Documente Academic
Documente Profesional
Documente Cultură
1094. Admite-se geralmente que toda arte economia é a riqueza. Mas quando tais
e toda investigação, assim como toda artes se subordinam a uma única facul-
ação e toda escolha, têm em mira um dade - assim como a selaria e as ou- 10
bem qualquer; e por isso foi dito, com tras artes que se ocupam com os apres-
muito acerto, que o bem é aquilo a que tos dos cavalos se incluem na arte da
todas as coisas tendem. Mas observa- equitação, e esta, juntamente com
se entre os fins uma certa diferença: al- todas as ações militares, na estratégia,
guns são atividades, outros são produ- há outras artes que também se incluem
tos distintos das atividades que os em terceiras - , em todas elas os fms
produzem. Onde existem fms distintos das artes fundamentais devem ser pre-
das açôes, são eles por natureza mais feridos a todos os fms subordinados,
excelentes do que estas. porque estes últimos são procurados a 15
Ora, como são muitas as açôes, bem dos primeiros. Não faz diferença
artes e ciências, muitos são também os que os fms das ações sejam as próprias
seus fms: o fim da arte médica é a atividades ou algo distinto destas,
saúde, o da construção naval é um como ocorre com as ciências que aca-
navio, o da estratégia é a vitória e o da bamos de mencionar.
2
Se, pois, para as coisas que fazemos apenas, o que seja ele e de qual das
existe um fim que desejamos por ele ciências ou faculdades constitui o obje-
mesmo e tudo o mais é desejado no to. Ninguém duvidará de que o seu es-
interesse desse fim; e se é verdade que tudo pertença à arte mais prestigiosa e
nem toda coisa desejamos com vistas que mais verdadeiramente se pode cha-
20 em outra (porque, então, o processo se mar a arte mestra. Ora, a política mos-
repetiria ao infmito, e inútil e vão seria tra ser dessa natureza, pois é ela que
o nosso desejar), evidentemente tal fim determina quais as ciências que devem
será o bem, ou antes, o sumo bem.
Mas não terá o seu conhecimento, ser estudadas num Estado, quais são lO94b
devemos e o que não devemos fazer, a preservar. Embora valha bem a pena
finalidade dessa ciência deve abranger atingir esse fim para um indivíduo só, é
as das outras, de modo que essa finali- mais belo e mais divino alcançá-lo
dade será o bem humano. Com efeito, para uma nação ou para as cidades-Es- lO
ainda que tal fim seja o mesmo tanto tados. Tais são, por conseguinte, os
para o indivíduo como para o Estado, fins visados pela nossa investigação,
o deste último parece ser algo maior e pois que isso pertence à ciência polí-
mais completo, quer a atingir, quer a tica numa das acepções do termo.
4
Retomemos a nossa investigação e Platão havia levantado esta questão,
J5 procuremos determinar, à luz deste perguntando, como costumava fazer:
fato de que todo conhecimento e todo "Nosso caminho parte dos primeiros
trabalho visa a algum bem, quais afir- princípios ou se dirige para eles?" Há
mamos ser os objetivos da ciência polí- aí uma diferença, como há, num está-
tica e qual é o mais alto de todos os dio, entre a reta que vai dos juízes ao
bens que se podem alcançar pela ação. ponto de retomo e o caminho de volta.
Verbalmente, quase todos estão de Com efeito, embora devamos começar I095b
acordo, pois tanto o vulgo como os ho- pelo que é conhecido, os objetos de
mens de cultura superior dizem ser conhecimento o são em dois sentidos
esse fim a felicidade e identificam o diferentes: alguns para nós, outros na
bem viver e o bem agir como o ser acepção absoluta da palavra. É de pre-
20 feliz. Diferem, porém, quanto ao que sumir, pois, que devamos começar
seja a felicidade, e o vulgo não o con- pelas coisas que nos são conhecidas, a
cebe do mesmo modo que os sábios. nós. Eis aí por que, a fim de ouvir
Os primeiros pensam que seja alguma inteligentemente as preleções sobre o
coisa simples e óbvia, como o prazer, a que é nobre e justo, e em geral sobre 5
riqueza ou as honras, muito embora temas de ciência política, é preciso ter
discordem entre si; e não raro o sido educado nos bons hábitos. Por-
mesmo homem a identifica com dife- quanto o fato é o ponto de partida, e se
rentes coisas, com a saúde quando está for suficientemente claro para o ouvin-
doente, e com a riqueza quando é te, não haverá necessidade de explicar
25 pobre. Cônscios da sua própria igno- por que é assim; e o homem que foi
rância, não obstante, admiram aqueles bem educado já possui esses pontos de
que proclamam algum grande ideal partida ou pode adquiri-los com facili-
inacessível à sua compreensão. Ora, dade. Quanto àquele que nem os pos-
alguns têm pensado que, à parte esses sui, nem é capaz de adquiri-los, que
numerosos bens, existe um outro que é ouça as palavras de Hesíodo:
auto-subsistente e também é causa da
bondade de todos os demais. Seria tal- Õtimo é aquele que de si mesmo lO
vez infrutífero examinar todas as opi- [conhece todas as coisas;
niões que têm sido sustentadas a esse Bom, o que escuta os conselhos
respeito; basta considerar as mais [dos homens judiciosos.
difundidas ou aquelas que parecem ser Mas o que por si não pensa, nem
defensáveis. [acolhe a sabedoria alheia,
30 Não percamos de vista, porém, que Esse é, em verdade, uma criatura
há uma diferença entre os argumentos [inútil' .
que procedem dos primeiros princípios
e os que se voltam para eles. O próprio , Trabalhos e Dias. 293 ss. (N. do E.)
5
Voltemos, porém, ao ponto em que A julgar pela vida que os homens
havia começado esta digressão. levam em geral, a maioria deles, e os
52 ARISTÓTELES
homens de tipo mais vulgar, parecem sua virtude. Está claro, pois, que para 30
15 (não sem um çerto fundamento) identi- eles, ao menos, a virtude é mais exce-
ficar o bem ou a felicidade com o pra- lente. Poder-se-ia mesmo supor que a
zer, e por isso amam a vida dos gozos. virtude, e não a honra, é a fmalidade
Pode-se dizer, com efeito, que existem da vida política. Mas também ela pare-
três tipos principais de vida: a que aca- ce ser de certo modo incompleta, por-
que pode acontecer que seja virtuoso
bamos de mencionar, a vida política e
quem está dormindo, quem leva uma
a contemplativa. A grande maioria dos
vida inteira de inatividade, e, mais
homens se mostram em tudo iguais a ainda, é ela compatível com os maiores 1096 a
20 escravos, preferindo uma vida bestial; sofrimentos e infortúnios. Ora, salvo
mas encontram certa justificação para quem queira sustentar a tese a todo
pensar assim no fato de muitas pessoas custo, ninguém jamais considerará
altamente colocadas partilharem os feliz um homem que vive de tal
gostos de Sardanapalo". maneira.
A consideração dos tipos principais Quanto a isto, basta, pois o assunto
de vida mostra que as pessoas de gran- tem sido suficientemente tratado 5
de refinamento e índole ativa identi- mesmo nas discussões correntes. A ter-
ficam a felicidade com a honra; pois a ceira vida é a contemplativa, que
honra é, em suma, a fmalidade da vida examinaremos mais tarde 3 •
política. No entanto, afigura-se dema- Quanto à vida consagrada ao
siado superficial para ser aquela que ganho, é uma vida forçada, e a riqueza
buscamos, visto que depende mais de não é evidentemente o bem que procu
quem a confere que de quem a recebe, ramos: é algo de útil, nada mais, e
25 enquanto o bem nos parece ser algo ambicionado no interesse de outra
próprio de um homem e que dificil- coisa. E assim, antes deveriam ser
mente lhe poderia ser arrebatado. incluídos entre os fins os que mencio-
Dir-se-ia, além disso, que os homens namos acima, porquanto são amados
buscam a honra para convencerem-se por si mesmos. Mas é evidente que
a si mesmos de que são bons. Como nem mesmo esses são fins; e contudo,
quer que seja, é pelos indivíduos de muitos argumentos têm sido desperdi- 10
grande sabedoria prática que procu- çados em favor deles. Deixamos, pois,
ram ser honrados, e entre os que os este assunto.
conhecem e, ainda mais, em razão da
3 1177a 12-1178a8; 1178a22-1179a32.(N.
2 Era um rei mítico da Assíria. (N. do E.) doT.)
6
Seria melhor, talvez, considerar o mais ajuizados dirão que é preferível e
bem universal e discutir a fundo o que que é mesmo nosso dever destruir o
se entende por isso, embora tal investi- que mais de perto nos toca a fim de
gação nos seja dificultada pela amiza- salvaguardar a verdade, especialmente J5
de que nos une àqueles que introdu- . por sermos filósofos ou amantes da
ziram as Formas 4. No entanto, os sabedoria; porque, embora ambos nos
sejam caros, a piedade exige que hon-
4 Outros traduzem por: Teoria das Idéias. (N. do remos a verdade acima de nossos
E.) amigos.
ÉTICA A NICÔMACO 53
20 Ou não haverá nada de bom em si claro que ele não poderia ser realizado
mesmo senão a Idéia do bem? Nesse nem alcançado pelo homem; mas o
caso, a se esvaziará de todo que nós buscamos aqui é algo de
sentido. Mas, se as coisas que indica- atingível.
mos também são boas em si mesmas, o Alguém, no entanto, poderá pensar 35
conceito do bem terá de ser idêntico que seja vantajoso reconhecê-lo com a
em todas elas, assim como o da bran- mira nos bens que são atingíveis e
cura é idêntico na neve e no alvaiade. realizáveis; porquanto, dispondo dele 1097 a
Mas quanto à honra, à sabedoria e ao como de uma espécie de padrão,
prazer, no que se refere à sua bondade, conheceremos melhor os bens que real-
25 os conceitos são diversos e distintos. O mente nos aproveitam; e, conhecendo-
bem, por conseguinte, não é uma espé- os, estaremos em condições de alcan-
cie de elemento comum que corres- çá-los. Este argumento tem um certo ar
ponda a uma só Idéia. de plausibilidade, mas parece entrar
Mas que entendemos, então, pelo em choque com o procedimento adota-
bem? Não será, por certo, como uma do nas ciências; porque todas elas, em- 5
dessas coisas que só por casualidade bora visem a algum bem e procurem
têm o mesmo nome. Serão os bens uma suprir a sua falta, deixam de lado o
só coisa por derivarem de um só bem, conhecimento do bem. Entretanto, não
ou para ele contribuírem, ou antes é provável que todos os expoentes das
serão um só por analogia? Inegavel- artes ignorem e nem sequer desejem
mente, o que a visão é para o corpo a conhecer auxílio tão valioso. Não se
razão é para a alma, e da mesma compreende, por outro lado, a vanta-
forma em outros casos. Mas talvez seja gem que possa trazer a um tecelão ou a
preferível, por ora, deixarmos de lado um carpinteiro esse conhecimento do
30 esses assuntos, visto que a precisão "bem em si" no que toca à sua arte,ou /0
perfeita no tocante a eles compete mais. que o homem que tenha a
propriamente a um outro ramo da Idéia em si venha a ser, por isso
filosofia 8 • mesmo, melhor médico ou general.
O mesmo se poderia dizer no que se Porque o médico nem sequer parece
refere à Idéia: mesmo ainda que exista estudar a saúde desse ponto de vista,
algum bem único que seja universal- mas sim a saúde do homem, ou talvez
mente predicável dos bens ou capaz de seja mais exato dizer a saúde de um
existência separada e independente, é indivíduo particular, pois é aos indiví-
duos que ele cura. Mas quanto a isso,
8 Cf. Metoflsica, IV, 2. (N. do T.) basta.
7
/5 Voltemos novamente ao bem que resse se fazem todas as outras coisas.
estamos procurando e indaguemos o Na medicina é a saúde, na estratégia a
que é ele, pois não se afigura igual nas vitória, na arquitetura uma casa, em 20
distintas ações e artes; é diferente na qualquer outra esfera uma coisa dife-
medicina, na estratégia, e em todas rente, e em todas as ações e propósitos
demais artes do mesmo modo. Que é, é ele a finalidade; pois é tendo-o em
pois, o bem de cada uma delas? vista que os homens realizam o resto.
Evidentemente, aquilo em cujo inte- Por conseguinte, se existe uma finali-
ÉTICA A NICÔMACO - I 55
dade para tudo que fazemos, essa será Considerado sob o ângulo da auto-
o bem realizável mediante a açâo; e, se suficiência, o raciocínio parece chegar
há mais de uma, serão os bens realizá- ao mesmo resultado, porque o bem
veis através dela. absoluto é considerado como auto-su-
Vemos agora que o argumento, ficiente. Ora, por auto-suficiente não
tomando por um atalho diferente, che- entendemos aquilo que é suficiente
gou ao mesmo ponto. Mas procuremos para um homem só, para aquele que
expressar isto com mais clareza ainda. leva uma vida solitária, mas também /0
25 Já que, evidentemente, os fins são vá- para os pais, os filhos, a esposa, e em
rios e nós escolhemos alguns dentre geral para os amigos e concidadãos,
eles (como a riqueza, as flautas'' e os visto que o homem nasceu para a cida-
instrumentos em geral), segue-se que dania. Mas é necessário traçar aqui um
nem todos os fins são absolutos; mas o limite, porque, estendermos os nos-
sumo bem é claramente algo de abso- sos requisitos aos antepassados, aos
luto. Portanto, se só existe um fim descendentes e aos amigos dos amigos,
absoluto, será o que estamos procu- teremos uma série infinita.
rando; e, se existe mais de um, o mais Examinaremos esta questão, porém,
30 absoluto de todos será o que busca- cm outro lugar' o; por ora definimos a
mos. auto-suficiência como sendo aquilo
Ora, nós chamamos aquilo que que, em si mesmo, toma a vida desejá- /5
rece ser buscado por si mesmo mais vel e carente de nada. E como tal
absoluto do que aquilo que merece ser entendemós a felicidade, consideran-
buscado com vistas em outra coisa, e do-a, além disso, a mais desejável de
aquilo que nunca é desejável no inte- todas as coisas, sem contá-la como um
resse de outra coisa mais absoluto do bem entre outros. Se assim fizéssemos,
que as coisas desejáveis tanto em si é evidente que ela se tomaria mais
mesmas como no interesse de uma ter- desejável pela adição do menor bem
ceira; por isso chamamos de absoluto que fosse, pois o que é acrescentado se
e incondicional aquilo que é sempre torna um excesso de bens, e dos bens é 20
9 Cf. Platão, Eutidemo, 289. (N. do T.) , o I, 10-11; IX, 10. (N. do T.)
56 ARISTÓTELES
Dar-se-à o caso, então, de que o bom homem é uma boa e nobre reali-
carpinteiro e o curtidor tenham certas zação das mesmas; e se qualquer ação 15
8
/0 Devemos considerá-lo, no entanto, car na felicidade também parecem per-
não só à luz da nossa conclusão e das tencer todas à definiçâo que
nossas premissas, mas também do que dela. Com efeito, alguns identificam a
a seu respeito se costuma dizer; pois felicidade com a virtude, outros com a
com uma opinião verdadeira todos os sabedoria prática, outros com uma
dados se harmonizam, mas com uma espécie de sabedoria filosófica, outros
opinião falsa os fatos não tardam a en- com estas, ou uma destas, acornpa- 25
trar em conflito. nhadas ou não de prazer; e outros
Ora, os bens têm sido divididos em ainda também incluem a prosperidade
três classes 1 2, e alguns foram descritos exterior. Ora, algumas destas opiniões
como exteriores, outros como relativos têm tido muitos e antigos defensores,
à alma ou ao corpo. Nós outros consi- enquanto outras foram sustentadas por
deramos .como mais propriamente e poucas, mas eminentes pessoas. E não
15 verdadeiramente bens os que se rela- é provável que qualquer delas esteja
cionam com a alma, e como tais classi- inteiramente equivocada, mas sim que
ficamos as açôes e atividades psíqui- tenham razão pelo menos a algum res-
cas. Logo, o nosso ponto de vista deve peito, ou mesmo a quase todos os
ser correto, pelo menos de acordo com respeitos.
esta antiga opinião, com a qual con- Também se ajusta à nossa concep- 30
cordam muitos filósofos. É também ção a dos que identificam a felicidade
correto pelo fato de identificarmos o com a virtude em geral ou com alguma
fim com certas ações e atividades, pois virtude particular, pois que à virtude
desse modo ele vem incluir-se entre os pertence a atividade virtuosa. Mas há,
bens da alma, e não entre os bens talvez, uma diferença não pequena em
exteriores. colocarmos o sumo bem na posse ou
20 Outra crença que se harmoniza com no uso, no estado de ânimo ou no ato.
a nossa concepção é a de que o homem Porque pode existir o estado de ânimo
feliz vive bem e age bem; pois defini- sem nenhum bom resultado, 1099 a
a coroa, mas os que competem (pois é cidade de julgar é tal como a descreve-
dentre estes que hão de surgir os vence- mos. A felicidade é, pois, a melhor, a
5 dores), também as coisas nobres e boas mais nobre e a mais aprazível coisa do
da vida só são alcançadas pelos que mundo, e esses atributos não se acham 25
agem retamente. separados como na inscrição de Delos:
Sua própria vida é aprazível por si I
tal é o caso dos atos virtuosos, que não zamos como instrumentos os amigos, a
apenas são aprazíveis a esses homens, riqueza e o poder político; e há coisas
mas em si mesmos e por sua própria cuja ausência empana a felicidade,
15 natureza. Em conseqüência, a vida como a nobreza de nascimento, uma
deles não necessita do prazer como boa descendência, a beleza. Com efei-
uma espécie de encanto adventício, to, o homem de muito feia aparência,
mas possui o prazer em si mesma. Pois ou mal-nascido, ou solitário e sem
que, além do que já dissemos, o filhos, não tem muitas probabilidades
homem que não se regozija com as de ser feliz, e talvez tivesse 5
açôes nobres não é sequer bom; e nin- ainda se seus filhos ou amigos fossem
guém chamaria de justo o que não se visceralmente maus e se a morte lhe
compraz em agir com justiça, nem houvesse roubado bons filhos ou bons
liberal o que não experimenta prazer amigos.
20 nas ações liberais; e do mesmo modo Como dissemos, pois, o homem feliz
em todos os outros casos. parece necessitar também dessa espé-
Sendo assim, as ações virtuosas cie de prosperidade; e por essa razão
devem ser aprazíveis em mesmas. alguns identificam a felicidade com a
Mas são, além disso, boas e nobres, e boa fortuna, embora outros a identifi-
possuem no mais alto grau cada um quem com a virtude.
destes atributos, porquanto o homem
bom sabe aquilatá-los bem; sua capa- 13 1098 b 26-29. (N. do T.)
9
Por este motivo, também se per- alguma outra espécie de adestramento, 10
gunta se a felicidade deve ser adquirida ou se ela nos é conferida por alguma
pela aprendizagem, pelo hábito ou por providência divina, ou ainda pelo
ÉTICA A NICÔMACO - I 59
acaso. Ora, se alguma dádiva os ho- mos 1 4 que ela é uma atividade vir-
mens recebem dos deuses, é razoável tuosa da alma, de certa espécie. Dos
supor que a felicidade seja uma delas, demais bens, alguns devem necessaria-
e, dentre todas as coisas humanas, a mente estar presentes como condições
que mais seguramente é dádiva prévias da felicidade, e oútros são
divina, por ser a melhor. Esta questão naturalmente cooperantes e úteis como
talvez caiba melhor em outro estudo; instrumentos. E isto, como é de ver,
no entanto, mesmo que a felicidade concorda com o que dissemos no prin-
/5 não seja dada pelos deuses, mas, ao cípio 1 5, isto é, que o objetivo da vida
contrário, venha como um resultado política é o melhor dos fins, e essa 30
da virtude e de alguma espécie de ciência dedica o melhor de seus esfor-
aprendizagem ou adestramento, ela pa- ços a fazer com que os cidadãos sejam
rece contar-se entre as coisas mais bons e capazes de nobres ações.
divinas; pois aquilo que constitui o É natural, portanto, que chame-
prêmio e a finalidade da virtude se nos mos feliz nem ao boi, nem ao cavalo,
afigura o que melhor existe no nem a qualquer outro animal, visto que
mundo, algo de divino e abençoado. nenhum deles pode participar de tal
Dentro desta concepção, também atividade. Pelo mesmo motivo, um me- 1100"
deve ela ser partilhada por grande nú- nino tampouco é feliz, pois que, devido
mero de pessoas, pois quem quer que à sua idade, ainda não é capaz de tais
não esteja mutilado em sua capacidade atos; e os meninos a quem chamamos
para a virtude pode conquistá-la me- felizes estão simplesmente sendo con-
diante uma certa espécie de estudo e gratulados por causa das esperanças
20 diligência. Mas, se é preferível ser feliz que neles depositamos. Porque, como
dessa maneira a sê-lo por acaso, é dissemos 1 6, há mister não só de uma
razoável que os fatos sejam assim, virtude completa mas também de uma
uma vez que tudo aquilo que depende vida completa, já que muitas mudan- 5
da ação natural é, por natureza, tão ças ocorrem na vida, e eventualidades
bom quanto poderia ser, e do mesmo de toda sorte: o mais próspero pode ser
modo o que depende da arte ou de vítima de grandes infortúnios na velhi-
qualquer causa racional, especialmente ce, como se conta de Príamo no Ciclo
se depende da melhor de todas as cau- Troiano; e a quem experimentou tais
sas. Confiar ao acaso o que há de me- vicissitudes e terminou miseravelmente
lhor e de mais nobre seria um arranjo ninguém chama feliz.
muito imperfeito.
25 A resposta à pergunta que estamos 14 1098 a 16. (N. do T.)
fazendo é também evidente pela defini-. 1 5 1094 a 27. (N. do T.)
ção da felicidade, porquando disse- 16' a.16-18. (N. do T.)
10
/0 Então ninguém deverá ser conside- Mesmo que esposemos essa doutrina,
rado feliz enquanto viver, e será preci- dar-se-â o caso de que um homem seja
so ver o fim, como diz Sólon 1 7? feliz depois de morto? Ou não será
perfeitamente absurda tal idéia, sobre-
1 7 Heródoto, I, 32. (N. do T.) tudo para nós, que dizemos ser a felici-
60 ARISTÓTELES
descendentes. Alguns serão bons e dentre elas são mais duráveis, porque
25 terão a vida que merecem, ao passo os homens felizes de bom grado e com
que com outros sucederá o contrário; e muita constância lhes dedicam os dias
também é evidente que os graus de de sua vida; e esta parece ser a razão
parentesco entre eles e os seus antepas- pela qual sempre nos lembramos deles.
sados podem variar indefinidamente. O atributo em apreço pertencerá, pois,
Seria estranho, pois, se os mortos ao homem feliz, que o será durante'a
devessem participar dessas vicissitudes vida inteira; porque sempre, ou
e ora ser felizes, ora desgraçados; mas, preferência a qualquer outra coisa,
.lO por outro lado, também seria estranho estará empenhado na ação ou na 20
pode ser nobre e boa); e, se se voltarem E tampouco será ele versátil e mutâ- la
contra nós, poderão esmagar e mutilar vel, pois nem se deixará desviar facil-
a felicidade, pois que, além de serem mente do seu venturoso estado por
30 acompanhados de dor, impedem mui- quaisquer desventuras comuns, mas
tas atividades. Todavia, mesmo nesses somente por muitas e grandes; nem, se
a nobreza de um homem se deixa ver, sofreu muitas e grandes desventuras,
quando aceita com resignação muitos recuperará em breve tempo a sua felici-
grandes infortúnios, não por insensibi- dade. Se a recuperar, será num tempo
lidade à dor, mas por nobreza e gran- longo e completo, em que houver
deza de alma. alcançado muitos e esplêndidos suces-
Se as atividades são, como disse- sos.
mos, o que dá caráter à vida, nenhum Quando diremos, então, que não é J5
homem feliz pode tornar-se desgra- feliz aquele que age conforme à virtude
çado, porquanto jamais praticará atos perfeita e está suficientemente provido
35 odiosos e vis. Com efeito, o homem de bens exteriores, não durante um
verdadeiramente bom e sábio suporta período qualquer, mas através de uma
110\ a com dignidade, pensamos nós, todas as vida completa? Ou devemos acrescen-
contingências da e sempre tira o tar: "E que está destinado a viver
maior proveito das circunstâncias, assim e a morrer de modo consentâneo
como um general que-faz o melhor uso com a sua vida"? Em verdade, o futuro
possível do exército sob o seu coman- nos é impenetrável, enquanto a felici-
do ou um bom sapateiro faz os melho- dade, afirmamos nós, é um fim e algo 20
res calçados com o couro que lhe dão; de final a todos os respeitos. Sendo
5 e do mesmo modo com todos os outros assim, chamaremos felizes àqueles
artífices. E, se assim é, o homem feliz dentre os seres humanos vivos em que
nunca pode tornar-se desgraçado, essas condições se realizem ou estejam
muito embora não alcance a beatitude destinadas a realizar-se - mas ho-
se tiver uma fortuna semelhante à de mens felizes. Sobre estas questões dis-
Príamo. semos o suficiente.
II
Que a sorte dos descendentes e de influência na vida, enquanto outros
todos os amigos de um homem não lhe são, por assim dizer, mais leves, tam- 30
afete de nenhum modo a felicidade pa- bém existem diferenças entre os infor-
rece ser uma doutrina cínica e contrá- túnios de nossos amigos tomados em
ria à opinião comum. Mas, visto serem conjunto, e não dá no mesmo que os
25 numerosos os acontecimentos que diversos sofrimentos sobrevenham aos
ocorrem, e admitirem toda espécie de vivos ou aos mortos (com efeito, a dife-
diferenças, e já que alguns nos tocam rença aqui é muito maior, até, do que
mais de perto e outros menos, anto- entre atos terríveis e iníquos pressu-
lha-se uma tarefa longa - mais do postos numa tragédia ou efetivamente
que longa, infmita - discutir cada um representados na. cena), essa diferença
em detalhe. Talvez possamos conten- também deve ser levada em conta -
tar-nos com um esboço geral. ou talvez, o fato de haver dúvida 35
Se, pois, alguns infortúnios pessoais sobre se os mortos participam de qual-
um homem têm certo peso e quer bem ou mal. Pois parece, de acor- 1101 b
62 ARISTÓTELES
do com tudo que acabamos de ponde- nem roubar a beatitude aos venturosos.
rar, que ainda que algo de bom ou mau Por conseguinte, a boa ou má fortu- 5
chegue até eles, devem ser influências na dos amigos parece ter certos efeitos
muito fracas e insignificantes, quer em sobre os mortos, mas efeitos de tal
si mesmas, quer para eles; ou, então, espécie e grau que não tornam desgra-
serão tais em grau e em espécie que çados os felizes nem produzem qual-
não possam tornar feliz quem não o é, quer outra alteração semelhante.
12
13
Já que a felicidade é uma atividade A seu respeito são feitas algumas
da alma conforme à virtude perfeita, afirmações bastante exatas, mesmo nas
devemos considerar a natureza da vir- .discussões estranhas à nossa escola; e
tude: pois talvez possamos com- delas devemos utilizar-nos agora. Por
preender melhor, por esse meio, a natu- exemplo: que a alma tem uma parte
reza da felicidade. racional e outra parte privada de
O homem verdadeiramente político razão. Que elas sejam distintas como
também goza a reputação de haver as partes do corpo ou de qualquer 30
estudado a virtude acima de todas as coisa divisível, ou distintas por defini-
la coisas, pois que ele deseja fazer com ção mas inseparáveis por natureza,
que os seus concidadãos sejam bons e como o côncavo e o convexo .na
obedientes às leis. Temos um exemplo circunferência de um círculo, não inte-
·disso nos ,legisladores dos cretenses e ressa à questão com que nos ocupamos
dos espartanos, e em quaisquer outros de momento.
dessa espécie que possa ter havido Do elemento irracional, uma subdi-
alhures. E, se esta investigação per- visão parece estar largamente difun-
tence à ciência política, é evidente que dida e ser de natureza vegetativa. Refi-
ela estará de .acordo com o nosso ro-me à que é causa da nutrição e do
plano inicial.' crescimento; pois é essa espécie de
a virtude que devemos estudar faculdade da alma que devemos atri- 1102 b
é, fora de qualquer dúvida, a virtude buir a todos os lactantes e aos próprios
15 humana; porque humano era o bem e embriões, e que também está presente
humana' a felicidade que buscávamos. nos seres adultos: com efeito. é mais
Por virtude humana entendemos não a razoável pensar assim do que atribuir-
do corpo, mas a da alma; e também à lhes uma faculdade diferente. Ora, a
felicidade chamamos uma atividade de excelência desta faculdade parece ser
alma. Mas, assim sendo, é óbvio que o comum a todas as espécies, e não 5
político deve saber de algum modo o especificamente humana, Além disso,
que diz respeito à alma, exatamente tudo está a indicar que ela funciona
como deve conhecer os olhos ou a principalmente durante' o sono, ao
totalidade do corpo aquele que se pro- que é nesse estado que menos se
20 põe a curá-los; e com maior razão manifestam a bondade e a maldade.
ainda por ser a política mais estimada Daí vem o aforismo de que os felizes
e melhor do que a medicina. Mesmo não diferem dos infortunados durante
entre os médicos, os mais competentes metade de sua vida; o que é muito
dão-se grande trabalho para adquirir o natural, em vista de ser o sono uma
conhecimento do corpo. inatividade da alma em relação àquilo 10
O político, pois, deve estudar a alma que nos leva a chamá-la de boa ou má;
tendo em vista os objetivos que men- a menos, talvez, uma pequena
cionamos e quanto baste para o enten- parte do movimento dos sentidos pene-
dimento das questões que estamos tre de algum modo na alma. tomando
25 discutindo, já que os nossos propósitos os sonhos do homem bom melhores
não parecem exigir uma investigação que os da gente comum. Mas basta
mais precisa, que seria, aliás, muito quanto a esse assunto. Deixemos de
trabalhosa. lado a faculdade nutritiva, uma vez
1
64 ARISTÓTELES
que, por natureza, ela não participa da Por conseguinte, o elemento irracio-
excelência humana. nal também parece ser duplo. Com 30
Parece haver na alma ainda outro efeito, o elemento vegetativo não tem
elemento irracional, mas que, em certo nenhuma participação num princípio
sentido, participa da razão. Com efei- racional, mas o apetitivo e, em geral, o
to, louvamos o princípio racional do elemento desiderativo participa dele
15 homem continente e do incontinente, em certo sentido, na medida em que o
assim como a parte de alma que escuta e lhe obedece. É nesse sentido
possui tal princípio, porquanto ela os que falamos em "atender às razões" do
impele na direção certa e para os pai e dos o que é bem diverso
melhores objetivos; mas, ao mesmo de ponderar a razão de uma proprie-
tempo, encontra-se neles um outro dade matemática.
mento naturalmente oposto ao princí- Que, de certo modo, o elemento irra-
pio racional, lutando contra este a cional é persuadido pela razão, tam-
20 resistindo-lhe. Porque, exatamente bém estão a indicá-lo os conselhos que
como os membros paralisados se vol- se costuma dar, assim todas as 1I03a
Sendo, pois, de duas espécies a vir- usá-las, e não entramos na posse delas
/5 tude, intelectual e moral, a primeira, uso. Com as virtudes dá-se exata-
por via de regra, gera-se. cresce gra- mente o oposto: adquirimo-las pelo
ças ao ensino - por isso requerexpe- exercício, como também sucede com
riência e tempo; enquanto a virtude as artes. Com efeito, as coisas que
moral é adquirida em resultado do há- temos de aprender antes de poder
bito, donde ter-se formado o seu nome fazê-las, aprendemo-las fazendo; por
( ) por uma pequena modifica- exemplo, os homens tomam-se arquite-
da palavra (hábito). Por tudo tos construindo e tocadores de lira tan-
isso, evidencia-se também que' nenhu- gendo esse instrumento. Da mesma II03b
2
Uma vez que a presente investiga- atuantes devem considerar, em cada
ção não visa ao conhecimento teórico caso, o que é mais apropriado à oca-
como as outras - porque não investi- sião, como também sucede na arte da
gamos para saber o que é a virtude, navegação e na medicina.
mas a fim de nos tomarmos bons, do Mas, embora o nosso tratado seja
contrário o nosso estudo seria inútil desta natureza, devemos prestar tanto 10
30 evidentes aos sentidos, como a força, arrostar coisas terríveis que nos torna-
por exemplo; ela é produzida pela 'mos bravos, depois de nos tomarmos
ingestão de grande quantidade de ali- :tais, somos mais capazes de lhes fazer
mento e por um exercício intenso, e frente.
3
Devemos tomar como sinais indica- efetuarem-se contrários.
