olímpica
pretensão de eternidade.
aqui jaz
para o seu
deleite
sebastião
uchoa
leite
O grande poeta peruano César Vallejo termina com os seguintes tercetos o seu soneto
"Pedra negra sobre uma pedra branca":
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau a pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhadaputa
de fazer chover
no nosso piquenique.
E há o texto irônico, belo e radical, de Aníbal Cristobo que, a partir do próprio título "Ghost
Writer", brinca com essa condição fantasmagórica, zumbi, do "EU" autoral:
Ghost Writer
O poeta, e
seus procedimentos: (aqui) círculo
[...]
Aníbal
sumiu! Aníbal
está dormindo!-"
Bem, acho que não preciso chamar a atenção para o que estes poemas têm em comum.
O que ocorre aqui é que por uma mesma pressão, vários poetas (e fazem parte da lista
muitos outros, como Allen Ginsberg, Boris Vian, Régis Bonvicino, Augusto de Campos etc)
sentiram a necessidade de inscrever seu nome próprio no poema, complicando ainda mais
a questão do sujeito do poema...
Note-se que na maioria absoluta dos casos, o nome é expresso sob a forma da
inviabilidade, da desaparição, da morte, da interdição, do desajustamento ("Vai, Carlos, ser
gauche na vida!"). O "EU" que fora bombardeado pela psicanálise, filosofia e lingüística,
não veio encontrar no poema nenhum refúgio ou um socorro... Pelo contrário, também o
poema participava do bombardeio, da asfixia.
Sendo assim, o que fazer com aquela definição da poesia lírica como "expressão do EU"?
Definição responsável pela opinião, hoje já bastante desgastada, de que se um poema é
"genial", seu autor (de que ele seria a expressão mais fiel) seria um "gênio"
necessariamente.
Em vez de responder a essa pergunta, sigamos em frente observando algumas das várias
soluções que os poetas encontraram para esse "estado de coisas". Uma delas foi
justamente deixar de falar de si e falar "de coisas". O título de um livro do poeta Francis
Ponge era sintomático: Le parti pris des choses, que se poderia traduzir por "O partido das
coisas", ou "Tomando o partido das coisas".
É claro que essa poesia do objeto, objetiva, não nasceria isenta de contradições e
conflitos, como bem notou João Cabral, poeta objetivo, no poema "Dúvidas apócrifas de
Marianne Moore":
Esta permanência residual do EU, agora não mais dominante, não mais senhor todo
poderoso do poema, não mais mandarim, mas sim reduzido a ser mais uma coisa entre
coisas, um EU que duvida de si, tem sido em geral mais prolífica em bons poemas do que
as tentativas anacrônicas de ressuscitar o EU maiúsculo e imperial (sob pretexto de um
"fracasso" modernista), e do que as poéticas hiper-vanguardistas que alimentavam a
fantasia de uma objetividade total.
Outra solução, além desta, foi, e continua sendo cada vez mais, a utilização do "poema em
vozes", no qual o poeta, mais do que "alguém que fala", torna-se "alguém que escuta".
Nesses casos, o poeta parece admitir que o tão falado "interior" é o "lugar não do MEU,
não do EU, mas de uma passagem, de uma fresta por onde um sopro de fora nos toma",
como escreveu o dramaturgo francês Valère Novarina.
Esse "poema em vozes" pode ser um recorte cotidiano com intenção crítica, como em
tantos poemas de Francisco Alvim. Vejamos dois deles:
MOÇO, FORTE
Vem cá
você por acaso me chamou de ignorante
você é que me chamou
chamei a administradora
me chame outra vez
porque aí sim você vai ver
a ignorância
ora vá andando
eu estou aqui trabalhando
e você
atoa um caralho
perdi dez mil cruzeiros
por culpa de vocês
chiu olha as senhoras
chiu olha o respeito
ALMOÇO
Interessante observar que o registro de vozes aqui funciona também ao mostrar que a
violência da subserviência "cordial" do segundo poema não é menor do que a
agressividade social do primeiro.
Mas um "poema em vozes" também pode ter intenções menos claras, menos explícitas.
Não só o "recorte" da fala no tecido social interessa a esse tipo de formato poético.
Também a invenção da fala pode abrir novas dimensões na linguagem, como bem mostra
esse esplêndido poema de Michael Palmer, um poeta norte americano nascido no início
dos anos 40 (a tradução é do poeta Régis Bonvicino):
AUTOBIOGRAFIA 4 IDEM
Aqui, a linguagem, a fala, é mais do que a "moeda de troca" entre os homens, mais do que
algo reduzido à tarefa de comunicar. Sua física é diferente. Entre a inexatidão e o acerto,
entre a lógica e a anti-lógica, nossa fala é o que "abre um buraco no mundo" (Valère
Novarina).
Já Palmer não só apresenta os travessões demarcatórios como identifica (por pouco que
seja) quem está por detrás dos travessões (uma voz, outra voz), mas por outro lado seu
poema torna dificilmente identificáveis os "actantes" (a não ser que, guiados pelo título,
imaginemos que essas duas vozes ou mais, já que "outra voz" pode ser sempre e a cada
vez um "outro emissor" representem a os estilhaçamento do EU autobiografado).
Um belo poema em vozes foi escrito pelo grande lírico espanhol Federico García Lorca e
se encontra no livro O poeta em Nova York:
ASSASSINATO
(Duas vozes de madrugada em Riverside Drive)
- Como foi?
- Um corte no rosto.
E ponto final!
Uma unha que oprime o talo.
Um alfinete que mergulha
até encontrar as raízes mínimas do grito.
E o mar deixa de mover-se.
- Como, como foi?
- Assim.
- Não pode ser! Dessa maneira?
- Sim.
O coração saiu sozinho.
- Ai, ai de mim.
40 anos depois de publicado o livro de Lorca, o poeta mineiro Cacaso, em plena ditadura
militar, vai glosar este poema em seu livro Grupo escolar. Mas o que ouve o poeta do "país
do futuro" não é o mesmo que ouve o "poeta em Nova York":
O FUTURO JÁ CHEGOU
- Como foi?
- Com revólver, arrebentou
a cabeça. E nem o sangue bastou
para desatar seus cabelos.
O desespero cortou-se
pela raiz.
- Impossível. Como foi?
- Assim.
- Mas como?
- Dizia que estava desanimado,
que as coisas não faziam sentido.
Ultimamente
já nem saía de casa.
Talvez porque o diálogo seja uma das principais características do texto teatral (que, no
entanto, não se reduz a ele), não há como não ler esses poemas como se fossem uma
espécie de teatro-relâmpago, teatro-sintético. E é mesmo pesquisando nas margens da
poesia, onde a poesia faz fronteira com outras narratividades (cinema, teatro, prosa etc)
que os poetas parecem buscar elementos para suprir o vazio deixado pelo derretimento do
EU.
Mas além do diálogo, há outro formato bastante característico do teatro que foi adotado
com tremendo sucesso pela poesia. Trata-se do "Monólogo dramático", um formato criado
no século 19 pelo poeta inglês Robert Browning.
Graciliano Ramos:
(...)
Como todo o seu senso de humor, Jorge Luis Borges escolheu para ser o personagem de
um de seus monólogos dramáticos justamente o inventor do monólogo dramático: Roberto
Browning.
No poema de Borges, que reproduzo aí embaixo, Browning ainda é um jovem que parece
estar tendo a visão dos poemas que vai escrever e do gênero que vai inventar, pois cita
personagens que mais tarde serão personagens de seus monólogos dramáticos...
EXERCÍCIOS:
Depois de toda essa conversa, não há muita dúvida quanto ao que vou sugerir como
exercício. Escolham uma dessas três opções (ou as três, se estiverem inspirados) e
divirtam-se fazendo poemas...
1) Um EU todo retorcido:
Faça um poema em que você escreva seu nome próprio, como nos inúmeros exemplos
aqui mostrados. Tente observar se ao escrevê-lo você está apresentando uma abordagem
auto-crítica ou auto-celebratória, auto-piedosa ou cruel, ou seja, se está vendo o seu nome
sob um prisma olímpico ou da inviabilidade.
2) Poema em vozes:
Vale aqui soltar a imaginação. Escreva diálogos que ouviu na rua ou invente diálogos do
modo que achar melhor... Não há nenhum problema se você quiser escrever até uma mini-
peça (de no máximo duas páginas). O poeta e dramaturgo alemão Heiner Müller tem
vários trabalhos que ficam numa região indecidível entre o poema e o drama, como esse
aqui, tão curto quanto belo:
PEÇA CORAÇÃO
3) Monólogo dramático:
Escolha um desses personagens abaixo citados e faça-o falar no poema:
CAPITU
RASKOLNIKOFF
SUPER-HOMEM
WOLVERINE
JOANA D'ARC
BRECHT
CHE GUEVARA
CARMEM MIRANDA
HAMLET
ou qualquer um que você queira... Mas faça-o falar, tenha o prazer de ser por um momento
o "autor" da fala dessas figuras.
O poema em prosa seria um tema espinhoso e controverso, tão ou até mais espinhoso e
controverso quanto a questão das letras de música (são ou não são poesia?), se não
tivesse recebido, desde a origem, o aval de alguns dos mais incontestáveis poetas do
século 19, quando parece ter sido criado, pelo menos nos moldes como é conhecido e
praticado hoje.
Porque exatamente disso se trata: cruzar fronteiras como um clandestino, forçar os limites,
ampliar os limites da poesia, levar mais além os confins da poesia. Quando alguns dizem:
até aqui! Outros dizem: ir mais além! Quando alguns dizem: basta! Outros dizem: não
basta!
