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Lisboa, agosto de 1988
Ricardo de Almeida Rocha nasceu no dia 27 de setembro de 1953 em Vitória, ES. Trabalhou como auxiliar de biblioteca,
escriturário e mecânico de trens. Casouse aos dezenove anos com Lívia com quem teve dois filhos. Em 1987 viajou
para Portugal onde viveu por dois anos. Lá, escreveu o primeiro livro, “Lisboa, agosto de 1988”. Esse romance fala da
relação entre o fato histórico e os dramas anônimos, por meio de analepse e da prolepse, utilizando o monólogo
interior.
Então me vi na carta. Não é metáfora. Vi minha imagem na carta. O papel fino me refletia ali sentado, recortado
contra o trânsito que flui na direção do Porto. Acinzentado brilho imperial cobre o casario nas ladeiras ao redor.
Cheiro de vinho no ar ao de grelha e rio se mistura. Francesca na memória de minha língua. Tamborilam as
fontes nos ladrilhos rangentes à passagem dos bondes. O prédio na esquina do paço ergue‐se triste em cicatrizes
e olhos, duplicado abaixo ao longo da poça no meio‐fio. Minha gola azul de zuarte está levantada até as orelhas e
as sobrancelhas se encontram na glabela. No cenho, a leitura se converte em saudade e dor. Ergo os olhos. As
dragas empurram as ondulações contra a superfície sáxea que margina a avenida até a torre de Belém. As moças
passando não sabem o que é aquilo e para que serve. Espero a subsistência do jornalista e do escritor o nome;
todavia, se devo escrever, será apenas para a manutenção da sanidade e transcender a fome e o relento.
Postado por Ricardo às 04:53 0 comentários
Não sei dizer. Idéias confusas. O fato é que. O exercício de passar aqueles textos todos para um único deixa a
mercê do assalto de sentimentos por demais intensos, quase violentos para minha vulnerabilidade. Não sei.
Aqueles dias obscuros tem uma luz peculiar, a que a vida posterior concede àquela que não se sabe enquanto
está passando. O livro perdeu a perspectiva literária, o leitor, a posteridade, a necessidade de reconhecimento,
enquanto o trabalho desmaia de desejo e mais exigente se torna na execução, obrigando a renúncias básicas,
como a da felicidade, da amizade ou do prazer.
Definitivamente, não sei. Viro o postal. É minha tediosa letra sobre papel amarelado, o que mais? O universo
reflete de todas as nossas conversas, amigo, nas quais tenho constantemente pensado, desde que você, tolo, foi
atrás de minha irmã. Fui. Vim. Estou. Agora aqui. É noite. São 23 horas.
Oito horas da noite em Piumhi. A praça está quieta, sem movimento. O casal que passa se lembra. Mas claro.
Era um cara legal. Ah, claro, ela também. Muito bonita. Nunca mais. Nunca mesmo. Sumiram. E o Kleber? Dizem
que vai se casar. É uma noite excepcionalmente quente. Não deveria. Tempo estranho. Um miado no telhado do
hotel.
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Sexta à noite, no meu desespero, Francesca chega sem preâmbulos. Briguei com Garlos, diz, quem está ele a
pensar que é para falar daquela forma na frente de todos? Pedira demissão. Mas não se preocupe, amor. A casa
fazia sim parte do contrato. E ela telefonaria para Franco no dia seguinte. Pediria algum dinheiro. Alugaremos
então um apartamento. E, tenho certeza, o próprio Franco nos conseguirá trabalho junto às suas relações em
Lisboa. Naquele momento escutei um miado agudo vindo do telhado.
Ali. Saindo de sua casa em Roccabernarda. É ela. Uma mulher maravilhosa. Com a roupa do corpo, um belo
corpo. É então que combinam. O que ela venha a precisar, é só pedir. É então que combinam. O que ela venha a
precisar, é só pedir. Vá com Deus. Agora, ela de novo, ligando para a Itália. A mesma roupa, um pouco suada, o
mesmo corpo, tantinho cansado,. Não está em casa. Decerto foi para Nápoles. Não. Ninguém sabe onde. Claro
que há uma explicação. Enquanto isso podemos recorrer a seus avos em Póvoa. Não era caso de desespero.