'tivos do carâter o prazer ou a dor Ainda mais: como dissemos não faz
5 os atos;.· o' muito- 2, todo estado da alma tem uma
homem que se abstém cor-' natureza relativa e concernente à espê- 20
porais e se deleita nessa própria abs- cie de coisas que tendem a tomá-la me-
tenção é temperante, enquanto o que se lhor ou pior; mas é em razão dos pra-
aborrece com ela intemperante; e zeres e dores que os homens se tomam
quem arrosta coisas terríveis' e sente maus, isto é, buscando-os ou evitan-
prazer em fazê-lo, ou, pelo menos, não do-os - quer prazeres e dores que não
sofre com é bravo, enquanto o' devem, na ocasião em que não devem
homem que sofre é covarde. Com efei- ou da maneira pela qual não devem
a excelência moral. relaciona-se buscar ou evitar, quer por errarem
10 com prazeres e dores; é por causa do numa das outras alternativas seme-
prazer que praticamos más ações, e lhantes que se podem distinguir. Por
por causa da dor que nos abstemos de isso, muitos chegam a definir as virtu-
ações nobres. Por isso deveríamos ser des como certos estados de impassivi- 25
educados de determinada maneira dade e repouso; não acertadamente,
desde a nossa juventude, como diz Pla- porém, porque se exprimem de modo
tâo? 1, a fim de nos deleitarmos e de' absoluto, sem dizer "como se deve",
sofrermos as coisas' que nos "como não se deve", "quando se deve
devem causar deleite ou sofrimento, ou não se deve", e as outras condições
pois essa é a educação certa. que se podem acrescentar, Admitimos,
Por outro lado, se as virtudes dizem : pois, que essa espécie de excelência
respeito a ações e paixões, "e cada ação tende a fazer o que é melhor com res-
e cada paixão é acompanhada de pra- peito aos prazeres e às dores, e que o'
15 zer ou de dor, também por este motivo vício faz o contrário.
a virtude se relacionará com prazeres e Os fatos seguintes nos
dores. Outra coisa que está a indicá-lo podem mostrar que a virtude e o vício
é o fato de ser infligido o castigo por se relacionam com essas mesmas coi- 30
esses meios; ora, o castigo é uma espé- sas. Como existem três objetos de
cie de cura, eé da natureza das curas o escolha e três de rejeição - o nobre, o
21 Leis, 653 55.; República, 401-402. (N. do T.) 22 1104 a 27 - 1104 b 3. (N. do T.)
70 ARISTÓTELES
homem justo ou temperante; mas não é portam, de certo modo, como enfermos
o homem que as pratica, e que escutassem atentamente os seus
o que as pratica tal como o fazem médicos, mas não fizessem nada do
os justos e temperantes. É acertado, que estes lhes prescrevessem. Assim
pois, dizer que pela prática'de atos jus- como a saúde destes últimos não pode
tos se gera o homem justo, e pela prá- restabelecer-se com tal tratamento, a
10 tica de atos itemperantes; o homem alma dos segundos não se tomará me-
temperante; sem essa prática, ninguém lhor com semelhante curso de filosofia.
5
Devemos considerar agora o que é a vados nem censurados por causa de
virtude. Visto que na alma se encon- nossas paixões (o homem que sente
20 tram três espécies de coisas - pai- medo ou cólera não é louvado, nem é
xões, faculdades e disposições de carâ- censurado o que simplesmente se enco-
ter - , a virtude pertencer a uma leriza, mas sim o que se encoleriza de
destas. certo modo); mas pelas nossas virtudes 1106.
Por paixões entendo os apetites, a e vícios somos efetivamente louvados e
cólera, o medo, a audácia, á inveja, a censurados. .
alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a Por outro lado, sentimos' cólera e
emulação, a compaixão, e em geral os medo sem nenhuma escolha de nossa
sentimentos que são acompanhados de parte, mas as virtudes são modalidades
prazer ou dor; por faculdades, as coi- de escolha, ou envolvem escolha. Além 5
sas em virtude das quais se diz que disso, com respeito às paixões se diz
somos capazes de sentir tudo isso, ou que somos movidos, mas com respeito
25 seja, de nos irarmos, de magoar-nos ou às virtudes e aos vícios não se diz que
compadecer-nos; por disposições de somos movidos, e sim que temos talou
caráter, as coisas em virtude das quais tal disposição.
nossa posição com referência às pai- Por estas mesmas razões, também
xões é boa ou má. Por exemplo, com não são faculdades, porquanto nin-
referência à cólera, nossa posição é má guém nos chama bons ou maus, nem
se a sentimos de modo' violento ou nos louva ou censura pela simples
demasiado fraco, e boa se a sentimos capacidade de sentir as paixões; Acres-
moderadamente; e da mesma forma no ce que possuímos as faculdades por
que se relaciona com as outras pai- natureza, mas não nos tornamos bons
xões. ou maus por natureza. Já falamos disto
Ora, nem as virtudes nem os vícios acimas
são paixões, porque ninguém nos Por conseguinte, se as virtudes não /0
chama bons ou maus devido às nossas são paixões nem faculdades, só resta
30 paixões, e sim devido às nossas virtu-
des ou vícios, e porque não somos lou- 23 1103 a 18 - 1103 b 2. (N. do T.)
72 ARISTÓTELES
6
Não basta, contudo, definir a virtu- meio-termo, considerado em função do
de como uma disposição de caráter; objeto, porque excede e é excedido por 35
15 cumpre dizer que espécie de disposição uma quantidade igual; esse número é
é ela. intermediário de acordo uma pro-
Observemos, pois, que toda virtude porção aritmética. Mas o meio-termo
ou excelência não só coloca em boa relativamente a nós não deve ser consi-
condição a coisa de que é a excelência derado assim: se dez libras é demais 1106 b
como também faz com que a função para uma determinada pessoa comer e
dessa coisa seja bem desempenhada. duas libras é demasiadamente pouco,
Por exemplo, a excelência do olho não se segue daí que o treinador pres-
toma bons tanto o olho como a sua creverá seis libras; porque isso tam-
função, pois é graças à excelência do bém é, talvez, demasiado para a pessoa
20 olho que vemos bem. Analogamente, a que deve comê-lo, ou demasiadamente
excelência de um cavalo tanto o toma pouco - demasiadamente pouco para
bom em si mesmo como bom na corri- Milo e demasiado para o atleta princi-
da, em carregar o seu cavaleiro e em piante. O mesmo se aplica à corrida e 5
aguardar de pé firme o ataque do ini- à luta. Assim, um mestre em qualquer
Portanto, se isto vale para todos arte evita o excesso e a falta, buscando
os casos, a virtude do homem também o meio-termo e escolhendo-o - o
será a· disposição de caráter que o meio-termo não no objeto, mas relati-
toma bom e que o faz desempenhar vamente a nós.
bem a sua função. Se é assim, pois, que cada arte reali-
25 Como isso vem a suceder, já o expli- za bem o seu trabalho - tendo diante
camos atrás> 4, mas a seguinte conside- dos olhos o meio-termo e julgando
ração da natureza específica da virtude suas obras por esse padrão; e por isso /O
lançará nova luz sobre o assunto. Em dizemos muitas vezes que às boas
tudo que é contínuo e divisível pode-se obras de arte não é possível tirar nem
tomar mais, menos ou uma quantidade acrescentar nada, subentendendo que o
igual, e quer em termos da própria excesso e a falta destroem a excelência
coisa, quer relativamente a nós; e o dessas obras, enquanto o meio-termo a
iguàl é um meio-termo entre o excesso preserva; e para este, como dissemos,
e a falta. Por meio-termo no objeto se voltam os artistas no seu trabalho
entendo aquilo que é eqüidistante de - , e se, ademais disso, a virtude é
ambos os extremos, e que é um só e o mais exata e melhor que qualquer arte,
30 mesmo para todos os homens; e por como também o é a natureza, segue-se
meio-termo relativamente a nós, o que que a virtude deve ter o atributo de 15
não é nem demasiado nem demasiada- visar ao meio-termo. Refiro-me à virtu- .
mente pouco - e este não é um só e o de moral, pois é ela que diz respeito às
mesmo para todos. Por exemplo, se paixões e ações, nas quais existe exces-
é demais e dois é pouco, seis é o so, carência e um meio-termo.
Por exemplo, tanto o medo como a
24 1104 a 11-27. (N. do T.) confiança, o apetite, a ira, a compai-
ÉTICA A NICÔMACO - II 73
xão, e em geral o prazer e a dor, podem vícios, um por excesso e outro por
ser sentidos em excesso ou em grau falta; pois que, enquanto os vícios ou
insuficiente; e, num caso como no vão muito longe ou ficam aquém do
20 outro, isso é um mal. Mas senti-los na que é conveniente no tocante às ações 5
ocasião apropriada, com referência e paixões, a virtude encontra e escolhe
aos objetos apropriados, para com as o meio-termo. E assim, no que toca à
pessoas apropriadas, pelo motivo e da sua substância e à definição que lhe
maneira conveniente, nisso consistem estabelece a essência, a virtude é uma
o meio-termo e a excelência caracterís- mediania; com referência ao sumo bem
ticos da virtude. e ao mais justo, ê, porém, um extremo.
Analogamente, no que tange às Mas nem toda ação e paixão admite
ações também existe excesso, carência um meio-termo, pois algumas têm /0
25 e um meio-termo. Ora, a virtude diz nomes já de si mesmos implicam
respeito às paixões e açõés em que o maldade, como o despeito, o despudor,
excesso é uma forma de erro, assim a inveja, e, no campo das açôes., o
a carência, ao passo que o adultério, o furto, o assassínio. Todas
meio-termo é uma forma de acerto essas coisas e outras semelhantes im-
digna de louvor; e acertar e ser louva- plicam, nos próprios nomes, que são
da são características da virtude. Em más em si mesmas, e não o seu excesso
conclusão, a virtude é uma espécie de ou deficiência. Nelas jamais pode
mediania, já que, como vimos, ela põe haver retidão, mas unicamente o erro.
a sua mira no meio-termo. E, no que se refere a essas coisas, tam- /5
Por outro lado, é possível errar de pouco a bondade ou maldade depen-
muitos modos (pois o mal pertence à dem de cometer adultério com a mu-
30 classe do ilimitado e o bem à do limita- lher apropriada, na ocasião e da
do, como supuseram os pitagóricos), maneira convenientes, mas fazer sim-
mas só há um modo de acertar. Por plesmente qualquer delas é um mal.
isso, o primeiro é fácil e o segundo Igualmente absurdo seria buscar um
cil - fácil errar a mira, difícil atingir meio-termo, um excesso e uma falta
o alvo. Pelas mesmas razões, o excesso em atos injustos, covardes ou libidino- 20
e a falta são característicos do vício, e sos; porque assim haveria um meio-
a mediania da virtude: termo do excesso e da carência, um
35 Pois os homens são bons de um modo excesso de excesso e uma carência de
só, e maus de muitos modos- 5. carência. Mas, do mesmo modo que
A virtude é, pois, uma disposição de não existe excesso nem carência de
caráter relacionada com a escolha e temperança e de coragem, pois o que é
1107. consistente numa mediania, isto é, a intermediário também é, noutro senti-
mediania relativa a nós, a qual é deter- do, um extremo, também das ações que
minada por um princípio racional pró- mencionamos não há meio-termo, nem
prio do homem dotado de sabedoria excesso, nem falta, porque, de qualquer
prática. E é um meio-termo entre dois forma que sejam praticadas, são más.
Em suma, do excesso ou da falta não 25
25 Ver Diehl, Elége,ia adéspota (Elegias Anôni- há meio-termo, como também não há
mas),16. excesso ou falta de meio-termo.
74 ARISTÓTELES
7
Não devemos, porém, contentar-nos ro, existem outras disposições: um
com esta exposição geral; é mister meio-termo, .a magnificência (pois o
aplicá-la tambêm aos fatos individuais. homem magnificente difere do liberal;
Com efeito, das proposições relativas à o primeiro lida com grandes quantias,
conduta, as universais são mais vazias, o segundo com quantias pequenas);
30 mas as particulares são mais verdadei- um excesso, a vulgaridade e o mau
porquanto a conduta versa sobre gosto; e uma deficiência, a mesqui-
casos individuais e nossas proposições nhez; estas diferem das disposições 20
devem harmonizar-se com os fatos contrárias à liberalidade, e mais tarde
nesses casos. diremos em quê- 7.
Podemos tomá-los no nosso quadro Com respeito à honra e à desonra, o
geral. Em relação aos sentimentos de meio-termo é o justo orgulho, o exces-
1107 b medo e de confiança, a coragem é o so é conhecido como uma espécie de
meio-termo; dos que excedem, o que o "vaidade oca" e a deficiência como
faz no destemor não tem nome (muitas uma humildade indébita; e a mesma
disposições não o têm), enquanto o que relação que apontamos entre a liberali-
excede na audácia é temerário, e o que dade e a magnificência, da qual a pri- 25
excede no medo e mostra falta de meira difere por lidar com pequenas
audácia é covarde. Com relação aos quantias, também se verifica aqui, pois
prazeres e dores - não todos, e menos há uma disposição que tem alguns
5 no que tange às dores - o meio-termo pontos em comum com o justo orgu-
é a temperança e o excesso é a intem- lho, mas ocupa-se com pequenas hon-
perança. Pessoas deficientes no tocante ras, enquanto a este só interessam as
aos prazeres não são muito encontra- grandes. Porque é possível desejar a
diças, e por este motivo não receberam honra como se deve, mais do que se
nome; chamemo-las, porém, "insensí- deve e menos do que se deve, e o
veis". homem que excede em tais desejos é
No que se refere a dar e receber chamado ambicioso, o que fica aquém
dinheiro o meio-termo é a liberalidade; é desambicioso, enquanto a pessoa
o excesso e a deficiência, respectiva- intermediária não tem nome.
mente, prodigalidade e avareza. Nesta As disposições também não recebe- 30
10 espécie de ações as pessoas excedem e ram nome, salvo a do ambicioso, que
são deficientes de maneiras opostas: o se chama ambição. Por isso, as pes-
no gastar e é deficiente soas que se encontram nos extremos
no receber, enquanto o avaro excede arrogam-se a posição intermediária; e
no receber e é deficiente no gastar. (De nós mesmos às vezes chamamos as
momento, tudo que fazemos é dar um pessoas intermediárias de ambiciosas e
esboço ou sumário, e com isso nos outras vezes de desambiciosas, e ora
15 contentamos; mais adiante essas dis- louvamos a primeira disposição, ora a
posições serão descritas com mais segunda.' A razão disso será dada mais 1108 a
exatídâos 6). adiante- 8; agora, porém, falemos
Ainda no que diz respeito ao dinhei-
27 1122 a 20-29; 1122 b 10-18. (N. do T.)
2 6 Ver Livro IV, cap. I. (N. do T.) 28 1108.b 11-26; 1125 b 14-18. (N. doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - II 75
9
20 Está, pois, suficientemente esclare- pende numa direção e outro em outra;
cido que a virtude moral é um meio- e isso se pode reconhecer pelo prazer e
termo, e em que sentido devemos pela dor que sentimos.
entender esta expressão; e que é um É preciso forçar-nos a na direção 5
meio-termo entre dois vícios, um dos do extremo contrário, porque chegare-
quais envolve excesso e o outro defi- mos ao estado intermediário afastan-
ciência, e isso porque a sua natureza é do-nos o mais que pudermos do erro,
visar à mediania nas paixões e nos como procedem aqueles que procuram
atos, endireitar varas tortas.
Do que acabamos de dizer segue-se Ora, em todas as coisas o agradável
que não é fácil ser bom, pois em todas e o prazer é aquilo de que mais deve-
as coisas é difícil encontrar o meio- mos defender-nos, pois não podemos
25 termo. Por exemplo, encontrar o meio julgá-lo com imparcialidade. A atitude
de um círculo não é para qualquer um, a tomar em face do prazer é, portanto,
mas só aquele que sabe fazê-lo; e, a dos anciãos do povo para com Hele- 10
do mesmo modo, qualquer um pode na, e em todas as circunstâncias cum-
encolerizar-se, dar ou gastar dinheiro pre-nos dizer o mesmo que eles; por-
- isso é fácil; mas fazê-lo à pessoa que, se não dermos ouvidos ao prazer,
que convém, na medida, na ocasião, correremos menos perigo de errar. Em
pelo motivo e da maneira que convém, resumo, é procedendo dessa forma que
eis o que não é para qualquer um e teremos mais probabilidades de acertar
tampouco fácil. Por isso a bondade o meio-termo.
tanto é rara como nobre e louvável. Não há negar, porém, que isso seja
30 Por conseguinte, quem visa ao difícil, especialmente nos casos parti-
meio-termo deve primeiro afastar-se do culares: pois quem poderá determinar 15
que lhe é mais contrário, como aconse- com precisão de que modo, com quem,
lha Calipso: resposta a que provocação e duran-
Passa largo de tal ressaca e de tal te quanto tempo devemos encolerizar-
surriadaêo. Com efeito, dos extremos, nos? E às vezes louvamos os que ficam
um mais errôneo e o outro menos; aquém da medida, qualificando-os de
portanto, como acertar no meio-termo calmos, e outras vezes louvamos os
é extraordinariamente difícil, devemos que se encolerizam, chamando-os de
contentar-nos com o menor dos males, varonis. Não se censura, contudo, o
35 como se costuma dizer; e a melhor homem que se desvia um pouco da
maneira de fazê-lo é a que descreve- bondade, quer no sentido do menos,
1109 b mos. Mas devemos considerar as coi- quer do mais; só merece reproche o
sas para as quais nós próprios somos homem cujo desvio é maior, pois esse 20
facilmente arrastados, porque um nunca passa despercebido.
Mas até que ponto um homem pode
30 Odisséia, XII, 219 55. (N. do T.) desviar-se sem merecer censura? Isso
78 ARISTÓTELES
30 Visto que a virtude se relaciona com Tais atos, pois, são mistos, mas
paixões e açôes, e é às paixões e ações assemelham-se mais a atos voluntários
voluntárias que se dispensa louvor e pela razão de serem escolhidos no
censura, enquanto as involuntárias me- momento em que se fazem e pelo fato
recem perdão e às vezes piedade, é tal- de ser a fmalidade de uma ação rela-
vez necessário a quem estuda a natu- tiva às circunstâncias. Ambos
reza da virtude distinguir o voluntário termos, "voluntário" e "involuntário",
do involuntário. Tal distinção terá devem portanto ser usados com refe- 15
com que ele se relaciona. São justa- tos mais importantes, que, na opinião
mente esses que merecem piedade e geral, são as circunstâncias e a finali-
II11 a perdão, porquanto a pessoa que ignora dade do ato. Além disso, a prática de
qualquer dessas coisas age involunta- um ato considerado involuntário em
riamente. virtude de urna ignorância desta espé- 20
Talvez convenha determinar aqui a cie deve causar dor e trazer arrependi-
natureza e o número de tais atos. Um mento.
homem pode ignorar quem ele próprio Como tudo o que se faz constrangido
é, o que está fazendo, sobre que coisas ou por ignorância é involuntário, o
ou pessoas está agindo, e às vezes tam- voluntário parece aquilo cujo prin-
5 bém qual é o instrumento que usa, com cípio motor se encontra no próprio
que fim (pode pensar, por exemplo, que agente que tenha conhecimento das
está protegendo a segurança de circunstâncias particulares do ato. É
guém) e de que maneira age (se com de presumir que os atos praticados sob
brandura ou com violência, por exem- o impulso da cólera ou do apetite não
plo). mereçam a qualificação de involuntá-
Ora, nenhuma destas coisas um rios. Porque, em primeiro lugar, se fos- 25
homem pode ignorar, a não ser que es- sem tais, nenhum dos outros animais
teja louco, e também é claro que não agiria voluntariamente, e as crianças
pode ignorar o agente, pois como é tampouco; e, em segundo lugar, seria o
possível desconhecer a si mesmo? Mas caso de perguntar se o que se entende
é possível ignorar o que se está fazen- por isso é que não praticamos volunta-
do: costumamos dizer, com efeito, "ele riainente nenhum dos atos devidos ao
deixou escapar estas palavras que- apetite ou à cólera, ou se praticamos
rer", ou "não sabia que se tratava de voluntariamente os atos nobres e invo-
um segredo", se expressou És- luntariamente os vis. Não é absurdo
10 quilo a respeito dos mistérios, ou como isso, quando a causa é uma só e a
aquele homem que disparou a cata- mesma? Inegavelmente, seria estranho 30
2
Tendo sido delimitados desta forma nenhum efeito teriam os nossos esfor-
5 o voluntário e o involuntário, devemos ços pessoais, como, por exemplo, que
passar agora ao exame da escolha, .determinado ator ou atleta vença uma 25
que, para os espíritos discriminadores, competição; mas ninguém escolhe tais
parece estar mais estreitamente ligada coisas, e sim aquelas que julga pode-
à virtude do que as ações. . rem realizar-se graças aos esfor-
A escolha, pois, parece ser voluntá- ços.
ria, mas não se identifica com o volun- Além disso, o desejo relaciona-se
tário. O segundo conceito tem muito com o fim e a escolha com os meios.
mais extensão. Com efeito, tanto as Por exemplo: desejamos gozar saúde,
crianças como os animais inferiores mas escolhemos os atos que nos torna-
participam da ação voluntária, porém rão sadios; e desejamos ser felizes, e
não da escolha; e, embora chamemos confessamos tal desejo, mas não pode-
voluntários os atos praticados sob o mos dizer com acerto que "escolhe-
impulso do momento, não dizemos que mos" ser felizes, pois, de um modo
foram escolhidos. geral, a escolha parece relacionar-se
/O Os que a definem como sendo um com as coisas que estão em nosso
apetite, a cólera, um desejo ou uma poder.
espécie de opinião, não parecem ter Também por este motivo, não se 30
razão. Efetivamente,a escolha não é pode identificá-la com a opinião, uma
também comum às criaturas irracio- vez que esta se relaciona com toda a
nais, mas a cólera e o apetite, sim. Por sorte de coisas, não menos as eternas e
outro lado, o incontinente age com as impossíveis do' que as que estão em
apetite, porém não com escolha; o nosso poder; e, por outro lado, ela se
15 continente, pelo contrário, age com distingue pela verdade ou falsidade, e
escolha, porém não com apetite. Ainda não pela bondade ou maldade, en-
mais: há contrariedade entre apetite e quanto a escolha se caracteriza acima
escolha, mas entre apetite e apetite, de tudo por estas últimas.
não. E ainda: o apetite relaciona-se Ora, com a opinião em geral não há
com o agradável e o doloroso; a esco- ninguém que a identifique. Nós, 1112 a
lha, nem com um, nem com o outro. porém, acrescentamos que ela não é
Se assim acontece com o apetite, idêntica a nenhuma espécie de opinião.
tanto mais com a cólera; porquanto Com efeito, por escolher o que é bom
os atos inspirados por esta são consi- ou mau 801110S homens de um determi-
derados ainda menos objetos de esco- nado caráter, mas não o somos por
lha do que os outros. sustentar esta ou aquela opinião. E
20 Nem tampouco o é o desejo, embora escolhemos obter ou evitar algo bom
pareça estar mais próximo dela. Com ou mau, mas temos opiniões sobre o
efeito, a escolha não pode visar a coi- que seja uma coisa, para quem ela é
sas impossíveis, e quem declarasse boa e de que maneira é boa para ele; e
escolhê-las passaria por tolo e ridículo; não seria muito acertado dizer que
mas pode-se desejar o impossível - a "opinamos" obter ou evitar uma coisa 5
imortalidade, por exemplo. E o desejo qualquer.
pode relacionar-se com coisas em que Acresce que a escolha é louvada
ÉTICA A NICÔMACO III 85
pelo fato de relacionar-se com o objeto Não faz diferença que a opinião pre-
conveniente, e não de relacionar-se ceda a escolha ou a acompanhe, pois
convenientemente com ele, ao passo não é isso que estamos examinando,
que a opinião é louvada quando tem mas sim se a escolha é idêntica a algu-
uma relação verdadeira com o seu ma espécie de opinião.
objeto. E também escolhemos o que Que é ela, pois, e que espécie de.
sabemos ser melhor, tanto quanto nos coisa é, se não se identifica com nenhu- 15
é dado sabê-lo, mas opinamos sobre o ma daquelas que examinamos? Parece
que não sabemos exatamente; e não ser voluntária, mas nem tudo que é
são as mesmas pessoas que passam voluntário parece ser objeto de esco-
por fazer as melhores escolhas e sus- lha. Será, pois, aquilo que decidimos
10 tentar as melhores opiniões, mas de numa análise anterior? De qualquer
algumas se diz que têm excelentes opi- forma, a escolha envolve um princípio
niões, e no entanto padecem de um racional e o pensamento. Seu próprio
vício qualquer que as impede de esco- nome parece sugerir que ela é aquilo
lher bem. que colocamos diante de outras coisas.
3
Mas delibera-se acerca de toda citas. Com efeito, nenhuma dessas coi-
coisa, e toda coisa é um possível sas pode realizar-se pelos nossos esfor-
assunto de deliberação, ou esta é ços.
impossível a respeito de algumas? Deliberamos sobre as coisas que 30
20 É de presumir que devamos chamar estão ao nosso alcance e podem ser
objeto de deliberação não àquilo que realizadas; e essas são, efetivamente,
um néscio ou um louco deliberaria, as que restam. Porque como causas
mas àquilo sobre que pode deliberar admitimos a natureza, a necessidade, o
um homem sensato. Ora, sobre coisas acaso, e também a razão e tudo que
eternas ninguém delibera: por exem- depende do homem. Ora, cada classe
plo, sobre o universo material ou sobre de homem delibera sobre as coisas que
a incomensurabilidade da diagonal podem ser realizadas pelos seus esfor-
com o lado do quadrado. E tampouco ços. E no caso das ciências exatas e
deliberamos sobre as coisas que envol- auto-suficientes não há deliberação,
25 vem movimento, mas sempre aconte- como, por exemplo, a respeito das le- 1I12b
cem do mesmo modo, quer necessaria- tras do alfabeto (pois não temos dúvi-
mente, quer por natureza ou por das quanto à maneira de escrevê-las);
alguma outra causa, como os solstícios ao contrário as coisas que são realiza-
eo das estrelas; nem a res- das pelos nossos esforços, mas nem
peito de que acontecem ora de sempre do mesmo modo, essas sãq
um modo, ora de outro, como as secas objetos de deliberação: os problemas
e as chuvas; nem sobre acontecimentos de tratamento médico e de comércio,
fortuitos, como a descoberta de um por exemplo. E deliberamos mais no 5
tesouro.. E nem sequer deliberamos caso da navegação do que no da ginás-
sobre todos os assuntos humanos: por tica, porque aquela está mais longe de
exemplo, nenhum espartano delibera ser exata. E nas outras coisas igual-
sobre a melhor constituição para os mente; mais, porém, quanto às artes do
r
86 ARISTÓTELES
que quanto às ciências, pois que as pri- o objeto da investigação são por
meiras comportam maiores dúvidas. vezes os instrumentos e por vezes o
Delibera-se a respeito das coisas que uso a dar-lhes; e analogamente nos ou- 30'
comumente acontecem de certo modo, tros casos: por vezes o meio, outras
mas cujo resultado é obscuro, e daque- vezes a maneira de usá-lo ou de
10 las em que este é indeterminado. E nas produzi-lo.
coisas de grande monta tomamos Parece: pois, como já ficou dito, que
conselheiros, por não termos confiança o homem é um princípio motor de
em nossa capacidade de decidir. ações; ora, a deliberação gira em tomo
Não deliberamos acerca de fins, mas de coisas a serem feitas pelo próprio
a respeito de meios. Um médico, por agente, e as ações têm em vista outra
exemplo, não delibera se de curar coisa que não elas mesmas. Com efei-
ou não, nem um orador se de per- to, o fim não pode ser objeto de delibe-
suadir, nem um estadista se há de ração, mas apenas o meio. E tampouco
implantar a ordem pública, nem qual- podem sê-lo os fatos particulares: por 1113 a
quer outro delibera a respeito de sua 'exemplo, se isto é pão e se foi assado
15 fmalidade. Dão a fmalidade por esta-
como devia, pois tais coisas são obje-
belecida e consideram a maneira e os tos de percepção. Se quiséssemos deli-
meios de alcançá-la; e, se parece poder berar sempre, teríamos de continuar
ser alcançada por vários meios, procu- até o infinito,
ram o mais fácil e o mais eficaz; e se É a mesma coisa aquela sobre que
por um SÓ, examinam como será alcan- deliberamos e a que escolhemos, salvo
çada por ele, e por que outro meio estar o objeto de escolha já determi-
alcançar esse primeiro, até chegar ao nado, já que aquilo por que nos decidi-
primeiro princípio, que na ordem de ,mos em resultado da deliberação é o,
descobrimento é o último.
objeto da escolha. Efetivamente, todos 5
20 Com efeito, a pessoa que delibera
cessam de indagar como devem agir
parece investigar e analisar da maneira
depois que fizeram voltar o princípio
que descrevemos, como se 'analisasse
motor a si mesmos e à parte dirigente
uma construção geométrica (nem toda
investigação é deliberação: vejam-se, 'de si mesmos, pois é essa que escolhe:
por exemplo, as investigações matemá- Isto se, pode ver também nas antigas
ticas; mas toda deliberação é investiga- constituições tais como no-las mostra
ção); e o que vem em último lugar na Homero, onde os reis anunciavam ao
ordem da análise parece ser primeiro povo o que haviam escolhido.
25 na ordem da geração. E se chegamos a , Sendo, pois, o objeto de escolha' 10
4
15 Já mostramos que o desejo tem por desejo para o homem bom, e que qual-
objeto o fim; alguns pensam que esse quer coisa pode sê-lo para o homem
fim é o bem, e outros que éo bem apa- mau, assim como, no caso dos corpos,
rente. Ora, os primeiros terão de admi- as coisas que em verdade são saudá-
tir, como conseqüência de sua premis- veis o são para os corpos em boas
sa, que a coisa desejada pelo homem condições, enquanto para os corpos
que não escolhe bem não é realmente enfermos outras coisas é que são
um objeto de desejo (porque, se o saudáveis, ou amargas, doces, quentes,
fosse, deveria ser boa também; mas no pesadas, e assim por diante? Com efei-
caso que consideramos é má). Por to, o homem bom aquilata toda classe 30
20 outro lado, os que afirmam ser objeto de coisas com acerto, e em cada uma
de desejo o bem aparente devem admi- delas a verdade lhe aparece com clare-
tir que não existe objeto natural de za; mas cada disposição de caráter tem
desejo, mas apenas o que parece bom a suas idéias próprias sobre o nobre e o
cada homem é desejado por ele. Ora, agradável, e a maior diferença entre o
coisas diferentes e até contrárias pare- homem bom e os outros consiste, tal-
cem boas a diferentes pessoas. vez, em perceber a verdade em cada
Se estas conseqüências desagradam, classe de coisas, como quem é a
deveremos dizer que em absoluto e em norma e a medida. Na maioria dos
verdade o bem é objeto de desejo, casos o engano deve-se ao prazer, que
25 mas para cada pessoa em particular o parece bom sem realmente sê-lo; e por
é o bem aparente; que aquilo que em isso escolhemos o agradável como um
verdade é objeto de desejo é objeto bem e evitamos a dor como um mal.
5
Sendo, pois, o fim aquilo que deseja- do isso Logo, depende de nós pra-
mos, e o meio aquilo acerca do. qual ticar atos nobres ou vis, e se é isso que
deliberamos e que escolhemos, as se entende por ser bom ou mau, então
5 ações relativas meio devem concor- depende de nós sermos virtuosos ou
dar com a escolha e ser voluntárias. viciosos.