Mas se o poema em prosa, graças ao auxílio luxuoso desses grandes poetas, conseguiu
"direito de cidadania", nem por isso o problema que ele propõe se tornou menos radical e
revolucionário. Eu diria até que a rápida consagração do gênero deixou em segundo plano
sua questão fundamental:
É refém do verso?
Bem, deixemos essas questões para mais adiante. Ou melhor, vamos dar uma olhadela
em alguns poemas em prosa para sabermos melhor do que estamos falando, e deixar que
os próprios poemas guiem nossa reflexão.
Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a
hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua
cabeleira negra e seu stradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas
na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo
sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos
poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais
rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se
dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser
o pára-quedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu
como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados
pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem
dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez,
vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre
as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.
Cada um pense porque é que o autor de versos perfeitamente metrificados e versos livres
de cadências tão sutis escolheu justamente a prosa para dar conta dessa imagem tão
poderosa do desastre aéreo, mas não se esqueçam da ironia do final, quando se fala que
diante daquela chuva de sangue no céu, os "poetas míopes" viam um "arrebol". Afinal, a
miopia de alguns poetas talvez seja a responsável por eles não conseguirem ver que a
estrada da poesia não termina logo ali, vai sempre mais longe.
Vejamos agora outro poema em prosa, desta vez de um contemporâneo, Arnaldo Antunes.
As pedras são muito mais lentas do que os animais. As plantas exalam mais cheiro
quando a chuva cai. As andorinhas quando chega o inverno voam até o verão. Os
pombos gostam de milho e de migalhas de pão. As chuvas vêm da água que o sol
evapora. Os homens quando vêm de longe trazem malas. Os peixes quando nadam
junto formam um cardume. As larvas viram borboletas dentro dos casulos. Os dedos
dos pés evitam que se caia. Os sábios ficam em silêncio quando os outros falam. As
máquinas de fazer nada não estão quebradas. Os rabos dos macacos servem como
braços. Os rabos dos cachorros servem como risos. As vacas comem duas vezes a
mesma comida. As páginas foram escritas para serem lidas. As árvores podem viver
mais tempo que as pessoas. Os elefantes e golfinhos têm boa memória. Palavras
podem ser usadas de muitas maneiras. Os fósforos só podem ser usados uma vez.
Os vidros quando estão bem limpos quase não se vê. Chicletes são para mastigar
mas não para engolir. Os dromedários têm uma corcova e os camelos duas. As
meias-noites duram menos do que os meios-dias. As tartarugas nascem em ovos
mas não são aves. As baleias vivem na água mas não são peixes. Os dentes quando
a gente escova ficam brancos. Cabelos quando ficam velhos ficam brancos. As
músicas dos índios fazem cair chuva. Os corpos dos mortos enterrados adubam a
terra. Os carros fazem muitas curvas para subir a serra. Crianças gostam de fazer
perguntas sobre tudo. Nem todas as respostas cabem num adulto.
Quem conhece, por pouco que seja, o trabalho de Arnaldo Antunes, sabe que ele atua no
sentido contrário daqueles "fiscais da alfândega poética" que vivem querendo impor limites
para a poesia. O trabalho de Arnaldo é justamente testar até onde vai a poesia, um
trabalho que é, no mínimo, mais divertido. Daí seus poemas-foto, poemas-desenho,
poemas-rabisco, poemas-verso (por que não?), poemas-em-prosa, poemas concretos,
pós-concretos e pop-concretos etc... Nem todas as respostas cabem num adulto, mas
todas as perguntas cabem num poema, em especial aquela: "por que é que não pode?"
Mais um poema em prosa antes de atacarmos outro lado da questão. Vamos ao começo
de tudo, vamos a Baudelaire:
EMBRIAGAI-VOS
É necessário estar sempre bêbado. Tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para
não sentirdes o fardo horrível do Tempo, que vos abate e voz faz pender para a terra,
é preciso que vos embriagueis sem cessar.
Este poema vai ecoar em Carlos Drummond de Andrade, num poema, aliás em versos,
chamado "Poema da necessidade", que diz assim: "É preciso estudar volapuque,/ é
preciso estar sempre bêbado,/ é preciso ler Baudelaire,/ é preciso colher as flores/ de que
rezam velhos autores."
Aliás, os poemas em prosa de Baudelaire parecem ser umas das principais matrizes do
primeiro Drummond, o que demonstra a importância particularmente grande que o gênero
possui entre nós. Comparemos "A sopa e as nuvens", de Baudelaire, com o poema
"Sentimental", de Alguma poesia, livro de estréia de Drummond:
A SOPA E AS NUVENS
De súbito senti um violento murro nas costas e ouvi uma voz rouca e encantadora,
uma voz histérica, e como enrouquecida pela aguardente, a voz da minha querida
bem-amada, que me dizia:
SENTIMENTAL
Eu estava sonhando...
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
"Neste país é proibido sonhar."
2- Diz Baudelaire, ao prefaciar seu livro de poemas em prosa: "Qual de nós, em seus dias
de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem
rima, bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos
líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?"
Como quer que interpretemos essas palavras, o fato é que ele está falando em libertação
de amarras... Trata-se de levar a poesia para além do limite do verso (que contudo
continuará sendo utilizado)... Trata-se de uma necessidade de romper as formas
tradicionais e acrescentar a elas novas formas...
Pode-se argumentar que isso é, no mínimo, polêmico. Afinal, o que faria de algumas das
narrativas curtíssimas de Kafka, prosa, e de alguns textos em prosa de Max Jacob,
poesia?
MERGULHO II
Na primeira noite, ele sonhou que o navio começara a afundar. As pessoas corriam
desorientadas de um lado para outro no tombadilho, sem lhe dar atenção.
Finalmente conseguiu segurar o braço de um marinheiro e disse que não sabia
nadar. O marinheiro olhou bem para ele antes de responder, sacudindo os ombros:
"Ou você aprende ou morre". Acordou quando a água chegava a seus tornozelos.
Então, já conseguiu perceber porque Kafka é prosador e Max Jacob poeta? Não? Então
acertou!
E já decidiu se o texto de Caio Fernando Abreu é prosa ou poesia? Também não? Então
acertou de novo!
3- Mas porque é que alguns poetas, de repente, resolveram se infiltrar no país da prosa?
Nas questões anteriores chegamos a compreender a legitimidade dessa atitude. Mas qual
a utilidade dessa atitude? O que os levou a tomá-la?
E que tal mais uma pergunta: quando Baudelaire escreveu os Pequenos poemas em
prosa, já tinha gente escrevendo verso livre, como Walt Whitman, por exemplo. Porque é
que em vez de escrever poemas em prosa, Baudelaire não escreveu poemas em verso
livre, já que também ele poderia significar uma forma "musical sem ritmo e sem rima,
bastante maleável e bastante rica de contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da
alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência"?
Há aqui duas possíveis respostas: ou Baudelaire era muito conservador e queria preservar
para o verso a nobreza do metro e da rima, preferindo a prosa para seus experimentos
mais livres... ou era mais revolucionário do que todos os "verso-livristas" de então, pela
simples consciência de que o verso livre não passaria de um paliativo... ou um truque do
verso para sobreviver em novos tempos. Com Baudelaire, nada de paliativos, se é para
deixar o verso, que seja para penetrar de vez, sem pudores, no território proibido da prosa.
Bem, o que posso fazer agora, depois de deixar no ar estas questões, e além de pedir
para que escrevam e me mandem os seus poemas em prosa, é sugerir algumas leituras.
Alguns clássicos do gênero "poema em prosa" já foram lançados no Brasil, como:
- Os três mal-amados, de João Cabral de Melo Neto (Nova Fronteira, dentro da Poesia
completa)
- Carlos Drummond de Andrade escreveu poucos mas preciosos poemas em prosa, como
"Morte de Neco Andrade", de Fazendeiro do ar, "O Enigma", de Novos poemas, "Operário
no mar", de Sentimento do mundo, entre outros. Uma ótima mistura de poema em versos e
poema em prosa está no poema "Outubro 1930", de Alguma poesia.
- São clássicos os poemas em prosa de Manuel Bandeira, como "Lenda brasileira" (de
Libertinagem), "Noturno da rua da Lapa" (idem), "Desmemoriado de Vigário Geral" (de
Estrela da manhã), entre outros.
- Crime na flora, editado pela José Olympio, é uma experiência radical de Ferreira Gullar
com o poema em prosa que merece ser mais conhecida.
- Muito singulares dentro do "formato" poema em prosa são os livros Galáxias, de Haroldo
de Campos, A teus pés, de Ana Cristina Cesar, e Me segura qu'eu vou dar um troço, de
Waly Salomão. Nestes livros, todos da fase "pós-moderna" de nossa história poética, é o
próprio poema em prosa que se vê levado a investigar seus próprios limites... Se ele
nasceu como uma explosão dos limites entre poesia e prosa, depois de duzentos anos, e
praticado por tantos nomes canônicos e oficiais da poesia, era de se esperar que também
o poema em prosa acabasse sendo uma regra, um formato, uma prisão, e que alguns
poetas se sentissem tentados a explodi-lo desde dentro. O poema em prosa norte-
americano de Ron Silliman e da "new sentence" faz isso sistematicamente, e os poemas
em prosa de Régis Bonvicino são um bom exemplo do que já se conseguiu por aí.
- Dentro do espírito irreverente e desbundado da geração 70 surgiram alguns bons
poemas em prosa. Recomendo em especial os livros Quampérios, de Chacal, e Mais dia
menos dia, de Ângela Melim.