Os navios passam ao longo do Tejo, os cacilheiros o atravessam. Ali estou, de novo. Somos, eu e Francesca,
duas pessoas sem nada em comum mas não posso abandona‐la agora numa situação em que se meteu por minha
causa. Sei porém que não dará certo, jamais dará certo, é uma questão de tempo, ela mesmo me abandonará.
Esperarei.
Um casal em Cascais. Amigos dos últimos conhecidos da agenda de retornados de Francesca. Precisam de
caseiros. Melhor ficarem com o trabalho do que sermos constrangidos a hospedá‐los. É, também acho, diz o
marido. Está resolvido.
Na quarta seguinte, ultimo dia de Francesca no escritório de Garlos, já havíamos mudado para a linha do Estoril,
no fim da qual o casal tinha a chacrinha.
Durou uma semana. Quinta pálida, perturbada entre ass arvores que farfalham, ela chega pelo caminho que traz
à habitação dos caseiros. Estou cozinhando na lareira porque o gás acabou e só poderei buscar um novo botijão
no dia seguinte. Ela estivera durante todo o dia e parte da noite na casa principal, servindo os convidados.
Desabou chorando sobre o sofá e disse que não agüentava mais, era superior às suas forcas, não estava
acostumada, não agüentava mais.
Durante o percurso de volta a Lisboa, escondia de mim os olhos. Quando na penúltima estação as pessoas
começaram a apanhar suas coisas para descer no Sodré, ela toma minha mãos, me encara, por favor me perdoe,
queria o melhor para mim, amava‐me.
Estremeci.
Ao descermos na estação do cais, estávamos na rua, sozinhos, amaldiçoados. É hora de começar a aprender a
viver, diz ela, como se Franco não existisse. Não iria atrás de advogados ou detetives, até porque não tinha
dinheiro para isso.
‐ Eu tenho.
Não era muito. Mas creio que para isso. Como não quer o meu dinheiro?, eu aceitei o teu todo esse tempo!
Por que eu insistia, perguntou, irritada. Não te incomodava tanto a dependência? Agora estava livre, não
dependia mais. Anoitecia e tomei consciência da noite. O vento começou a soprar.
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Postado por Ricardo às 06:43 0 comentários
Haveria outros momentos sob o céu da bem‐aventurança. Não só entre ela e Christian, também com um outro.
Falo sério, Blandine, nunca senti isso por ninguém, nunca conheci uma mulher como você. Você conhecerá
muitas mulheres, Pablo, irá conhecer uma que terá sido feita para você, tem só dezesseis anos, menino. Onde
está o problema? O adolescente a conquistou. No amor era amante experimentado, Pablo, ela não podia entender
como. Deixou‐se então levar, quase durou. Mas Christian. Christian fora o do pacto – todavia tampouco. Ah,
quando o viu no milho com Kleber! O amor de sua vida. Momentos únicos aqueles, talvez como o primeiro
cavalgar pelos cafezais. Nunca mais desde então.
Quando, cinco anos depois, o revê. A musica do tempo sobre o lago. Não sabe se deverá tornar‐se os dias que
transcorrem ou apenas sonhar de longe. O aroma cítrico, amadeirado. O rosto querido exposto ao êxtase é céu
de roça, distante de si mesmo e de qualquer vínculo com a cidade. Gosto de amêndoa, a ilusão da afinidade, ou
do poder da afinidade, na verdade um poder de si mesmo, nunca do outro, do relacionamento. O doce da mãe,
de Donda, a calda na ponta dos dedos médio e indicador. Cinco anos se passaram. Nossa!, não parece... Fino, o
fio não irá açucarar depois de frio? Desfalecimento. Espaços, espasmos, espírito espargido sobre a carne se
apressando ao pedido de que fosse, por favor, sim, aplacado.
O prazer. Que silencio é esse que precede o percurso interminável da mao não ser pela mão que acaricia?
Como num movimento ensaiado, levantam simultaneamente o olhar das pedras do calcamento. O ruído do motor
do caminhão, distante, dá a idéia do minuto passado, como uma canção que insiste na mente após dormirmos.
As ruas molhadas são almas, indicio definitivo. As brasas de uma fogueira não utilizada ardiam ao sol e a
fumaça ao ar se misturava, ou era o próprio ar em seu caminho. A vida segue.