Ora, o exercício da virtude diz respeito O aforismo "ninguém é voluntaria-
aos meios. Por conseguinte, a virtude mente mau, nem involuntariamente
também está em nosso poder, do feliz" parece ser em parte falso e em 15
mesmo modo que o vício, pois quando parte verdadeiro, porque ninguém é
depende de nós o agir, também depen- involuntariamente feliz, mas a malda-
de o não agir, e vice-versa; de de é voluntária. Do contrário, teremos
modo que quando temos o poder de de contestar o que se acabou de dizer,
agir quando isso é nobre, também e negar que o homem seja um princípio
10 temos o de não agir quando é vil; e se motor e pai de suas ações como o é de
está em nosso poder o não agir quando seus filhos. Mas, se esses fatos são evi-
isso é nobre, também está o agir quan- dentes e não podemos referir nossas
r
88 ARISTÓTELES
por outro lado, honram os que pratica- que se formam as disposições de cará-
ram atos nobres, como se tencio- ter é de homem verdadeiramente insen-
.nassem os segundos e refrear sato. Não menos irracional é supor que
os primeiros. Mas ninguém é estimu- um homem que age injustamente não
lado a fazer coisas que não estejam em deseja ser injusto, ou aquele que corre
seu poder nem sejam voluntárias;' atrás de todos os prazeres não deseja
admite-se que não há vantagem nenhu- ser intemperante. Mas quando, sem ser
ma em sermos persuadidos a não sentir ignorante, um homem faz coisas que o
calor, fome, dor e outras sensações do tomarão injusto, ele será injusto volun-
mesmo gênero, já que não as senti- tariamente. Daí não se segue, porém,
30 ríamos menos por isso. E sucede até que, se assim o desejar, deixará de ser
que um homem seja punido pela sua injusto e se tomará justo. Porque tam- 15
própria ignorância quando o julgam pouco o que está enfermo se cura nes-
responsável por ela, como no caso das sas condições.
penas dobradas para os ébrios; pois o Podemos supor o caso de um
princípio motor está no próprio indiví- homem que seja enfermo voluntaria-
duo, visto que ele tinha o poder de não mente, por viver na incontinência e
se embriagar, e o fato de haver desobedecer aos' seus médicos. Nesse
embriagado foi causa da sua ignorân- caso, a princípio dependia dele o não
cia. E punimos igualmente aqueles que ser doente, mas agora não sucede
ignoram quaisquer prescrições das leis, assim, porquanto virou as costas à sua
11143 quando a todos cumpre conhecê-las e oportunidade - tal como para quem
isso não é difícil; e da. mesma forma arremessou uma pedra já não é possí-
em todos os casos em que a ignorância vel recuperá-la; e contudo estava em
seja atribuída" à negligência: presumi- seu poder não arremessar, visto que o
mos que dependa dos culpados o não princípio se encontrava nele. O
ignorar, visto que têm o poder de infor- mesmo sucede com o injusto e o intem- 20
mar-se diligentemente. perante: a princípio dependia deles não
Mas talvez um homem seja feito de se tomarem homens dessa espécie, de
tal modo que não possa ser diligente. modo que é por sua própria vontade
Sem embargo, tais homens são respon- são injustos e intemperantes; e
sáveis em razão da vida indolente que agora que se tomaram tais, não lhes é
5 levam, por se haverem tomado pessoas possível ser diferentes.
dessa espécie. Os homens tomam-se Mas só os vícios da alma são
ÉTICA A NICÔMACO - III 89
um sexto sentido, por assim dizer, que ações e as disposições de caráter não
nos permita julgar com acerto e esco- são voluntárias do mesmo modo, por-
lher o que é verdadeiramente bom; e que de princípio a fim somos senhores
realmente bem dotado pela natureza é de nossos atos se conhecemos as
quem o possui. Com efeito, isso é o circunstâncias; mas, embora contro-
que há de mais nobre, e não podemos o despontar de nossas disposi- 1115,
6
Que a coragem é um meio-termo em gem quando está para ser açoitado.
relação aos sentimentos de medo e .Com que espécie de coisas terríveis, 25
confiança já foi suficientemente escla- então, se relaciona a bravura?
recído> '; e, evidentemente, as coisas Seguramente, com as maiores, pois
que tememos são coisas terríveis, que ninguém como o homem bravo é capaz
qualificamos sem reservas de males; e de fazer frente ao que aterroriza o
PQr este motivo alguns chegam a defi- comum das pessoas. Ora, a morte é a
/0 nir o medo como uma expectação do mais terrível de todas as coisas, pois
mal. ela é o fim, e acredita-se que para os
Ora, nós tememos todos os males, mortos já não há nada de bom ou mau.
como o desprezo, a pobreza, a doença, Mas a bravura não parece relacionar-
a falta de amigos, a morte; mas, não se se sequer com a morte em todas as
pensa que a bravura se relacione com circunstâncias - como no mar ou nas
todos eles, pois que temer certas coisas doenças, por exemplo. Em que circuns-
é até justo e nobre, e vil o não se arre- tâncias, então?
cear delas. O desprezo, por exemplo: Sem a menor dúvida, nas mais 30
quem o teme é pessoa boa e recatada, e nobres. Ora, essas mortes são as que
desavergonhada quem não o teme. No ocorrem em batalha, pois é em face
entanto, alguns chamam bravo a um dos maiores e mais nobres perigos que
/5 tal homem, por uma transferência do se verificam. E por isso mesmo são
sentido da palavra, visto ter ele algo honradas nas cidades-Estados e nas
em comum com o homem bravo, que cortes dos monarcas. Propriamente
também é destemido. falando, pois, é chamado bravo quem
Quanto à pobreza e à doença, talvez se mostra destemido em face de uma
não devêssemos temê-las, nem, em morte honrosa e de todas as emergên-
geral, às coisas que não procedem do cias que envolvem o perigo de morte; e
vício e não dependem de nós próprios. as emergências da guerra são, em
Mas tampouco o homem que não as sumo grau, desta espécie. 35
receia é bravo. No entanto, aplica- Mas também no mar e na doença o
mos-lhe o termo, também em virtude homem bravoê destemido, se bem que 1115 b
10 de uma semelhança, pois alguns que não do mesmo modo que o mari-
são covardes diante dos perigos da nheiro; porque ele renunciou à espe-
guerra mostram-se liberais e corajosos rança de salvar-se e. detesta a idéia
em face da perda de dinheiro. dessa espêcie-de morte, enquanto aque-
Tampouco é covarde o homem que les se mantêm esperançosos devido à
teme os insultos à sua esposa e a seus sua experiência. Por outro lado, somos 5
filhos, a inveja ou qualquer coisa dessa corajosos em situações que nos permi-
espécie; nem é bravo se mostra cora- tem mostrar o nosso valor ou em que a
morte seja nobre; mas nas formas de
morte que acabamos de apontar ne-
3' 1107 1107 b4. (N.do T.) nhuma dessas condições se realiza.
ÉTICA A NICÔMACO - III 91
7
As coisas terríveis não são as mes- cede no destemor não tem nome (jâ 25
encontros não é o mais bravo que me- ria leva os adúlteros a cometer muitos
lhor luta, mas o mais forte e o que tem atos audaciosos. (Não são bravas,
15 o corpo em melhores condições. pois, aquelas criaturas que a dor ou a
Os soldados profissionais mostram- paixão impele para diante do perigo.)
se covardes, no entanto, quando a ten- A "coragem" devida à paixão parece
são do perigo é muito grande e quando ser a mais natural, tomando-se verda-
são inferiores em número e em equipa- deira coragem quando se lhe ajuntam a
mento. E são os primeiros .a fugir, ao escolha e o motivo.
passo que as milícias de cidadãos pere- Os homens, pois, assim como os 5
cem nos seus postos, como realmente animais, experimentam dor quando
sucedeu no templo de Hermes. Com estão irados e prazer quando se vin-
efeito, para estes últimos a fuga é gam: Os que lutam por esses motivos,
desonrosa, e morrer é preferível a sal- no entanto, são pugnazes, mas não são
20 var-se em tais condições; enquanto os bravos, porquanto não agem tendo em
primeiros desde o princípio enfren- vista a honra nem como prescreve a
taram o perigo na convicção que regra, mas levados pela força da emo-
eram os mais fortes, e ao terem conhe- ção. Sem embargo, existe neles algo
cimento da realidade fogem temendo que tem afinidade com a coragem.
mais a morte do que a desonra. O (4) as pessoas otimistas 10
bravo, porém, não procede assim. são bravas, pois essas mostram con-
(3) A paixão também é confundida fiança diante do perigo só porque ven-
às vezes com a coragem. Os que agem ceram muitas vezes e contra muitos
sob o impulso da paixão, como feras inimigos. E contudo assemelham-se de
que se arremessam sobre os que as feri- perto acs bravos, porque ambos são
25 ram, são considerados bravos, porque confiantes; mas os bravos são confian-
os homens bravos também são apaixo- tes pelas razões que expusemos
nados. Com efeito, a paixão, mais do . .
que qualquer outra coisa, anseia por 39 Isto é uma fusão de Iliada, XI. 11 ou XIV. 151.
e XVI. 529. (N. do T.)
atirar-se ao perigo; daí as frases de 40 Cf. Ilíada. V. 470; XV. 232. 594. (N. do T.)
Homero: "instilou força na sua pai- 41 Cf. Odisséia; XXIV. 318 ss. (N. do T.)
r
94 ARISTÓTELES
atrás 4 2 , enquanto estes o são porque regra, mas os atos imprevistos devem
supõem serem os mais fortes e incapa- estar de acordo com a disposição de
zes de sofrer o que quer que seja. (Os caráter do agente.
bêbedos também se portam dessa ma- (5) As pessoas que ignoram o peri-
15 neira: tornam-se otimistas.) Quando, go também parecem bravas, e não dis-
todavia, as suas aventuras terminam tam muito das de temperamento san-
mal, rodam sobre os calcanhares; mas guíneo e otimista, mas são inferiores
a marca distintiva do homem bravo por não terem confiança em si mes-
era enfrentar as coisas que são e pare- mas, como as segundas. Também por
cem terríveis, porque é nobre fazê-lo e isso, os otimistas se mantêm firmes
vergonhoso não o fazer. Também por durante algum tempo, mas os que 25
isso, considera-se como marca distin- foram enganados sobre a realidade dos
tiva de um homem mais bravo o mos- fatos fogem tão logo sabem ou suspei-
.trar-se destemido e imperturbável nos tam que estes são diferentes do que
alarmas repentinos do que nos perigos supunham, como sucedeu com os argi-
20 previstos; pois isso deve proceder mais vos quando travaram combate com os
de uma disposição de caráter e menos espartanos, tomando-os por siciônios.
da preparação: os atos previstos E com isto .fica completada a descri-
podem ser escolhidos por cálculo e ção do caráter tanto dos homens bra-
vos como dos que são considerados
42 1115 b 11-24. (N. do T.) bravos.
que abster-se do que é agradável. mais virtuoso e feliz for, mais lhe
35 Sem embargo, a fmalidade que a doerá o pensamento da morte; é
coragem se propõe dir-se-ia que é agra- para tal homem que mais valor tem a
1117 b dável, mas é encoberta pelas circuns- vida, e ele conscientemente renuncia
ao maior dos bens, o que é doloroso.
43 1115 b 7-13. (N. do T.) Mas nem por isso deixa de ser bravo, e
ÉTICA A NICÔMACO - III 95
talvez o seja ainda mais por escolher, a os que são menos bravos mas não pos-
esse custo, a prática de atos nobres na suem outros bens; pois esses estão
guerra. prontos para enfrentar o perigo e ven-
15 Nem de todas as virtudes, portanto, dem suas vidas por uma ninharia.
o exercício é agradável, salvo na medi- Quanto à coragem dissemos o sufi- 20
10
11
Dos apetites, alguns parecem co- jeto tomado ao acaso. Ora, nos apeti- 15
muns e outros, peculiares aos indiví- tes naturais poucos se enganam, e
duos e adquiridos. Por exemplo: o ape- numa só direção, a do excesso; e
IO tite do alimento é natural, já que todos comer ou beber tudo que se tenha à
os que o sentem anseiam comer e mão, até a saciedade, é exceder a medi-
beber, e às vezes ambas as coisas; e da natural, pois que o apetite natural
também pelo amor (como diz Home- se limita a preencher o que nos falta.
ro 46), quando são jovens e vigorosos; Por isso tais pessoas são chamadas
mas nem todos anseiam por esta ou "deuses do estômago", dando a enten-
aquela espécie de alimento ou de amor, der que enchem o estômago além da 20
nem pelas mesmas coisas. medida. E só pessoas de caráter intei-
Por isso, tal anseio parece ser uma ramente abjeto se tornam assim.
questão inteiramente pessoal. No en- Mas no que se refere aos prazeres
tanto, é muito natural que assim seja, peculiares a indivíduos, muitas pessoas
pois diferentes coisas agradam a dife- erram, e de muitas maneiras. Pois,
rentes indivíduos, e algumas são mais enquanto as pessoas que "gostam disto
agradáveis a todos do que qualquer ob- ou daquilo" são assim chamadas ou·
12
dor, que nos leva a abandonar nossas aumenta-lhe a força inata, e quando os
armas e a desonrar-nos de outras apetites são fortes e violentos, chegam
30 maneiras; e por isso, alguns chegam a ao ponto de excluir a faculdade de
pensar que os nossos atos em tais oca- raciocinar.
siões são forçados. Para o intempe- Portanto, os apetites devem ser pou-
rante, ao contrário, os atos particu- cos e moderados, e não se oporem de
lares são voluntários (já que ele os modo algum ao princípio racional - e
pratica sob o impulso do apetite e do isso é o que -chamamos obediência e
desejo), mas a disposição em sua tota- disciplina. E, assim como a criança
lidade o é menos, uma vez que nin- deve submeter-se à direção do seu pre-
guém deseja ser intemperante. ceptor, também o elemento apetitivo
O termo "intemperante" também se deve subordinar-se ao princípio racio- 15
aplica a faltas infantis, por mostrarem naI.
certa semelhança com o que estivemos Em conclusão: no homem tempe-
1119 b considerando. Ao nosso propósito rante o elemento apetitivo deve harmo-
atual não interessa indagar qual das . nizar-se com o princípio racional, pois
duas acepções deriva da outra, mas é o que ambos têm em mira é o nobre, e
evidente que esta segunda é derivada. o homem temperante apetece as coisas
A transferência de sentido parece bas- que deve, da maneira e na ocasião
tante plausível, pois quem deseja aqui- devidas; e isso é o que prescreve o
lo que é vil e que se desenvolve rapida- princípio racional.
mente deve ser refreado a tempo; ora, Aqui termina a nossa análise da 20
essas características pertencem acima temperança.
LIVRO IV
101
2
Talvez convenha discutir agora a caráter é determinada pelas suas ativi-
magnificência, que também parece ser dades e pelos seus objetos. Ora, os gas-
uma virtude relacionada com a rique- tos do homem magnificente são vulto-
20 za. Não se estende, porém, como a sos e apropriados. Por conseguinte,
liberalidade, a todas as ações que têm tais serão também os seus resultados; e
que ver com a riqueza, mas apenas às assim, haverá um grande dispêndio em
que envolvem gasto; e nestas, ultra- perfeita consonância com o seu resul-
passa a liberalidade em escala. Porque, tado. Donde se segue que o resultado 5
como o próprio nome sugere, é um deve corresponder ao dispêndio e este
gasto apropriado que envolve grandes deve ser digno do resultado, ou mesmo
quantias. Mas a escala é relativa, pois excedê-lo.
a despesa de quem uma trir- O homem magnificente, além disso,
25 reme não se compara à de quem chefia gastará dinheiro tendo em mira a
uma embaixada sagrada. A magnifi- honra, pois essa finalidade é comum a
cência, portanto, deve ser adequada todas as virtudes. Mais ainda: ele o
tanto ao agente como ao objeto e às farâ com prazer e com largueza, visto
circunstâncias. O homem que em. coi- que os cálculos precisos são próprios
sas pequenas e medianas gasta de dos avarentos. E considerará os meios
acordo com os méritos do caso não é de tomar o resultado o mais belo pos-
chamado de magnificente (por exem- sível e o mais apropriado ao seu obje-
plo, aquele que pode dizer. "muitas to, ao invés de pensar nos custos e nos
foram minhas dádivas ao peregri- meios mais baratos de obtê-lo. É 10
no"49), mas unicamente aquele que o necessário, pois, que o homem magni-
faz em grandes coisas. Porquanto o ficente seja também liberal. Com efei-
magnificente é liberal, mas o liberal to, este também gasta o que deve e
30 nem sempre é magnificente. como deve, e é em tais assuntos que se
A deficiência desta disposição de manifesta a grandeza implicada pelo
caráter é chamada mesquinhez e o nome "magnificente", já que a liberali-
excesso vulgaridade, mau gosto, etc., o dade diz respeito a essas coisas; e, com
qual não se excede nas quantias des- despesa igual, ele produzirá uma obra
pendidas com os objetos que convêm, de arte mais magnificente. Porquanto
mas pelos gastos ostentosos em cir- uma posse e uma obra de arte não têm
cunstâncias indébitas e de maneira a mesma excelência. A posse mais 15
indébita. Mais adiante falaremos des- valiosa é aquela que vale mais, como
ses vícios 5 o. por exemplo o ouro, mas a mais valio-
O homem magnificente assemelha- sa obra de arte é a que é grande e bela
35 se a um artista, pois percebe o que é (pois a contemplação de uma tal obra
apropriado e sabe gastar grandes inspira admiração, e o mesmo faz a
1122 b quantias com bom gosto. No princí- magnificência); e uma obra possui
pio 51 dissemos que uma disposição de uma espécie de excelência - isto é,
uma magnificência - que envolve
49 Odtsséia, XVII, 420. (N. do T.) grandeza.
50 1123 a 19-33. (N. do T.) A magnificência é um atributo dos
51 Cf. 1103 b 21-23, 1104 a 27-29. (N. do T.) gastos que chamamos honrosos, como
20
106 ARISTÓTELES
os produz. Por isso um homem pobre mulo. E, visto que todo gasto pode ser
não pode ser magnificente, visto não grande em sua espécie e o que, em
ter os meios de gastar apropriada- absoluto, há de mais magnificente é
mente grandes quantias; e quem tenta um generoso gasto com um objeto
fazê-lo é um tolo, porquanto gasta grandioso, mas o magnificente em
além do que se pode esperar dele e do cada caso é o que é grande nas circuns-
que é apropriado; ora, a despesa justa tâncias deste, e a grandeza na obra di-
30 é que é virtuosa. Mas em geral os gran- fere da grandeza no dispêndio (por-
des gastos ficam bem aos que, para quanto a mais bela de todas as bolas
começar, possuem os recursos adequa- ou de todos os brinquedos é um magní-
dos, adquiridos por seus próprios fico presente para uma criança, embo-
forços ou provenientes de seus ante- ra custe pouco dinheiro) - , segue-se 15
passados ou de seus amigos; e também que a característica do homem magni-
às pessoas de nascimento nobre ou de ficente, seja qual for o resultado do que
grande reputação, e assim por diante; faz, é fazê-lo com magnificência (de
pois todas essas coisas trazem consigo modo que não seja fácil superar tal
a grandeza e o prestígio. resultado) e torná-lo digno do dispên-
Basicamente, pois, o homem magni- dio.
ficente é uma pessoa dessa espécie, e a Tal é, pois, o homem magnificente.
magnificência se revela nos gastos que O vulgar e extravagante excede, como
35 descrevemos acima 53; pois esses são já dissemos 5 4, gastando além do que é 20
3
Pelo seu nome, a magnanimidade tos são grandes parece ser o mais inde-
parece relacionar-se com grandes coi- bitamente humilde; pois que faria ele
sas. Que espécie de grandes coisas? Eis se merecesse menos?
35 a primeira pergunta que cumpre res- O magnânimo, portanto, é um extre-
ponder. mo com respeito à grandeza de suas
Não faz diferença que consideremos pretensões, mas um meio-termo no que
a disposição de caráter ou o homem tange à justeza das mesmas; porque se
Il23b que a exibe. Ora, diz-se que é magnâ- arroga o que corresponde aos seus mé-
nimo o homem que com razão se ritos, enquanto os outros excedem ou
considera digno de grandes coisas; ficam aquém da medida.
pois aquele que se arroga. uma digni- Se, pois, ele merece e pretende gran- /5
dade a que não faz jus é um tolo, e ne- des coisas, e essas acima de todas as
nhum homem virtuoso é tolo ou ridícu- outras, há de ambicionar uma coisa em
lo. O magnânimo, pois, é o homem que particular. O mérito é relativo aos bens
5 acabamos de definir. Com efeito, aque- exteriores; e o maior destes, acredi-
le que de pouco é merecedor e assim se tamos nós, é aquele que prestamos aos
considera é temperante e não magnâ- deuses e que as pessoas de posição
nimo; a magnanimidade implica gran- mais ambicionam, e que é o prêmio
deza do mesmo modo que a conferido às mais nobres açôes, Refi- 20
implica uma boa estatura, e as pessoas ro-me à honra, que é, por certo, o
pequenas podem ser bonitas e bem maior de todos os bens exteriores.
proporcionadas, porém não belas. Por Honras e desonras, por conseguinte,
outro lado, o que se julga digno de são os objetos com respeito aos quais o
grandes coisas sem possuir tais quali- homem magnânimo é tal como deve
dades é vaidoso, se bem que nem todos ser. E, mesmo deixando de lado o
os que se consideram mais merece- nosso argumento, é a honra que os
dores do que realmente são possam ser magnânimos parecem ter em mente;
chamados de vaidosos. pois é ela que se arrogam acima de
O homem que se considera menos tudo, mas de acordo com os seus méri-
10 merecedor do que realmente é, é inde- tos. O homem indevidamente humilde
vidamente humilde, quer os seus méri- revela-se deficiente não só em con- 25
tos sejam grandes ou moderados, quer fronto com os seus méritos próprios,
sejam pequenos, mas suas pretensões mas também com as pretensões do
ainda menores. E o homem cujos méri- magnânimo. O vaidoso excede em
108 ARISTÓTELES
relação aos seus méritos próprios, mas Em primeiro lugar, pois, como dis-
não excede as pretensões do magnâ- semos 5 5, o homem magnânimo inte-
nimo. ressa pelas honras. Apesar disso, con-
Ora, o magnânimo, visto merecer duzir-se-â com moderação no que
mais do que os outros, deve ser bom no respeita ao poder, à riqueza e a toda
mais alto grau; pois o homem melhor boa ou má fortuna que lhe advenha, e
sempre merece mais, e o melhor de não exultará excessivamente com a 15
30 todos é o que mais merece. Logo, o boa fortuna nem se abaterá com a má.
homem verdadeiramente magnânimo Com efeito, nem para com a própria
deve ser bom. Além disso, a grandeza honra ele se conduz como se fosse uma
em todas as virtudes deve ser caracte- coisa extraordinária. O poder e a
rística do homem magnânimo. E nada riqueza são desejáveis a bem da honra
haveria mais indecoroso para o (pelo menos, os que os possuem dese-
homem altivo do que fugir ao perigo, jam servir-se deles para obtê-la); e,
abanando as mãos, ou fazer injustiça a para os que têm a própria honra em
um outro; pois com que fim praticaria pouca conta, eles também devem ser
atos vergonhosos aquele para quem coisa de somenos. Por isso os homens
nada é grande? Se o considerarmos magnânimos' são considerados desde-
ponto por ponto, veremos o perfeito nhosos.
absurdo de um homem magnânimo É opinião comum que os bens de 20
35 que não seja bom. E tampouco merece- fortuna também contribuem para a
ria ele ser honrado se fosse mau; pois a magnanimidade. Com efeito, os ho-
1124 a honra é o prêmio da virtude, e só é ren- mens bem-nascidos são considerados
dida aos bons. merecedores de honra, e da mesma
A magnanimidade parece, pois, ser forma os que desfrutam de poder e
uma espécie de coroa das virtudes, riqueza; pois eles se encontram numa
porquanto as torna maiores e não é posição superior, e tudo que se mostra
encontrada sem elas. Por isso é difícil superior em algo de bom é tido em
ser verdadeiramente magnânimo, pois grande honra. Daí que até essas coisas
sem possuir um caráter bom e nobre tornem os homens mais magnânimos,
não se pode sê-lo. pois alguns os honram pelo fato de
De modo que é sobretudo por hon- possuí-las. Mas, em verdade, só merece 25
vez. Quanto às coisas que ocorrem que elas são boas. E contudo, tais pes-
10 necessariamente ou que são de pouca soas não são consideradas tolas, mas
monta, é de todos os homens o menos antes excessivamente modestas. Dir-
dado a lamentar-se ou a solicitar favo- se-ia, contudo, que semelhante reputa- 25
res; pois só os que levam tais coisas a ção até as toma piores, porque cada
sério se portam dessa maneira com res- classe de pessoa ambiciona o que
peito a elas. É ele o homem que prefere corresponde aos seus méritos, en-
possuir coisas belas e improfícuas às quanto esses se abstêm mesmo de no-
úteis e proveitosas, pois isso é mais bres açôes e empreendimentos, consi-
próprio de um caráter que basta a si derando-se indignos, e dos bens
mesmo. exteriores por igual forma.
Além disso, um andar lento é consi- Os por outro lado, são
derado próprio do homem magnânimo, tolos que ignoram a si mesmos, e isso
uma voz profunda e uma entonação de modo manifesto. Porquanto, sem
uniforme; pois aquele que leva poucas serem dignos de tais coisas, aventu-
coisas a sério não costuma apressar-se, ram-se a honrosos empreendimentos
15 nem o homem para quem nada é gran-
de se excita facilmente, ao passo que a que nao tardam a denunciá-los pelo
voz estridente e o andar célere são fru- que são. E adornam-se com belas rou- 30
4
1125b Também parece haver na esfera da grande escala, ambas nos dispõem
honra, como dissemos em nossas pri- corretamente em relação a objetos de
meiras observações sobre o assunto 5 7, pouca ou mediana importância. Assim
uma virtude que guarda para com a como no receber e dar riquezas existe
magnanimidade a mesma relação que um meio-termo, um excesso e uma
a líberalidade para com a magnifi- deficiência, também a honra pode ser
cência. Com efeito, nenhuma das duas desejada mais ou menos do que con-
tem nada que ver com as coisas em vém, ou da maneira e das fontes que
convêm. Censuramos tanto o homem 10
57 Ibid., 24-27. (N. do T.) ambicioso por desejar a honra mais do
ÉTICA A NICÔMACO - IV 111
que convém e de fontes indébitas, Como não existe palavra para designar
como o desambicioso por não querer o meio-termo, os extremos parecem
ser honrado mesmo por motivos no- disputar o seu lugar como se estivesse
bres. Mas às vezes louvamos o ambi- vago por abandono. Mas onde há
cioso por ser varonil e do que é excesso e falta, há também um meio-
nobre, e o desambicioso por ser mode- termo. Ora, os homens desejam a
rado e auto-suficiente, como dissemos honra não só mais como também
na primeira vez que tocamos neste menos do que devem; logo, é possível 20
como esta não é visível, ninguém pensa aquilo em virtude de que nos encoleri-
sequer em apaziguá-las, e digerir sozi- zamos com as pessoas e coisas devi-
nho a sua cólera é coisa demorada. das, da maneira devida, e assim por
25 Tais pessoas causam grandes incómo- diante) merece ser louvado, enquanto
dos a si mesmas e aos seus amigos os excessos, e deficiências são dignos
mais chegados. de censura censura leve se estão
Chamamos mal-humorados os que presente em modesto grau, e franca e
se encolerizam com o que não devem, enérgica se grau elevado.
mais do que devem e por mais tempo, e Toma-se assim evidente que devemos
não podem ser apaziguados enquanto ater-nos ao meio-termo.
não se vingam ou castigam. Isto basta quanto às disposições lO
À calma antes o excesso do relativas à cólera.
30 que a deficiência, pois não só ele é
mais comum (já que vingar-se é mais 59 1109 b 14-26. (N. do T.)
Nas reuniões de homens, na vida so- quiosos, isto é, aqueles que para serem
cial e no intercâmbio de palavras e agradáveis louvam todas as coisas e ja-
atos, alguns são considerados obse- mais se opõem a quem quer que seja, 15
I
ÉTICA A NICÔMACO - IV 113
julgando que é seu dever "não magoar Com efeito, ele parece interessar-se
as pessoas que encontram"; enquanto pelos prazeres e dores da vida social; e
os que, pelo contrário, se opõem a tudo sempre que não for honroso ou que for
e não têm o menor escrúpulo de ma- nocivo proporcionar tal. prazer, ele se
goar são chamados grosseiros e alter- recusará a fazê-lo, preferindo antes
cadores. causar dor. Do mesmo modo, se sua
Que as disposições que acabamos de aquiescência ao ato de um outro trou-
nomear são censuráveis, é evidente, xesse grande desonra ou dano a esse
assim como é digna de louvor a dispo- outro, enquanto sua oposição lhe
sição intermediária - isto é, aquela causa um pouco de dor, ele se oporá ao 35
em virtude da qual um homem se con- invés de aquiescer.
forma e se rebela ante as coisas que Tal homem se relacionará diferente-
deve e da maneira devida. Nenhum mente com pessoas de alta posição e
10 nome, porém, lhe foi dado, embora se com pessoas comuns, com conhecidos 1127 a
assemelhe acima de tudo à amizade. íntimos e outros mais distantes, e do
Com efeito, o homem que corresponde mesmo modo no que diz respeito a
a essa disposição intermediária aproxi- todas as demais diferenças, tratando
ma-se muito daquele que, com o acrés- cada classe como for apropriado; e
cimo da afeição, chamamos um bom embora, de um modo geral, prefira
amigo. Mas a disposição em apreço proporcionar prazer e evite causar dor,
fere da amizade pelo fato de não impli- guiar-se-â pelas conseqüências se estas 5
car paixão nem afeição para com as forem mais importantes - em outras
pessoas com quem tratamos, visto que palavras, pela honra e pela conve-
não é por amor nem por ódio que um niência. E também infligirá pequenas
homem acolhe todas as coisas como dores tendo em vista um grande prazer
deve, e sim por ser um indivíduo de futuro.
15 determinada espécie. Com efeito, ele se O homem que alcança o meio-termo
conduzirá do mesmo modo com co- é, pois, tal como descrevemos, embora
nhecidos e desconhecidos, com íntimos não tenha recebido um nome. Dos que
e com os que não o são, muito embora proporcionam prazer, o que procura
se conduza em cada um desses casos ser agradável sem nenhum objetivo
como convém; pois não é certo interes- ulterior é obsequioso, mas aquele que o
sar-se igualmente por pessoas íntimas faz com o fim de obter alguma vanta-
e por estranhos, nem tampouco são as gem em dinheiro ou nas coisas que o /O
mesmas condições que tornam justo dinheiro pode comprar é um adulador;
magoá-los. enquanto o que se opõe a tudo é, como
Ora, nós dissemos de um modo dissemos 60, grosseiro e altercador. E
geral que esse homem se relaciona com extremos parecem ser contraditórios
as outras pessoas do modo que con- um ao outro porque o meio-termo não
vém; mas é com referência ao que é tem
honroso e conveniente que procura não
30 causar dor ou proporcionar prazer: 60 1125 b 14-16. (N. do T.)
114 ARISTÓTELES
7
o meio-termo oposto à jactância é Examinemos a ambos, mas antes de
encontrado quase na mesma esfera; e tudo ao homem veraz. Não estamos
tampouco ele tem nome. Não será fora falando daquele que cumpre a sua
de propósito descrever também estas palavra nas coisas que dizem respeito
15 disposições, porque examinando-as em à justiça ou à injustiça (pois isso per-
detalhe teremos uma idéia mais exata tence a outra virtude), mas do homem Il27b
dos caracteres e, por outro lado, nos que, em assuntos onde nada disso está
convenceremos de que as virtudes são em jogo, é veraz tanto em palavras
meios-termos se verificarmos que isso como na vida que leva, porque tal é o
ocorre em todos os casos. seu caráter. Sem embargo, uma pessoa
No campo da vida social, já des- dessa espécie será naturalmente eqüita-
crevemos 61 aqueles que se propõem tiva, porquanto o homem que é veraz e
como finalidade proporcionar prazer ama a verdade quando não há nada em
em suas relações com os outros. Fale- jogo deve sê-lo ainda mais quando vai
mos agora dos que buscam a verdade nisso uma questão de justiça. Evitará a 5
ou a falsidade tanto em atos como em falsidade em tais casos como algo de
20 palavras, e das suas pretensões. O ignóbil, visto que a evitava por si
homem jactancioso, pois, é conside- mesma; e tal homem é digno de louvor.
rado como afeito a arrogar-se coisas E inclina-se mais a atenuar a verdade:
que trazem glória, quando não as pos- isso lhe parece de mais bom gosto, por-
sui, ou arrogar-se mais do que possui; quanto os exageros são tediosos.
e o homem falsamente modesto, pelo Aquele que se arroga mais do que
contrário, a negar ou a amesquinhar o possui sem qualquer objetivo ulterior é
que possui, enquanto o que observa o um indivíduo desprezível (pois do con- /0
meio-termo não exagera nem subes- trário não se comprazeria na falsida-
tima e é veraz tanto em seu modo de de), mas parece ser antes fútil do que
viver como em suas palavras, decla- mau. Se, porém, o faz com um fim
25 rando o que possui, porém não mais qualquer, aquele que o faz visando à
nem menos. boa reputação ou à honra não é (para
Ora, cada uma dessas linhas de con- um jactancioso) digno de grande cen-
duta pode ser adotada com ou sem um sura; mas o que o faz por dinheiro, ou
objetivo, mas cada homem fala, age e pelas coisas que levam à aquisição de
vive de acordo com o seu caráter, se dinheiro, é um caráter mais detestável.
não está agindo com um fim ulterior. E Com efeito, não é a capacidade faz
a falsidade é em si mesma vil e culpá- o jactancioso, mas o propósito, pois é
vel; e a verdade, nobre e digna de lou- em virtude dessa disposição de caráter
30 vor. Portanto, o homem veraz é mais e por ser um homem de determinada
um exemplo daqueles conservan- espécie que ele é jactancioso; assim /5
do-se no meio-termo, merecem louvor; como homem é mentiroso porque
e ambas as formas de homem inverí- se deleita com a mentira em si mesma,
dico são censuráveis, mas particular- e não porque deseje a reputação ou o
mente o jactancioso. lucro. Ora, os que se vangloriam para
ser bem conceituados arrogam-se qua-
61 Cap. 6. (N. do T.) lidades que lhes possam valer louvores
ÉTICA A NICÔMAC.O - IV 115
Como a vida é feita não só de ativi- com efeito, tais agudezas são conside-
dade, mas também de repouso, e este radas movimentos do caráter, e aos
inclui os lazeres e a recreação, parece caracteres, assim como aos corpos,
haver aqui também uma espécie de costumamos distinguir pelos seus mo-
intercâmbio que se relaciona com o vimentos.
bom gosto. Pode-se dizer - e também Não é, porém, difícil descobrir o
1128a escutar - o que se deve e o que não se lado ridículo das coisas, e a maioria
deve. A espécie de pessoa a quem fala- das pessoas deleitam-se mais do que
mos ou escutamos influi igualmente no devem com gracejos e caçoadas; daí
caso. serem os próprios chocarreiros chama-
Evidentemente, também neste dos espirituosos, pelo agrado que cau-
campo existe uma demasia e uma.defi- sam; mas o que dissemos acima torna /5
ciência em confronto com o meio- evidente que eles diferem em não
termo. Os que levam a jocosidade ao pequeno grau dos espirituosos.