Volto semana que vem com mais uma aula, mandem brasa.
A poesia tem uma coisa fantástica: quanto a temas, ela é absolutamente não-hierárquica.
Um ótimo poema sobre um desenho de criança na parede será sempre melhor do que um
mau poema sobre os afrescos de Giotto em Pádua.
O famoso poema de João Cabral de Melo Neto sobre o ovo da galinha não é
absolutamente menos importante do que seu poema sobre Paul Klee.
O não menos famoso poema de Drummond sobre uma pedra no meio do caminho é tão
bom quanto seu poema sobre uma tela de Mondrian.
Há um belíssimo poema de Ferreira Gullar sobre bananas podres, sobre umas simples
bananas que estão apodrecendo em um prato, que não fica nem um pouco atrás de seu
poema sobre a arquitetura de Oscar Niemeyer.
Porque a poesia tem algo daquela "idiotia" a que se referia, positivamente, Júlio Cortazar.
Ou seja, aquela capacidade de se maravilhar tanto com uma escultura de Rodin quanto
com uma teiazinha de aranha brilhando ao sol, sem precisar submeter-se ao estatuto
lógico segundo o qual uma escultura de Rodin é uma coisa mais importante e mais digna
de maravilhamento do que uma teiazinha de aranha cheia de minúsculas gotas de orvalho
cintilantes, e segundo o qual uma banana podre, um desenhozinho infantil numa parede,
uma pedra no caminho e um ovo de galinha são coisas que devem ser colocadas muitos
milhões de degraus abaixo da arquitetura de Niemeyer, dos afrescos de Giotto, da pintura
de Mondrian e Klee.
Com essa introdução, o que eu quero deixar claro é: não é porque hoje vamos falar de
poesia e artes plásticas, artes visuais, que vocês têm que assumir uma postura solene, um
ar de profundidade intelectual, se levar a sério demais, começar a fazer pose de
"iluminado".
Nem precisam correr atrás de livros sobre pintura... afinal, não vou pedir que escrevam
ensaios sobre esse ou aquele artista... aí sim, isso seria fundamental. Muita sensibilidade
é fundamental... A simplicidade pode gerar bons resultados também nessa área, como
prova o clássico poema de Jacques Prevert:
Agora, é claro que nem todos os poemas sobre pintura precisam ser tão simples... há
poemas sofisticadíssimos, herméticos, e nem por isso menos importantes... E é claro que
é recomendável ler livros sobre pintura... não só para o nosso curso, para a sua vida...
afinal, quando a gente gosta de um tema (e acredito que todo mundo que tem
sensibilidade para gostar de poesia deve gostar de pelo menos uma das muitas
manifestações envolvidas no nome "artes visuais"), é sempre bom ouvir outras pessoas
que amam e conhecem o assunto... e é sempre melhor conhecer coisas do que ignorar
coisas...
Mas faço questão de deixar claro que um mau poeta pode ter visto de perto todas as telas
de um pintor, ter lido todos os livros sobre esse pintor, e ainda assim seu poema sobre
esse pintor será um mau poema... Por outro lado, um dos mais belos poemas sobre
Picasso que já li foi escrito por um poeta venezuelano que jamais viu de perto um quadro
de Picasso e escreveu esse poema quando viu a reprodução de uma tela do espanhol na
capa de um livro.
Convenhamos que é o tipo de ótimo poema que um sujeito pode escrever a partir até da
observação de uma reprodução em um fascículo da coleção "Gênios da pintura", desde
que sua capacidade de observar, imaginar, fantasiar, seja a de alguém talentoso... Só
quem não tem muito talento para fantasiar não pode fazer poemas assim.
Faço questão de afirmar isso aqui porque parece que vivemos um momento tão elitista na
poesia que daqui a pouco vão surgir críticos dizendo que quem não viu as obras originais
dos artistas está proibido de fazer poemas sobre esses artistas...
É o tipo de poema que pressupõe o conhecimento da obra dos "grandes mestres". Através
da observação e da comparação de seus trabalhos, o poeta notou que o que há em
comum entre eles é essa "não-monumentalização" do sofrimento. Observações
fundamentais como essa é o que encontramos nos melhores livros de arte, cuja leitura,
depois de ter feito a necessária ressalva anti-elitista, recomendo fortemente. Mas vejamos
como um poeta norte-americano, William Carlos Williams, a partir de um poema bastante
simples e sofisticado ao mesmo tempo, fala quase a mesma coisa que esse poema de
Auden, e a partir do mesmo quadro, "Paisagem com queda de Ícaro", de Breughel:
um lavrador arava
os seus campos
todo o esplendor
do ano
formigava ali
à beira do mar
o lavrador
consigo mesmo
preocupado
suava ao sol
que derretia
a cera das asas
perto
da costa
houve
Um poema que mistura a vida e a pintura de forma muito eficaz é "Uma coca-cola com
você", do poeta norte-americano Frank O'Hara. Trata-se de um dos meus poemas
favoritos. Nele, O'Hara, que conhecia muito o tema (além de trabalhar no Museus de Arte
Moderna de Nova York escreveu, por exemplo, um belíssimo ensaio sobre a pintura de
Jackson Pollock), parece menosprezar a pintura em comparação com a vida... mas na
verdade, vida e pintura saem ganhando enormemente depois da leitura desse poema...
vejam se não é verdade...
é ainda melhor que uma viagem a San Sebastian, Irún, Hendaye, Biarritz, Bayonne
ou que ficar enjoado na Travesera de Gracia em Barcelona
em parte porque nessa camisa laranja você parece um São Sebastião melhor e mais feliz
em parte porque eu gosto tanto de você, em parte porque você gosta tanto de iogurte
em parte por causa das tulipas laranja fluorescente contra a casca branca das árvores
em parte pelo segredo que nos vem ao sorriso perto de gente e de estatuária
é difícil quando estou com você acreditar que existe alguma coisa tão parada
tão solene tão desagradável e definitiva como estatuária quando bem na frente delas
na luz quente de Nova York às quatro da tarde nós estamos indo e vindo
de um lado para o outro como a árvore respirando pelos olhos de seus nós
e a exposição de retratos parece não ter nenhum rosto, só tinta
ECO DE AUSONIUS
Gosto muito destes dois poemas de Bertolt Brecht que apresento a seguir. O primeiro fala
de uma gravura chinesa, outra de uma máscara oriental.
A MÁSCARA DO MAL
Como vemos, neste segundo poema Brecht chama a atenção para a capacidade de
observação. É claro que diante dessa mesma escultura japonesa muitos outros poderão
dizer muitas outras coisas. Uns farão uma leitura histórica, outros darão com precisão a
data, outros ainda poderão dizer se aquela peça se inscreve numa tradição ou se ao
contrário quebra uma tradição. Para Brecht, a gravura e a máscara faziam brotar a
questão do bem e do mau.
O nome do escultor Brancusi está presente nos próximos dois poemas que leremos. O
primeiro, de Paul Celan, tece uma hipótese a partir das pedras produzidas por esse
escultor. O segundo, de Haroldo de Campos, vislumbra uma peça de brancusi na cabeça
de uma mulher que sai do metrô em Paris. Vejamos os poemas:
BRANCUSI
Marfim
negro
túnica em tubo
dáctilo-prateada
(anéis em todos os
dedos)
mais os aros
das pulseiras
tintinabulantes
bailando a contranegro
(contra o negro: a pele
esse marfim brunido
lustre virgem
revérbero não-tacto de
dulcíssimo
jovem pergaminho)
Vemos que não existe um modelo de poema sobre pintura... existem aqueles sobre
quadros imaginários (o poeta contemporâneo Júlio Castañon Guimarães é mestre nestes
"quadros imaginários"), há aqueles que tentam contar uma história a partir da cena
pintada, há aqueles que falam de imagens artísticas que voltam à nossa mente quando
estamos andando no meio da rua ou tomando um banho ou qualquer coisa de tão
corriqueiro quanto isso... Há aqueles em que se tenta observar e dar a ver o método
criativo do poeta (não conheço melhor exemplo do que o poema "O sim contra o sim", de
João Cabral de Melo Neto.
Uma boa sugestão de exercício é você tentar fazer uma série... coisa muito comum entre
os pintores, que às vezes desenvolvem um tema em uma série de quadros... Cézanne
pintou uma série de banhistas.
Ou pegue por exemplo um quadro onde haja muitas figuras humanas e faça um poema
para cada uma daquelas pessoas, um poema que seja um pouco o que cada uma delas
está pensando.
Outro exercício, mais simples, é pegar uma foto, um quadro, uma instalação, uma
escultura, uma gravura, uma imagem de quadrinhos e tentar fazer um poema sobre ele...
pode enfatizar o autor, pode, a partir dessa imagem, tentar imaginar o processo criativo do
artista...
Enfim, pode (e deve) ir ver alguma exposição na sua cidade, ou pegar um livro de arte em
qualquer biblioteca e olhar bem as imagens, observar a delicadeza ou a agressividade que
devem ter custado aos seus autores... Pense se as pinceladas agressivas ou as delicadas
mais combinam com a sua escrita, com o seu fraseado... Observe se os trabalhos que
mais te impressionaram são os de mais luz ou menos luz... coisas assim...
Enfim, tente compreender as reações que aquilo provoca em você e extraia um poema
desse atrito entre a sensibilidade exposta e construída no quadro e a sua sensibilidade.