Cabe ressaltar, antes dos corpos, do desejo e até da pessoa perante, o sonho ausente se faz pressentir – onde as
afinidades convergem, miudezas partilhadas, o gesto adivinhado, o olhar desdenhando da palavra, almas
trocadas como endereços em furtivos bilhetes cifrados que tudo deixam impresso na leitura da grafologia. Falo
de amor, de um movimento da vida que segue mas súbito quis parar, cuja realidade apesar dos pesares é o
corpo vivo, e apenas ele. De uma eternidade que, diferente de todas as montanhas, não se pode contornar. Está
sempre ali, permanente e atemorizadora, contra a qual nada podem a arrogância, o medo ou a esperança, esse
poder de é feito o eu inatingível. A fome na saciedade. Se estava escrito que eu deveria ser de Blandine, o sinal
não foi o amor físico, sempre ao corpo limitado, mas a calma do dia seguinte, na espiritualidade que abandonara
a busca de Deus para se concentrar na beleza qualquer. Não só o desejo, carente de outro corpo, mas a ternura
anterior, mesmo em meio ao fetiche. O corpo do destino se forja na tortura, um sentimento que se pode
escolher – falo de amor – dúctil ao arbítrio, rosa que floresce do cultivo, ninho com cuidado preparado.
Pedi licença e entrei no restaurante para ir ao sanitário. Ao apanhar o papel higiênico no bolso, tirei junto a
carteira, tive esse cuidado, perder documentos seria agora desastroso. Numa das separações plastificadas,
aquela mesma foto dela, Blandine e uma foto recente de Francesca na casa de praia, soberba num biquíni
clássico. Francesca. Separados na maior parte do tempo por causa do pub, ela crescera – não há a luz de nada
saber acerca da cor? Por outro lado, Blandine deixara de ser por estar súbito ali a meu lado? A madeira se dá,
generosa. Não escuta um único agradecimento junto aos gemidos do fogo.
O calor abafado no cubículo. Sou a menina das montanhas, sou teus sonhos, a própria montanha. Mas. Ao lado
do restaurante, a boate. A mulher que não dormira e sim morrera.
Subíamos a viela cheia de latas. Célere uma ratazana passou à nossa frente na direção do lixo amontoado pelo
pessoal da prefeitura que precedia os caminhões. Surgido do nada, o gato branco que, havia pouquinho, recebia
nosso afago, saltou e a abocanhou. Por que os animais tem de ser maus se são criaturas sem arbítrio do próprio
Bem? Eu não podia acreditar... O tempo tanto passara e ela ainda desviava para questões genéricas sem solução
a nossa conversa que pedia o momento particular. Um ônibus passou raspando ao atravessarmos a avenida. Ela
continuou.
Está vendo? Para o sofrimento do homem há uma justificativa – Me dá licença um instantinho? Deve ter sido o
chá do hotel.
Agora estamos na esplanada à saída da boate. O garcon se aproximou, ouviu meu pedido, gritou para a cozinha
e foi apanhar vinho verde no freezer. Na boca do metrô, não muito longe, dorme um mendigo. Blandine aponta.
O quê? Para o sofrimento do homem, sim, cabe uma explicação natural, como no caso da miséria – ela parece
recitar – quando o quinhão que satisfaria as necessidades do semelhante é retido... Eu praticamente acabara de
voltar do sanitário. Estava meio sem alternativa. Será que esqueceu que conheço o discurso? Agora falará das
guerras.
No queixo dela os mesmos seios tristes de quando da minha partida de Piumhi. Não, na verdade não. O queixo
estava mais cheio, um queixo sedentário, financeiramente seguro. Mas os vértices dos lábios carnudos
mantinham ângulos precisos de generosidade. Isso não perdera. Foi quando comecei a pensar em felicidade
conjugal. Em como pode haver sensualidade, família, amor à arte e tudo mais, debaixo de um mesmo teto, na
vida de uma casa. Aquela era uma esperança assassinada? Mas que esperança exatamente? Desejo generalizado
de tal modo que todo produto, de margarina a tênis, e todo serviço, de banco a telefone, se vende na
propaganda por meio da idéia de uma família feliz, de valores equilibrados de beleza, forca, trabalho e lazer. De
uma casa viva? O amor ou a arte na verdade não são indispensáveis nesse quadro, exceto pelo conforto, pelo
bem‐estar que nada intensifica. Não que o mal‐estar o faça. Então o quê?