5 excesso são considerados farsantes A disposição intermediária também
vulgares que procuram ser espirituosos pertence o tato. É característico de um
a qualquer custo e, na sua ânsia de homem de tato dizer e escutar aquilo
fazer rir, não se preocupam com a que fica bem a uma pessoa digna e
propriedade do que dizem nem em bem-educada; pois há coisas que fica
poupar as suscetibilidades daqueles bem a um tal homem dizer e escutar a
que tomam para objeto de seus chistes; título de gracejo; e os chistes de um 20
enquanto os que não sabem gracejar, homem bem-educado diferem dos de
nem suportam os que o fazem, são rús- um homem vulgar, assim como os de
ticos e impolidos. Mas os que grace- uma pessoa instruída diferem dos de
jam com bom gosto chamam-se espiri- um ignorante. Isto se pode ver até nas
tuosos, o que implica um espírito vivo comédias antigas e modernas: para os
/0 em se voltar para um lado e outro; autores das primeiras a linguagem
116 ARISTÓTELES
coisas que os legisladores nos proíbem todos com alguma espécie de inter-
insultar, e talvez devessem também câmbio de palavras e atos. Diferem,
proibir-nos de gracejar em tomo delas. porém, pelo fato de um se relacionar
O homem fino e bem-educado será, com a verdade e os outros dois com o
pois, tal como o descrevemos, e ele 'prazer. Dos que dizem respeito pra-'
mesmo ditará, por assim dizer, a sua zer, um se manifesta nos gracejos e o
lei. outro no trato social comum.
9
10 A vergonha não deveria ser incluída sujeitos a envergonhar-se porque
entre as virtudes, porquanto se asseme- vivem pelos sentimentos e por isso
lha mais a um sentimento do que a cometem muitos erros, servindo a ver-
uma disposição de caráter. É definida, gonha para refreá-los; e louvamos os
em todo caso, como uma espécie de jovens que mostram essa propensão,
medo da desonra, e produz um efeito mas a uma pessoa mais velha ninguém
semelhante ao do medo causado pelo louvaria pelo mesmo motivo, visto
perigo. Com efeito, as pessoas enver- pensarmos ela não deve fazer nada 20
gonhadas coram e as que temem a de que tenha de envergonhar-se. Com
morte empalidecem; ambos, portanto, efeito, o sentimento de vergonha não é
parecem ser em certo sentido estados sequer característico de um homem
corporais, o que seria mais caracte- bom, uma vez que acompanha as más
rístico de um sentimento que de uma ações. Ora, tais ações não devem ser
disposição de caráter. praticadas; e não faz diferença que
J5 O sentimento de vergonha não fica algumas sejam vergonhosas em si mes-
bem a todas as idades, mas apenas à mas e outras o sejam apenas de acordo
juventude. Pensamos que os moços são com a opinião comum, pois nem as
ÉTICA A NICÔMACO - IV 117
1129 a No que toca à justiça e à injustiça também se nos toma conhecida; e (b) a
devemos considerar: (1) com que espé- boa condição é conhecida pelas coisas
cie de ações se relacionam elas; (2) que que se acham em boa condição, e as
espécie de meio-termo é a justiça; e (3) segundas pela primeira. Se a boacon-
entre que extremos o ato justo é inter- _ dição for a rijeza de carnes, é neces-
.\ mediário. Nossa investigação se pro- sário não só que a má condição seja a
cessará dentro das mesmas linhas que carne flácida, como que o saudável
as anteriores. seja aquilo que toma rijas as carnes. E
Vemos que todos os homens enten- segue-se, de modo geral, que, se um
dem por justiça aquela disposição de dos contrários for ambíguo, o outro
caráter que torna"as pessoas propensas também o será; por exemplo, se o
a fazer o que é justo, que as faz agir "justo" o é, também o será o "injusto". 25
justamente e desejar o que é justo; e do Ora, "justiça" e "injustiça" parecem
mesmo modo, por injustiça se entende ser termos ambíguos, mas, como os
a disposição que as leva a agir injusta- seus diferentes significados se aproxi-
lO mente e a desejar o que é injusto. Tam- uns dos outros, a ambigüidade
bém nós, portanto, assentaremos isso escapa à atenção e não é evidente
como base geral. Porque as mesmas como, por comparação, nos casos em
coisas não são verdadeiras tanto das que os significados se afastam muito
ciências e faculdades como das dispo- um do outro por exemplo (pois aqui
sições de caráter. Considera-se que é grande a diferença de forma exterior),
uma faculdade ou ciência, que é uma como a ambigüidade no emprego de
só e a mesma coisa, se relaciona com para designar a clavícula de um 30
objetos contrários, mas uma disposi- animal e o ferrolho com que trancamos
ção de caráter, que é um de dois uma porta. Tomemos, pois, como
contrários, não produz resultados ponto de partida os vários significados
15 opostos. Por exemplo: em razão da de "um 'homem injusto". Mas o
saúde não fazemos o que é contrário à homem sem lei, assim como o ganan-
saúde, mas só o que é saudável, pois cioso e ímprobo, são considerados
dizemos que um homem caminha de injustos, de forma que tanto o respei-
modo saudável quando caminha como tador da lei como o honesto serão
o faria um homem que gozasse saúde. evidentemente justos. O justo é, por-
Ora, muitas vezes um estado é reco- tanto, o respeitador da lei e o probo, e o
nhecido pelo seu contrário, e não injusto é o homem sem lei e ímprobo.
menos freqüentemente os estados são Visto que o homem injusto é ganan- 1129 b
reconhecidos pelos sujeitos que os cioso, deve ter algo que ver com bens
manifestam; porque, (a) quando conhe- não todos os bens, mas aqueles a
20 cemos a boa condição, a má condição que dizem respeito a prosperidade e a
122 ARISTÓTELES
Portanto, a justiça neste sentido não justiça neste sentido: são elas a mesma
é uma parte da virtude, mas a virtude coisa, mas não o é a sua essência.
lO inteira; nem é seu contrário, a injusti- Aquilo que, em relação ao nosso próxi-
ça, uma parte do vício, mas o vício mo, é justiça, como uma determinada
inteiro. O que dissemos põe a desco- disposição de caráter e em si mesmo, é
berto a diferença entre a virtude e a virtude.
Seja, porém, como for, objeto de pela razão de lucrar com o seu ato.
nossa investigação é aquela justiça que Ainda mais: todos os outros atos injus-
constitui uma parte da virtude; por- tos são invariavelmente atribuídos a
quanto sustentamos que tal espécie de alguma espécie particular de- maldade;
justiça existe. E analogamente, é com a por exemplo, o adultério à internpe- 30
J5 injustiça no sentido particular que nos rança, o abandono de um companheiro
ocupamos. em combate à covardia, a violência fí-
Que tal coisa existe, é indicado pelo sica à cólera; mas, quando um homem
fato de que o homem que mostra em tira proveito de sua ação, esta não é
seus atos as outras formas de maldade atribuída a nenhuma outra forma de
age realmente mal, porém não ganan- maldade que não a injustiça. É eviden-
ciosamente (por exemplo, o homem te, pois, que além da injustiça no senti-
que atira ao chão o seu escudo por do lato existe uma injustiça "particu-
covardia, que fala duramente por mau lar" que participa do nome e da
humor ou deixa de assistir com di- natureza da primeira, porque sua defi-
20 nheiro ao seu amigo, por avareza); e, nição se inclui no mesmo gênero. Com 1130 b
'por outro lado, o ganancioso muitas efeito, o significado de ambas consiste
vezes não exibe nenhum vícios,
nem todos juntos, mas indubitavel- numa relação para com o próximo,
mente revela uma certa espécie de mal- mas uma delas diz respeito à honra, ao
dade (pois nós o censuramos) e de dinheiro ou à segurança - ou àquilo
injustiça. Existe, pois, uma outra espé- que inclui todas essas coisas, se hou-
cie de injustiça que é parte da injustiça vesse um nome para designá-lo - e
no sentido lato, e um dos empregos da seu motivo é o prazer proporcionado
palavra "injusto" que corresponde a pelo lucro; enquanto a outra diz res-
uma parte do que é injusto no sentido peito a todos os objetos com que se 5
10 injustiça que examinamos acima. Mas, essa que torna um homem bom em si,
como ilegítimo e ímprobo não são a fica para ser determinado posterior-
mesma coisa, mas diferem entre si mente 67; se isso compete à arte polí-
como uma parte do seu todo (pois tudo tica ou a alguma outra; pois talvez não
que é ímprobo é ilegítimo, mas nem haja identidade entre ser um homem
tudo que é ilegítimo é ímprobo), o bom e ser um bom cidadão de qual-
injusto e a injutiça no sentido de quer Estado escolhido ao caso.
improbidade não se identificam com a Da justiça particular e do que é . 30
primeira espécie citada, mas diferem justo no sentido correspondente, (A)
dela como a parte do todo. Com efeito, uma espécie é a que se manifesta nas
a injustiça neste sentido é uma parte da distribuições de honras, de dinheiro ou
injustiça no sentido amplo, e, do das outras coisas que são divididas
mesmo modo, a justiça num sentido o entre aqueles que têm parte na consti-
15 é da justiça do outro. Portanto, deve- tuição (pois aí é possível receber um
mos também falar da justiça e da injus- quinhão igualou desigual ao de um
tiça particulares, e da mesma forma a outro); e (B) outra espécie é aquela que
respeito do justo e do injusto. desempenha um papel corretivo nas
Quanto à justiça, pois, que corres- transações entre indivíduos. Desta últi- 1131 a
ponde à virtude total, e à correspon- ma há duas divisões: dentre as transa-
dente injustiça, sendo uma delas o çôes, (I) algumas são voluntárias, e (2)
exercício da virtude em sua inteireza e outras são involuntárias - voluntá-
a outra, o do vício completo, ambos • rias, por exemplo, as compras e ven-
em relação ao nosso próximo, pode- das, os empréstimos para consumo, as
mos deixá-las de parte. E é evidente o arras, o empréstimo para uso, os depó-
modo como devem ser distinguidos os sitos, as locações (todos estes são cha-
20 significados de "justo" e de "injusto" mados voluntários porque a origem
que lhes correspondem, pois, a bem das transações é voluntária); ao passo 5
dizer, a maioria dos atos ordenados que das involuntárias, (a) algumas são
pela lei são aqueles que são prescritos clandestinas, como o furto, o adultério,
do ponto de vista da virtude conside- o envenenamento, o lenocínio, o engo-
rada como um todo. Efetivamente, a do a fim de escravizar, o falso testemu-
lei nos manda praticar todas as virtu- nho, e (b) outras são violentas, como a .
des e nos proíbe de praticar qualquer agressão, o seqüestro, o homicídio, o
25 vício. E as coisas que tendem a produ- roubo a mão armada, a mutilação, as
zir a virtude considerada como um invectivas e os insultos.
todo são aqueles atos prescritos pela
lei tendo em vista a educação para o 1179 b 20 - 1181 b 12. Política. 1267 b 16-
bem comum. Mas no que tange à edu-
67
1277 b 32; 1278 a 40 - 1278 b 5; 1288 a 32-
cação do indivíduo como tal, educação 1288b2; 1333a 1337a 11-14.(N.doT.)
3
10 (A) Mostramos que tanto o homem entre as duas iniqüidades compreen-
como o ato injustos são ímprobos ou didas em cada caso. E esse ponto a
iníquos. Agora se torna claro que exis- eqüidade, pois em toda espécie de ação
te também um. ponto intermediário em que há o mais e o menos também
ÉTICA A NICÔMACO - V 125
25 (B) A outra é a corretiva que surge em procura igualá-los por meio da pena,
relação com transações tanto voluntá- tomando uma parte do ganho do acu-
rias como involuntárias. Esta forma do sado. Porque o termo "ganho" aplica- /0
justo tem um caráter específico dife- se geralmente a tais casos, embora não
rente da primeira. Com efeito, a justiça seja apropriado a alguns deles, como,
que distribui posses comuns está sem- por exemplo, à pessoa que inflige um
pre de acordo com a proporção men- ferimento - ' e "perda" à vítima. Seja
cionada acima (e mesmo quando se como for, uma vez estimado o dano,
trata de distribuir os fundos comuns de um é chamado perda e o outro, ganho.
30 uma sociedade, ela se fará segundo a Logo, o igual é intermediário entre o /5
mesma razão que guardam entre si os maior e o menor, mas o ganho e a
fundos empregados no negócio pelos perda são respectivamente menores e
diferentes sócios); e a injustiça contrá- maiores em sentidos contrários; maior
ria a esta espécie de injustiça é a que quantidade do bem e menor quanti-
viola a proporção. Mas a justiça nas dade do mal representam ganho, e o
transações entre um homem e outro é contrário é perda; e intermediário entre
1132 a efetivamente uma espécie de igualdade, os dois é, como vimos, o igual, que
e a injustiça uma espécie de desigual- dizemos ser justo. Por conseguinte, a
dade; não de acordo com essa espécie justiça corretiva será o intermediário
de proporção, todavia, mas de acordo entre a perda e o ganho.
com uma proporção aritmética. Por- Eis aí por que as pessoas em disputa
quanto não faz diferença que um recorrem ao juiz; e recorrer ao juiz é 20
homem bom tenha defraudado um recorrer à justiça, pois a natureza do
homem mau ou vice-versa, nem se foi juiz é ser uma espécie de justiça anima-
um homem bom ou mau que cometeu da; e procuram o juiz como um inter-
adultério; a lei considera apenas o mediário, e em alguns Estados os juí-
5 caráter distintivo do delito e trata as zes são chamados mediadores, na
partes como iguais, se uma comete e a convicção de que, se os litigantes
outra sofre injustiça, se uma é autora e conseguirem o meio-termo, consegui-
a outra é vítima do delito. rão o que é justo. O justo, pois, é um
Portanto, sendo esta espécie de meio-termo já que o juiz o é. . 25
injustiça uma desigualdade, o juiz pro- Ora, o juiz restabelece a igualdade.
cura igualá-la; porque também no caso É como se houvesse uma linha divi-
em que um recebeu e o outro infligiu dida em partes desiguais e ele retirasse
um ferimento, ou um matou e o outro a diferença pela qual o segmento maior
foi morto, o sofrimento e a ação foram a metade para acrescentá-la ao
desigualmente destribuídos; mas o juiz menor. E quando o todo foi igualmente
ÉTICA A NICÔMACO - V 127
dividido, os litigantes dizem que rece- linha AA' o segmento AE, e acrescen-
beram "o que lhes pertence" - isto é, te-se à linha CC' o segmento CD, de
receberam o que é igual. modo que toda a linha DCC' exceda a
O igual é intermediário entre a linha linha EA' pelo segmento CD e pelo
maior e a menor de acordo com uma segmento CF; por conseguinte, ela ex-
30 proporção aritmética. Por esta mesma cede a linha BB' pelo segmento CD.
razão é ele chamado justo A E A'
devido a ser uma divisão em duas par- I I I
tes iguais ), como quem dissesse B B'
; e-o juiz ( ) é aquele I I
buição exatamente igual. Porquanto é pares de sapatos são iguais a uma casa
pela retribuição proporcional que a ci- ou a uma determinada quantidade de
dade se mantém unida. Os homens alimento.
procuram pagar o mal com o mal e, se O número de sapatos trocados por
não podem fazê-lo, julgam-se reduzi- uma casa (ou por uma determinada
dos à condição de simples escravos - quantidade de alimento) deve, portan-
1133 a e o bem com o bem, e se não podem to, corresponder à razão entre o arqui-
fazê-lo há troca, e é pela troca que teto e o sapateiro. Porque, assim
eles se mantêm unidos. Por esse não for, não haverá troca nem inter-
mesmo motivo dão uma posição proe- câmbio. E essa proporção não se veri- 25
minente ao templo das Graças: promo- ficará, a menos que os bens sejam
ver a retribuição dos serviços é carac- iguais de um modo. Todos os bens
terístico da graça, e deveríamos servir devem, portanto, ser medidos por uma
em troca aquele nos dispensou só e a mesma coisa, como dissemos
uma graça, tomando noutra ocasião a acima. Ora, essa unidade é na reali-
iniciativa de lhe fazer o mesmo. dade a procura, que mantém unidas
Ora, a retribuição proporcional é todas as coisas (porque, se os homens
garantida pela conjunção cruzada. não necessitassem em absoluto dos
Seja A um arquiteto, B um sapateiro, bens uns dos outros, ou não necessi-
C uma casa e D um par de sapatos. O tassem deles igualmente, ou não have-
arquiteto, pois, deve receber do sapa- ria troca, ou não a mesma troca); mas
teiro o produto do trabalho deste últi- o dinheiro tomou-se, por convenção,
10· mo, e dar-lhe o seu em troca. Se, pois, uma espécie de representante da procu-
há uma igualdade proporcional de ra; e por isso se chama dinheiro
bens e ocorre a ação recíproca, o resul- ), já que existe não por natureza,
tado que mencionamos será efetuado. mas por lei ), e está em nosso
Senão, a permuta não é igual, nem vá- poder mudá-lo e tomá-lo sem valor.
lida, pois nada impede que o trabalho Haverá, pois, reciprocidade quando
de um seja superior ao do outro. os termos forem igualados de modo
Devem, portanto, ser igualados. que, assim como o agricultor está para
E isto é verdadeiro também das ou- o sapateiro, a quantidade de produtos
tras artes, porquanto elas não subsisti- do sapateiro esteja para a de produtos
15 riam se o que o paciente sofre não de agricultor pela qual é trocada. Mas
fosse exatamente o mesmo que o agen- não devemos. colocá-los em proporção b
te faz, e da mesma quantidade e espé- depois de haverem realizado a troca
cie. Com efeito, não são dois médicos (do contrário ambos os excessos' se
que se associam para troca, mas um juntarão num dos extremos), e sim
médico e um agricultor, e, de modo quando cada um possui ainda os seus
geral, pessoas diferentes e desiguais; bens. Desse modo são iguais e associa-
mas essas pessoas devem ser iguala- dos justamente porque essa igualdade
das. Eis aí por que todas as coisas que se pode efetivar no seu caso.
são objetos de troca devem ser compa- Seja A um agricultor, C uma deter-
ráveis um modo ou de outro. Foi minada quantidade de alimento, B um
para esse fim que se introduziu o sapateiro e D o seu produto, que equi-
20 dinheiro, o qual se toma, em certo sen- paramos a C. Se não fosse possível efe-
tido, um meio-termo, visto que mede tuar dessa forma a reciprocidade, não
todas as coisas e, por conseguinte, haveria associação das partes. Que a
também o excesso e a falta - quantos procura engloba as coisas numa unida-
ÉTICA A NICÔMACO - V 129
de só é evidenciado pelo fato de que, uma casa, a saber: cinco. Não há dúvi-
quando os homens não necessitam um da que a troca se realizava desse modo
do outro - isto é, quando não há antes de existir dinheiro, pois nenhuma
necessidade recíproca ou quando um diferença faz que cinco camas sejam
deles não necessita do segundo - , não trocadas por uma casa ou pelo valor
realizam a troca, como acontece quan- monetário de cinco camas.
do alguém deseja o que temos: por Temos, pois, definido o justo e o 311
/0 exemplo, quando se permite a exporta- injusto. Após distingui-los assim um
ção de trigo em troca de vinho. É pre- do outro, é evidente que a ação justa é
ciso, pois, estabelecer essa equação. intermediária entre o agir injustamente
E quanto às trocas futuras - a fim e o ser vítima de injustiça; pois um
de que, se não necessitamos de uma deles é ter demais e o outro é ter dema-
coisa agora, possamos tê-la quando ela siado pouco. A justiça é uma espécie
venha a fazer-se necessária - , o de meio-termo, porém não no mesmo
dinheiro é, de certo modo, a nossa sentido que as outras virtudes, e sim
garantia, pois devemos ter a possibili- porque se relaciona com uma
dade de obter o que queremos em troca ou quantidade intermediária, enquanto
do dinheiro. Ora, com o dinheiro suce- a injustiça se relaciona com os extre-
de a mesma coisa que com os bens: mos. E justiça é aquilo em virtude do
nem sempre tem ele o mesmo valor; qual se diz que o homem justo pratica,
apesar disso, tende a ser mais estável. escolha própria, o que é justo, e
Daí a necessidade de que todos os bens que distribui, seja entre si mesmo e um
tenham um preço marcado; pois assim outro, seja entre dois outros, não de
/5' haverá sempre troca e, por conse- maneira a dar mais do que convém a si
guinte, associação de homem com e menos ao seu próximo (e
homem. inversamente no relativo ao que não
Deste modo, agindo o dinheiro convém), mas de maneira a dar o que é
como uma 'medida, torna ele os bens igual de acordo com a proporção; e da
comensuráveis e os equipara entre si; mesma forma quando se trata de distri-
pois nem haveria associação se não buir entre duas outras pessoas. A
houvesse troca, nem troca se não hou- injustiça, por outro lado, guarda uma
vesse igualdade, nem igualdade se não relação semelhante para com o injusto,
houvesse comensurabilidade. Ora, na que é excesso e deficiência, contrários
realidade é impossível que coisas tão à proporção, do útil ou do nocivo. Por
diferentes entre si se tornem comensu- esta razão a injustiça é excesso e defi-
20 ráveis, mas com referência à procura ciência, isto é, porque produz tais coi-
podem tornar-se tais em grau sufi- sas - no nosso caso pessoal, excesso
ciente. Deve haver, pois, uma unidade, do que é útil por natureza e deficiência· /0
e unidade estabelecida por comum do que é nocivo, enquanto o caso de
acordo (por isso se chama ela dinhei- outras pessoas é equiparável de modo
ro); pois é ela que torna todas as coisas geral ao nosso, com a diferença de que
comensuráveis, já que todas são medi- a proporção pode ser violada num e
das pelo dinheiro. noutro sentido. Na ação injusta, ter
Seja A uma casa, B dez minas, C demasiado pouco é ser vítima de injus-
uma cama. A é a metade de B, se a tiça, e ter demais é agir injustamente.
casa vale cinco minas ou é igual a elas; Seja esta a nossa exposição da natu-
25 a cama, C, é um décimo de B; torna-se reza da justiça e da injustiça e, igual-
assim evidente quantas camas igualam mente, do justo e do injusto em geral. /5
130 ARISTÓTELES
Visto que agir mjustamente não nem sempre se pode inferir que haja
implica necessariamente ser injusto, injustiça), e estas consistem em atri- 35
devemos indagar que espécies de atos buir demasiado a si próprio das coisas
injustos implicam que o autor é injusto boas em si, e demasiado pouco das coi-
com respeito a cada tipo de injustiça: sas más em si.
por exemplo, um ladrão, um adúltero Aí está por que não permitimos que
ou um bandido. Evidentemente, a res- um homem governe, mas o princípio
posta não gira em torno da diferença racional, pois que um homem o faz no
entre esses tipos, pois um homem seu próprio interesse e converte-se num 1134 b
poderia até deitar-se com uma mulher, tirano. O magistrado, por outro lado, é
20 sabendo quem ela é, sem que no entan- um protetor da justiça e, por conse-
to o motivo de seu ato fosse uma esco- guinte, também da igualdade. E, visto
lha deliberada, mas a paixão. Esse supor-se que ele não possua mais do
homem age injustamente, por conse- que a sua parte, se é justo (porque não
guinte, mas não é injusto; e um homem atribui a si mesmo mais daquilo que é
pode não ser ladrão apesar de ter rou- bom em si, a menos que tal quinhão
bado, nem adúltero apesar de ter seja proporcional aos seus méritos - 5
cometido adultério; e analogamente de modo que é para outros que traba-
em todos os outros casos. lha, e por essa razão os homens, como
Ora, já mostramos anteriormente mencionamos anteriormente 7 o, dizem
como o recíproco se relaciona com o ser a justiça "o bem de um outro"), ele
justo 69; mas não devemos esquecer deve, portanto, ser recompensado, e
que o que estamos procurando não é sua recompensa é a honra e o privilé-
apenas aquilo que é justo incondicio- gio; mas aqueles que não' se contentam
nalmente, mas também a justiça políti- com essas coisas tornam-se tiranos.
ca. Esta é encontrada entre homens A justiça de um amo e a de um pai
que vivem em comum tendo em vista a não são a mesma que a justiça dos
auto-suficiência, homens que são livres cidadãos, embora se assemelhem a ela,
e iguais, quer proporcionalmente, quer pois não pode haver justiça no sentido
aritmeticamente, de modo que entre os incondicional em relação a coisas que
que não preenchem esta condição não nos pertencem, mas o servo de um /0
existe justiça política, mas justiça num homem e o seu filho, até atingir certa
sentido especial e por analogia. idade e tornar-se independente, são,
30 Com efeito, a justiça existe apenas por assim dizer, uma parte dele. Ora,
entre homens cujas relações mútuas ninguém fere voluntariamente a si
são governadas pela lei; e a lei existe mesmo, razão pela qual também não
para os homens entre os quais há injus- pode haver injustiça contra si próprio.
tiça, pois a justiça legal é a discrimi- Portanto, não é em relações dessa
nação do justo e do injusto. E, havendo espécie que se manifesta a justiça ou
injustiça entre homens, também há injustiça dos cidadãos; pois, como
açôes injustas (se bem que do fato de vimos 71, ela se relaciona com a lei e
ocorrerem açôes injustas entre eles
70 1130 a 3. (N. do T.)
691132b21-1133b28.(N.doT.) 711134a30.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - V 131
vimos 72, são pessoas que têm partes que para com nossos filhos e servos.
iguais em governar e ser governadas. Trata-se, nesse caso, de justiça domés-
tica, a qual, sem embargo, .também di-
72 1134 a 2ó-28. (N. do T.) fere da justiça política.
7
Da justiça política, uma parte é ambas sejam igualmente mutáveis. E
natural e outra parte legal: natural, em todas as outras coisas a mesma dis-
aquela que tem a mesma força onde tinção será aplicável: por natureza, a
20 quer que seja e não existe em razão de mão direita é mais forte; eno entanto é
pensarem os homens deste ou daquele possível que todos os homens venham
modo; legal, a que de início é indife- a tornar-se ambidestros.
rente, mas deixa de sê-lo depois que foi As coisas que são justas em virtude
estabelecida: por exemplo, que o resga- da convenção e da conveniência asse-
te de um prisioneiro seja de uma mina, melham-se a medidas, pois que as 1135 a
ou que deve ser sacrificado um bode e medidas para o vinho e para o trigo
não duas ovelhas, e também todas as não são iguais 'em toda parte, porém
leis promulgadas casos particula- maiores nos mercados por atacado e
res, como a que mandava oferecer menores nos retalhistas. Da mesma
sacrifícios em honra de Brásidas 73, e forma, as coisas que são justas não por
as prescrições dos decretos. natureza, mas por decisão humana,
Ora, alguns pensam que toda justiça não são as mesmas em toda parte. E as
é desta espécie, porque as coisas que próprias constituições não são as mes-
25· são por natureza, são imutáveis e em mas, conquanto só haja uma que é, por
toda parte têm a mesma força (como o natureza, a melhor em toda parte.
fogo, que arde tanto aqui como na Pér- Das coisas justas e legítimas, cada 5
sia), ao passo que eles observam alte- uma se relaciona como o universal
rações nas coisas reconhecidas como para com o seus casos particulares;
justas. Isso, porém, não é verdadeirõ pois as coisas praticadas são muitas,
de modo absoluto mas verdadeiro em mas dessas cada uma é uma só, visto-
certo sentido; ou melhor, para os deu- que é universal.
ses talvez não seja verdadeiro de modo Há uma diferença entre o ato de
algum, enquanto para nós existe algo injustiça e o que é injusto, assim como
que é justo mesmo por natureza, embo- entre o ato de justiça e o que é justo.
ra seja mutável. Isso não obstante, Como efeito, uma coisa é injusta por
algumas coisas o são por natureza e natureza ou por lei; e essa mesma
outras, não. coisa, depois que alguém a faz', é um /0
Com toda a evidência percebe-se ato de injustiça; antes disso, porém, é
JO que espécie de coisas, entre as que são apenas injusta. E do mesmo modo
capazes de ser de outro modo, é por quanto ao ato de justiça (se bem que a
natureza e que espécie não o é, mas expressão geralmente usada seja "ação
por lei e convenção, admitindo-se que justa", e "ato de justiça" se aplique à
correção do ato de injustiça).
73 Tucídides. II. (N. do T.) Cada uma destas coisas deve ser
132 ARISTÓTELES
8
/5 Sendo os atos justos e injustos tais dade. Por conseguinte, aquilo que se
como os descrevemos, um homem age faz na ignorância, ou embora feito com
de maneira justa ou injusta sempre que conhecimento de causa, não depende
pratica tais atos voluntariamente. do agente, ou que é feito sob coação, é
Quando os pratica involuntariamente,' involuntário (pois há, até, muitos pro-
seus atos não são justos nem injustos, cessos naturais que nós cientemente
salvo por acidente, isto é, porque ele realizamos e experimentamos, e ne-
fez coisas que redundam em justiças nhum dos quais, no entanto, se pode 1135 b
ou injustiças. É o caráter voluntário ou qualificar de voluntário ou involun-
involuntário do ato que determina se tário, como, por exemplo, envelhecer
. ele é justo ou injusto, pois, quando é ou morrer).
voluntário, é censurado, e pela mesma Mas tanto no caso dos atos justos
razão se torna um ato de injustiça; de como dos injustos, a injustiça ou justi-
forma que existem coisas que são ça pode ser apenas acidental; pois
injustas, sem que no entanto sejam pode acontecer que um homem restitua·
atos de injustiça, se não estiver pre- involuntariamente ou por medo um 5
sente também a voluntariedade. valor depositado em suas mãos, e
nesse caso não se deve dizer que ele
Por voluntário entendo, como já praticou um ato de justiça ou que agiu
disse antes 7 4, tudo aquilo que um
justamente, a não ser de modo aciden-
homem tem o poder de fazer e que faz tal. Da mesma forma, aquele que sob
com conhecimento de causa, isto é, coação e contra a sua vontade deixa de
sem ignorar nem a pessoa atingida restituir o valor depositado, agiu injus-
pelo ato, nem o instrumento usado, tamente e cometeu um ato de injustiça,
nem o fim que há de alcançar (por mas apenas por acidente.
exemplo, em quem bate, com que e
Dos atos voluntários, praticamos al- /0
com que fim); além disso, cada um guns por escolha e outros não; por
desses atos 'não deve ser acidental nem escolha, os que praticamos após deli-
forçado (se, por exemplo, A toma a
berar, e por não escolha os que prati-
de B e com ela bate em C, B não camos sem deliberação prévia.
agiu voluntariamente, pois o ato não Há, por conseguinte, três espécies de
dependia dele).
dano nas transações entre um homem e
A pessoa atingida pode ser o pai do outro. Os que são infligidos por igno-
agressor, e este pode saber que bateu rância são enganos quando a pessoa
num homem ou numa das pessoas pre- atingida pelo ato, o próprio ato, o
30 sentes, ignorando, no entanto, que se instrumento ou o fim a ser alcançado
trata de seu pai. Uma distinção do são diferentes do que o agente supõe:
mesmo gênero se deve fazer quanto ao ou o agente pensou que não ia atingir
fim da ação e à ação em sua totali- ninguém, ou que não ia atingir com
determinado objeto, ou a determinada
74 1109 b 35 - 1II1 a 24. (N. do T.) pessoa, ou com o resultado que lhe
ÉTICA A NICÔMACO - V 133
J5 parecia provável (por exemplo, se ati- não; pois foi a sua aparente injustiça
rou algo não com o propósito de ferir, que provocou a ira. Com efeito, eles
mas de incitar, ou se a pessoa atingida não disputam sobre a ocorrência do
ou o objeto atirado não eram os que ato (como nas transações comerciais
ele supunha). Ora, (1) quando o dano em que uma das duas partes forçosa-
ocorre contrariando o que era razoa- mente agiu de má fé), a menos que o
velmente de esperar, é um infortúnio. façam por esquecimento; mas, estando
(2) Quando não é contrário a uma concordes a respeito fato, disputam
expectativa razoável, mas tampouco sobre qual deles está com a justiça (ao
implica vício, é um engano (pois o passo que um homem que deliberada-
agente comete um engano quando a mente prejudicou a outro não pode
falta procede dele, mas é vítima de um ignorar tal coisa); de forma que um
acidente quando a causa lhe é exte- pensa estar sendo injustamente tratado
rior). (3) Quando age com o conheci- e o outro discorda dessa opinião.
mento do que faz, mas sem deliberação Mas, se um homem prejudica a 1136a
9
10 Dando como suficientemente defini- Fizeste-lo por vosso querer, ou
dos o que sejam cometer injustiça e ser [com pesar de ambos? 7 5
vítima dela, pode-se perguntar (l) se a
verdade está expressa nas palavras Será mesmo possível sermos tratados 15
mais que prejudicar voluntariamente a discutir restam ainda duas: (3) se quem
alguém, e "voluntariamente" significa age injustamente é o que confe-
"com conhecimento da pessoa atingida re a um outro um quinhão superior ao
pela ação, do instrumento e da manei- que lhe cabe ou o que ficou com o qui-
ra pela-qual se age", e o homem incon- nhão excessivo, e (4) se é possível tra-
tinente prejudica voluntariamente a si tar injustamente a si mesmo. Estas
mesmo, não só ele será injustamente questões são mutuamente conexas,
tratado por seu querer como também porquanto se a primeira alternativa é
será possível tratar si mesmo injusta- possível e quem age injustamente é o
mente. (Esta possibilidade de tratar aquinhoador e não o homem que ficou
1136 b injustamente a si mesmo é uma das com a parte excessiva, então, se um
questões a serem debatidas.)