PINTURA
Gullar não diz que quadro é esse, nem seu autor. Estamos acostumados a associar
amarelo e delírio à imagem de Van Gogh, mas o importante foi que o poeta preferiu
apenas sugerir isso... pode ser, pode não ser... talvez ele pensasse que o fundamental era
passar essa idéia de contágio pela obra... e que o "signo" Van Gogh já está tão cheio de
referências (camisetas, xícaras, papéis de parede etc) que o melhor é deixar no poema
apenas aquilo que não se consegue domar, o indomável... Ou pode ser que nem de Van
Gogh fosse o tal quadro... talvez fosse um daqueles quadros imaginários... Como disse um
pouco mais acima, a poesia inventou um milhão de formas de falar da pintura.
Abraços.
Para que vocês entendam melhor a aula de hoje, começarei com um poema em prosa
bem curto de Max Jacob:
A MENDIGA DE NÁPOLES
Quando eu morava em Nápoles, havia à porta da minha mansão, uma mendiga a quem eu
atirava alguns níqueis, antes de subir no meu carro. Um dia, surpreso por nunca ter
recebido um único "obrigado", encarei a mendiga. Ora, como a encarasse, descobri que o
que eu tomara por uma mendiga era, na realidade, um caixote de madeira pintada de
verde que continha terra vermelha e umas bananas podres.
Bem, será que ajudaria a encontrar a resposta saber que Max Jacob foi amigo e
companheiro de luta dos pintores cubistas, como Picasso e Braque, em Paris, no início do
século XX?
Talvez adiante alguma coisa, talvez não.
Mas a grande "desautomatização" do olhar proposta e realizada pelo cubismo está muito
presente nesse poema que também, à sua maneira, faz a crítica do olhar burguês, do
olhar que olha o mundo e não o vê, não é?
A escolha do "tom do poema", do formato "poema em prosa" foram fundamentais para que
ele tivesse a contundência que tem.
Mas quantas formas, formatos, linguagens, materiais Max Jacob teve que dispensar para
chegar a essa depuração da linguagem?
Escrever poesia é fazer escolhas. Eleger alguns materiais e técnicas e dispensar outras.
Sabem de algum poeta cuja obra contenha epopéias e poemas concretos, sonetos
metrificados e versos livres, hai-kais e poemas surrealistas, monólogos dramáticos e
sextinas, literatura de cordel e acrósticos, poemas semióticos e baladas provençais,
quadrinhas e trovas etc. etc.?
Uma vida só é pouco, e se alguém se arriscar a cumprir todo o circuito das formas e tons
poéticos provavelmente terá escrito uma obra que vai interessar mais ao livro dos recordes
do que aos amantes da poesia.
Sendo assim, só nos resta, eleger, escolher, selecionar. Ou seja, só nos resta fazer
(consciente ou inconscientemente) a crítica das formas, dizendo que essa aqui não nos
interessa, mas aquela lá sim, esta outra não, aquela talvez...
Pois ao optar (consciente ou inconscientemente) por poemas curtos, você já está deixando
de lado os poemas longos.
Ao optar por uma linguagem coloquial, você já fez uma escolha que colocou de lado a
linguagem mais solene.
Ao optar por uma linguagem mais solene, você já fez uma escolha que colocou de lado a
linguagem coloquial.
Ao optar por uma linguagem mesclada, ora coloquial, ora solene, você já fez uma escolha
que eliminou as duas opções anteriores.
Apliquemos isso a questões como "linguagem metafórica" versus "linguagem mais colada
ao real". Ou "formas fixas de estrofação e metrificação" versus "irregularidade dos versos
e das estrofes".
Etc. etc.)
A crítica Susanne K. Langer, no seu livro Sentimento e forma, observa com muita precisão
que um poeta tende a eleger cinco ou seis materiais com os quais vai trabalhar, e que,
após essa eleição, passa a identificá-los como os materiais que contém a "essência" da
poesia.
O problema é que a partir daí, a maior parte dos poetas tenderá a condenar os que fizeram
escolhas diferentes, e admirar todos os que fizeram escolhas parecidas.
Esse é um dos poucos argumentos contra a idéia bastante comum de que o melhor crítico
de poesia é o poeta.
Só o será se levar em conta aquela frase de Ezra Pound: "Mau crítico é aquele que prefere
um mau poeta de sua escola literária a um bom poeta da escola literária adversária".
O mais comum é que os poetas que escolheram uma linguagem mais concisa, o poema
curto e econômico, acusem os que escolheram linguagens mais caudalosas e poemas
longos de verborragia e exagero.
E que os poetas que identificaram a essência poética com longos discursos por sua vez,
acusem os que escolheram a concisão e a economia de insignificância, irrelevância.
LUTA LITERÁRIA
Eu é que presto.
O grande erro está em julgar um material poético (a metáfora, o poema longo, o poema
curto, a forma fixa etc.), e não o talento do poeta na utilização desse material.
É claro que cada escolha define uma posição. E é preciso responder por essa escolha.
O soneto é uma forma que já foi tão usada, e tão identificada com a própria poesia,
tornando-se quase que uma "garantia" de qualidade poética, que ao eleger essa forma
hoje em dia o poeta já está tomando uma posição...
Se não for um soneto auto-irônico, ou um "soneto para acabar com os sonetos", o mínimo
que se pode dizer desse poeta é que prefere (ou não o incomoda muito) conferir ao seu
fazer poético uma certa oficialidade, e que prefere andar no território do convencional e do
bom comportamento já reconhecido.
Mas já que falamos dele, vejamos que mesmo um material tão desgastado como o soneto
pode ganhar, nas mãos de um bom poeta, uma vivacidade e uma atualidade, que estão
muito longe do automatismo que cerca o formato... pelo contrário.
(10 DE OUTUBRO)
(9 DE NOVEMBRO)
(21 de dezembro)
(12 de janeiro)
Por quê que ninguém me deu um aviso?
Pra que que serve essa porra de bip?
Assim não dá. Que falta de juízo,
de... de... sei lá! Eu lá em Arembipe
(19 de janeiro)
E Paulo Henriques Britto não é nem um pouco ingênuo. Ele sabe que para arrancar
alguma faísca de vivacidade desse formato repetido à exaustão por tantos poetas, é
preciso ser irônico e auto-irônico ("Destrua este soneto/ imediatamente após a leitura.").
Ou seja, não pode continuar acreditando que o mero fato de saber metrificar e rimar já
garante a qualidade do poeta e, conseqüentemente, do poema.
Mas não como num self-service todas as comidas podem ser escolhidas...
não como num armário todos os estilos de moda podem ser usados...
Ou melhor, poder podem, mas quem vai arcar com a conseqüência dessa indiscriminação
total é o seu poema, o seu estômago e o seu visual.
Para evitar que seu poema pareça um estômago embrulhado ou uma "perua", a única
coisa você pode fazer é selecionar, e selecionar quer dizer, fazer a crítica dos materiais
selecionados.
Nenhum dos materiais citados trazem consigo a garantia do "poético", e alguns (como a
metáfora, por exemplo), pelo simples fato de terem sido identificados por muito tempo
como a própria essência poética, trazem um perigo adicional embutido, o grande perigo
para qualquer poesia: o clichê.
Os poemas que observaremos na aula de hoje podem nos ajudar a aguçar o senso crítico.
O primeiro é de um dos principais poetas iugoslavos do século XX, Vasko Popa:
PORCO
Só quando ouviu
A faca furiosa na garganta
A cortina vermelha
Explicou-lhe o jogo
E ele lamentou
Ter-se desprendido
Dos braços do lamaçal
E à noite do campo
Tão alegre ter corrido
Corrido para o portão amarelo.
Podemos arriscar um palpite: as elipses do poema são manejadas muito habilmente pelo
poeta.
A elipse, que já foi chamada muito lindamente de "estilo de persianas" pelo poeta Haroldo
de Campos, é aquele jeito de contar ocultando, revelar escondendo, sugerir pelo silêncio.
Obedecendo ao que foi dito mais acima, não direi que a elipse deve ser julgada (positiva
ou negativamente), o que podemos julgar, e muito positivamente, é a habilidade, o talento
de Vasko Popa no manejo da elipse.
Ele não diz nada sobre a pessoa que mora na casa. O que podemos fazer é tentar
recompor, preencher essa elipse com suposições: a de que o morador da casa estava com
fome e viu a chegada daquele porco como um milagre, por exemplo. Ou sei lá que leitura
você aí deve ter feito desse poema.
É aquele que você usa se quer pedir a alguém que vá até a padaria e traga um litro de
leite.
Para conseguir plenamente esse objetivo, você vai emitir uma mensagem com um grau de
determinação tal que a pessoa que a recebeu não tenha a menor margem de possibilidade
de entender que o que você pediu foi que ela se dirigisse à farmácia e comprasse um
analgésico.
Mas a linguagem também tem um ponto máximo de indeterminação. Não digo que neste
ponto máximo se encontre o lar da poesia, mas sem dúvida a poesia está mais perto dele
do que do ponto máximo de determinação. Porque quando se trata de poesia, a pessoa
que recebeu a mensagem deve ter muitas possibilidades interpretativas.
O poema deve se prestar, como dissemos, a várias leituras. E uma boa elipse, ou seja,
uma elipse bem manejada, é um instrumento formidável para criar essa zona onde muitos
sentidos são cabíveis.
Uma elipse mal manejada, contudo, resulta em carência. Sente-se que faltou algo ao
poema.
ANCORADO EM PARIS
Aqui, podemos desconfiar que a força poética nasce do "estranhamento". Desconfio que
Juan Gelman, que viveu exilado em Paris, só encontrou, para dar uma idéia dessa
sensação de estranhamento que é a do sujeito que de repente se vê obrigado a viver
longe de sua pátria, a imagem de um leão com que se possa beber e falar da vida e de
Gardel.