Como teríamos sido sem a separação? Me chamaria de “papai” diante dos filhos ou usaria amor como quem diz
por favor? Teria se mantido aquele desejo – se estabelecidos, sem tédio; se em dificuldades sem brigas? Eu não
mais olharia para outras mulheres? Seria eu o bastante para ela? Dependeria nossa harmonia da conta no banco e
minha sutil de um equilíbrio sutil entre lar e motel, mantido no mesmo quarto? O segredo de tudo, pensei, é se
manter pensando. Isso mesmo. A maldição do homem é se acostumar.
‐ Atlântico, Christian.
Odiava quando ela me interrompia e muito mais se era para me corrigir. Ele continua tão lindo, com esse
jeitinho de trocar letras e gaguejar, um doce... – A guerra é sem dúvida muito mais importante que nossa vida
pessoal, meu amigo.
E isso aqui o que é, perguntei apontando a carta. Você pensava em que guerra quando escreveu isso? (li alto) “
Você não é capaz de transmitir tranqüilidade a uma mulher, como o Luis é”. Mas não pára em casa.
O que você queria, pensou ainda, quando ele vem traz o sustento, as roupas, as viagens. “E no entanto como
sofri e como sofro por sua causa, desgraçado!” Uma lágrima! Uma lágrima nos olhos dela!
Sim, uma dor tão grande que é quase física... Mas não posso, não mostrar qualquer emoção, chega. A dor. Uma
rede de terminais nervosos. Outras impressões podem ter ou não relevância – a voz dela continua doce,
tranqüila, pausada, sua língua sai ainda ligeiramente nas proparoxítonas – mas a dor tem sempre relevância,
porque é o alarme, porque pode ser a salvação.
Ela me olha com bondade. Aliás, você deve ter mais esse tipo de noção, por causa da enxaqueca. De ter
aprendido a viver com a dor. Viver com a dor. Ainda tem as crises com tanta freqüência? Pensei com surpresa o
quanto as dores haviam melhorado, o quanto as crises se haviam espaçado. Isso na pior fase de minha vida,
com pressão de trabalho, ausência de afeto, fome, relento.
A enxaqueca é um sinal vago dum perigo remoto porque, imagino, é possível viver uma vida plena ou quase com
enxaqueca, sem maiores danos físicos ou psicológicos. Não é? Respirando fundo, sinto o mundo para o qual foi
necessário nascer de um vento que juntasse vida e virtude e ainda assim...
É verdade. É possível. Sim. Viver com dor. Superar. Quando você realmente quiser, quando achar conveniente,
quando estiver se sentindo à vontade para – Essa é a utilidade da dor, quando adverte e não incapacita mas
motiva, fortalece. O perigo maior do qual alerta é a gente se acostumar com a sua ausência.
Blandine morde o lábio inferior, que se deforma ligeiramente entre a brancura extraordinária de seus dentes
frontais, transparentes, úmidos, luzindo. Eu mudei, Christian: era a menina Blandine, que não conhecia a dor,
agora sou apenas Blandine. A virgem entregue ao herói. A minha menina. Ergueu‐se das pedras um horizonte
que em meu peito amou como ninguém antes jamais.
Não há por que uma excluir a outra. Você não assume a carta? O raio da estrela transpassa a ambivalência dos
sentimentos que se negam, densa em ondulações de memória. Nem lembro da carta para assumir ou não.
Disseram juntos Eu Você. Na mesa não apaziguada se refletem mudanças advindas do abismo. Eu queria. Você
quer. Estrelas. Nebulosas. Estrutura espiralada. Gases e pó envolvem o que se diz. Não sabiam o que querer.
“Você foi isso, Christian, uma doença”, continuei lendo, “mas não incurável” Jamais poderei deixar de amá‐
lo. “Olho para a minha filha e dou graças a Deus por ter abortado de você”. Se refletem também fulgurantes
nardos e raros fajardos, a ladeira de Heráclito e os céus da águia e das plêiades. Poço e profundeza. “ Pela paz
que o Luis me transmite, pela segurança, logo irei amar ele tanto quanto te amei”. Minha voz foi desmaiando ao
perceber que não pretendia ler aquele trecho. Não é possível, pensa ela, como poderei amar assim outro homem
se nunca deixei de amar você ou deixarei?