Por outro lado, um homem pode 7 6 Ilíada. V], 2360 (No do To)
ÉTICA A NICÔMACO - V 135
ção de caráter, do mesmo modo que a alguns seres (como aos deuses, presu-
exercer a medicina e curar não consiste mivelmente) não é possível ter uma
em aplicar ou deixar de aplicar a faca, parte excessiva de tais coisas, e a
nem em usar ou deixar de usar medica- outros, isto é, os incuravelmente maus,
mentos, mas em fazer essas coisas de nem a mais mínima parte seria benéfi-
certa maneira. ca, mas todos os bens dessa espécie
Os atos justos ocorrem entre pes- são nocivos, enquanto para outros são
soas que participam de coisas boas em benéficos dentro de certos limites.
si e podem ter uma parte excessiva ou Donde se conclui que a justiça é algo 30
excessivamente pequena delas; porque essencialmente humano.
10
a assunto que se segue é a eqüidade justiça legal. A razão disto é que toda
e o eqüitativo e respec- lei é universal, mas a respeito de certas
tivas relações com a justiça e o justo. coisas não é possível fazer uma afirma-
Porquanto essas coisas não parecem ção universal que seja correta. Nos
ser absolutamente idênticas nem diferir casos, pois, em que é necessário
genericamente entre si; e, embora lou- de modo universal, mas não é possível 15
35 vemos por vezes o eqüitativo e o 'fazê-lo corretamente, a lei considera o
homem eqüitativo (e até aplicamos caso mais usual, se bem que não ignore
esse termo como expressão laudatória a possibilidade de erro. E nem por isso
a exemplo de outras virtudes, signifi- tal modo de proceder deixa de ser cor-
cando por que uma coisa reto, pois o erro não está na lei, nem no
é melhor), em outras ocasiões, pen- legislador, mas na natureza da própria
sando bem, nos parece estranho que o coisa, já que os assuntos práticos são
eqüitativo, embora não se identifique dessa espécie por natureza..
com o justo, seja digno de louvor; por- Portanto, quando a lei se expressa
que, o justo e o eqüitativo são dife- universalmente e surge um caso que
rentes, um deles não é bom; e, se são não é abrangido pela declaração uni- 20
ambos bons, têm de ser a mesma coisa. versaI, é justo, uma vez que o legisla-
São estas, pois, aproximadamente, dor falhou e errou por excesso de
as considerações que dão origem ao simplicidade, corrigir a omissão - em
problema em torno do eqüitativo. Em outras palavras, dizer o que o próprio
certo sentido, todas elas são corretas e legislador teria dito se estivesse presen-
não se opõem umas às outras; porque te, e que teria incluído na lei se tivesse
o eqüitativo, embora superior a uma conhecimento do caso.
espécie de justiça, é justo, e não é Por isso o eqüitativo é justo, supe- 25
como coisa de classe diferente que é rior a uma espécie de justiça - não à
melhor do que o justo. A mesma coisa, justiça absoluta, mas ao erro prove-
pois, é justa e eqüitativa, e, embora niente do caráter absoluto da disposi-
to ambos sejam bons, o eqüitativo é ção legal. E essa é a natureza do eqüí-
superior. tativo: uma correção da lei quando ela
a que faz surgir o problema é que o é deficiente em razão da sua universali-
eqüitativo é justo, porém não o legal- dade. E, mesmo, é esse o motivo por
mente justo, e sim uma correção da que nem todas as coisas são determi-
ÉTICA NICÔMACO - V 137
nadas pela lei: em torno de algumas é do que uma espécie de justiça. Eviden-
impossível legislar, de modo que se faz cia-se também, pelo que dissemos, 35
necessário um decreto. Com efeito, quem seja o homem eqüitativo: o
quando a coisa é indefinida, a regra homem que escolhe e pratica tais atos,
30 também é indefinida, como a régua de que não se aferra aos seus direitos em
chumbo usada para ajustar as moldu- mau sentido, mas tende a tomar menos 1138"
ras lésbicas: a régua adapta-se à forma do que seu quinhão embora tenha a lei
da pedra e não é rígida, exatamente por si, é eqüitativo; e essa disposição
como o decreto se adapta aos fatos. de caráter é a eqüidade, que é uma
Torna-se assim bem claro o que seja espécie de justiça e não uma diferente
o eqüitativo, que ele é justo e é melhor disposição de caráter.
11
atos específicos de injustiça; mas nin- conseguinte, ser injustamente tratado é 1138 b
guém pode cometer adultério com sua menos mau, porém nada impede que
própria esposa, nem assaltar a sua pró- seja acidentalmente um mal maior.
pria casa ou furtar os seus próprios Isso, contudo, não interessa à teoria,
bens. que considera a pleuris um mal maior
De um modo geral, a questão: "pode do que um tropeção, muito embora
um homem tratar injustamente a si este último possa tomar-se acidental-
mesmo?" é também respondida pela mente mais grave, se a conseqüente
distinção que aplicamos a outra per- queda é causa de ser o homem captu-
gunta: "pode um homem ser injusta- rado ou morto pelo inimigo.
mente tratado por seu querer? 78" Metaforicamente e em virtude de 5
É também evidente que são más uma certa analogia, há uma justiça
ambas as coisas: ser injustamente não entre um homem e ele mesmo, mas
tado e agir injustamente; porque uma entre certas partes suas. Não se trata,
significa ter menos e a outra ter mais no entanto, de uma justiça de qualquer
30 do que a quantidade mediana, que espécie, mas daquela que prevalece
desempenha aqui o mesmo papel que o entre amo e escravo ou entre marido e
saudável na arte médica e a boa condi- mulher. Pois tais são as relações que a
ção na arte do treinamento físico. Não parte racional da alma guarda para
obstante, agir injustamente é pior, pois com a parte irracional; e é levando em
envolve vício e merece censura. E tal conta essas partes que muitos pensam 10
. vício ou é da espécie completa e irres- que um homem pode ser injusto para
trita, ou pouco menos (devemos admi- consigo mesmo, a saber: porque as
tir esta segunda alternativa, porque partes em apreço podem sofrer alguma
nem toda ação injusta, voluntária im- coisa contrária aos seus desejos. Pen-
plica a injustiça como disposição de sa-se, por isso, que existe uma justiça
caráter), enquanto ser injustamente mútua entre elas, como entre gover-
tratado não envolve vício e injustiça na nante e governado.
35 própria pessoa. Em si mesmo, por E aqui termina a nossa exposição da 15
justiça e das outras virtudes - isto é,
18 Cf.1136a31-1136b5.(N.dol.) das outras virtudes morais.
LIVRO VI
141
Como dissemos anteriormente que que se defina o que sejam a justa regra
se deve preferir o meio-termo e não o e o padrão que a determina.
excesso ou a falta, e que o meio-termo Dividimos as virtudes da alma, 35
é determinado pelos ditames da reta dizendo que algumas são virtudes do
20 razão, vamos discutir agora a natureza caráter e outras do intelecto. Agora
desses ditames. que acabamos de discutir em detalhe 1139
termos entre o excesso e a falta, e que de razão. Façamos uma distinção sim-
estão em consonância com a reta ples no interior da primeira, admitindo
25 razão. Mas, assim dita a coisa, embora que sejam duas as partes que concebe-
verdadeira, não é de modo algum evi- ram um princípio racional: uma pela
qual contemplamos as coisas cujas
dente; pois não só aqui como em todas
causas determinantes são invariáveis, e
as outras ocupações que são objetos de
outra pela qual contemplamos as coi-
conhecimento é correto afirmar que
sas variáveis; porque, quando dois
não devemos esforçar-nos nem relaxar
objetos diferem em espécie, as partes /0
nossos esforços em demasia nem de- da alma que correspondem a cada um
masiadamente pouco, mas em grau deles também diferem em espécie, visto
mediano e conforme dita a reta razão. ser por uma certa semelhança e afini-
Entretanto, se um homem possuísse dade com os seus objetos que elas os
apenas esse conhecimento, não saberia conhecem. Chamemos científica a uma
mais nada: por exemplo, não sabe- dessas partes e calculativa à outra,
30 ríamos que espécies de medicamento pois o mesmo são deliberar e calcular,
aplicar ao seu corpo se alguém disses- mas ninguém delibera sobre o invariá-
se: "todos aqueles que a arte médica vel. Por conseguinte, a calculativa é
prescreve e que estão de acordo com a uma parte da faculdade que concebe
prática de quem possui a arte". É um princípio racional. Devemos, 15
necessário, pois, com respeito às dispo- assim, investigar qual seja o melhor es-
sições da alma, não só que se faça essa tado de cada uma dessas duas partes,
declaração verdadeira, mas também pois nele reside a virtude de cada uma.
142 ARISTÓTELES
2
A virtude de uma coisa é relativa ao nação de intelecto e de caráter. O inte- 35
seu funcionamento apropriado. Ora, lecto em si mesmo, porém, não move
na alma existem três coisas que contro- . coisa alguma; só pode fazê-lo o inte-
lam a ação e a verdade: sensação, lecto prático que visa a um fim qual-
razão e desejo. quer. E isto vale também para o inte- 1139b
Destas três, a sensação não é princí- lecto produtivo, já que todo aquele que
20 pio de nenhuma ação: bem o mostra o produz alguma coisa o faz com um fim
fato de os animais inferiores possuírem em vista; e a coisa produzida não é um
sensação, mas não participarem da fim no sentido absoluto, mas apenas
ação. um fim dentro de uma relação particu-
A afirmação e a negação no racio- lar, e o fim de uma operação particu-
cínio correspondem, no desejo, ao bus- lar. Só o que se pratica é um fim irres-
car e ao fugir; de modo que, sendo a trito; pois a boa ação é um fim ao qual
virtude moral uma disposição de carâ- visa o desejo.
ter relacionada com a escolha, e sendo Portanto, a escolha ou é raciocínio
a escolha um desejo deliberado, tanto desiderativo ou desejo raciocinativo, e 5
25 deve ser verdadeiro o raciocínio como a origem de uma ação dessa espécie é
reto o desejo para que a escolha seja um homem. (Deve-se observar que
acertada, e o segundo deve buscar exa- nenhuma coisa passada é objeto de
tamente o que afirma o primeiro. escolha; por exemplo, ninguém escolhe
Ora, esta espécie de intelecto e de ter saqueado Tróia, porque ninguém
verdade é prática. Quanto ao intelecto delibera a respeito do passado, mas só
contemplativo, e não prático nem pro- a respeito do que está para acontecer e
dutivo, o bom e o mau estado são, pode ser de outra forma, enquanto o
respectivamente, a verdade e a falsi- que é passado não pode deixar de
dade (pois essa é a obra de toda a parte haver ocorrido; por isso Agatão tinha
30 racional); mas da parte prática e inte- razão em dizer:
lectual o bom estado é a concordância Pois somente isto é ao próprio Deus lO
da verdade com o reto desejo. [vedado:
A origem da ação - sua causa efi- O fazer não sucedido o que uma vez
ciente, não final - é a escolha, e a da [aconteceu.
escolha é o desejo e o raciocínio com Como acabamos de ver, a obra de
um fim em vista. Eis aí por que a esco- ambas as partes intelectuais é a verda-
lha não pode existir nem sem razão e de. Logo, as virtudes de ambas serão
intelecto, nem sem uma disposição aquelas disposições segundo as quais
moral; pois a boa ação e o seu contrá- cada uma delas alcançará a verdade
rio não podem existir sem uma combi- em sumo
3
Comecemos, pois, pelo princípio, ções. Dê-se por estabelecido que as 15
discutindo mais uma vez essas disposi- disposições em virtude das quais a
ÉTICA A NICÕMACO - VI 143
alma possui a verdade, quer afirman- bém nos Analíticos 79. Com efeito, o
do, quer negando, são em número de ensino procede às vezes por indução e
cinco: a arte, o conhecimento cientí- outras vezes por silogismo. Ora, a
fico, a sabedoria prática, a sabedoria indução é o ponto de partida que o
filosófica e a razão intuitiva (não próprio conhecimento do universal
incluímos o juízo e a opinião porque pressupõe, enquanto o silogismo pro-
estes podem enganar-se). cede dos universais. Existem, assim,
Ora, o que seja o conhecimento pontos de partida de onde procede o
ctenufico, se quisermos exprimir-nos silogismo e que não são alcançados 30
com exatidão e não nos guiar por por este. Logo, é por indução que são
meras analogias, evidencia-se pelo que adquiridos.
segue. Todos nós supomos que aquilo Em suma, o conhecimento científico
20 que sabemos não é capaz de ser de é um estado que nos toma capazes de
outra forma. Quanto às coisas que demonstrar, e possui as outras caracte-
podem ser de outra forma, não sabe- rísticas limitativas que especificamos
mos, quando estão fora do nosso nos Analiticosw, pois é quando um
campo de observação, se existem ou homem tem certa espécie de convic-
não existem. Por conseguinte, o objeto ção, alêm de conhecer os pontos de
de conhecimento científico existe ne- partida, que possui conhecimento cien-
cessariamente; donde se segue que é tífico. E, se estes não lhe forem mais
eterno, pois todas as coisas que exis- bem conhecidos do que a conclusão,
tem por necessidade no sentido abso- sua ciência será puramente acidental.
luto do termo são eternas, e as coisas Com isto damos por terminada 35
eternas são ingênitas e imperecíveis. nossa exposição do conhecimento
25 Por outro lado, julga-se que toda científico.
ciência pode ser ensinada e seu objeto,
aprendido. E todo ensino parte do que 79 Segundos Analíticos. 71 a 1. (N. do T.)
já se conhece, como sustentamos tam- 80 Ibid., 71 b 9-23. (N. do T.)
com as que o fazem de acordo com a o acaso, e o acaso ama a arte". Logo, 20
natureza (pois essas têm sua origem como já dissemos, a arte é uma dispo-
em si mesmas). sição que se ocupa de produzir, envol-
Diferindo, pois, o produzir e o agir, vendo o reto raciocínio; e a carência de
a arte deve ser uma questão de produ- arte, pelo contrário, é tal disposição
zir e não de agir; e em certo sentido, o acompanhada de falso raciocínio. E
acaso e a arte versam sobre as mesmas ambas dizem respeito às coisas que
coisas. Como diz Agatão: "A arte ama podem ser diferentemente.
5
No que tange à sabedoria prática, que se pode fazer é capaz de ser
25 podemos dar-nos conta do que seja diferentemente, nem arte, porque o agir
considerando as pessoas a quem a e o produzir são duas espécies diferen-
atribuímos. tes de coisa. Resta, pois, a alternativa
Ora, julga-se que é cunho caracte- de ser ela uma capacidade verdadeira e
rístico de um homem dotado de sabe- raciocinada de agir com respeito às 5
doria prática o poder deliberar bem coisas que são boas ou más para o
sobre o que é bom e conveniente para homem.
ele, não sob um aspecto particular, Com efeito, ao passo que o produzir
como por exemplo sobre as espécies de tem uma finalidade diferente de si
coisas que contribuem para a saúde e o mesmo, isso não acontece com o agir,
pois que a boa ação é o seu próprio
vigor, mas sobre aquelas que contri-
fim. Daí o atribuirmos sabedoria prá-
buem para a vida boa em geral. Bem o
tica a Péricles e homens como ele, por-
mostra o fato de atribuirmos sabedoria
que percebem o que é bom para si mes-
prática a um homem, sob um aspecto
mos e para os homens em geral: 10
particular. quando ele calculou bem
pensamos que os homens dotados de
com vistas em alguma finalidade boa tal capacidade são bons administra-
30 que não se inclui entre aquelas que são dores de casas e de Estados. (E por
objeto de alguma arte. isso mesmo damos à temperança o
Segue-se daí que, num sentido geral, nome de subentendendo que
também o homem que é capaz de deli- ela preserva a nossa sabedoria
berar possui sabedoria prática. Ora,
ninguém delibera sobre coisas que não Ora, o que a temperança preserva é
podem ser de outro modo, nem sobre um juízo da espécie que descrevemos.
as que lhe é impossível fazer. Por Porquanto nem todo e qualquer juízo é
conseguinte, como o conhecimento destruído e pervertido pelos objetos
científico envolve demonstração, mas agradáveis ou dolorosos: não o é, por
não há demonstração de coisas cujos exemplo, o juízo a respeito de ter ou
primeiros princípios são variáveis não ter o triângulo seus ângulos iguais
(pois todas elas poderiam ser diferente- a dois ângulos retos, mas apenas os 15
35 mente), e como é impossível deliberar juízos em tomo do que se há de fazer.
sobre coisas que são por necessidade, a Com efeito, as causas de onde se origi-
b sabedoria prática não pode ser ciência, na o 'que se faz consistem nos fins visa-
nem arte: nem ciência, porque aquilo dos; mas o homem que foi pervertido
ÉTICA A NICÔMACO - VI 145
pelo prazer ou pela dor perde imediata- assim como nas outras virtudes, é exa-
mente de vista essas causas: não perce- tamente o contrário que acontece.
be mais que é a bem de tal coisa ou de- Torna-se evidente, pois, que a sabe-
vido a tal coisa que deve escolher e doria prática é uma virtude e não uma
fazer aquilo que escolhe, porque o arte. E, corno são duas as partes da 25
vício anula a causa originadora da alma que se guiam pelo raciocínio, ela
ação.) deve ser a virtude de uma dessas duas,
20 A sabedoria prática deve, pois, ser isto é, daquela parte que forma opi-
uma capacidade verdadeira e racioci- niões; porque a opinião versa sobre o
nada de agir com respeito aos bens variável, e da mesma forma a sabedo-
humanos. Mas, por outro lado, embora ria prática. Sem embargo, ela é mais
na arte possa haver uma excelência, na do que uma simples disposição racio-
sabedoria prática ela não existe; e em nal: mostra-o o fato de que tais dispo- 30
arte é preferível quem erra voluntaria- sições podem ser esquecidas, mas a
mente, enquanto na sabedoria prática, sabedoria prática, não.
6
o conhecimento científico é um princípios objetos de sabedoria filosó-
juízo sobre coisas universais e necessá- fica, pois é característico do filósofo
rias, e tanto as conclusões da demons- buscar a demonstração de certas coi-
tração como o conhecimento científico sas. Se, por conseguinte, as disposições
decorrem de primeiros princípios (pois da mente pelas quais possuímos a ver-
ciência subentende apreensão de uma dade e jamais nos enganamos a res-
base racional). Assim sendo, o pri- peito de coisas invariáveis ou mesmo
variáveis - se tais disposições, digo,
meiro princípio de que decorre o que é são o conhecimento científico, a sabe-
cientificamente conhecido não pode doria prática, a sabedoria filosófica e a
ser objeto de ciência, nem de arte, nem razão intuitiva, e não pode tratar-se de
35 de sabedoria prática; pois o que pode nenhuma das três (isto é, da sabedoria
ser cientificamente conhecido é passí- prática, do conhecimento científico ou
vel de demonstração, enquanto a arte e da sabedoria filosófica), só resta uma
1141 a a sabedoria prática versam sobre coi- alternativa: que seja a razão intuitiva
sas variáveis. Nem são esses primeiros que apreende os primeiros princípios.
7
A sabedoria, nas artes, é atribuída campo particular ou sob qualquer
/0 aos seus mais perfeitos expoentes, por outro aspecto limitado, como diz Ho-
exemplo, a Fídias como escultor e a mero no Margites:
Policleto como retratista em pedra; e Nem lavrador, nem mesmo cavador 15
por sabedoria, aqui, não entendemos
fizeram os deuses este homem,
outra coisa senão a excelência na arte. Nem sábio em outra coisa qualquer.
Mas a certas pessoas consideramos sá-
bias de modo geral e não em algum É pois evidente que a sabedoria deve
146 ARISTÓTELES
cerá o que decorre dos primeiros prin- mais conspícuo são os corpos de que
cípios, senão que também possuirá a foram povoados os céus ..De quanto se
verdade a respeito desses princípios. disse resulta claramente que a sabedo-
Logo, a sabedoria deve ser a razão ria filosófica é um conhecimento cien-
intuitiva combinada com o conheci- tífico combinado com a razão intuitiva
mento científico - uma ciência dos daquelas coisas que são as mais eleva-
mais elevados objetos que recebeu, por das por natureza. Por isso dizemos que
assim dizer, a perfeição que lhe é Anaxágoras, Tales e os homens seme-
própria. lhantes a eles possuem sabedoria filo-
Dos mais elevados objetos, dizemos sófica, mas não prática, quando os 5
nós, porque seria estranho se a arte vemos ignorar o que lhes é vantajoso; e
política ou a sabedoria prática fosse o
melhor dos conhecimentos, uma vez também dizemos que eles conhecem
que o homem não é a melhor coisa do coisas notáveis, admiráveis, difíceis e
mundo. Ora, se o que é saudável ou divinas, mas improfícuas. Isso, porque
bom difere para os homens e os peixes, não são os bens humanos que eles
mas o que é branco ou reto é sempre o procuram.
mesmo, qualquer um diria que o que é A sabedoria prática, pelo contrário,
sábio é o mesmo, mas o que é pratica- versa sobre coisas humanas, e coisas
mente sábio varia; pois é àquele que que podem ser objeto de deliberação;
observa bem as diversas que lhe pois dizemos que essa é acima de tudo
dizem respeito que atribuímos sabedo- a obra do homem dotado de sabedoria
ria prática, e é a ele que confiaremos prática: deliberar bem. Mas ninguém /0
tais assuntos. Por isso dizemos que até delibera a respeito de coisas invariá-
alguns animais inferiores possuem sa- veis, nem sobre coisas que não tenham
bedoria prática, isto é, aqueles que uma fmalidade, e essa finalidade, um
mostram possuir um certo poder de bem que se possa alcançar pela ação.
previsão no que toca à sua própria De modo que delibera bem no sentido
vida. irrestrito da palavra aquele que, ba-
É evidente, por outro lado, que a seando-se no cálculo, é capaz de visar
sabedoria prática e a arte política não à melhor, para o homem, das coisas
podem ser a mesma coisa; porque, se alcançáveis pela ação.
devemos chamar sabedoria filosófica à Tampouco a sabedoria prática se
disposição mental que se ocupa com os apenas com universais. Deve /5
30' interesses pessoais de um homem, também reconhecer os particulares,
haverá muitas sabedorias filosóficas. pois ela é prática, e a ação versa sobre
Não existirá uma relativa ao bem de os particulares. É por isso que alguns
todos os animais (assim como não que não sabem, e especialmente os que
existe uma arte médica para todas as possuem experiência, são mais. práti-
coisas existentes), mas uma sabedoria cos do que outros que sabem; porque,
filosófica diferente sobre o bem de se um homem soubesse que as carnes
cada espécie. leves são digestíveis e saudáveis, mas
E se argumentarem dizendo que o ignorasse que espécies de carnes são
homem é o melhor dos animais, isso leves, esse homem não seria capaz de
ÉTICA A NICÔMACO - VI 147
8
A sabedoria política e a prática são Se como parte do numeroso exército
a mesma disposição mental, mas sua [obteria sem esforço
essência não é a mesma. Da sabedoria Um quinhão igual? . . 5
9
Há uma diferença entre investigação lenta. Do mesmo modo, a vivacidade
e deliberação, pois esta última é a intelectual também difere da exce-
investigação de uma espécie particular lência na deliberação; é ela uma espé-
de coisa. Devemos apreender igual- cie de habilidade em conjeturar.
mente a natureza da excelência na deli- Não se pode, por outro lado, identi-
beração: se ela é uma forma de ficar a excelência na deliberação com
cimento científico, uma opinião, a uma opinião de qualquer espécie que
habilidade de fazer conjeturas ou algu- seja. Mas, como o homem que delibera
ma outra espécie de coisa. mal comete um erro, enquanto o que
1142 b Não se trata de conhecimento cientí- delibera bem o faz corretamente, claro
fico. porque os homens não investigam está que a excelência no deliberar é
as coisas que conhecem, ao passo que uma espécie de correção não, /0
esta ainda não é asserção, mas a opi- tampouco isso é a excelência no delibe-
nião o é, tendo já ultrapassado a fase rar - essa disposição em virtude da
da investigação; e o homem que delibe- qual atingimos o que devemos, se bem
15 ra, quer o faça bem, quer mal, busca que não pelo meio correto.
alguma coisa e calcula. Por outro lado (3), é possível alcan- 25
10
A inteligência, da mesma torma, e a nas sobre aquelas que podem tomar-se
perspicácia, em virtude das quais se assunto de dúvidas e deliberação. Por-
diz que os homens são inteligentes ou tanto, os seus objetos são os mesmos
1143 a perspicazes, nem se identificam de que os da sabedoria prática; mas inteli-
todo com a opinião ou conhecimento gência e sabedoria prática não são a
científico (pois nesse caso todos seriam mesma coisa. Esta última emite or-
homens inteligentes), nem são elas uma dens, visto que o seu fim é o 'que se
das ciências particulares, como a me- deve ou não se deve fazer; a inteli- 10
dicina, que é a ciência da saúde, ou a gência, pelo contrário, limita-se a
geometria, que é a ciência das grande- gar. (Inteligência é o mesmo que pers-
5 zas espaciais. Com efeito, a inteli- picácia, e homens inteligentes, o
gência nem versa sobre as coisas eter- mesmo que homens perspicazes.)
nas e imutáveis, nem sobre toda e Ora, ela não é nem a posse, nem a
. qualquer coisa que vem a ser, mas ape- aquisição da sabedoria prática; mas,
150 ARISTÓTELES
11
causa é natural. [Donde se segue que a tica. Com efeito, essas pessoas enxer-
razão intuitiva é tanto um começo gam bem por que a experiência lhes
como um fim, pois as demonstrações deu um terceiro olho.
partem destes e sobre estes versam.] Acabamos de mostrar, portanto, que 15
Por isso devemos acatar, não menos coisas são a sabedoria prática e a sabe-
que as demonstrações, os aforismos e doria filosófica, em que consistem uma
opiniões não demonstradas de pessoas e outra, e acrescentamos que cada uma
experientes e mais velhas, assim como é a virtude de uma parte diferente da
das pessoas dotadas de sabedoria prâ- alma.
12
Mas alguém poderia perguntar de outros que a têm, e seria suficiente
que servem essas faculdades da mente, fazer o que costumamos fazer com res-
já que (I) a sabedoria filosófica não peito à saúde: embora desejemos gozar
considera nenhuma das coisas que tor- saúde, não nos dispomos por isso a
nam um homem feliz (pois não diz res- aprender a arte da medicina.
20 peito às coisas que se geram); e quanto (3) Por outro lado, pareceria estra-
à sabedoria prática, embora trate des- nho que a sabedoria prática, sendo
sas coisas, para que necessitamos inferior à filosófica, tivesse autoridade
dela? A sabedoria prática é a disposi- sobre ela, como parece implicar o fato
ção da mente que se ocupa com as coi- de que a arte que produz uma coisa
sas justas, nobres e boas para o qualquer exerce o mando e o governo
homem, mas essas são as coisas cuja relativamente a essa coisa.
prática é característica de um homem São estas, pois, as questões que 35
bom, e não nos tomamos mais capazes cumpre discutir, pois até agora nos
25 de agir pelo fato de conhecê-las se as limitamos a expor as dificuldades.
virtudes são disposições de carâter, do (I) Antes de tudo, diremos que 11440
mesmo modo que não somos mais essas disposições de caráter. devem ser
capazes de agir pelo fato de conhecer dignas de escolha porque são as virtu-
as coisas sãs e saudáveis não no senti- des das duas partes da alma respecti-
do de produzirem a saúde, mas no de vamente, e o seriam ainda que nenhu-
serem conseqüência dela. Efetiva- ma delas produzisse o que quer que
mente, a simples posse da arte médica fosse.
ou da ginástica não nos' toma mais (2) Em segundo lugar, elas de fato
capazes de agir. produzem alguma coisa - não,
Mas (2) se dissermos que um porém, como a arte médica produz
homem deve possuir sabedoria prática, saúde, mas como a saúde produz
não para conhecer as verdades morais, saúde. É assim que a sabedoria filosó-
mas para tomar-se bom, a sabedoria fica produz felicidade; porque, sendo 5
prática nenhuma utilidade terá para os ela uma parte da virtude inteira, toma
30 que já são bons; e, por outro lado, de um homem feliz pelo fato de estar na
nada serve ela para os que não pos- sua posse e de atualizar-se.
suem virtude. Com efeito, nenhuma (3) Por outro lado, a obra de um
diferença faz que eles próprios tenham homem só é perfeita quando está de
sabedoria prática ou que obedeçam a acordo com a sabedoria e com
152 ARISTÓTELES
a virtude moral; esta faz com que seja não as aprendemos da virtude e sim de
reto o nosso propósito; aquela, com outra faculdade. Devemos deter-nos
/0 que escolhamos os devidos meios. (Da um pouco nestes assuntos e falar deles·
quarta parte da alma, a nutritiva, não mais claramente.
existe nenhuma virtude dessa espécie, Existe uma faculdade que se chama
pois não depende dela fazer ou deixar habilidade, e tal é a sua natureza que 25
de fazer o que quer que seja.) tem o poder de fazer as coisas que con-
(4) Quanto a não sermos mais ca- duzem ao fim proposto e a alcançá-lo.
pazes de operar coisas nobres e justas Ora, se o fim nobre, a habilidade é
devido à sabedoria prática, devemos digna de louvor, mas se o fim for mau,
voltar um pouco atrás e partir do a habilidade será simples astúcia; por
seguinte princípio: isso chamamos de hábeis ou astutos os
Assim como dizemos que algumas próprios homens dotados de sabedoria
pessoas que praticam atos justos não prática. Esta não é a faculdade, porém
são necessariamente justas por isso - não existe sem ela, e esse olho da alma
referimo-nos às que praticam os atos não atinge o seu perfeito desenvolvi-
prescritos pela lei, quer involuntaria- mento sem o auxílio da virtude, como 30
/5 mente, quer devido à ignorância ou por já dissemoss> e como, aliás, é evidente.
alguma outra razão, mas não no inte- E a razão disto é que os silogismos em
resse dos próprios atos, embora seja torno do que se deve fazer começam
certo que tais pessoas fazem o que assim: "visto que o fim, isto é, o que é
devem e todas as coisas que o homem melhor, é de tal e tal natureza ... "
bem deve fazer - , parece que, do Admitamos, no interesse do argumen-
mesmo modo, para alguém ser bom é to, que ela seja qual for, mas só o
preciso encontrar-se em determinada homem bom a conhece verdadeira-
disposição quando pratica cada um mente, porquanto a maldade nos per- 35
20 desses atos: numa palavra, é preciso verte e nos leva a enganar-nos a res-
praticá-los em resultado de uma esco- peito dos princípios da ação. Donde
lha e no interesse dos próprios atos. está claro que não é possível possuir
Ora, a virtude torna reta a escolha, sabedoria prática quem não seja bom.
mas que coisas sejam aptas por natu-
reza a pôr em prática a nossa escolha 83 Linhas 6-26. (N. do T.)