Se em nossa canção do exílio se fala que as aves que na pátria gorjeavam não gorjeavam
como as do exílio, no poema de Juan Gelman se pode imaginar que os leões que por
Paris rugiam não estavam rugindo como os da Argentina da ditadura militar.
Disse várias vezes aqui que nenhum formato, técnica ou material é garantia de qualidade
poética.
Mas quando um autor é forte e certeiro em suas escolhas, até um curriculum vitae pode
virar poema. Como no caso desse poema da polonesa Wislawa Szymborska:
CURRICULUM VITAE
"O autor de Goivos e camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia
atrás das grandes frases, - sobretudo das frases sonoras – demorava-se nelas, repetia-as,
ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe
árido, e ele corria depressa por elas." (Histórias da meia-noite).
A aula de hoje foi mesmo para refletir, e o exercício proposto também vai bater nessa
tecla...
Mande um poema que tenha gostado muito de fazer e que represente, no seu modo de
ver, as suas "escolhas poéticas"... e junto com ele mande dez linhas falando sobre quais
são essas escolhas poéticas. Se puder comente também um pouco o que você NÃO inclui
na sua receita poética, e o porque dessa exclusão.
Topam a parada?
Um abraço.
Que outra arte, como essas duas, será "capaz de assimilar os materiais mais diversos e
transformá-los em elementos próprios"? (Suzanne K. Langer)
Certa vez, Debussy disse que gostaria de colocar música em um poema de Mallarmé.
Quanto ao cinema, desde os tempos em que era mudo já incorporava uma orquestra ao
pé da tela... imagina depois do Dolby...
Um dos maiores críticos de cinema, Michel Chion, que é aliás fabuloso compositor,
descreve um filme como uma "sinfonia audiovisual".
Que outra arte, como essas duas, soube roubar a música e fazer dela "coisa sua"?
Outra semelhança: tanto quando lemos um poema como quando assistimos a um filme, há
algo de sonho fluindo ante nossos olhos. Os cortes, bruscos ou não, dos versos e das
cenas, imprimem ao fluxo de um filme ou de um poema algo da descontinuidade dos
sonhos.
Por isso, talvez, alguns grandes poemas foram escritos tendo o cinema como fonte de
inspiração.
Há poemas sobre diretores (quase todo poeta, até bem pouco tempo atrás, tinha o seu
poema sobre Charles Chaplin).
Há poemas sobre uma cena específica de um filme... e aqui, não há como não citar um
dos mais belos que conheço, da poeta, compositora e performer norte-americana Laurie
Anderson, sobre uma cena de um filme de Fassbinder:
LÍRIO BRANCO
AVE MARIA
Mães da América
deixem seus filhos ir ao cinema!
mandem seus filhos sair de casa para não ver o que vocês aprontam
está certo que ar fresco faz bem para o corpo
mas e a alma
que cresce na escuridão, nutrida por imagens prateadas
e quando vocês envelhecerem como tem de acontecer
eles não vão odiá-las
nem criticá-las não vão nem saber
porque vão estar num país glamouroso
que viram pela primeira vez numa tarde de sábado ou [matando aula
talvez até agradeçam a vocês
sua primeira experiência sexual
que só custou vinte e cinco cêntimos
e não perturbou a santa paz do lar
vão aprender de onde vêm as barras de chocolate
e sacos gratuitos de pipoca
tão gratuitos como sair do cinema antes do fim do filme
com um desconhecido simpático cujo apartamento é o Céu do Edifício Terra
perto da ponte de Williamsburg
ah mães vocês vão fazer os diabinhos
tão felizes porque também se ninguém os pegar no cinema
eles nem vão saber o que perderam
e se alguém os pegar vai ser a glória
e de um modo ou de outro eles vão se divertir
em vez de ficar bestando no quintal
ou no quarto
odiando vocês
prematuramente antes mesmo de vocês fazerem alguma maldade horrível
que não a de negar-lhes os prazeres mais escuros
o que é imperdoável
depois não digam que não avisei se não seguirem meu conselho
e a família se desestruturar
e seus filhos ficarem velhos e cegos diante da TV
vendo
os filmes que vocês não os deixaram ver quando eram jovens.
O fato é que, como se lê no prefácio a uma bela antologia de contos sobre o cinema (Le
cinéma des écrivains, Cahiers du cinema, 1995), "ir ao cinema, ver filmes, é algo que só se
compreende acompanhado do prazer de prolongar essa experiência através da palavra,
da conversa, até da escrita".
Pois é. E nem precisa ser escrita crítica não. Chegamos em casa, depois de um filme, e
anotamos algo em um caderno, talvez um diário íntimo, um blog, qualquer impressão
marcante do filme. Às vezes é um pouco mais do que isso... e vem um poema. Este é o
ponto que nos interessa.
Assim como é bom, após um bom filme, conversar com pessoas sensíveis e inteligentes
sobre o filme que se acabou de ver, trocar impressões, notar como outros nos chamam a
atenção para detalhes que não percebemos, e como podemos iluminar para outros
passagens que lhes ficaram um tanto obscuras, é bom ir carregando por horas, dias,
semanas, meses, anos, uma sensação forte de um filme, até que um dia... um poema...
Esta sensação de "depois do filme", quando tudo o que vemos e fazemos se torna um
pouco "cena de cinema", foi tema de um poema de Heitor Ferraz, um poema que lemos
como se fosse um pouco escrito por nós.
DEPOIS DO FILME
P/ Augusto Massi
Quando, depois do filme,
volto de carro pela avenida
(ainda úmida de chuva,
ainda úmida de imagens)
********************************************
Não é preciso ser cinéfilo. Basta ter gostado certa vez de um filme e ter deixado que,
dentro de você, em torno dele, crescessem, como ramificações, um pouco suas e um
pouco dele, sensações, vagas lembranças, reflexões... Ou nem isso, basta apenas que
você reconheça a existência dessa sala escura onde, por vezes, preferimos mergulhar,
enfiar nossa cabeça, porque a vida simbolizada ficou pesada demais para seguir sem
aquilo...
Darei agora dois exemplos muito distintos. O primeiro é de nosso maior poeta-cinéfilo:
Sebastião Uchoa Leite, que não só escreveu vários poemas sobre filmes (como Cat
people, A woman of Paris, Black Widow, Dark Mirror etc.), como também preciosíssimos
ensaios sobre a sétima arte.
OS ASSASSINOS E AS VÍTIMAS
eu bogart
decifro o falcão maltês
mas sou tragado por você mary astor
eu robert walker troco o meu crime
pelo de farley granger
ele esquece o pacto mas eu não
nós montand e signoret
matamos de susto vera clouzot
assassina perseguida pelo crime
eu delon mato maurice ronet
aposso-me da identidade
mas o cadáver dele me segue
eu clift nego
que afoguei shelley winters
mas a imagem persiste
eu o fotógrafo persigo
eu o fotógrafo persigo
o crime de vanessa redgrave
ou sou perseguido por ele?
************
O outro exemplo vem do poeta Francisco Alvim, que eu não sei se é cinéfilo ou não, mas
isso não importa. Importa que aqui o "cinema" não é um diretor, uma atriz, um filme etc. É
mesmo a concreta sala escura, buraco negro dentro da cidade, onde por vezes, como
dissemos há pouco, para ver-não ver, para sentir-não sentir o peso do tempo, entramos...
SOZINHA
— Vá ao cinema.
— Com quem?
************
Bem, Carlos Drummond de Andrade mereceria um capítulo especial neste tema, tantos e
tão excelentes são seus poemas sobre cinema. Desde o arqui-conhecido "Canto ao
homem do povo Charles Chaplin" aos mais simples, como o já citado "Indecisão no Méier".
Seria interessante organizar uma antologia com os poemas de Drummond sobre cinema.
Minha preferência particular vai para os poemas que dedicou às estrelas do cinema que
inspiraram platônicos desejos no poeta. Como:
No firmamento apagado
não luciluzem mais estrelas de cinema.
Greta Garbo
passeia incógnita a solidão de sua solitude.
Marlene Dietrich
quebrou a perna mítica de valquíria.
Joan Crawford,
produtora de refrigerantes, o coração a matou.
O cinema é uma fábula de antigamente
(ontem passou a ser antigamente)
contada por arqueólogos de sonho, em estilo didático,
a jovens ouvintes que pensam em outra coisa.
O nome perdura. Também é outra coisa.
Tudo é outra coisa depois que envelhecemos.
E não há mais deusas e deuses. Há figurinhas
Móveis, falantes, coloridas, projetadas
no interior da casa. Não saem nunca mais,
enquanto se esvazia o céu da Grécia
dentro de nós – azul já negro, ou neutra-cor.
Joan, não beberei por ti, à guisa de luto,
nenhum líquido fácil e moderno,
sorvo tua lembrança
a lentos goles.
************
É o caso de se pensar: por que não há mais poemas sobre as estrelas de cinema? Elas
não são mais Grandes Mitos como Greta Garbo, Marlene Dietrich etc? Mas será que não
merecem poemas pela alegria que nos dão quando iluminam a tela e nossos olhos musas
e musos como Scarlett Johansson, Zhang Ziyi, Cameron Diaz, Al Pacino, Gabriel Bernal
Granados etc. etc.?
Vocês podem fazer o poema sobre cinema que quiserem, é claro, mas eu adoraria que a
timidez e a repressão não os impedissem, como não impediram grandes poetas como
Drummond e Bandeira, de fazer poema de fã! Desde que fã sensível e inteligente, como
eles foram...