Diz então que era esse o seu consolo, sua vingança. Ninguém poderá me amar como ela amou um dia. E ela
poderia amar um outro, que a merecesse, que a protegesse.
Se tivesse contado, ela deixaria de vir? Aliás, com o dinheiro que tem, foi o acaso que a levou a se hospedar
num hotelzinho como aquele? A menina levada aos céus pela carruagem de fogo era menos que suas bonecas
pretendiam. O que estava querendo dizer? Que ela viera na esperança de encontrá‐lo? Sua pretensão não tem
limites! É maior que sua memória!
Como se ela não ouvisse. Esqueceu que estivemos no Rio em hotéis muito piores? Pareceu‐me um hotel
simpático, entrei e fiquei com o quarto. É como sempre faço. Se tivesse com o Luis, seria diferente, é claro.
É claro.
Luis não ficaria nesse tipo de hotel. É o jeito dele. Acha que deve oferecer à sua esposa todo conforto. Eu
concedo a ele essa alegria – por que não?
Onde está ele agora? Resolve uns assuntos no Porto, responde ela. E, antes que você pergunte, não estou com
ele porque tenho umas coisas a resolver aqui, relativas a meu visto. E estou querendo me naturalizar.
Não entendi nem tive tempo de perguntar. O garçom chegou. Quando saiu: nossos olhares. Nada mais.
Ela disse te amo, ou circundou a mesa e se jogou em seus braços, poderia ter sido assim, por que não? E como
não separa o sexo do amor, agora o deseja, voltam para o hotel. Mais que uma possibilidade, quase uma lógica.
Mas nada nunca mais será tão simples, nada tão de acordo com os sonhos, acabou essa fase, esse ciclo de vida.
Agora será preciso entender, se conscientar, aceitar, não há mais essa com a qual sonha, menos ainda esse que
costumava sonhar.
O vinho aberto, as taças diante. Como na primeira vez, indizível, e todavia a partir dessa impressão poderia
escrever um livro. Bem, não significa muito, poderia escrever um livro a partir de praticamente qualquer coisa.
Mas viver, poderei? Enlevo e morbidez. Se misturam. Desespero de viver. Não escreveria livro algum, não sobre.
Perfeição. Enfado da carne.
Blandine. Talvez tenha entendido de seus olhos. Líquidos. Um riso discreto deixa em liberdade os rios, sem
magia que os detenha ou apresse. Narciso na natureza integrado. Não há pressa. Não há vida no mundo. Não há
vida fora desses olhos, dessas mãos. Suspiramos gemendo e gemendo choramos, ao passarmos as trevas, no
silencio da seiva.
Aquele momento! O passado à minha frente e o presente atrás de mim... Era hora de Francesca chegar do pub,
pela rua em lento declive às minhas costas. Minha decadência. Um sonho de Blandine prova o vinho. Emoções
emaranhadas que se roubam umas às outras. Blandine, cujo aspecto físico não mudara, vestida do jeito como
costumava se vestir quando estava comigo, o rosto sem pintura, sem ter adquirido sotaque ou modos
requintados, mantendo o acento mestiço e mineiro, tornava o estar ali com ela a vida real, e mecanismo mental
tudo o que se passara após nos separarmos. Todos os meus impulsos são no sentido de abraça‐la, beija‐la, fazer
confidências.
Não compreendo. É possível que esse Luis seja mesmo uma pessoa especial. Não é o que costuma acontecer.
Mulheres bonitas em geral, e mulatas jovens em especial, são trazidas para a Europa com o fim de serem
submetidas à escravidão sexual, fazerem programas, para que sejam prostituídas. Tubo bem uma vez ou outra
se sabe de um caso assim, de um cara rico que casa com uma, mas não é o natural, e no caso, há a questão de
como a chamou, quem tenha intenções sinceras não usará aquele tipo de subterfúgio que usou no curso, “para
que ela descansasse”, “parecia tão cansada”. Mas sou eu quem pensa isso, e não sou dono da verdade, de
repente foi isso mesmo, sabe‐se lá.
É possível. Mas esqueça ele só uns minutos, se permita só por esses momentos lembrar com alegre de nossos
momentos juntos, é possível, ninguém está falando em traição, mas a gente se rever assim parece mesmo algo,
de tão improvável, especial. Não é?