13
b Devemos, por isso, voltar mais uma desde o momento de nascer somos JUS'
vez a considerar a virtude, pois nela se tos, ou capazes de nos dominar, ou
observa uma relação do mesmo gêne- bravos, ou possuímos qualquer outra
ro: assim como a sabedoria prática qualidade moral. Não obstante, anda-
está para a habilidade (nje sendo a mos em busca de outro bem que
mesma coisa, mas semelhante), a virtu- propriamente seja tal - queremos que
de natural está para a virtude na acep- essas qualidades existam em nós de
ção estrita do termo. Com efeito, todos outro modo. Pois que tanto as crianças
os homens pensam que, em certo senti- como os brutos têm as disposições
do, cada tipo de caráter pertence por naturais para essas qualidades, mas,
5 natureza aos que o manifestam, e que quando desacompanhadas da razão,
ÉTICA A NICÕMACO - VI
pouco mais longe, pois não é apenas a no seu interesse, porém não a ela.
disposição que concorda com a reta Além disso. sustentar a sua suprema-
razão, mas a que implica a presença da cia equivaleria a dizer que os deuses
reta razão, que é virtude: e a sabedoria são governados pela arte política por-
prática é a reta razão no tocante a tais que esta faz prescrições a respeito de
assuntos. todos os assuntos do Estado.
LIVRO VII
157
2
Podemos perguntar agora (1) como alguém aja contrariando o que lhe
é possível que um homem que julga pareceu ser o melhor alvitre; e dizem,
com retidão se mostre incontinente na por isso, que o incontinente não possui
sua conduta. Alguns afirmam que tal conhecimento quando é dominado
conduta é incompatível com o conheci- pelos seus prazeres, mas só opinião.
mento; pois seria estranho assim Se, todavia, se trata de opinião e não 35
pensava Sócratesê 7, que, existindo de conhecimento, se não é uma convic-
o conhecimento num homem, alguma ção forte, mas fraca, que resiste, como
coisa pudesse avassalá-lo e arrastá-lo nos hesitantes, nós simpatizamos com 1146 a
após si como a um escravo. Com efei- a sua incapacidade de manter-se firme
to, Sócrates era inteiramente contrário em tais convicções contra apetites
15 à opinião em apreço, e segundo ele não poderosos; não simpatizamos, porém,
existia isso que se chama inconti- com a maldade nem com qualquer
nência. Ninguém, depois de julgar outra disposição que mereça
afirmava - , age contrariando o que Será, então, a resistência da sabedo-
julgou melhor; os homens só assim ria prática que cede? é a mais 5
procedem por efeito da ignorância. forte de todas as disposições. Mas a
Ora, esta opinião contradiz nitida- suposição é absurda: o mesmo homem
mente os fatos observados, e é preciso seria ao mesmo tempo dotado de sabe-
indagar o que acontece a um tal doria prática e incontinente, mas nin-
homem: se ele age em razão da igno- guém diria que seja próprio de tal
rância, de que espécie de ignorância se homem praticar voluntariamente os
30 trata? Porque é evidente que o homem atos mais vis. Além disso, já se mos-
que age com incontinência não pensa, trou anteriormente que os que possuem
antes de chegar a esse estado, que deva esta espécie de sabedoria são homens
agir assim. de ação (pois se ocupam com fatos
Mas alguns concedem certos pontos particulares) e possuem as demais
defendidos por Sócrates, e outros não. virtudes.
Admitem que nada seja mais forte do (2) Por outro lado, se a continência
que o conhecimento, porém não que implica ter fortes e maus apetites, o 10
homem temperante não será conti-
87 Cf. Platão, Protágoras. 352. (N. do T.) nente, nem este será temperante; pois
ÉTICA A NICÕMACO - VII 159
um homem temperante não tem apeti- rado quando não quer imobilizar-se,
tes excessivos nem maus. O homem porque a conclusão não o satisfaz; e
continente, porém, não pode deixar de não pode avançar porque é incapaz de
tê-los; porque, se os apetites são bons, refutar o argumento). Há um silogismo
a disposição de caráter que nos inibe do qual se conclui que a loucura conju-
de segui-los é má, de forma que nem gada com a incontinência é virtude,
15 toda continência será boa; e, se eles pois um homem faz o contrário do que
são fracos sem serem maus, não há julga devido à incontinência, mas por
nada de admirável em refreá-los; e, se outro lado, o que é bom lhe parece
são fracos e maus, tampouco é grande mau e algo a ser evitado; e, por conse- 30
proeza resistir-lhes. guinte, fará o bem e não o mal.
(3) Além disso, se a continência (5) E ainda: aquele que, por convic-
torna um homem propenso a sustentar ção, faz, busca e escolhe o que é agra-
tenazmente qualquer opinião, a conti- dável seria considerado melhor do que
nência é má - isto é, se o leva a sus- quem o faz não em resultado do cálcu-
tentar mesmo as opiniões falsas; e se a
lo, mas da incontinência; porque o pri-
incontinência faz com que um homem
meiro é mais fácil de curar, dada a
abandone facilmente qualquer opinião,
possiblidade de persuadi-lo a mudar de
haverá uma boa espécie de inconti-
idéia. Mas ao incontinente pode-se
nência, de que temos exemplo em
Neoptólemo tal como nos é apresen- aplicar o provérbio: "Quando a água 35
3
De uma das espécies enumeradas meiro se as pessoas incontinentes agem
são as dificuldades que surgem. Al- cientemente ou não - e cientemente
guns destes pontos podem ser refuta- que sentido; e (2) com que espécie
dos, enquanto outros ficarão senhores de objetos se pode dizer que têm rela-
do campo; porque a dificuldade encon- ção o homem incontinente e o conti-
tra sua solução quando se descobre a nente (se com todo e qualquer prazer 10
verdade. ou dor, ou se só com determinadas
(1) Devemos, pois, considerar pri- espécies), e se o homem continente e o
160 ARISTÓTELES
homem dotado de fortaleza são o que possui o conhecimento mas não o
mesmo ou diferentes; e de modo aná- usa como daquele que o possui e usa
logo no tocante aos outros assuntos dizemos que sabem), fará grande dife-
abrangidos pela nossa investigação. rença se o homem que pratica o que
Constituem o nosso ponto de parti- não deve possui o conhecimento mas
15 da (a) a questão de se o homem conti- não o exerce, ou se o exerce; porque a
nente e o incontinente são diferen- segunda hipótese parece estranha, mas
ciados pelos seus objetos ou pela sua não a primeira.
atitude, isto é, se o incontinente é tal (b) Além disso, como há duas espé- 35
apenas porque se relaciona com tais e cies de premissas, nada impede que um
tais objetos, ou, então, pela sua atitude, homem aja contrariando o seu próprio 1 147.
ou ainda por ambas as coisas; (b) a conhecimento embora possua ambas
segunda questão é se a continência e a as premissas, desde que use apenas a
incontinência se relacionam com todo universal, porém não a particular; por-
e qualquer objeto, ou não. que os atos a ser realizados são parti-
O homem que é incontinente no sen- culares. E há também duas espécies de
tido absoluto nem se relaciona com termo universal; um é predicável do 5
20 todo e qualquer objeto, mas sim preci- agente e o outro do objeto: por exem-
samente com aqueles que são os obje- plo, "a comida seca faz bem a todos os
tos do intemperante, nem se caracte- homens" e "eu sou um homem", ou
riza por essa simples relação (pois, a "tal comida é seca"; mas o homem
ser assim, a sua disposição se identifi- incontinente não possui ou não usa o
caria com a intemperança), mas por se conhecimento de que "esta comida é
relacionar com eles de certo modo. tal e tal". Haverá, pois, em primeiro
Com efeito, um é levado pela sua pró- lugar uma enorme diferença entre esses
pria escolha, pensando que deve bus- modos de saber, de forma que não
car sempre o prazer imediato, en- pareceria nada estranho saber de um
quanto o outro busca tais prazeres dos modos ao mesmo tempo que se age
embora não pense assim. com incontinência, enquanto fazê-lo,
(1) Sugere-se que é contra a reta sabendo do modo, seria extraor-
opinião e não contra o conhecimento dinário.
que agimos de modo incontinente, mas Além disso (c), acontece aos homens 10
25 isso não vem ao caso; porque certas possuírem conhecimento em outro sen-
pessoas não hesitam quando nutrem tido que não os acima mencionados;
uma opinião, mas pensam ter conheci- pois naqueles que possuem conheci-
mento exato. Se, pois, o que se pre- mento sem usá-lo percebemos uma
tende sustentar é que, devido a uma diferença de estado que comporta a
convicção fraca, os que têm opinião possibilidade de possuir conhecimento
são mais sujeitos a agir contrariando o em certo sentido e ao mesmo tempo
seu próprio julgamento do que aqueles não o possuir, como sucede com os
que sabem, responderemos que a este que dormem, com os loucos e os
respeito não há diferença entre conhe- embriagados. Ora, é justamente essa a
cimento e opinião, pois alguns homens condição dos que agem sob a in-
não estão menos convencidos do que fluência das paixões; pois é evidente 15
pensam que do que sabem, como bem que as explosões de cólera, de apetite
30 o mostra o caso de Heráclito. Mas (a), sexual e outras paixões que tais alte-
visto que usamos a palavra "saber" em ram materialmente a condição do
dois sentidos (pois tanto do homem corpo, e em alguns homens chegam a
ETICA A NICÔMACO - VII 161
produzir acessos de loucura. Claro cada uma das partes de nosso corpo); e
está, pois, que dos incontinentes se sucede, assim, que um homem age de
pode dizer que se encontram num esta- maneira incontinente sob a influência
do semelhante ao dos homens adorme- (em certo sentido) de uma razão e de
cidos, loucos ou embriagados. O fato uma opinião que não é contrária em si
de usarem uma linguagem própria do mesma, porém apenas acidentalmente, 1147 b
conhecimento não prova nada, pois os à reta razão (pois que o apetite lhe é
homens que se acham sob a influência contrário, mas não o é a opinião).
dessas paixões podem até articular Donde se segue que é esse também o
provas científicas e declamar versos de motivo de não serem incontinentes os
Empédocles, e os que apenas começa- animais inferiores: com efeito, eles não 5
ram a aprender uma ciência podem ali- possuem juízo universal, mas apenas
nhavar as suas proposições sem, toda- imaginação memória de particulares.
via, conhecê-la. Para ser realmente A explicação de como se dissolve a
conhecida, é preciso que se torne uma ignorância e o homem incontinente
parte deles, e isso requer tempo. Logo, recupera o conhecimento é a mesma '
é de supor que o uso da linguagem por que no caso dos embriagados e ador-
parte de homens em estado de inconti- mecidos e não tem nada de peculiar a
nência não signifique mais que as esta condição. Devemos pedi-la aos
declamações de atores em cena. estudiosos de ciência natural. Ora,
25 (d) Também podemos encarar o sendo a segunda premissa, ao mesmo
caso da maneira que segue, com refe-
tempo, uma opinião a respeito de um
rência às peculiaridades da natureza
objeto perceptível e aquilo que deter- lO
humana. Uma das opiniões é universal,
mina as nossas ações, ou um homem
a outra diz respeito a fatos particula-
não a possui quando se encontra no es-
res, e aqui nos deparamos com algo
que pertence à esfera da percepção. tado de paixão, ou a possui no sentido
Quando das duas opiniões resulta uma em que ter conhecimento não significa
SÓ, numa espécie de caso a alma afir- conhecer, mas apenas falar, como um
mará a conclusão, enquanto no caso bêbedo que declama versos de Empê-
de opiniões relativas à produção ela docles. E, como o. último termo não é
agirá imediatamente (por exemplo, se universal, nem tampouco um objeto de
"tudo o que é doce deve ser provado" e conhecimento científico a mesmo títu-
30 "isto é doce",. no sentido de ser uma lo que o termo universal, parece 15
das coisas doces particulares, o mesmo resultar daí a posição que Só-
homem que pode agir e não é impedido crates procurou estabelecer; pois não é
procederá imediatamente de acordo em presença daquilo que consideramos
com a conclusão). Quando, pois, está conhecimento propriamente dito que
presente em nós a opinião universal surge a afecção da incontinência (nem
que nos proíbe provar, mas também é verdade que ele seja "arrastado" pela
existe a opinião de que "tudo que é paixão), mas o que se acha presente é
doce é agradável" e de que "isto é apenas o conhecimento perceptual.
doce" (e é esta a opinião ativa), e quan- Que isto baste como resposta à
do sucede estar presente em nós o ape- questão ao ato acompanhado ou não
tite, uma das opiniões nos manda evi- de conhecimento e de como é possível
35 tar o objeto, mas o apetite nos conduz agir de maneira incontinente com
para ele (pois tem o poder de mover conhecimento de causa.
162 ARISTÓTELES
faz o mesmo levado por apetites pode- cognominado "o filial", que foi consi-
20 rosos: pois que faria o primeiro se os derado um grande tolo por esse moti-
seus apetites fossem dessa sorte e se a vo.)
falta dos objetos "necessários" o fizes- Com respeito a esses objetos não há,
se sofrer violentamente? pois, maldade pela razão indicada, isto
Ora, dos apetites e prazeres, alguns é: cada um deles é por natureza algo
pertencem à classe das coisas generica- digno de escolha em si mesmo. Sem
mente nobres e boas - pois algumas embargo, o excesso em relação a eles é
coisas agradáveis são por natureza mau e deve ser evitado. Analogamente, 5
dignas de escolha, enquanto outras não há incontinência no que toca a
lhes são contrárias e outras ainda ocu- esses objetos, pois a incontinência não
pam uma posição intermédia, para só deve ser evitada como merece cen-
adotar a distinção que estabelecemos sura; mas, em razão de uma seme-
25 anteriormente. Exemplos da primeira lhança quanto ao sentimento, aplica-
classe são a riqueza, o lucro, a vitória,
a honra. E com referência a todos os se-lhes o nome de incontinência
objetos desta espécie ou da interme- precisando em cada caso o respectivo
diária não são censurados os homens objeto, assim como chamamos de mau
por desejá-los e amá-los, mas por faze- médico ou mau ator a um homem que
rem-no de certo modo - isto é, indo não qualificaríamos de mau em si.
ao excesso. Visto, pois, que neste caso não apli-
(Em face disto, não são maus todos o termo em sentido absoluto
os que, contrariando a reta razão, se porque cada uma dessas condições não
deixam avassalar por um dos objetos é maldade, mas apenas se assemelha à
na'turalmente nobres e bons e o bus- maldade, é claro que também no outro 10
cam em detrimento de tudo mais, caso só se deve considerar como conti-
como, por exemplo, os que se ocupam nência e incontinência o que se rela-
30 mais do que devem com a honra, ou ciona com os mesmoa.objetos que a
com os filhos e os pais. Com efeito, temperança e a intemperança. Aplica-
essas coisas são bens e os que delas se mos, porém, o termo à cólera em virtu-
ocupam são louvados. Mesmo aí, con- de de uma semelhança, precisando
tudo, pode haver um excesso: se, como desta forma: "incontinente no que se
Níobe, por exemplo, alguém lutasse refere à cólera", como também dize-
1148 b contra os próprios deuses, ou se fosse mos: "incontinente no que se refere à
tão devotado ao pai quanto Sâtiro, honra ou ao lucro".
6
Veremos agora que a incontinência dizendo "sim, mas ele batia no seu, e
relativa à cólera é menos vergonhosa seu pai, por sua vez, batia no seu; e
do que aquela que diz respeito aos este menino (apontando para o seu 10
apetites. filho) baterá em mim quando for
25 (1) A cólera parece ouvir o racio- homem; isso é de família"; ou o
cínio até certo ponto, mas ouvi-lo mal, homem que estava sendo levado de
como os servos apressados que partem rastos pelo filho e lhe pediu que paras-
correndo antes de havermos acabado se à porta, ele próprio só havia
de dizer o que queremos e cumprem a arrastado seu pai até ali.
ordem às avessas, ou os cães que la- (3) Por outro lado, os mais afeitos a
dram apenas ouvem bater à porta, sem conspirar contra outros são mais cri-
procurar ver primeiro se se trata de minosos. Ora, um homem colérico não
uma pessoa amiga; e da mesma forma se inclina a conspirar, nem o faz a pró-
30 a cólera, devido à sua natureza ardente pria cólera, que é aberta e franca; mas
e impetuosa, embora ouvindo, não a natureza do apetite é elucidada pelo
cuta as ordens e precipita-se para a que os poetas chamam Afrodite, "insi-
vingança. Porque o raciocínio ou a diosa filha de Chipre", e pelos versos
imaginação nos informa de que fomos de Homero sobre o seu "cinto borda-
desprezados ou desconsiderados, e a do":
cólera, como que chegando à conclu- E ali estão os sussurros de amor,
são de que é preciso reagir contra qual- Tão sutis que roubam a razão aos
quer coisa dessa espécie, ferve imedia- [sábios, por prudentes que sejams»,
tamente; enquanto o apetite, mal o
raciocínio ou a percepção lhe dizem Logo, se esta forma de incontinência é
35 que determinado objeto é agradável, mais criminosa e vergonhosa que a da
1149 b corre a desfrutá-lo. Por conseguinte, a cólera, ela é ao mesmo tempo inconti-
cólera obedece em certo sentido ao nência no sentido absoluto e também
raciocínio, mas o apetite não. Por isso vício.
é ele mais censurável, pois o homem (4) Ainda mais: ninguém comete 20
gonhosa do que aquela que se rela- Esses não têm a faculdade de escolher
25 ciona com a cólera; e tanto nem de calcular, mas são realmente 35
continência como incontinência dizem desvios da norma natural, como os
respeito aos apetites e prazeres do loucos entre nós.
corpo. Mas é preciso distinguir entre Ora, a bruteza é um mal menor do IIS08
estes últimos, porque, como dissemos que o vício, se bem que mais assusta-
no começov", alguns são humanos e dor, pois que a parte pervertida não foi
naturais tanto em espécie como em a melhor, como no homem: os brutos
grandeza, outros são brutais, e outros simplesmente não têm uma parte me-
ainda se devem a lesões e doenças lhor. É, pois, como se comparássemos
30 orgânicas. Só com os primeiros têm uma coisa inanimada com um ser vivo
que ver a temperança e a intempe- quanto à maldade; porque a maldade
rança, e esse é o motivo por que não daquilo que não possui uma fonte
chamamos temperantes nem intempe- originadora de movimento é sempre
rantes aos animais inferiores, a não ser menos daninha, e a"razão é uma fonte 5
em linguagem figurada e só quando al- originadora dessa espécie. E é também
guma raça de animais supera uma o mesmo que comparar a injustiça em
outra na libidinosidade, nos instintos abstrato com um homem injusto. Cada
de destruição e na avidez onívora. um dos dois é em certo sentido pior,
pois um homem mau causará dez
90 1148 b 15-3 I. (N. do T.) vezes mais dano do que um bruto.
91 Livro III, cap, 10. (N. do T.) lhem tais atos, uma espécie é condu-
ÉTICA A NICÔMACO - VII 167
zida a eles pela promessa de prazer e a quando picado pela serpente, ou o Cer-
outra por fugir à dor nascida do apeti- cíon de Cárcino na Âlope, e como as
te, de modo que esses tipos diferem pessoas que procuram conter o riso e
entre si. Ora, todos fariam pior opinião irrompem numa gargalhada,
de um homem que, sem apetite ou com ocorreu a Xenofanto. Mas causa sur-
um apetite fraco, cometesse algum ato presa que um homem não possa resis-
vergonhoso, do que se o fizesse sob a tir e seja derrotado por prazeres e
influência de um forte apetite, e pior do dores que a maioria arrosta sem gran-
homem que ferisse um outro sem cóle- de dificuldade, quando isso não se deve
ra do que se o fizesse levado pela cóle- à hereditariedade 011 à doença, como a 15
ra; pois que faria ele então se a sua ira moleza que é hereditária entre os reis
30 fosse grande? Eis aí por que o homem dos citas ou aquela que distingue o
intemperante é pior do que o inconti- sexo feminino do masculino.
nente.)
Das disposições indicadas, pois, a O amigo de diversões é também
segunda é antes uma espécie de mole- considerado intemperante, mas na rea-
za, enquanto a primeira é intempe- lidade é mole. Porque a diversão é um
rança. Ao passo que ao homem incon- relaxamento da alma, um descanso do
tinente se opõe o continente, ao mole trabalho; e o amigo de diversões é uma
opõe-se o homem dotado de fortaleza; pessoa que vai ao excesso em tais
pois a fortaleza consiste em resistir, coisas.
enquanto a continência consiste em Da incontinência, uma espécie é
35 vencer, e resistir e vencer diferem um impetuosidade e outra é fraqueza. Com
do outro assim como não perder difere efeito, alguns homens, após terem deli- 20
de ganhar; e por isso mesmo a conti- berado, não sabem manter, devido à
nência é também mais digna de esco- emoção, as conclusões a que chega-
lha do que a fortaleza. ram, enquanto outros, por não terem
IISOb Ora, o homem deficiente no tocante deliberado, são levados pela sua emo-
às coisas a que a maioria resiste, e o ção. E outros (assim como os que
faz com êxito, é mole e efeminado; tomam a iniciativa de fazer cócegas
pois a efeminação também é uma espé- eles próprios), quando percebem com
cie de moleza. Um tal homem deixa antecedência e vêem o que vai aconte-
arrastar o seu manto para evitar o cer, despertam a tempo e fazem funcio-
esforço de erguê-lo e simula doença nar a sua faculdade calculadora, não
sem se considerar infeliz, ao passo que sendo vencidos pela emoção, quer esta
o a quem ele imita é realmente seja agradável, quer dolorosa. São as 25
infeliz. pessoas de humor vivaz e de tempera-
O caso é análogo no que tange à mento excitável as mais sujeitas à
continência e incontinência. Com forma impetuosa de incontinência;
efeito, não é coisa de causar admiração porque as primeiras, devido à vivaci-
que um homem seja derrotado por pra- dade, e as segundas, por motivo da vio-
zeres ou dores violentos e excessivos, e lência das paixões, não esperam pelo
até nos dispomos a perdoar se ele resis- raciocínio e tendem a seguir a sua
10 tiu como faz o Filoctetes de Teodectes imaginação.
168 ARISTÓTELES
8
o homem intemperante, como disse- sos, mas praticam atos criminosos.
mos, não costuma arrepender-se por- Ora, como o homem incontinente
que se atém ao que escolheu; mas qual- tende a buscar, não por convicção,
homem incontinente pode prazeres corporais que são excessivos
30 arrepender-se. Por isso, a posição não e contrários à reta razão, enquanto o
é tal como a expressamos ao formular intemperante está convencido por ser a
o problema, mas o intemperante é espécie de homem feita para buscá-los,
incurável e o incontinente, curável. é o primeiro que facilmente se deixa
Porquanto a maldade se assemelha a dissuadir, ao passo que com o segundo
uma doença como a hidropisia ou a tí- acontece assim. Com efeito, a vir- 15
sica, enquanto a incontinência é como tude e o vício preservam e destroem,
a epilepsia: a primeira é permanente e respectivamente, o primeiro princípio,
a segunda, intermitente. E, de um e na ação a causa final é o primeiro
35 modo geral, a incontinência e o vício princípio, como as hipóteses o são na
diferem em espécie: o vício não tem matemática. Nem naquele caso, nem
consciência de si mesmo, a inconti- neste é o raciocínio que ensina os pri-
nência tem (dos homens incontinentes, meiros princípios - o que ensina a
os que temporariamente perdem o reta opinião a seu respeito é a virtude,
domínio próprio são melhores do que quer natural, quer produzida pelo hábi-
os que possuem o princípio racional to. Um homem assim é, pois, tempe-
mas não se atêm a ele, visto que os rante, e o seu contrário é o intempe-
segundos são derrotados por uma pai- rante.
xão mais fraca e não agem sem prévia Mas há uma espécie de homem que 20
deliberação, como os outros); porque o é arrastado pela paixão contrariando a
homem incontinente é como os que se regra justa - um homem a quem a
embriagam depressa e com pouco paixão domina por tal que é
vinho - isto é, com menos do que a incapaz de agir de acordo com a reta
maioria das pessoas. razão, mas não ao ponto de fazê-lo
Vê-se pois, que a incon- acreditar que deva buscar tais prazeres
tinência não é vício (se bem que talvez sem reservas. Esse é o incontinente,
o seja num sentido particularizado). que é superior ao intemperante e não é
Com efeito, a incontinência é contrária mau no sentido absoluto, pois nele se 25
à escolha, enquanto o vício segue o que conserva o que tem de melhor, o pri-
escolheu. Isso, porém, não impede que meiro princípio. E contrária a ele é
se assemelhem nas ações a que condu- outra espécie de homem, que se man-
zem. Como disse Dernódoco dos milé- tém firme nas suas convicções e não se
sios, "que não eram privados de razão, deixa arrastar, ao menos pela paixão.
mas faziam as mesmas coisas que Toma-se claro, pelo que acabamos
fazem os insensatos", também os de dizer, que a segunda é uma boa
10 incontinentes não são crimino - disposição e a primeira é má.
ÉTICA A NICÔMACO - VII 169
É continente o homem que se atém a ciadas pelo prazer e pela dor, pois
toda e qualquer regra, a toda e qual- deleitam-se com a sua vitória quando
quer escolha, ou aquele que se atém à não se deixam persuadir a mudar e so- 15
30 reta escolha? E é incontinente o que frem quando as suas decisões se tor-
abandona toda e qualquer escolha, nam nulas, como sucede às vezes com
assim como toda e qualquer regra, ou os decretos: de modo que se asseme-
o que abandona a regra e a escolha jus- lham mais ao homem incontinente do
tas? Foi assim que colocamos ante- que ao seu contrário.
riormentev-' o problema. Ou será aci- Mas há alguns que abandonam as
dentalmente a toda e qualquer escolha, suas resoluções não por efeito da
mas, em si, à regra e à escolha justas incontinência, como o Neoptólemo de
que um se atém e o outro não? Quando Sófocles. Sem embargo, foi sob a
alguém escolhe ou busca isto no inte- influência do prazer que ele tergiversou
1151 b resse daquilo, em si busca e escolhe o - mas de um prazer nobre; pois, para 20
segundo, mas acidentalmente o primei- ele, dizer a verdade era e contu-
ro. Mas quando falamos em absoluto, do Ulisses o persuadira a mentir. Com
entendemos o que é buscado em si. efeito, nem todos os que fazem alguma
Logo, em certo sentido um sustenta e o coisa tendo em vista o prazer são
outro abandona toda e qualquer opi- intemperantes, maus ou incontinentes,
nião; mas, em sentido absoluto, só a mas só os que a fazem por um prazer
reta opinião. vergonhoso.
Há alguns que tendem a sustentar a Como também existe uma espécie
sua opinião e que são chamados teimo- de homem que se deleita menos do que
5 sos, a saber: os que de um modo geral deve com as coisas do corpo e não
são difíceis de persuadir e, em particu- olha à reta razão, o intermediário entre 25
lar, que não se deixam persuadir facil- ele e o incontinente é o homem conti-
mente a mudar de idéia. Esses têm algo nente. Com efeito, o incontinente não
de semelhante ao homem continente, se atém à reta razão porque se deleita
assim como o pródigo se assemelha de em excesso com tais coisas, e este
certo modo ao liberal e o temerário ao homem porque se deleita demasiada-
confiante; mas diferem a muitos res- mente pouco com elas; ao passo que o
peitos. Com efeito, é à paixão e ao ape- homem continente se atém à razão e
IO tite que um não quer ceder, já que ou- não muda por nada deste mundo. Ora,:
tras vezes o homem continente se se a continência é boa, ambas as dispo-
mostra de persuadir; mas é ao sições contrárias devem ser más, como
raciocínio que os outros resistem, por- realmente parecem ser; mas, como o 30
que cultivam seus apetites e muitos outro extremo é observado em muito
deles são conduzidos pelos prazeres. poucos e raramente, pensa-se que a
Ora, as pessoas teimosas são as continência só tem um contrário, a
opiniáticas, as ignorantes e as rústicas incontinência, do mesmo modo que a
- as opiniáticas, porque são influen- temperança só tem um contrário, que é
a intemperança.
92 1146 a 16-3 I. (N.do T.) Como muitos nomes são aplicados
170 ARISTÓTELES
por analogia, é também por analogia trário à reta razão, enquanto o pri-
que viemos a falar da "continência" do meiro é tal que sente prazer mas não se
homem temperante; pois tanto o conti- deixa conduzir por ele. E o inconti-
nente como o temperante são de tal ín- nente e o intemperante também se
dole que jamais contrariam a regra assemelham num ponto: ambos bus-
11S2a justa levados pelos prazeres corporais; cam os prazeres corporais; diferem,
mas o primeiro possui e o segundo não contudo, pelo fato de o segundo pensar
possui apetites maus. Além disso, o que deve proceder assim, enquanto o
segundo é tal que não sente prazer con- primeiro pensa de modo contrário.
10
11
1152 b O estudo do prazer e da dor per- tível a uma disposição natural, e ne-
tence ao campo do filósofo político, nhum processo é da mesma espécie
pois ele é o arquiteto do fim com vistas que o seu fim, por exemplo: o processo
no qual dizemos que uma coisa é má e da construção não é da mesma espécie
outra é boa em absoluto. Além disso, que a casa. (b) O homem temperante /5
12
25 Estas são mais ou menos as coisas como mostram as seguintes considera-
que se costuma dizer. De tais premis- ções:
sas não se segue que o prazer não seja (A) (a) Primeiro, visto que aquilo
um bem, ou mesmo o maior dos bens, que é bom pode sê-lo num de dois sen-
172 ARISTÓTELES
tidos (uma coisa é simplesmente boa, rem entre si, também diferem os praze-
enquanto outra é boa para determi- res que elas proporcionam.
nada pessoa), as constituições e dispo- (c) Por outro lado, não é necessário
sições naturais do ser, com os corres- que exista algo melhor do que o prazer
pondentes movimentos e processos, simplesmente por dizerem alguns que o
serão divisíveis da mesma forma. fim é melhor do que o processo. Com
Dos que são considerados maus, al- efeito, os prazeres não são processos,
30 guns o serão em absoluto, porém não nem todos eles envolvem processos: /0
para uma pessoa determinada, mas são atividades e fins, E tampouco os
merecedores da sua escolha; e alguns experimentamos quando nos estamos
não merecerão sequer a escolha de tornando alguma coisa, mas quando
uma pessoa determinada, a não ser exercemos alguma faculdade; e nem
numa ocasião particular e por breve todos os prazeres têm um fim diferente
período, e assim mesmo com restri- deles mesmos, mas só os prazeres das
ções; outros, enfim, não chegam a ser pessoas que estão sendo conduzidas ao
prazeres, mas apenas parecem tais. aperfeiçoamento de sua natureza. Eis
Refiro-me aos que envolvem dor e cujo por que não é certo dizer que o prazer
fim é curativo, como os processos que seja um processo perceptível, mas
ocorrem nas pessoas doentes. antes deveríamos chamá-lo atividade
(b) Além disso, sendo uma espécie do estado natural e, em vez de "percep-
de bem atividade e outra espécie, esta- tível", "desimpedida". Alguns o consi- 15
do, os processos que nos restituem ao deram um processo simplesmente por-
nosso estado natural só são agradáveis que pensam que ele é bom no sentido
35 acidentalmente. Aliás, a atividade ca- estrito do termo; pois julgam, equivo-
nalizada para os apetites que têm esses cadamente, que a atividade seja um
bens por objeto é a atividade daquela processo.
parte de nosso estado e natureza que (B) A opinião de que os prazeres são
permaneceu incólume; pois em verda- maus porque algumas coisas agradá-
de há prazeres que não envolvem dor veis são malsãs equivale a dizer que as
a nem apetite (como os da contempla- coisas saudáveis são más porque algu-
ção, por exemplo), estando a natureza mas coisas saudáveis nos impedem de
intata nesses casos. Que os outros são ganhar dinheiro. Ambas são más nos
acidentais, indica-o o fato de algumas casos particulares mencionados, mas
pessoas não se deleitarem, quando sua não são más em si mesmas por essa
natureza se encontra no estado normal, razão; e até pode suceder, às vezes, que 20
com os mesmos objetos agradáveis que pensar faça mal à saúde.
lhes causam prazer quando ela está Nem a sabedoria prática, nem qual-
sendo refeita; mas no primeiro caso quer estado do ser é impedido pelo pra-
deleitam-se com coisas que são agra- zer que ele proporciona. São os praze-
dáveis no sentido absoluto, e nosegun- res estranhos que têm um efeito
do, também com os contrários destas, impeditivo, visto que os prazeres ad-
5 inclusive com coisas acres e amargas, vindos do pensar e do aprender nos
nenhuma das quais é agradável quer fazem pensar e aprender ainda mais.
por natureza, quer em sentido absolu- (C) Nada mais natural do que o fato
to. Os estados que elas produzem, por de nenhum prazer ser o produto de
conseguinte, não são prazeres natural- uma arte qualquer. Não existe arte de
mente nem no sentido absoluto; pois, nenhuma outra atividade tampouco,
assim como as coisas agradáveis dife- mas apenas da faculdade correspon- 25
ÉTICA A NICÔMACO - VII 173
dente, embora seja certo que as artes que sentido outros não são bons. Ora, 30
do perfumista e do cozinheiro são tanto os brutos como as crianças bus-
consideradas artes de prazer. cam prazeres da segunda espécie (e o
(D) Os argumentos baseados nas homem de sabedoria prática busca
premissas de que o homem temperante uma tranqüila isenção dos prazeres
evita os prazeres, e de que o homem dessa espécie): referimo-nos aos que
dotado de sabedoria prática busca a implicam apetite e dor; isto é, os praze-
vida sem dor e de que as crianças e os res corporais (pois estes é que são de
brutos buscam o prazer são todos refu- tal natureza), e aos excessos dos mes-
tados pela mesma consideração. Já mos, em virtude dos quais se diz que
mostramoss 7 em que sentido alguns um homem é intemperante. Eis aí por
prazeres são bons em absoluto e em que o homem- temperante evita esses
prazeres; porquanto ele também tem 35
'7 1152 b 26 1153 a 7. (N. do T.) os seus prazeres próprios.