O importante é não deixar afrouxar esse laço que sempre uniu os poetas ao cinema...
Aí estão também Wenders, Godard, Truffaut, Fellini, Wong Kar Way, Ana Carolina...
Almodóvar dá poesia.
Mesmo aquelas paqueras mais ousadas dentro da sala escura podem dar poemas... como
esse, ótimo, de Oswald de Andrade, com um final maravilhoso...
LINHA NO ESCURO
É fita de risada
A criançada hurla como o vento
Mas os cotovelos se encontram
Se acotovelam e se apalpam
* **********
Acho que aquela lua quadrângula é a tela de cinema, não é? Isso explicaria o verso "Mas
quando amanhece", que quer dizer, talvez, quando a luz acende...
Vocês também têm um poema escrito "na calada da lua quadrângula"?
PROPOSTAS DE EXERCÍCIOS
Bem. É simples. Tentem fazer poemas que envolvam direta ou indiretamente o cinema.
Uma sugestão: que tal "contar um filme" em poema? Algo como aquela narração que
fazemos, às vezes demorada, às vezes acelerada, a alguém que não viu certo filme e que
nos pede que o contemos... Aproveitem para tensionar os registros (épico, melodramático,
cômico, trágico etc)...
Repare que o que é tremendamente clichê em um filme pode ser interessante como
recurso poético. Em um ensaio sobre montagem cinematográfica, Eisenstein cita um
"clichê" cinematográfico... mas talvez nem tenha percebido que aquilo é poeticamente
instigante... trata-se da seguinte seqüência:
Até a próxima.
A poesia moderna começa quando as ruas deixam de ser apenas a pacata faixa de terreno
destinada à passagem de quem vai visitar um parente, dar um passeio, e passam a ser o
caótico torvelinho da multidão e do trânsito, um espaço onde a paixão e a morte podem
nos surpreender a qualquer momento sem aviso prévio.
Paixão e morte, duas coisas tão caras aos poemas de todos os tempos, e que requeriam
todo um processo, toda uma linha de conduta, agora podiam surgir de súbito, do nada.
O primeiro poema é "A uma passante". Aqui, a passagem rápida de uma mulher no meio
da multidão, numa rua tumultuosa e barulhenta, toca o coração do poeta... ela surge,
passa e desaparece...
Com isso, como escreveu o crítico Walter Benjamin, Baudelaire mostrava que a
experiência urbana transformava o romântico tema do "amor à primeira vista", no
moderníssimo tema do "amor à última vista". O fugaz, o efêmero, o provisório, o precário
começavam a invadir o terreno do que antes era sagrado, eterno, inamovível.
PERDA DE AURÉOLA
"O quê!? Você aqui, meu caro? Você, num lugar desses! Você, o bebedor de
quintessências!, O comedor de ambrosia! Francamente, é de surpreender."
"Meu caro, bem conheces o pavor que tenho dos cavalos e dos coches. Agora há pouco,
quando atravessava apressado o bulevar, saltando sobre a lama, através desse caos
movente em que a morte chega a galope, por todos os lados ao mesmo tempo, minha
auréola, num movimento brusco, escorregou de minha cabeça para o lodo do macadame.
Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos desagradável perder minhas insígnias do
que quebrar os ossos. E depois pensei cá comigo, há males que vêm para bem. Agora
posso passear incógnito, praticar ações baixas, entregar-me à devassidão como os
simples mortais. E aqui estou eu, igualzinho a você, como pode ver!"
"Ah, não. Me sinto bem. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me aborrece. Depois,
penso com alegria que algum poeta medíocre vai achá-la e com ela, impudentemente, se
cobrir. Fazer alguém feliz, que prazer! E principalmente um felizardo que me faça rir!
Pense em X ou Z! Hein? Como vai ser engraçado!"
O artista, ao atravessar a rua que leva da fase pré-moderna à fase moderna, se despoja
dos ornamentos, das insígnias, dos sinais de distinção; agora, ei-lo: "igualzinho a você".
Ora, isso se passou no século XIX. Uma crítica norte-americana, Marjorie Perloff, se
perguntava há pouco algo interessantíssimo.
Se a poesia moderna nasceu quando as pessoas passaram a conviver nas ruas, expostas
a tudo o que a experiência das ruas oferece, o que estará acontecendo com a poesia
agora que as pessoas abandonam as ruas, deixam de freqüentá-la, tanto pelo medo da
violência, como pelos confortos que a tecnologia nos trouxe e que nos permitem fazer tudo
sem sair de casa?
PEDESTRE
O belo desse poema é revelar um pouco a dinâmica da vida nas ruas. Baudelaire mostrou
que o amor e a morte deixavam de ser coisas motivadas por uma seqüência de
acontecimentos e passavam a existir como aparições súbitas. Mas nem todos que andam
pelas ruas se apaixonam ou morrem.
O poema de Paz talvez diga que mais fundamental do que isso, o que mudava na
dinâmica da cidade, era o próprio modo de pensar, agora mais cheio de descontinuidades
impostas pelas próprias descontinuidades da cidade.
Esbarrões, vitrines, semáforos, tudo isso impõe um movimento de andar e parar e perder o
fluxo do pensamento. Pensamos na crise do Oriente Médio até que uma vitrine nos impõe
a imagem de uma blusa e passamos a pensar no tecido, no design, na nossa necessidade
ou desejo de tê-la, e pronto... perdemos o fluxo do pensamento...
_________________
Este poema de Ferreira Gullar que leremos a seguir é quase um clássico. É um pouco o
reverso de "A uma passante". Enquanto Baudelaire vislumbra, no meio da multidão, uma
mulher que passa e pela qual se apaixona pouco antes de vê-la desaparecer, Gullar busca
no meio da multidão a mulher que não passa, que não pode passar, como que dizendo
que aquele era um tipo de amor que não sobreviveria no mundo atual, onde só existiria
enquanto inviabilidade...
PELA RUA
A cidade é grande
tem quatro milhões de habitantes e tu és uma só.
Em algum lugar estás a esta hora, parada ou andando,
talvez na rua ao lado, talvez na praia
talvez converses num bar distante
ou no terraço desse edifício em frente,
talvez estejas vindo ao meu encontro, sem o saberes,
misturada às pessoas que vejo ao longo da Avenida.
Mas que esperança! Tenho
uma chance em quatro milhões.
Ah, se ao menos fosses mil
disseminada pela cidade.
Enquanto boa parte da poesia brasileira supõe um espectador que, de sua janela, observa
o mundo, a poesia de Sebastião Uchoa Leite é daquelas que desce às ruas e não foge ao
"contato furioso da existência":
PASSEIO
A morte que nos espreita nas ruas é representada, no começo do poema, pela figura do
poeta Marcelo Gama, que de fato morreu ao cair de um trem... Já o mito da passante é
rebaixado na moça que "vai mais depressa que eu", já que além de não ter mais uma
auréola, o poeta ainda esqueceu as asinhas nos pés...
Um poema de Eudoro Augusto revela a grande ópera das ruas do fim de século XX, uma
ópera surrealista e ecológica.
OFEGANTE
Neste poema de Augusto Massi a rua hesita entre ser fluxo e estática:
PONTO MORTO
O aspecto complexo é outro. Não apenas falem de ruas, mas tentem compreender as ruas
em suas complexidades, dinâmicas.
Local privilegiado para as tensões mais diversas, a rua não pode ser apenas um "tema de
poesia", mas exige que o poema seja ele próprio atravessado por essas tensões que a
atravessam:
dinâmica X estática
habitável X inviável
fluxo X contenção
razão X desrazão
Vamos nessa?
Sim, porque não é mole fazer sua "educação sentimental" ouvindo coisas como "eu sei
que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar, a cada despedida eu vou te amar,
desesperadamente eu sei que vou te amar"...
Quando as coisas não dão tão certo assim como queria o cantor é claro que pensamos
que a culpa foi nossa.
Nesse ponto os poemas de amor têm pelo menos essa vantagem. Devem mandar muito
menos gente para o divã...
E sem falar no Cântico dos cânticos, em Guido Cavalcanti, nos poemas japoneses de
muito antes de Cristo...
Sim... levemos em conta tudo isso... mas levemos em conta também a quadrinha de
Maiakovski que diz:
Portanto, nada impede que mais uma vez, mais um poeta, escreva um poema de amor.
E que ao tema dediquemos nossa conversa de hoje.
Em vão esperei
na superfície do líquen, com
câimbras na mão, olhando
aquelas fotos do reconhecimento
e pensando: em como
chegarias. Me apaixonei
Bem, já que apontei a pequena analogia entre o poema de Aníbal e o de Boyd (nascido em
1563!), posso aproveitar aquele trecho do "Tema de amor de Krill" ("olhando aquelas fotos
do reconhecimento", "me apaixonei pelo assassino"), que interpreto como a súbita paixão
nascida em alguém que contempla fotos numa delegacia para reconhecer um assassino,
(o que não deixa de ser uma belíssima alegoria da paixão), pois bem aproveito esse
trechinho para encaixar aqui um poema em prosa de Max Jacob, o poeta francês pré-
surrealista que é um de meus preferidos:
O viajante ferido morreu na casa de campo e foi enterrado debaixo das árvores da estrada.
Um dia, de seu túmulo, saiu uma ratazana; um cavalo que passava empinou. Oram a
ratazana largou, na corrida, uma fotografia muito roída. O viajante pedira que o
enterrassem com aquela imagem de uma mulher com belo decote. O cavaleiro que a viu,
encantado pela imagem, apaixonou-se pela fotografada.