Postado por Ricardo às 06:46 0 comentários
Pára, hipnotizada pelo quadro atrás do porteiro. Flores. Quantas vezes ele me deu flores? Ele me
deu flores alguma vez? Bombons? Se Christian tivesse recolhido o namoro a essa guarida, se reconhecesse
no relacionamento a necessidade desses mimos banais, como lingerie de presente no Dia dos Namorados! E
todavia ele era tão gentil. Precisava ser assim tão diferente também, tão complicado? tão pouco ambicioso?
Um pouco de clichê teria lhes feito bem, como, apesar de todo comercio, membros de uma família acabam
por se reconciliar na noite de Natal.
Esperei alguns minutos na friagem que despertava o ouvido, resfolegando de fraqueza. Depois
caminhei lentamente e entrei também. Blandine está no quarto 203. Francesca no 404. Continuo subindo
as escadas pesadamente até o quarto andar. Descalço. Desci após alguns instantes e parei no segundo. A
porta se abre. Ângela está em seu próprio quarto, contíguo. Blandine recostada em travesseiros
superpostos. O bebe dorme a seu lado, Sentei na beira da cama.
Qual a idade de Bruna? Não deveria pairar nenhuma dúvida a respeito. Tinha um ursinho de
pelúcia. Você não vai adivinhar o nome dele. Blandine sorri e não se saberá o quanto de engraçado havia
no tal nome, e o quanto de amargura. Ah, sim, eu posso adivinhar. Claro. O ursinho lhe dá garantia de
sonhos bons. É o que eu sou?, ele pergunta. Sim, um sonho bom. Por isso era tão fácil te amar nas noites.
Nas responsabilidades cotidianas, melhor não tê‐lo por perto. Há tantas responsabilidades assim no
cotidiano dela? Ela sabia o que de fato estava perguntando e foi essa questão implícita que não respondeu.
Postado por Ricardo às 05:46 0 comentários
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Ainda eram jovens e todavia tinham um passado. Os corpos, vividos, sentiam os movimentos.
Esquecem o que deveriam lembrar e se inquietam pelo que deveria estar esquecido. Portanto, por que não
Eram jovens – ou, dito de outro modo, sua juventude se emaranhara ao tempo de vida deles como folhas
que terminam ao fim de um tempo, em partículas da terra dos parques. Cromossomos múltiplos nas células
A roupa do rapaz sabia como devia se comportar a cada movimento e, limpa, retinha algo do cheiro de sua
pele. Ah, esse cheiro, o que primeiro chegou a ela vindo de Christian. Na entrada da boate, foi
cumprimentado pelo segurança. Tímido, devolveu o cumprimento. Ei, podia ser então que aquele rapaz do
bar em Madri nunca tivesse visto Oleana. As pessoas julgam, e particularmente ele era exímio nesse
monstruoso item de humanidade. Ela pode agora pensar que sou um cara noturno, assíduo de boates. E
julgar também é um sintoma da própria insegurança, preocupação com o que os outros estão pensando.
Pelo menos em Portugal as pessoas que lidam com o público são atenciosas, não odeiam o publico.
Como se fizesse diferença, no rumo de sua vida.
Lisboa. Noite de sexta‐feira. Uma vez saíram, uma única vez, para um programa noturno em Minas.
Foram de táxi para Passos. Depois do jantar, foram dançar, o rosto dele se modificando nas luzes, dava
para perceber que sabia dançar. Ainda não sei o que estamos fazendo aqui, dissera ela a rir, como quem
diz É tudo estranho, mas estou gostando. O beijo sabia a chocolate branco. Derrete na língua. Aonde vamo
depois? Durante o beijo seguinte, os jovens morcegos lisboetas passam por eles, numa outra sexta‐feira,
num outro encontro dos dois, e o que ainda havia que devesse perdurar? Estão próximos à travessa da Boa
Hora, o grupo passou por eles, quando vem a idéia. Por que não irmos? E dançarmos? Nada de adultério, s
um passeio, escutar o fado.
Ela concordou. Tudo bem. Mas eu não deveria esquecer apenas bons amigos. Minha vida hoje é o
Luis. Estranho, pensei, nessa época mães costumam esquecer os pais de seus filhos pequenos. Em todo
caso...
Postado por Ricardo às 05:10 0 comentários