13
b Mas, além disso (E), todos concor- mais digna de nossa escolha; e essa ati-
dam em que a dor é má e deve ser evi- vidade é prazer. E assim, o sumo bem
tada; porquanto algumas dores são seria alguma espécie de prazer, embora
más em sentido absoluto, e outras são a maioria dos prazeres fossem talvez
más porque de algum modo nos ser- maus em sentido absoluto.
vem de impedimento. Ora, o contrário Por essa mesma razão todos os ho-
do que deve ser evitado, enquanto mens pensam que a vida feliz é agradá-
coisa vitanda e má, é bom. O prazer, vel e entremeiam o prazer no seu ideal 15
por conseguinte, é necessariamente um da felicidade - o que, aliás, é bastante
bem. E a resposta de Espeusipo, dizen- sensato, já que nenhuma atividade é
do que o prazer é contrário tanto à dor perfeita quando impedida, e a felici-
5 como ao bem, assim como o maior é dade é uma coisa perfeita. Eis aí por
contrário tanto ao menor como ao que o homem feliz necessita dos bens
igual, não consegue convencer, pois corporais e exteriores, isto é, os da for-
que o próprio Espeusipo não diria que tuna, a fim de não ser impedido nesses
o prazer é, essencialmente, uma sim- campos. Os que dizem que o homem
ples espécie de mal. torturado no cavalete ou aquele que
E (F), se certos prazeres são maus, sofre grandes infortúnios é feliz se for 20
isso não impede que o sumo bem seja bom estão disparatando, quer falem a
algum prazer, assim como o sumo bem sério, quer não.
pode ser alguma espécie de conheci- E pelo fato de necessitarmos da for-
mento, não obstante certas espécies de tuna como de outras coisas, alguns
lO conhecimento serem más. seja identificam a boa fortuna com a felici-
até necessário, se a cada disposição dade; mas sucede que a própria boa
pode corresponder uma atividade de- fortuna, quando em excesso, é um
simpedida, que, não sendo a felicidade obstáculo, e talvez já não mereça o
outra coisa senão a atividade desimpe- nome de boa fortuna, pois que o seu li-
dida de todas as nossas disposições ou mite é fixado com referênçia à felici-
de algumas delas, seja essa a coisa dade ..
174 ARISTÓTELES
14
(G) Com respeito aos prazeres cor- rosos, com vinhos e com a união
porais, os que dizem que alguns praze- sexual, mas nem todos o fazem como
res são muito dignos de escolha, a devem). Com a dor dá-se o contrário,
saber, os nobre, porém não os corpo- pois ele não evita o seu excesso: evita-a 20
rais, isto é, aqueles a que se dedica o de todo; e isso lhe é peculiar, já que o
homem intemperante, devem examinar excesso de prazer não tem como alter-
10 por que, nesse caso, as dores contrá- nativa a dor, salvo para o homem que
rias são más. Porquanto o contrário do busca esse excesso.
mau é bom. Serão bons os prazeres Como devemos expor não somente a
necessários no sentido em que mesmo verdade, mas também a causa do erro
aquilo que não é mau é bom? Ou serão - pois isso contribui para convencer,
bons até certo ponto? Dar-se-â o caso uma vez que quando se dá uma expli-
que, se de alguns estados e processos cação razoável de por que o falso pare-
não pode haver demasia, tampouco a ce verdadeiro, isso tende a fortalecer a
pode haver do prazer correspondente, e crença na opinião verdadeira - , cum- 25
quando aqueles excesso, pre-nos mostrar agora a razão de os
15 também o comportam estes? prazeres corporais parecerem mais
Ora, é certo que pode haver excesso dignos de escolha.
de bens corporais, e o homem mau é (a) Em primeiro lugar, pois, é por-
mau por buscar o excesso e não por que eles expulsam a dor: devido aos
buscar os prazeres necessários (pois excessos de dor que experimentam, os
todos os homens deleitam-se de um homens buscam prazeres excessivos e,
ou de outro com acepipes sabo- em geral, de natureza corporal como
ÉTICA A NICÕMACO - VII 175
30 remédio para a dor. Ora, os meios a dor é expulsada não só pelo prazer
curativos provocam intenso senti- contrário como por qualquer prazer,
mento (eé este o motivo de serem bus- contanto que seja forte; e por esta 15
cados), pelo contraste entre eles e a dor razão elas se tornam intemperantes e
contrária. (E, em verdade, considera-se más.
que o prazer não é bom por estas duas Os prazeres que não envolvem dor,
razões, como já dissemoss 9, a saber: pelo contrário, não admitem excesso; e
que alguns deles são atividades esses se contam entre as coisas agradá-
pertinentes a uma natureza má - quer veis por natureza e não por acidente.
congênita no caso de um bruto, quer Por coisas acidentalmente agradáveis
devida ao hábito, isto é, a dos homens entendo as que agem como meios cura-
maus: ao passo que outros se desti- tivos (pelo motivo de serem as pessoas
nam a curar uma natureza deficiente; curadas por elas, mediante alguma
ora, é melhor gozar saúde do que ação da parte que permanece sadia, o
b estar-se curando, mas esses prazeres processo é considerado agradável); e
surgem durante o processo de cura e, por coisas naturalmente agradáveis
por conseguinte, são bons apenas aci- entendo as que estimulam a ação da
dentalmente.) natureza sã.
(b) Além disso, eles são buscados Não existe coisa alguma que seja 20
devido à sua violência pelos que não sempre agradável, já que nossa natu-
podem desfrutar outros prazeres. (Em reza não é simples, mas existe em nós
todo caso, dão-se ao trabalho de fabri- também um outro elemento por sermos
car sedes, por assim dizer, para si mes- criaturas mortais; de modo que, se um
mos; quando estas são inofensivas, a elemento produz determinado efeito,
prática é inocente, e quando são preju- este é antagônico à outra natureza; e
diciais, é mâ.) Tais pessoas não têm quando os dois elementos estão equili-
nada mais que gozar e, além disso, brados o efeito não parece agradável
para a natureza de muitas pessoas um nem desagradável; porquanto, se a
estado neutro é doloroso. Com efeito, a natureza de um ser fosse simples, a
natureza animal está em constante mesma coisa lhe seria sempre agradá- 25
labuta, e isto é também confirmado vel no mais alto grau. É por isso que
pelos estudiosos de ciência natural Deus sempre goza um prazer único e
quando dizem serem dolorosas a visão simples: com efeito, não existe apenas
e a audição, sucedendo apenas que nos uma atividade do movimento, mas
acostumamos a elas. também uma atividade do repouso, e
Do mesmo modo, as pessoas jovens, experimenta-se mais prazer no repouso
devido ao processo de crescimento, do que no movimento. Mas "a mudan-
encontram-se numa condição seme- ça é aprazível em todas as coisas",
lhante à dos embriagados, e a moei- como diz o poeta 1 o o, em razão de
10 dade é um estado agradável. As pes- algum vício; pois, assim como o
soas de natureza excitável, por outro homem vicioso se caracteriza pela
lado, necessitam constantemente de mutabilidade, a natureza que necessita 30
alívio; o seu próprio corpo vive ator- de mudar é viciosa, por não ser simples
mentado por efeito de seu tempera- nem boa.
mento, e elas estão sempre sob a Aqui termina a nossa discussão da
influência de um desejo violento; mas continência e da incontinência, do pra-
99 1152 b 26-33. (N. do T.) 100 Eurípides, Orestes, 234. (N. do T.)
176 ARISTÓTELES
zer e da dor. Mostramos tanto o que alguns são bons e outros maus. Resta
cada um é em si como em que sentido agora falar da amizade.
LIVRO VIII
179
1155. Depois do que dissemos segue-se os homens; por isso louvamos os arm-
naturalmente uma discussão da amiza- gos de seu semelhante. Até em nossas
de, visto que ela é uma virtude ou viagens podemos ver quanto cada
implica virtude, sendo, além disso, homem é chegado e caro a todos os
5 sumamente necessária à vida. Porque outros. A amizade também parece
sem amigos ninguém escolheria viver, manter unidos os Estados, e dir-se-ia
ainda que possuísse todos os outros que os legisladores têm mais amor à
bens. E acredita-se, mesmo, que os amizade do que à justiça, pois aquilo a
ricos e aqueles que exercem autoridade que visam acima de tudo é à unanimi-
e poder são os que mais precisam de dade, que tem pontos de semelhança 15
amigos; pois de que serve tanta prospe- com a amizade; e repelem o faccio-
ridade sem um ensejo de fazer bem, se sismo como se fosse o seu maior inimi-
este se faz principalmente e sob a go. E quando os homens são amigos
forma mais louvável aos amigos? Ou não necessitam de justiça, ao passo
como se pode manter e salvaguardar a que os justos necessitam também da
prosperidade sem amigos? Quanto amizade; e considera-se que a mais
10 maior é ela, mais perigos corre. genuína forma de justiça é uma espécie
Por outro lado, na pobreza e nos de- de amizade.
mais infortúnios os homens pensam Não é ela, contudo, apenas necessá-
que os amigos são o seu único refúgio. ria, mas também nobre, porquanto lou-
A amizade também ajuda os jovens a vamos os que amam os seus amigos e
afastar-se do erro, e aos mais velhos, considera-se uma bela coisa ter muitos
atendendo-lhes às necessidades e su- deles. E pensamos, por outro lado, que 30
prindo as atividades que declinam por as mesmas pessoas são homens bons e
.efeito dos anos. Aos que estão no vigor amigos.
da idade ela estimula à prática de no- Ora, certos pontos atinentes à ami-
15 bres açôes, pois na companhia de ami- zade são matéria de debate. Alguns a
gos - "dois que andam juntos 1 01" - definem como uma espécie de afini-
os homens são mais capazes tanto de dade e dizem que as pessoas seme-
agir como de pensar. lhantes são amigas, donde os aforis-
E também os pais parecem senti-la mos "igual com igual", "cada ovelha 35
naturalmente pelos filhos' e os filhos com sua parelha", etc.; outros, pelo
pelos pais, não só entre os homens, contrário, dizem que "dois do mesmo 1155 b
mas entre as aves e a maioria dos ani- ofício nunca estão de acordo". E inves-
zo mais. Membros da mesma raça a sen- tigam esta questão buscando causas
tem uns pelos outros, e especialmente mais profundas e mais físicas, dizendo
Eurípedes que "a terra resseca ama a
, o 1 Odisséía, XVII, 218. (N. do T.) chuva, e o majestoso céu, quando pre-
180 ARISTÓTELES
nhe de chuva, adora cair sobre a mos deixá-los de parte, pois não per-
5 terra' 02", e Heráclito: "o que se opõe tencem à presente investigação. Exa-
é que ajuda", e "de notas diferentes minemos os que são humanos e
nasce a melodia mais bela", e ainda: envolvem caráter e sentimento, por 10
3
Ora, essas razões diferem umas das pessoas buscam não o agradável, mas
outras em espécie; portanto, é em espé- o útil) e, dos jovens e dos que estão no
cie que diferem também as correspon- vigor dos anos, entre os que buscam a
dentes formas de amor e de amizade. utilidade. E tampouco tais pessoas
Há, assim, três espécies de amizade, convivem muito umas com as outras,
iguais em número às coisas que são pois às vezes nem sequer se vêem com
estimáveis; pois com respeito a cada agrado, e por isso não sentem necessi-
uma delas existe um amor mútuo e dade de tal companhia, a menos que
conhecido, e os que se amam desejam- sejam mutuamente úteis: o convívio só
se bem a respeito daquilo por que se lhes é agradável na medida em que
amam. despertam uma na outra a esperança 30
10 Ora, os que se amam por causa de de algum bem futuro.
sua utilidade não se amam por si mes- Entre essas amizades alguns classi-
mos, mas em virtude de algum bem ficam também a que se observa entre
que recebem um do outro. Idêntica hospedeiro e hóspede. A amizade dos
coisa se pode dizer dos que se amam jovens, por outro lado, parece visar ao
por causa do prazer; não é devido ao prazer, pois eles são guiados pela emo-
caráter que os homens amam as pessoas ção e buscam acima de tudo o que lhes
espirituosas, mas porque as acham é agradável e o que têm imediatamente
agradáveis. Logo, os que amam por diante dos olhos; mas com o correr dos
causa da utilidade, amam pelo que é anos os seus prazeres tomam-se dife-
bom para eles mesmos, e os que amam rentes. É por isso que fazem e desfa-
por causa do prazer, amam em virtude zem amizades rapidamente: sua ami- 35
15 do que é agradável a eles, e não na me- zade muda com o objeto que lhes
dida em que o outro é a pessoa amada, parece agradável, e tal prazer se altera
mas na medida em que é util ou bem depressa.
agradável. Os jovens são também amorosos, 1156b
De forma que essas amizades são pois, em sua maior parte, a amizade
apenas acidentais, pois a pessoa amada que existe no amor depende da emoção
não é amada por ser o homem que é, e visa ao prazer; é por isso que tão
mas porque proporciona algum bem depressa se apaixonam como esque-
ou prazer. Eis por que tais amizades se cem a sua paixão, muitas vezes mu-
10 dissolvem facilmente, se as partes não dando no espaço de um dia. Mas é
permanecem iguais a si mesmas: com certo que tais pessoas desejam passar
efeito, se uma das partes cessa de ser juntas os seus dias e a sua vida inteira,
agradável ou útil, a outra deixa de pois só assim alcançam o propósito da
amá-la. sua amizade.
Ora, o útil não é permanente; mas A amizade perfeita é a dos homens
muda constantemente. E assim, quan- que são bons e afms na virtude, pois
do desaparece o motivo da amizade, esses desejam igualmente bem um ao
esta se dissolve, pois que existia apenas outro enquanto bons, e são bons em si
para os fins de que falamos. Essa espé- mesmos. Ora, os que desejam bem aos
15 cie de amizade parece existir principal- seus amigos por eles mesmos são os
mente entre velhos (pois na velhice as mais verdadeiramente amigos, porque
182 ARISTÓTELES
o fazem em razão da sua própria natu- zade desta espécie as outras qualidades
10 reza e não acidentalmente. Por isso sua também são semelhantes em ambos; e
amizade dura enquanto são bons - e o que é irrestritamente bom também é
a bondade é uma coisa muito durável. agradável no sentido absoluto. do
E cada um é bom em si mesmo e para termo, e essas são as qualidades mais
o seu amigo, pois os bons são bons em estimáveis que existem. O amor e a
absoluto e úteis um ao outro. E da amizade são, portanto, encontrados
15 mesma forma são agradáveis, por- principalmente e em sua melhor forma
quanto os bons o são tanto em si mes- . entre homens desta espécie.
mos como um para o outro, visto que a Mas é natural que tais amizades não 25
cada um agradam as suas próprias ati- sejam muito freqüentes, pois que tais
vidades e outras que lhes sejam seme- homens são raros. Acresce que uma
lhantes, e as ações dos bons são as amizade dessa espécie exige tempo e
mesmas ou semelhantes. familiaridade. Como diz o provérbio,
Uma tal amizade é, como seria de os homens não podem conhecer-se
esperar, permanente, já que eles encon- mutuamente enquanto não houverem
tram um no outro todas as qualidades "provado sal juntos"; e tampouco
que os amigos devem possuir. Com podem aceitar um ao outro como ami-
efeito, toda a amizade tem em vista o gos enquanto cada um não parecer
20 bem ou o prazer - bem ou prazer, estimável ao outro e este não
quer em abstrato, quer tais que possam confiança nele. Os que não tardam a 30
ser desfrutados por aquele que sente a mostrar mutuamente sinais de amizade
amizade - , e baseia-se numa certa desejam ser amigos, mas não o são a
semelhança. E à amizade entre homens menos que ambos sejam estimáveis e o
bons pertencem todas as qualidades saibam; porque o desejo da amizade
que mencionamos, devido à natureza pode surgir depressa, mas a amizade
dos próprios amigos, pois numa ami- não.
4
Essa espécie de amizade, pois, é per- gos recebem a mesma coisa um do
feita tanto no que se refere à duração outro (o prazer, por exemplo) - e não 5
como a outros respeitos, e nela cada só a mesma coisa, mas também da
um recebe de cada um a todos os res- mesma fonte, como ocorre entre pes-
peitos o mesmo que dá, ou algo de soas espirituosas, e não como sucede
semelhante; e é exatamente isso o que entre amante e amado. Porquanto estes
35 deve acontecer entre amigos. não recebem prazer das mesmas fon-
A amizade que visa ao prazer tem tes, mas o amante compraz-se em ver o
certa parecença com espécie, por- amado e este em receber atenções do
1157. quanto as pessoas boas são de fato seu amante; e quando começa a passar
agradáveis umas às outras. O mesmo o viço da mocidade a amizade também
se pode dizer da amizade que busca a se desvanece (porque um não experi-
utilidade, pois os bons também são menta prazer em ver o outro, e o
úteis uns aos outros. Entre os homens segundo não mais recebe atenções do
destas espécies inferiores as amizades primeiro). Muitos amantes, porém, são .10
são mais permanentes quando os ami- constantes, quando a familiaridade os
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 183
Por conseguinte, quando o que se, tais pessoas e dizer que existem diver-
leva em mira é o prazer ou a utilidade, sas espécies de amizade - primeiro, e
até os maus podem ser amigos uns dos no sentido próprio, a dos homens bons
outros, ou os bons podem ser amigos enquanto bons, e por analogia as ou-
dos maus, ou aquele que não é bom nem tras espécies; pois é em virtude de algo
mau pode ser amigo de qualquer espé- bom e algo semelhante ao que é encon-
cie de pessoa; mas por si mesmos, só trado na verdadeira amizade que eles
os homens bons podem ser amigos. são amigos, já que até o agradável é
Com efeito, os maus não se deleitam bom para os que amam o prazer. Mas
com o convívio uns dos outros, a não essas duas espécies de amizade não se
ser que essa relação lhes traga alguma juntam com frequência, nem as mes-
vantagem. mas pessoas se tomam amigas tendo
20 A amizade entre os bons, e só ela, em vista a utilidade e o prazer; por- 35
também é à calúnia, pois quanto as coisas que só acidentalmente
não damos ouvidos facilmente às pala- se relacionam umas com as outras não
vras de qualquer um a respeito de um andam muitas vezes juntas.
homem que durante muito tempo sub- Dividindo-se, pois, a amizade nestas 1157 b
metemos à prova; e é entre os bons que espécies, os maus serão amigos com
são encontradas a confiança, o senti- vistas na utilidade ou no prazer, e a
mento expresso pelas palavras "ele esse respeito se assemelharão um ao
nunca me faria uma deslealdade", e outro; mas os bons serão amigos por
todas as outras coisas que se requerem eles mesmos, isto é, em razão da sua
numa verdadeira amizade. Nas outras bondade. Esses, pois, são amigos no
espécies de amizade, porém, nada im- sentido absoluto do termo, e os outros
pede que tais males venham a manifes- o são acidentalmente e por uma seme-
tar-se. lhança com os primeiros.
5
5 Assim como, no tocante às virtudes, um com o outro e conferem-se mútuos
alguns homens são chamados bons benefícios, mas os que dormem ou que
com referência a uma disposição de se acham separados no espaço não rea-
caráter e outros com referência a uma lizam, mas estão dispostos a realizar
atividade, também o mesmo sucede no os atos da amizade. A distância não 10
que diz respeito à amizade. Efetiva- rompe a amizade em absoluto, mas
mente, os que vivem juntos deleitam-se apenas a sua atividade. Todavia, se a
184 ARISTÓTELES
1158. Entre pessoas idosas e acrimoniosas se tomam amigas facilmente. Mas tais
é menos fácil formar-se amizade, por- homens podem sentir benevolência uns
quanto tais pessoas são menos bem- pelos outros, desejando-se bem e aju-
humoradas e se comprazem menos na dando-se quando um precisa do outro.
companhia umas das outras; e estas Mal se pode dizer, no entanto, que
são consideradas as maiores marcas de sejam amigos, porque não passam os
amizade e as que mais contribuem dias juntos nem se deleitam na compa-
para produzi-la. É por isso que, en- nhia um do outro; e estas são conside-
quanto os jovens são rápidos em fazer radas as maiores marcas da amizade.
5 amizades, o mesmo não se dá com os Não se pode ser amigo de muitas 10
velhos: os homens não se tomam ami- pessoas no sentido de ter com elas uma
gos daqueles em cuja companhia não amizade perfeita, assim como não se
se comprazem. E, da mesma forma, pode amar muitas pessoas ao mesmo
também as pessoas acrimoniosas não tempo (pois o amor é, de certo modo,
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 185
7
Mas existe outra espécie de amiza- está em proporção com o mérito, ao
de, a saber, a que envolve uma desi- passo que a igualdade quantitativa é
gualdade entre as partes, como a de pai secundária; mas na amizade a igual-
para filho e, em geral, de mais velho dade quantitativa é primária, e a pro-
para mais jovem, a de marido para porção ao mérito, secundária. Isso se
mulher e, em geral, de governante para torna claro quando há uma grande dis-
súdito. E essas amizades diferem tam- tância entre as partes no que se refere à
15 bém umas das outras, pois a que existe virtude, ao vício, à riqueza ou outra
entre pais e filhos não é a mesma que coisa qualquer; pois nesse caso já não 35
entre governantes e súditos, nem a são amigos e nem sequer esperam sê-
amizade de pai para filho é a mesma lo. E a situação é manifesta acima de
que a de filho para pai, como a de ma- tudo quando se trata dos deuses, que
rido para mulher não é a mesma que a nos ultrapassam imensamente em tudo
de mulher para marido. Com efeito, a o que é bom. Mas é também clara no 1159 a
virtude e a função de cada uma dessas tocante aos reis, pois os homens que
pessoas são diferentes, e por isso tam- lhes são muito inferiores tampouco
bém diferem as suas razões para amar; esperam tornar-se seus amigos, nem
e outra conseqüência do mesmo fato é indivíduos de pouca valia esperam ser
que amor e amizade diferem igual- amigos dos melhores ou mais sábios
mente um do outro. dentre os homens.
20 Cada parte, pois, nem recebe a Em tais casos não é possível definir
mesma coisa da outra nem deveria com exatidão até que ponto os amigos
buscá-la; mas quando os filhos pres- podem permanecer amigos. Com efei-
tam aos pais aquilo que devem prestar to, a amizade pode sobreviver ao
aos que os puseram no mundo, e os desaparecimento de muitos elementos
pais aquilo que devem prestar aos que a compunham, mas quando uma
filhos, a amizade entre tais pessoas é das partes é afastada para muito longe,
duradoura e excelente. como sucede com Deus, cessa a possi-
Em todas as amizades que envolvem bilidade de amizade. Essa é, aliás, a 5
desigualdade, o amor também deve ser origem da questão sobre se os amigos
25 proporcional, isto é, o melhor deve realmente desejam aos seus amigos os
receber mais amor do que dá, assim maiores bens, como o de serem deuses,
como deve ser mais útil, e analoga- visto que em tal caso seus amigos dei-
mente em cada um dos outros casos; xarão de sê-lo e, por conseguinte, já
pois quando o amor é proporcional ao não representarão bens para eles (por-
mérito das partes estabelece-se, em que os amigos são realmente um gran-
certo sentido, a igualdade, que é de bem). A resposta é que, se tínhamos
indubitavelmente considerada uma ca- razão em afirmar que o amigo deseja
racterística da amizade. bem ao seu amigo por ele mesmo, este
Mas a igualdade não parece assumir deve continuar sendo a espécie de ser /0
vez não lhe deseje todos os maiores quer outro, que cada homem deseja o
bens, pois é a si mesmo, antes de qual- bem.
A maioria das pessoas parecem, de- perar; e amam os seus filhos mesmo
vido à ambição, preferir ser amada a quando estes, por ignorância, não lhes
amar. E é por isso que os homens, em dão nada do que se deve a uma mãe.
geral, amam a Com efeito, o E assim, como a amizade depende
lisonjeiro é um amigo em posição infe- mais do amar que do ser amado, e são
J5 rior, ou finge ser tal ao mesmo tempo os que amam os seus amigos que são
que simula amar mais do que é amado; louvados, o amar parece ser a virtude 35
e ser amado parece ter bastante seme- característica dos amigos, de modo
lhança com ser honrado, e isso é o que que só aqueles que amam na medida
a maioria das pessoas ambicionam. justa são amigos duradouros, e só a
Entretanto, dir-se-ia que elas não amizade desses resiste ao tempo.
preferem a honra em si, mas apenas É deste modo, mais que de qualquer 1159 b
acidentalmente; porquanto a maioria outro, que até os desiguais podem ser
gosta de ser honrada pelos que ocupam amigos, pois é possível estabelecer-se
20 posição de autoridade, em razão de uma igualdade entre eles. Ora, igual-
suas esperanças (pois pensam que, se dade e semelhança são amizade, e
necessitarem de alguma coisa, conse- especialmente a semelhança dos que
gui-las-âo com eles, e por isso se com- são afins pela virtude. Com efeito, 5
prazem na honra como prenúncio de sendo constantes por natureza, eles
favores futuros). Os que desejam ser mantêm-se fiéis um ao outro e não soli-
honrados por homens bons e sábios, citam nem prestam serviços baixos,
por seu lado, querem confirmar a boa mas pode-se dizer que até previnem
opinião que fazem de si mesmos; e, por tais ocorrências, pois é característico
conseguinte, deleitam-se em ser honra- dos homens bons não fazer o mal eles
dos porque acreditam na sua própria próprios, nem permitir que seus ami-
bondade estribados no julgamento dos gos o façam. Os maus, porém, não têm
que falam a seu respeito. constância, visto que nem sequer a si
O ser amado, por outra parte, é mesmos se mantêm semelhantes, mas
25 deleitável em si mesmo, e por isso afi- são amigos durante breve tempo, por
gura-se preferível ao ser honrado; e a se deleitarem na maldade um do outro. 10
amizade parece digna de ser desejada As amizades úteis ou agradáveis
por si mesma. Mas dir-se-ia que ela re- duram mais, isto é, subsistem enquanto
side antes em amar do que em ser QS amigos proporcionam prazeres ou
amado, como mostra o deleite que as vantagens um ao outro.
mães sentem em amar; pois algumas A amizade com vistas na utilidade
mães entregam os filhos a outros para parece ser a que mais facilmente se
serem educados, e, enquanto conhecem forma entre contrários, como, por
30 o destino deles, amam-nos sem procu- exemplo, entre pobre e rico, entre igno-
rar ser amadas em troca (se não lhes rante e letrado; porque um homem
são possíveis ambas as coisas), mas ambiciona" aquilo que lhe falta e dá
parecem contentar-se em vê-los pros- algo em troca. Mas nesta classe tam- J5
188 ARISTÓTELES
25 Como dissemos no começo de nossa e os dos irmãos entre si, nem os dos
discussão 1 o 6, a amizade e a justiça camaradas ou dos concidadãos; e o
parecem dizer respeito aos mesmos mesmo no que toca às outras espécies
objetos e manifestar-se entre as mes- de amizade.
mas pessoas. Com efeito, em toda Há também uma diferença, por
comunidade pensa-se que existe algu- conseguinte, entre os atos que são
ma forma de justiça, e igualmente de injustos para com cada uma dessas
amizade; pelo menos, os homens diri- classes de associados, e a injustiça
gem-se como amigos aos seus compa- cresce de ponto quando se manifesta
nheiros de viagem ou camaradas de para com os que são amigos num sen-
armas, e da mesma forma aos que se tido mais pleno; por exemplo, é mais
lhes associam em qualquer outra espé- detestável defraudar um camarada do
cie de comunidade. E até onde vai a que um concidadão, mais odioso dei- 5
xar de ajudar um irmão do que um
30 sua associação vai a sua amizade, estranho, e mais abominável ferir o
como também a justiça que entre eles próprio pai do que a qualquer outro. E
existe. E o provérbio segundo o qual as imposições da justiça também pare-
"os amigos têm tudo em comum" é a cem aumentar com a intensidade da
expressão da verdade, pois a amizade amizade, o que implica que a amizade
depende da comunhão de bens. e a justiça existem entre as mesmas
Ora, os irmãos e os camaradas pos- pessoas e são coextensivas.
suem todas as coisas em comum, mas Ora, todas as formas de comunidade
esses outros a quem nos referimos pos- são como partes da comunidade políti-
suem em comum certas coisas - al- ca. Por exemplo: é tendo em vista algu-
guns mais e outros menos: porque das ma vantagem particular que os homens
35 amizades, também algumas são verda- viajam juntos, e a fim de proverem al- 10
deiras amizades em maior e outras em guma coisa necessária à vida; e é por
menor grau. E as imposições da justiça causa da vantagem que a comunidade
também diferem: não são os mesmos política parece ter-se formado e perdu-
I 160a os deveres dos pais para com os filhos rar, pois esse é o objetivo que os legis-
ladores se propõem, e chamam justo o
106 I 155 a 22-28. (N. do T.) que concorre para a vantagem comum.
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 189
10
Existem três espécies de constitui- pois o contrário do melhor é que é o
ção e igual número de desvios - pior.
perversões daquelas, por assim dizer. A monarquia degenera em tirania, lO
As constituições são a monarquia, a que é a forma pervertida do governo de
aristocracia, e em terceiro lugar a que um só homem, e o mau rei converte-se
se baseia na posse de bens e que seria em tirano. A aristocracia, por seu lado,
talvez apropriado chamar timocracia, degenera em oligarquia pela ruindade
embora a maioria lhe chame governo dos governantes, que distribuem sem
35 do povo. A melhor delas é a monar- equidade o que pertence ao Estado -
quia, e a pior é a timocracia. todas ou a maior parte das coisas boas
O desvio da monarquia é a tirania, para si mesmos, e os cargos públicos
pois que ambas são formadas de sempre para as mesmas pessoas,
1160 b governo de um só homem, mas há olhando acima de tudo a riqueza; e /5
entre elas a maior diferença possível. O destarte os governantes são poucos e
tirano visa à sua própria vantagem, o maus, em lugar de serem os mais
rei à vantagem de seus súditos. Com dignos.
efeito, um homem não é rei a menos A timocracia, por seu lado, dege-
que baste a si mesmo e supere os seus nera em democracia. Ambas são coex-
súditos em todas as boas coisas. Ora, tensivas, já que a própria timocracia
um homem em tais condições de mais tem como ideal o governo da maioria,
nada precisa, e por isso não olhará aos e os que não têm posses são contados
5 seus interesses, mas aos de seus súdi- como iguais aos outros. A democracia
tos; pois o rei que assim não for terá é a menos má das três espécies de
da realeza apenas o título. Ora, a tira- perversão, pois no seu caso a forma de
nia é o contrário exato de tudo isso: o constituição não apresenta mais que
tirano visa ao seu próprio bem. E é evi- um ligeiro desvio.
dente ser esta a pior forma de desvio, São estas pois as mudanças a que
190 ARISTÓTELES
11
/0 Mostra a observação que cada uma filhos, a qual todos consideram o
das constituições comporta amizade maior dos bens, assim como provê à
na exata medida em que comporta a sua alimentação e educação. Tudo isso
justiça. A amizade entre um rei e seus se costuma atribuir também aos avós.
súditos depende de um excesso de E acresce que, por natureza, um pai
benefícios conferidos, porquanto o rei tende a governar seus filhos, os avós
os confere aos seus súditos quando, aos descendentes e os reis aos seus sú-
sendo ele um homem bom, zela pelo ditos. Estas amizades implicam supe- 20
bem-estar destes, como faz o pastor rioridade de uma parte sobre a outra,
com as suas ovelhas (e por isso Home- sendo essa a razão das honras que se
ro chamou a Agamenon "pastor dos prestam aos antepassados.