Não quero aqui interpretar esse poema, mas note-se que depois de Baudelaire e suas
Flores do mal, o contexto em que se fala de amor pode muito bem compreender enterros,
túmulos e uma ratazana. Bem, na verdade há muita coisa a se dizer sobre esse poema.
Sugiro aqui, brevemente, que ele é o perfeito poema sobre poemas de amor. Quando
pensamos que o tema já está sepultado, uma ratazana o retira do túmulo e o primeiro que
passa torna a lhe dar vida...
Vamos em frente.
É claro que poemas de amor, pelo menos para nós, pós-freudianos, habitantes do século
XXI, têm que levar em conta que não sabemos muito bem o que é o amor, nem quais são
os limites do amor. Ou melhor, que tudo o que sabemos sobre amor tem validade muito
reduzida quando aplicado ao outro, e no amor "o outro" é pelo menos 50%, não é?
Um belíssimo poema sobre poemas de amor conseguiu incrivelmente dar voz ao "outro"
dos poemas de amor, e o que se ouve ali não é muito lisonjeiro...
Uma coisa se pode dizer dos poemas de amor: não houve escola ou movimento literário
que não produzisse pelos menos meia dúzia de bons poemas de amor. Ou de desamor,
como vemos pelo nem sempre muito grande otimismo dos poemas de "amor". Como disse
uma vez Cacaso, "o amor que não dá certo/ sempre está por perto".
E isto vem de longe, se pegarmos o próprio Ronsard (poeta francês nascido em 1524 e
que pelo seu livro Os amores se tornou o protótipo do autor de poemas de amor –
Drummond, naquele poema sobre "Fulana", chega a citá-lo na estrofe que diz: "Sou eu, o
poeta precário/ que fez de Fulana um mito,/ nutrindo-me de Petrarca,/ Ronsard, Camões e
Capim"), pois bem, se pegarmos o próprio Ronsard, veremos que seu poema mais célebre
e celebrado lamenta a esquiva da amada, mais do que celebra as venturas do amor. Ei-lo
em tradução de José Lino Grünewald:
ESPLANADA
Por quê será que o amor que não dá certo, não deu certo, nunca dará certo, encanta tanto
os poetas? Há muitas respostas. Tento aqui uma suposição. Na vida real, ou seja, na vida
não simbolizada, gostaríamos que tudo transcorresse na maior calma, na maior
tranqüilidade... quem gostaria de um amor com tantos percalços e final tão trágico quanto
o de Romeu & Julieta?
Mas na arte, bom é Romeu & Julieta. É conflito, aventura, sobressaltos, reviravoltas...
Porque ali, nas palavras que o poeta utiliza, podemos testar nossos limites e os do amor.
Diz o velho Terêncio: "Sou humano, nada do que é humano me é estranho". O mais
estranho no amor ainda é humano, e por isso não nos é estranho...
Por estar experimentando com os limites é que talvez tenhamos visto tantos túmulos, tanto
fundo do coração, tanto gesto extremo nos poemas de amor. Se as canções de amor nos
mandam para os psicanalista, talvez os poemas de amor nos tirem de lá...
O exercício que vou sugerir é mesmo o que vocês estão pensando: façam poemas de
amor.
Façam uma lista de palavras que vocês acham que não faltam ou não podem faltar em um
poema de amor.
Depois façam outra lista de palavras que vocês acham que não cabem nem podem caber
em nenhum poema de amor.
Depois de feitas as listas, façam um poema de amor com as palavras da segunda lista, é
claro.
Bom trabalho.
POESIA E RISO
Sabemos que, segundo as perspectivas mais otimistas, durante alguns bilhões de anos nosso querido planeta
Terra cumpriu, astro obediente e pertinaz, a sua órbita, sem carregar na carcaça essa estranha forma de vida
chamada "homem".
E também sabemos que, por um motivo ou por outro, mais cedo ou mais tarde, essa mesma Terra será de novo
apenas uma rocha girando na engrenagem de rochas e luz do universo, alheia a qualquer forma de vida.
E teremos sido um brevíssimo segundo diante da incomensurável massa de tempo que houve antes de nós e
haverá depois de nós.
Concordo com aquele sujeito que escreveu que "a vida é uma grande piada cósmica".
O estranho é que não vivamos rindo o dia inteiro, e que desperdicemos esse nosso "brevíssimo lapso" com
lamentações.
Já dizia o Paul Valéry: "o ser é apenas um defeito na pureza de não-ser". Um defeito que, aliás, não tardará
muito a ser corrigido.
Só rindo.
Daquelas vezes em que, com felicidade, a poesia riu de nós, riu de si, riu de tudo, e nos fez rir de si, de nós e de
tudo. Seja o riso irônico, a gargalhada grosseirona e franca, o riso melancólico etc, todos os matizes desse ato
que nos distingue de todos os outros seres do planeta. Afinal, como disse primeiro que todos Aristóteles, o
homem é o único animal que ri.
E a poesia sempre riu, desde o começo, e principalmente da estupidez e das pretensões do homem. Este
animal que para se impor não hesitou muitas vezes (e continua não hesitando) em massacrar, torturar e matar...
Como denunciam, com um riso corrosivo, esses poemas de Nicanor Parra e Nicolas Behr:
Aparecer apareceu.
Só que numa lista de desaparecidos.
(Nicanor Parra)
(Nicolas Behr)
____________
Se fosse o caso de encontrar semelhanças entre a poesia e o riso, diria, baseando-me um pouco em Bergson,
que os dois trabalham no sentido da desautomatização, que os dois são um drible na rigidez.
Se há uma coisa contra a qual os poetas e artistas em geral devem lutar é a automatização da sensibilidade, da
sua produção artística.
Quando a coisa chega nesse nível, como diz João Cabral (um poeta que várias vezes reclamou porque a crítica
literária não dava a devida atenção ao aspecto humorístico de sua poesia), o melhor é passar a escrever (ou
pintar) com a mão esquerda, como se lê nesse poema, que trata do bem-humoradíssimo Miró:
_______________
O riso e a poesia acontecem justamente quando um "acidente" provoca uma quebra na automatização, na visão
automatizada da vida, na prática automatizada e obediente da vida.
Eis um ótimo exemplo de casamento feliz entre poesia e riso, de autoria de José Paulo Paes:
Uma visão absurda do automatismo a que somos submetidos nesse estranho consenso chamado "vida real" ou
"realidade" é brilhantemente expressa por esse texto do argentino Júlio Cortázar. Como sabemos, o "absurdo"
em Cortázar tem com principal característica prescindir de mirabolantes efeitos pirotécnicos, magias e
sobrenaturais, ocorrendo o mais das vezes como o "outro lado" do real, nas coisas mais comuns, como chaves,
jarros, bondes, camisas, fósforos, sapatos, fotos, focadas ou desfocadas, e esse é um ótimo exemplo:
Um cronópio vai abrir a porta da rua e ao enfiar a mão no bolso para pegar a chave o que tira é uma caixa de
fósforos; então este cronópio fica muito aflito e começa a pensar que se em vez da chave ele encontra os
fósforos, seria terrível que o mundo se houvesse deslocado de repente, e então se os fósforos estão no lugar da
chave, pode acontecer que ele ache a carteira de dinheiro cheia de fósforos, e o açucareiro cheio de dinheiro, e
o piano cheio de açúcar, e o catálogo do telefone cheio de música, e o armário cheio de assinantes, e a cama
cheia de roupas, e as jarras cheias de lençóis, e os bondes cheios de rosas, e os campos cheios de bondes.
Assim este cronópio fica horrivelmente aflito e corre para se olhar no espelho, mas como o espelho está um
pouco de lado, o que ele enxerga é o portaguarda-chuvas do vestíbulo, e suas desconfianças se confirmam e
ele desata a soluçar, cai de joelhos e junta suas mãozinhas nem sabe para quê. Os famas vizinhos acodem
para consolá-lo, e também as esperanças, mas passa-se muito tempo antes que o cronópio saia de seu
desespero e aceite uma xícara de chá, que olha e examina muito antes de beber, não vá acontecer em lugar de
uma xícara de chá seja um formigueiro ou um livro de Samuel Smiles.
Os "cronópios" de Júlio Cortázar serão talvez descendentes de "Pluma", o inacreditável personagem do francês
Henri Michaux (que, como o argentino Cortázar, nasceu na Bélgica), cujo humor quase alucinógeno permanece
inédito no Brasil por algum mistério que me escapa. Leiam esse fragmento (o livro é todo composto por
fragmentos), e, se puderem, me expliquem porque é que o livro Plume, que narra as aventuras desse que é um
dos mais geniais personagens da literatura do século XX ainda não foi traduzido e publicado por aqui:
UM HOMEM TRANQÜILO
Ao estender as mãos fora do leito, Pluma ficou surpreso de não encontrar a parede. "Bem, pensou ele, vai ver
que as formigas a comeram..." e tornou a dormir.
Pouco depois, sua mulher agarrou-o e sacudiu: "Veja, disse a ele, preguiçoso! Enquanto você se ocupava
dormindo nos roubaram a casa." E de fato um céu intacto se estendia por todos os lados. "Ah, não há mais nada
a fazer", pensou.
Pouco depois, ouviu-se um ruído. Era um trem que vinha na direção do casal a toda velocidade. "Com a pressa
que tem, pensou, seguramente chegará antes de nós", e tornou a dormir.
Depois o frio o despertou. Estava todo coberto de sangue. Alguns pedaços de sua mulher jaziam a seu lado.
"Com o sangue, pensou, sempre surgem um monte de problemas: se o trem não tivesse passado eu estaria
bem contente. Mas já que já passou mesmo...", e tornou a dormir.
- Vejamos, disse o juiz, como o senhor explica que sua mulher tenha se acidentado a ponto de que a tenham
encontrado partida em oito pedaços, sem que o senhor, que estava a seu lado, fizesse o menor gesto para
impedi-lo, sem que sequer se tenha dado conta. Eis o mistério. Ao reside o x da questão.
- Em relação a esse assunto não poderei ajudá-lo, pensou Pluma, e tornou a dormir.
- A execução será realizada amanhã. O acusado quer acrescentar alguma coisa?
- Desculpe-me, disse ele, eu não acompanhei o julgamento.
_______________________________
Aqui no Brasil inventamos um gênero cujas ações andam muito em baixa na bolsa de valores literários: o
poema-piada. Todos o condenam como se não fosse uma coisa lá muito séria. Alguns críticos parecem quase
"desculpar" Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Murilo Mendes, ou seja,
nossos maiores poetas, por terem praticado poemas-piada durante toda a vida...
É claro que o poema-piada é apenas um capítulo na vasta matéria sobre poesia e riso, e é claro que da vasta
gama de risos (o riso corrosivo, o riso melancólico, o riso celebratório, o riso-denúncia etc.), o poema-piada
utilizou apenas uma pequena parte...
Mas talvez seja justamente porque suas "ações" na "bolsa de valores literários" andam tão em baixa (qualquer
crítico se sente um Papa da solenidade e da profundidade quando condena, em um livro qualquer, um poema
mais engraçadinho), que aí mesmo resida seu interesse... É longe das unanimidades, longe da multidão de
diluidores, longe dos prêmios literários, longe das comendas, que a poesia mais se renova...
Enquanto os formatos mais premiados, diluídos, repetidos, cultuados acabam se automatizando e adquirindo a
rigidez que os torna risíveis...
O já citado José Paulo Paes foi um dos raros a não fugir do formato "modernista" do poema-piada nem se
deixar limitar por ele, aí vão 3 de seus "clássicos":
CRONOLOGIA
A.C.
D.C.
W.C.
__
GRAFITO
LAR
O poeta carioca José Lino Grünewald conseguiu um ótimo casamento entre poema-piada e poesia concreta:
SERVIÇO PÚBLICO
bate ponto
bate papo
bate ponto
_________
Para os que alimentam algum preconceito contra o humor na poesia, e que em geral necessitam de alguma
"autoridade" para referendar ou "autorizar" seus gostos, cito aqui poemas de dois poetas perfeitamente sérios,
verdadeiras "autoridades poéticas". um deles inclusive vencedor de Prêmio Nobel (o que deve comover quase
às lágrimas – de inveja – nossos "sérios de plantão"): Octavio Paz, poeta que felizmente bebeu desde cedo nas
fontes do humor negro do surrealismo. Eis dois poemas de Paz:
EFEITOS DO BATISMO
O jovem Hassan
para casar-se com uma cristã,
foi batizado.
O padre,
como a um viking,
chamou-o Erik.
Agora
tem dois nomes
e uma só mulher.
O OUTRO
Também aqui o poema/riso nasce do desequilíbrio entre nossa visão já fossilizada desses "grandes homens"
com suas fisionomias graves e solenes, e a face rosada do bebê que desautomatiza totalmente nossa memória.
Releia agora o poema "O outro", de Octavio Paz, e veja se não há uma ligação muito sutil entre esses dois
poemas...
___________
E já que falamos no surrealismo, um ótimo exemplo do "humour noir" dos surrealistas pode ser esse poema do
francês Robert Desnos, que retira do velho e vasto sortilégio das pragas uma inspiração para a poesia:
A POMBA DA ARCA
Maldito
seja o pai da esposa
do ferreiro que forjou o ferro do machado
com o qual o lenhador abateu o carvalho
no qual foi esculpido o leito
em que foi engendrado o bisavô
do homem que conduzia o ônibus
em que tua mãe
conheceu teu pai!
____________
VEA VICTIS
Malgrado a cabeleira
De cachos empoados,
Luiz XV revelou-se
O maior republicano da França.
"Só para ficar nu/ preciso de dez alfaiates", diz El Rey num poema de Zuca, e é bem contra essa retórica, esse
gosto pelos floreios da eloqüência, que se dirigem as setas de seu riso.
___________
Não consigo não ligar a figura de Zuca Sardan com a de dois outros poetas, com os quais encerro a conversa
de hoje. São eles o já citado Nicanor Parra, chileno, e a portuguesa Adília Lopes. No poema de Parra, o riso
desintegra nossas pretensões de progresso e evolução, nosso orgulho por nossos avanços técnicos. Chama-se:
(Nicanor Parra)
*
O poema de Adília Lopes é revelador de uma das características dessa poeta. Trata-se de ver a coisa mais
comum (os mesmos "objetos" comuns de Cortázar) com um olhar tão livre que a coisa comum (mas por um
motivo bem diverso do absurdo de Cortázar) parece vir de Marte ou Vênus, revelada em toda a sua estranheza:
A BIFURCAÇÃO SUCESSIVA
Espero que tenham curtido essa seleção do humor. Se tiverem conseguido pelo menos um risinho em algum
desses poemas já justificaram tudo.
Que tal quebrarem todas as barreiras que impedem o riso de se expandir por regiões ditas "proibidas" para ele,
como a Arte, a Poesia, o Ritual, o Solene, e deixar a poesia que escrevem rir um pouco de vocês, com vocês?
Até a próxima.
Olá pessoal,
Como hoje é a nossa última aula (aliás, muito obrigado pela paciência!), gostaria de
começar essa conversa falando um pouco da situação da poesia no mundo, tal como a
encontrará o poeta novo, aquele que chegou à conclusão de que é, definitivamente, poeta,
e que deve arcar com todas as conseqüências desse gesto meio tresloucado de resolver
pensar por si, de se re-inventar, de pensar contra o consenso, contra as opiniões que só
são consensuais porque são as que todos adotam... as opiniões de todo mundo..., contra,
enfim, a sociedade do espetáculo, do entretenimento e da diversão (que nada tem de
diverso ou divergente, pelo contrário, funciona pelo eterno retorno do mesmo)...
Começo então citando algumas palavras do filósofo alemão Karl Jaspers, tendo tomado o
cuidado, contudo, de substituir a palavra "filosofia", empregada por ele, pela palavra
"poesia", que é o que nos interessa aqui...
E daí surgem os detratores que desejam substituir a obsoleta poesia por algo novo e
totalmente diverso."
Pergunto: o "espetáculo"?
"Muitos agentes do "espetáculo" vêem facilitado seu nefasto trabalho pela ausência de
poesia. Massas são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente
usam de uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem
sensatos. Mais vale, portanto, que a poesia seja vista como algo entediante."
Fim da citação, ou da quase citação... já que mudei algumas coisas, como, neste último
parágrafo, de onde retirei a expressão de Karl Jaspers "políticos" e coloquei "agentes do
espetáculo"... no fundo são a mesma coisa...
Pois bem... minha sugestão agora é que todos tenham em mente essas questões. Não
precisam nem concordar com o que está aí... mas é fundamental dar sua própria resposta
a esse estado de coisas... coloquemos a questão nos seguintes termos:
b. Mesmo sabendo que a sociedade do espetáculo, e sua principal arma, a TV, só admite a
figura do poeta quando devidamente "espetacularizada" pela morte (de preferência
suicídio), ou sob a forma do "sujeito maluquinho", "artista irreverentezinho", o "bobo-da-
corte pós moderninho" que fará caretas e trejeitos para a câmera, e só reforçará a idéia de
que a poesia é de fato uma coisa irrelevante?
c. Será que essa postura expressa aí na letra b é uma postura "elitista" e "antiquada" e
"fora de moda"?
d. O negócio então seria penetrar nas "brechas" do sistema do espetáculo para miná-lo
"por dentro"?
Enfim, são questões que deixo aqui para múltiplas respostas... as mais divergentes, as
mais originais...
Mas se acentuei a parte mais difícil da situação da poesia no mundo hoje, faço questão de
acentuar também os aspectos positivos da situação. E eles existem...
Há alguns anos, o grande poeta mexicano ficou espantado de ver como conseguem
conviver no mundo a opinião de que a poesia morreu, e, ao mesmo tempo, uma situação
em que realmente é impossível citar um único país, por mais pobre ou por mais rico, que
não conte com um grupo de poetas que editam uma revista de poesia, ou mantém uma
editora especializada em poesia, ou, em lugares mais carentes, se reúnem em praças para
ler poemas e discutir poesia...
Esse é o lado bacana: na nossa estranha invisibilidade temos uma possibilidade imensa
de interlocuções... Há países que ignoram o futebol, mas não a poesia. Há países que
ignoram o golfe, o tiro com arco, mas não a poesia.
Dê uma caminhada pelo centro da cidade, note como ela, a cidade, entra pelos seus cinco
sentidos, suas formas e cores pela visão, seus sabores pelo paladar, seus rumores pela
audição, seus esbarrões ou carícias pelo tato, seus odores doces ou acres pelo olfato,
sinta isso e faça poemas.
Pegue uma edição de Os lusíadas e faça um poema usando apenas uma palavra de cada
estrofe.
Aprenda uma língua que seja considerada "inútil" no mundo das relações econômicas, e
faça um poema nela.
Era isso.
Um abraço.