15 povos 1 OS"). E tal é também a amizade Portanto, a justiça que existe entre
de um pai, embora este exceda o outro pessoas assim relacionadas não é a
na grandeza dos benefícios dispensa- mesma de parte a parte, mas sempre
dos, pois é a causa da existência dos proporcional ao mérito; porquanto
isso é verdadeiro também da própria
1o8 Por exemplo, Ilíada II, 243. (N. do T.) amizade.
ÉTICA A NICÔMACO VIII 191
A amizade entre marido e mulher, uma vez que não há justiça. Por exem- 35
por outro lado, é a mesma que se plo, entre artífice e ferramenta, alma e
observa na aristocracia, já que está de corpo, amo e escravo, os segundos ter-
acordo com a virtude: o melhor recebe mos de cada uma dessas dualidades
maior quinhão de bens e cada um rece- são beneficiados por aqueles que os 1161 b
be o que lhe compete; e o mesmo se utilizam, mas não existe amizade nem
pode dizer da justiça nessas relações. justiça para com coisas inanimadas.
25 A amizade de irmãos é como a de Mas tampouco existe amizade para
camaradas, porquanto são iguais e com um cavalo, um boi ou um escravo
próximos uns dos outros pela idade; e enquanto escravo, pois não há nada de
comum entre as duas partes: o escravo 5
tais pessoas, em geral, assemelham-se
é uma ferramenta viva e a ferramenta é
nos sentimentos e no caráter. E tam-
um escravo inanimado. Enquanto es-
bém é semelhante a esta a amizade
cravo, pois, não se pode ser seu amigo,
apropriada ao governo timocrático; mas enquanto homem isso é possível,
pois numa tal constituição o ideal é pois parece haver uma certa justiça
serem os cidadãos iguais e eqüitativos, entre um homem qualquer e outro
e por isso o governo é assumido homem qualquer que tenham condi-
turnos numa base de igualdade. E a ções para participar de um sistema
amizade apropriada a esta constituição jurídico ou ser partes num ajuste: logo,
corresponde à que descrevemos. pode haver amizade com ele na medida
30 Nas formas de desvio, porém, como em que é um homem.
mal existe justiça, também é rara a Por conseguinte, embora nas tira-
amizade. E onde menos existe é na pior nias mal existam a amizade e a justiça, /O
das formas: na tirania há pouca ou nas democracias elas têm uma exis-
nenhuma amizade. Com efeito, onde tência mais plena, pois onde há igual-
nada aproxima o governante dos go- dade entre os cidadãos estes possuem
vernados não pode haver amizade, muito em comum.
12
Como dissemos 1 09, pois, toda a for- depender em todos os casos da amiza-
ma de amizade envolve associação. Po- de paterno-filial; porquanto os pais
der-se-ia, no entanto, distinguir das ou- amam os filhos como partes de si mes-
tras a amizade dos familiares e a dos mos, e os filhos amam os pais por
camaradas. As dos concidadãos, contri- serem algo que se originou deles. Ora
15 bais, companheiros de viagem, etc., se (1), os pais conhecem os filhos melhor
assemelham mais às amizades de asso- do que estes se conhecem como seus
ciação, pois parecem repousar sobre filhos, e (2) o procriador sente os filhos 20
uma espécie de pacto. Nesta classe po- como seus mais do que os filhos sen-
deríamos incluir a amizade entre hóspe- tem os pais como seus, pois o produto
de e hospedeiro. pertence a quem o produziu (como, por
A própria amizade dos familiares, exemplo, um dente, um fio de cabelo
embora seja de várias espécies, parece ou qualquer outra coisa pertence ao
seu dono), mas o produtor não per-
109 1159 b 29-32. (N. do T.) tence ao seu produto, ou pertence em
192 ARISTÓTELES
ser a mesma questão que a de determi- mos deveres para com um amigo, um
nar qual seja a sua conduta justa, por- estranho, um camarada e um condiscí-
Que um homem não parece ter os mes- pulo.
13
Existem três espécies de amizade, baseadas no prazer surgem muitas
como dissemos no começo de nossa queixas, porque ambos recebem simul-
35 investigação 1 1 o, e com respeito a cada taneamente o que desejam, se se com-
uma delas alguns são amigos em ter- prazem em passar o tempo juntos; e
mos de igualdade e outros em virtude mesmo o homem que se queixasse de 15
de uma superioridade (pois não só ho- outro por não lhe proporcionar prazer
mens igualmente bons podem tornar-se seria ridículo, uma vez que depende
1162 b amigos, mas um homem melhor pode dele não passar seus dias em compa-
fazer amizade com outro pior, e tam- nhia desse outro.
bém nas amizades que se baseiam no Mas a amizade que se baseia na uti-
prazer ou na utilidade os amigos lidade é repleta de queixas; porquanto,
podem ser iguais ou desiguais quanto como cada um se utiliza do outro em
aos benefícios que conferem). Assim seu próprio beneficio, sempre querem
sendo, os iguais devem ser amigos lucrar na transação, e pensam que saí-
numa base de igualdade quanto ao ram prejudicados e censuram seus
amor e a todos os outros respeitos, ao amigos porque não recebem tudo o que
passo que os desiguais devem benefi- "necessitam e merecem"; e os que
ciar-se proporcionalmente à sua supe- fazem bem a outros não podem ajudá-
rioridade ou inferioridade. los tanto quanto eles querem. 20
5 As queixas e censuras surgem unica-
mente ou principalmente nas amizades Ora, é de supor que, sendo a justiça
que se baseiam na utilidade, e isso está de duas espécies, uma não escrita e a
conforme ao que seria de esperar. Com outra legal, haja também uma espécie
efeito, os que são amigos com base na moral e outra legal de amizade basea-
virtude anseiam por fazer bem um ao da na utilidade. E assim, as queixas
outro (pois que isso é' uma marca de surgem principalmente quando os ho-
virtude e de amizade), e entre homens mens não dissolvem a relação dentro
que emulam entre si nessas coisas não do espírito do mesmo tipo de amizade
pode haver queixas nem disputas. Nin- em que a contraíram.
guém é ofendido por um homem que o O tipo legal é aquele que assenta 25
lO ama e lhe faz bem - e, se é uma pes- sobre termos defmidos. Sua variedade
soa de nobres sentimentos, vinga-se puramente comercial baseia-se no pa-
fazendo bem ao outro. E o homem que gamento imediato, enquanto a varie-
supera o outro nos serviços prestados dade mais liberal dá uma certa mar-
não se queixará do seu amigo, visto gem de tempo, mas estipula uma troca
que obtém aquilo que tinha em vista: definida. Nesta variedade a dívida é
com efeito, cada um deles deseja o que clara e não ambígua, mas a sua prote-
é bom. E tampouco nas amizades lação contém um elemento de amiza-
de; e por isso alguns Estados não 30
11 o 1156 a 7. (N, do T.) admitem ações judiciais em torno de
194 ARISTÓTELES
tais acordos, mas pensam que os ho- nos é possível. Mas de início devemos
mens que transacionaram numa base considerar o homem por quem estamos
de crédito devem aceitar as conseqüên- sendo beneficiados e em que termos ele
cias. procede, a fim de aceitar o benefício
O tipo moral não assenta em termos nesses termos, ou então recusá-lo.
fixos. Faz uma dádiva, ou o que quer É discutível se medir um la
que seja, como se fosse a um amigo; serviço pela sua utilidade para o bene-
mas espera receber outro tanto ou ficiado e retribuí-lo nessa base, ou pela
mais, como se não tivesse dado e sim benevolência do benfeitor. Com efeito,
emprestado; e, se a situação de um os que recebem dizem ter recebido de
deles é pior após dissolver-se a relação seus benfeitores o que custou pouco a
do que antes de havê-la contraído, esse estes e que eles poderiam ter obtido de
35 homem se queixará. Isso acontece por- outros - subestimando dessa forma o
que todos os homens ou a maioria serviço; ao passo que os benfeitores,
deles desejam o que é nobre mas esco- pelo contrário, afirmam ter feito o má-
lhem o que é vantajoso; ora, é nobre ximo que podiam e o que não poderia 15
fazer bem a um outro sem visar a qual- ter sido obtido de outros, e que o servi-
quer compensação, mas receber benefí- ço foi prestado em ocasião de perigo
cios é que é vantajoso. ou de necessidade.
1163. Portanto, cabe-nos retribuir, se pos- Ora, se a amizade é do tipo que visa
sível, com o equivalente do que tecebe- à utilidade, certamente a vantagem
mos (porque não devemos fazer de um para o beneficiado é a medida, por-
homem nosso amigo contra a sua von- quanto é ele quem solicita o serviço e o
tade; é preciso reconhecer que nos outro o ajuda na suposição de que
enganamos de começo, aceitando um receberá o equivalente. Destarte, a
benefício de uma pessoa de quem não ajuda foi exatamente igual à vantagem
devíamos aceitá-lo, já que não era do beneficiado, o qual, por conse- 20
nosso amigo, nem de alguém que o fez guinte, deve retribuir com o equiva-
simplesmente por fazer; e cumpre-nos lente do que recebeu, ou mais (pois
saldar as contas exatamente como se isso seria mais nobre).
tivéssemos sido beneficiados com base Nas amizades que se baseiam na
5 em termos fixos). Em verdade, tería- virtude, por outro lado, não surgem
mos concordado em retribuir se pudés- queixas, mas o propósito do benfeitor é
semos (do contrário, o próprio benfei- uma espécie de medida; pois no propó-
tor não contaria com isso); e, por sito reside o elemento essencial da vir-
I conseguinte, devemos retribuir, se isso tude e do caráter.
14
Também nas amizades que se ba- espera a mesma coisa. E dizem que um
25 seiam na superioridade surgem dissen- homem inútil não deve receber tanto
sões, pois cada qual espera obter mais quanto eles, visto que nesse caso a
proveito delas, mas, quando isso acon- amizade deixa de ser amizade para
tece, a amizade se dissolve. Não só o converter-se num serviço público 30
homem melhor pensa que lhe cabe quando os seus proveitos não corres-
receber mais, de vez que um homem pondem ao valor dos benefícios confe-
bom faz jus a mais, como o mais útil ridos. Porque tais pessoas pensam que,
ÉTICA A NICÔMACO - VIII 195
tia tudo, agora não cumpre nada. Tais sita é aquilo a que se aplica, e é em
incidentes acontecem quando o amante troca disso que dá o que tem.
ama o amado com vistas no prazer, Mas quem fixará o valor do serviço:
enquantooamado ama o amante com o que se sacrifica ou o que alcança a
vistas na utilidade, e nenhum dos dois vantagem? Seja como for, o outro pa-
possui as qualidades que deles se espe- rece deixar a decisão com ele. Era
ram. Se tais são os objetivos da amiza- assim, segundo se conta, que Protá-
de, esta se dissolve quando os dois não goras costumava proceder: toda vez 25
/0 obtêm as coisas que constituíam os que ensinava uma coisa qualquer,
motivos de seu amor; porquanto ne- mandava o· aluno estimar o valor do
nhum deles amava o outro por si conhecimento e aceitava a quantia que
mesmo, mas apenas as suas qualida- ele tivesse fixado. Mas em tais assun-
des, e estas não eram duradouras. Eis tos alguns aprovam o aforismo: "Que
aí por que essas amizades também são cada um tenha a sua recompensa
passageiras. Mas o amor dos caracte- fixat t s".
Os que, tendo recebido o dinheiro mas foi feita com a mira na retribui-
com antecipação, não fazem nada do ção, é certamente preferível que se
que haviam prometido por causa da retribua de maneira que pareça justa a
extravagância de suas promessas são ambas as partes; mas, se isso não for
30 naturalmente objetos de queixa porque possível, não apenas será necessário
não cumprem o que pactuaram fazer. mas também justo que o primeiro
Os sofistas são talvez forçados a agir beneficiado fixe a recompensa. Com 10
assim porque ninguém lhes daria efeito, se o outro receber em troca o
dinheiro em troca das coisas que eles equivalente da vantagem auferida por
realmente sabem. Essas pessoas, por ele, ou o preço que teria pago pelo pra-
conseguinte, se não fazem aquilo para zer, terá recebido o que é justo da parte
que foram pagas, são naturalmente do primeiro beneficiado.
objetos de queixa. Vemos acontecer o mesmo com as
Mas quando não há contrato de ser- coisas que são postas à venda, e em al-
viço, aqueles que renunciam a alguma guns lugares a lei proscreve as deman-
coisa no interesse da outra parte não das originadas de contratos voluntá-
podem, como dissemos 1 1 5, ser acusa- rios, partindo do princípio de que cada
35 dos, porquanto essa é a natureza da um deve ajustar suas contas com aque- 15
I 164 b amizade baseada na virtude; e a retri- les a quem deu crédito, dentro do
buição lhes deve ser feita de acordo mesmo espírito em que transacionou
com o seu propósito (pois o propósito com eles. A lei considera mais justo
é o que caracteriza tanto um amigo as condições sejam fixadas pelo
como a virtude). E da mesma forma, rrnem a quem se concedeu crédito do
segundo parece, deveriam ser retri- que pelo outro, pois que a maioria das
buídos aqueles com quem estudamos coisas não são estimadas no mesmo
filosofia, pois o seu valor não pode ser valor pelos que as possuem e pelos que
medido pelo dinheiro, nem há honra necessitam delas. Cada classe dá gran-
que esteja à altura de seus serviços; de valor ao que é seu e que ela oferece;
5 entretanto, é talvez suficiente, como no não obstante, a retribuição é feita nos
caso dos deuses e de nossos pais, dar- termos fixados pelo que recebe. Mas, 20
lhes aquilo que podemos. sem dúvida, este deve avaliar uma
Se a dádiva não era dessa espécie coisa não pelo que lhe parece valer
quando a possui e sim pelo valor que
11·1l62b6-13.(N.doT.) lhe atribuía antes de possuí-la.
ção é mais fácil quando as pessoas per- isso devemos furtar-nos à tarefa, mas
tencem à mesma classe, e mais traba- cumpre-nos decidir a questão como
35 lhosa quando são diferentes. Nem por melhor pudermos.
Outra .questão que se apresenta é nem pode nem deve ser amado, pois
sobre se convém ou não romper a ami- ninguém tem o dever de amar o mau,
zade quando a outra parte não perma- nem de tomar-se semelhante a ele; e já
11Mb nece a mesma. Talvez se possa dizer temos dito 1 1 9 que o semelhante é caro
que não há nada de estranho em rom- ao semelhante.
per uma amizade baseada na utilidade Deve, então, ser a amizade imedia-
ou no prazer quando nossos amigos já tamente rompida? Ou não será assim
não possuem tais atributos. Pois foi em todos os casos, mas apenas quando
por causa destes que nos tomamos nossos amigos são incuráveis em sua
amigos; e quando eles deixam de exis- maldade? Se são passíveis de reforma,
tir, é razoável que não se sinta mais deveríamos antes procurar ajudá-los
5 amor. Mas poderíamos queixar-nos de no que toca ao seu caráter ou aos seus
um outro se, tendo-nos amado pela bens materiais, tanto mais que isso é
nossa utilidade ou aprazibilidade, si- melhor e mais característico da amiza- 20
mulou amar-nos pelo nosso caráter. de. Mas ninguém acharia estranho que
Porque, como dissemos no começo 1 1 8, alguém rompesse semelhante amizade,
as mais das vezes surgem os desenten- pois não era amigo de um homem
dimentos entre amigos quando não são dessa espécie; uma vez que seu amigo
amigos .dentro do espírito em que pen- mudou e ele não pode salvá-lo, é justo
sam sê-lo. E assim, quando um homem que o abandone.
iludiu a si mesmo julgando que era Mas se um dos amigos permane-
amado pelo seu caráter e isso não cesse o mesmo e o outro se tomasse
correspondia em absoluto à verdade, melhor e o ultrapassasse grandemente
não pode ele censurar a ninguém senão em virtude, deveria o segundo tratar o
a si próprio; mas quando foi iludido primeiro como amigo? Seguramente,
10 pelas simulações da outra pessoa, é isso não é possível. A verdade do que 25
justo que se queixe de quem o enganou dizemos se evidencia sobretudo quan-
- mais justo, até, do que quando nos
do o intervalo é grande, como no caso
queixamos de falsificadores de moe-
das amizades de infância: se um dos
das, porquanto o mal diz respeito a
amigos permaneceu uma criança quan-
uma coisa mais valiosa.
Mas quando aceitamos um homem to ao intelecto, ao passo que o outro se
como bom e ele .se revela e patenteia tomou um homem na inteira acepção
mau, devemos continuar a amá-lo? da palavra, como podem continuar
Isso é certamente impossível, visto que amigos se não aprovam as mesmas
não se podem amar todas as coisas, coisas, nem se deleitam ou contristam
15 mas apenas o que é bom. O que é mau com. as mesmas coisas? Porquanto
118 1162 b 23-25. (No To) 119 1156 b 19-21, 1159 b lo (No do To)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 203
nem mesmo com respeito um ao outro com ele como se nunca tivéssemos sido
haverá concordância entre os seus gos- seu amigo? Certamente nos recorda-
tos, e sem isso (como já vimos 120) , não remos de nossa antiga intimidade, e
pode haver amizade, pois impossível é como somos de opinião que convém
30 viverem dois juntos. Já discutimos, obsequiar nossos amigos de prefe-
porém, estes assuntos 12 1 • rência a estranhos, também no caso 35
Devemos, então, conduzir-nos para dos que foram nossos amigos devemos
levar em consideração a amizade de
120 1157 b 22-24. (N. do T.) outrora, se o rompimento não se deveu
, 2 1 Ibid. 17-24, 1158 b 33-35. (N. do a um excesso de maldade.
11668 As relações amigáveis com seu toda a sua alma as mesmas coisas; por
semelhante e as marcas pelas quais são conseguinte, deseja para si o que é bom
defmidas as amizades parecem proce- e o que parece sê-lo, e o faz (pois é 15
der das relações de um homem para característico do homem bom pôr em
consigo mesmo. Com efeito (I), defini- prática o bem), e assim procede no seu
mos um amigo como aquele que deseja próprio interesse (isto é, no interesse
e faz, ou parece desejar e fazer o bem do elemento intelectual que possui em
no interesse de seu amigo, ou (2) como si e que. é considerado como sendo o
aquele que deseja que seu amigo exista próprio homem); e a si mesmo deseja a
5 e viva, por ele mesmo; e é o que as vida e a preservação, em especial do
mães fazem aos seus filhos e o que elemento em virtude do qual ele pensa.
fazem os amigos que entraram em Porquanto a existência é boa para o
conflito 122. E (3) outros o definem homem virtuoso, e cada um deseja
como aquele que vive na companhia de para si o que é bom, ao passo que nin- 20
um outro e (4) tem os mesmos gostos guém desejaria possuir o mundo intei-
que ele, ou (5) o que compartilha os ro se para tanto lhe fosse preciso tor-
pesares e alegrias de seu amigo; e isso [lar-se uma outra pessoa (quanto a
também é encontrado principalmente isso, Deus é quem tem a posse atual do
nas mães. É por. alguma destas carac- bem). Tal homem só deseja essas coi-
terísticas que a amizade é definida. sas com a condição de continuar sendo
10 Ora, cada uma delas é verdadeira do o que é; e o elemento pensante parece
homem bom em relação a si mesmo (e ser o próprio indivíduo, ou sê-lo mais
de todos os outros homens na medida do que qualquer outro dos elementos
em que se consideram bons; a virtude e que o formam. E ele deseja viver consi-
o homem bom parecem, como disse- go mesmo, e o faz com prazer, já que
mos 1 2 3 , ser a medida de todas as clas- se compraz na recordação de seus atos
ses de coisas). Com efeito, as suas opi- passados e suas esperanças para o fu- 25
niões são harmônicas e ele deseja de turo são boas, e portanto agradáveis.
Tem, do mesmo modo, a mente bem
122 Alguns editores eliminam esta parte final, Mas provida de objetos de contemplação. E
o sentido deve ser: Houve uma controvérsia que sofre e se alegra, mais do qualquer
lhes prejudica a união, mas ainda os deixa com boa
disposição de um para com o outro. do E.) outro, consigo mesmo; porquanto a
123 1113 a 22-33, cf. 1099 a 13. (N. do T.) mesma coisa é sempre dolorosa, e a
204 ARISTÓTELES
5
30 A benevolência é uma especie de com a amizade, pois que tanto pode-
relação amigável, não se identifica mos senti-la para com pessoas a quem
ÉTICA A NICÕMACO - IX 205
não conhecemos como sem que elas antes não sentiram benevolência uma
próprias o saibam, ao passo que com a para com a outra, mas pelo simples
amizade não sucede assim. Isto, aliás, fato de sentirem benevolência não se
já ficou atrás"> 4. Mas a benevo- pode dizer que sejam amigas, por-
lência não é sequer um sentimento quanto apenas desejam bem ao outro,
amistoso, já que não envolve intensi- mas não cooperariam em nada com ele
dade ou desejo, enquanto o sentimento nem se dariam ao trabalho de ajudá-lo.
de amizade é acompanhado desses ele- E assim, por uma extensão do termo /O
35 mentos. Além disso, amizade implica amizade, poder-se-ia dizer que a bene-
intimidade, enquanto benevolência volência é uma amizade inativa, se
pode surgir repentinamente, como bem que passe a ser amizade verda-
acontece para com os adversários deira quando se prolonga e chega ao
11678 numa competição: sentimos benevo- ponto da intimidade. Não se trata aqui,
lência para com eles e compartilhamos porém, da amizade baseada na utili-
os seus desejos, mas não coopera- dade nem da que tem por objeto o pra-
ríamos em nada com eles; porque, zer, pois tampouco a benevolência
como dizíamos, esse sentimento nos surge em tais condições.
vem de súbito e nós só os amamos O homem que recebeu um benefício
superficialmente. retribui com benevolência, e nisso não 15
faz senão o que é justo, enquanto o que
A benevolência parece, pois, ser um deseja a prosperidade de alguém por-
começo de amizade, como o prazer que espera enriquecer através dele não
dos olhos é o começo do amor. Porque parece sentir benevolência para com
5 ninguém ama se não se deleitou iní- tal pessoa, mas antes para consigo
cio com a forma do ser amado; mas mesmo, assim como um homem não é
nem por isso o que se deleita com a amigo de outro se o estima apenas por
forma de um outro o ama: é causa de algum proveito que possa
preciso que sinta a sua falta quando tirar dele. Em geral, a benevolência
está ausente e que anseie pela sua pre- surge em virtude de alguma excelência
sença. Do mesmo modo, não é possível ou mérito, quando um homem parece a
que duas pessoas sejam amigas se outro belo, bravo ou algo de seme-
lhante, como fizemos ver no caso dos 20
124 1155 b 32 - 1156 a5. (N.do T.) adversários numa competição.
6
A unanimidade também parece ser mas dizemos que cidade é unâ-
uma r.elação amigável. Por este motivo nime quando os homens têm a mesma
não é ela identidade de opinião, a qual opinião sobre o que é de seu interesse,
poderia ocorrer mesmo entre pessoas escolhem as mesmas ações e fazem em
que não se conhecem. E tampouco comum o que resolveram.
dizemos que os que têm a mesma opi- É, portanto, a respeito das coisas a
nião sobre todo e qualquer assunto fazer que se diz que as pessoas são
sejam unânimes, como por exemplo os unânimes; e, entre elas, dos assuntos
que concordam no tocante aos corpos importantes em que é possível a ambas
15 celestes (pois a unanimidade esse res- ou a todas as partes obterem o que pre- 30
peito não é uma relação amigável); tendem; por exemplo, uma cidade é
206 ARISTÓTELES
que emprestaram dinheiro nem sequer ação, enquanto o paciente não vê nada
30 apresenta analogia com este. Com efei- de nobre no agente, mas no máximo
to, os credores não têm nenhum senti- algo de vantajoso; e isso é menos agra-
mento amistoso para com os seus dável e estimável. O que é agradável é
devedores, mas apenas desejam vê-los a atividade do presente, a esperança do
em segurança por causa do que têm a futuro e a memória do passado; mais
receber deles; enquanto os que presta- agradável que tudo, porém, e também
ram um serviço a outrem sentem ami- mais estimável, é o que depende da ati-
zade e amor por aqueles a quem servi- vidade. Ora, para o homem que fez al- 15
ram, mesmo que estes não lhes sejam guma coisa a sua obra permanece (pois
de nenhuma utilidade nem jamais pos- o nobre é duradouro), mas para aquele
sam vir a sê-lo. É o que acontece tam- que foi objeto da ação a utilidade não
bém com os artífices, por exemplo: tarda a passar. E a lembrança das coi-
35 cada um ama o trabalho saído de suas sas nobres é agradável, enquanto a das
mãos muito mais do que o amaria este coisas úteis não costuma sê-lo, ou o é
se pudesse adquirir vida. E mais que menos. No caso da expectação, contu-
1168 a ninguém, talvez, os poetas, que devo- do, o contrário disso é que parece ser
tam excessivo amor aos seus poemas, verdadeiro.
idolatrando-os como se fossem seus Acresce que o amor é como a ativi-
filhos. dade, e ser amado assemelha-se à
A posição dos benfeitores é seme- passividade; e o amor e os seus conco- 20
lhante: a pessoa a quem fizeram bem é mitantes são os atributos dos mais ati-
como se fosse sua obra, que eles amam vos dentre os homens.
5 mais do que a obra ama o seu artífice. E finalmente, todos os homens têm
Isso, porque a existência é para todos maior amor ao que ganharam como
os homens uma coisa digna de ser fruto do seu trabalho. Por exemplo, os
escolhida e amada; ora, nós existimos que fizeram a sua fortuna amam-na
em virtude da atividade (isto é, vivendo mais do que aqueles a quem ela veio
e agindo), e a obra é, em certo sentido, por herança; e ser bem tratado não pa-
uma produtora de atividade; portanto, rece envolver trabalho, enquanto fazer
o artífice ama a sua obra porque ama a bem a outrem é tarefa laboriosa. São
existência. E isso tem raízes profundas estas também as razões por que as
na natureza das coisas, pois o que ele é mães têm mais amor a seus filhos do
em potência, sua obra o manifesta em os pais; pô-los no mundo lhes 25
ato. custou mais dores e elas sentem mais
10 Ao mesmo tempo, para o benfeitor é profundamente que os filhos lhes per-
nobre aquilo que depende da sua ação. tencem. Este último ponto parece apli-
E assim se deleita com o objeto da sua car-se igualmente aos benfeitores.
for. É acusado, por exemplo, de não nhão maior de riquezas, honras e pra-
fazer nada espontaneamente, enquanto zeres corporais, pois essas são as coi-
o homem bom age tendo em vista a sas que a maioria deseja e pelas quais
honra, sacrificando os seus interesses se esforça como se fossem as melhores
pessoais, e isso tanto mais quanto me- de todas; e também por esse motivo se
lhor ele for. tomam objetos de competição. E os 20
35 Mas os fatos estão em conflito com que são cúpidos com respeito a elas
estes argumentos, o que aliás não é de satisfazem os seus apetites e, de modo
surpreender. Com efeito, dizem os ho- geral, os seus sentimentos e o elemento
mens que deveríamos amar acima de irracional de sua alma.
1168 b tudo o nosso melhor amigo, e o melhor Ora, a maioria dos homens são
amigo de um homem é aquele que lhe dessa natureza, e esse é o motivo de ser
deseja bem por ele mesmo, ainda que usado o epíteto em tal acepção: ele re-
ninguém venha a ter conhecimento cebe o seu significado do tipo predomi-
disso; e esses atributos são encon- nante de autofilia, que é mau. É justo,
trados principalmente na atitude de um por conseguinte, que os homens que
homem para consigo mesmo, como amam a si mesmos desse modo sejam
todos os outros atributos pelos quais é objetos de censura.
5 definído um amigo; porque, corno E é evidente que a maioria das pes-
dissemos 1 2 7, foi a partir desta relação soas costumam chamar amigos de si
que todas as características da amiza- mesmos aqueles que se dão preferência
de se estenderam aos nossos semelhan- com respeito a objetos dessa espécie; 25
tes. E isto é confirmado pelos provér- porque, se um homem fizesse sempre
bios, como "uma só alma 1 28", "os questão de que ele mesmo, acima de
amigos possuem todas as coisas em todas as coisas, agisse com justiça e
comum", "amizade é igualdade" e "a temperança ou de acordo com qual-
caridade começa por casa", pois todas quer outra virtude, e em geral procu-
essas características são encontradas rasse sempre assumir para si a conduta
principalmente na relação de um mais nobre, ninguém chamaria amigo
homem para consigo mesmo. Ele pró- de si mesmo a um tal homem e nin-
prio é o seu melhor amigo, e por isso guém o censuraria.
deveria amar a si mesmo acima de No entanto, ele parece ser mais
JÓ tudo. É, pois, razoável indagar qual amigo de si mesmo do que o outro.
das duas opiniões seguiremos, porque Pelo menos, atribui a si as coisas mais
ambas são plausíveis. nobres e melhores, satisfaz o elemento JO
Talvez convenha distinguir esses mais valioso de sua natureza e obede-
argumentos uns dos outros e determi- ce-lhe em todas as coisas. E, assim
nar em que medida e a que respeito como uma cidade ou qualquer outro
cada uma das opiniões é verdadeira. todo sistemático é, com toda a justiça,
Ora, a verdade poderá tomar-se evi- identiflcada com o seu elemento mais
dente se apreendermos o sentido em valioso, o mesmo sucede com o indiví-
que cada escola usa a expressão duo humano; e, por conseguinte, o
J5 "amigo de si mesmo". Os que a usam homem que ama esse elemento e o
como termo de censura atribuem a satisfaz é mais amigo de si mesmo que
autofilia aos que abocanham um qui- qualquer outro.
Ainda mais: diz-se que um homem
12 7 Capo 40 (N. do T.) ou não tem domínio próprio con-
12 Eurípides, Orestes, 1046. (No do To) forme a razão domine ou deixe de
ÉTICA A NICÔMACO - IX 209
dominar nele, o que implica que ela é o Do homem bom também é verda-
35 próprio homem; e as coisas que os ho- deiro dizer que pratica muitos atos no
1169 a mens fazem de acordo com um princí- interesse de seus amigos e de sua pá-
pio racional são consideradas mais tria, e, se necessário, dá a vida por eles.
legitimamente atos seus, e atos volun- Com efeito, um tal homem de bom 20
tários. grado renuncia à riqueza, às honras e
É evidente, pois, que esse é o próprio em geral aos bens que são objetos de
homem, ou que o é mais do que qual- competição, ganhando para si a nobre-
quer outra coisa; e também que o za, visto que prefere um breve período
bom ama acima de tudo essa de intenso prazer a uma longa tempo-
sua parte. Donde se segue que ele é no
rada de plácido contentamento, doze
mais legítimo sentido da palavra um meses de vida nobre a longos anos de
amigo de si mesmo, e de um tipo dife-
existência prosaica, e uma só ação
rente daquele que é alvo de censura,
grande e nobre a muitas ações triviais. 25
tanto quanto o viver de acordo com Ora, os que morrem por outrem certa-
um princípio racional difere do viver
mente alcançam esse resultado; é ele,
5 segundo os ditames da paixão, e dese-
pois, um grande prêmio que escolhem
jar o que é nobre de desejar o que pare-
para si mesmos.
ce vantajoso.
Os homens bons também se desfa-
Por isso, todos os homens aprovam
zem de suas riquezas para que os seus
e louvam os que se ocupam em grau
amigos possam ganhar mais, pois,
excepcional com ações nobres; e se
enquanto o amigo de um homem
todos ambicionassem o que é nobre e
adquire riqueza, ele próprio alcança
dedicassem o melhor de seus esforços
à prática das mais nobres ações, todas nobreza: é a ele, portanto, que cabe o
as coisas concorreriam para o bem maior bem. O mesmo se pode dizer das
comum e cada um obteria para si os honras e cargos públicos: tudo isso ele 30
10 maiores bens, já que a virtude é o bem sacrificará ao seu amigo, porque tais
maior que existe. atos são nobres e louváveis nele.
Portanto, o homem bom deve ser Com razão, pois, é um homem
amigo de si mesmo (pois ele próprio assim considerado bom, visto que
escolhe a nobreza acima de tudo. E
lucrará com a prática de atos nobres,
ao mesmo tempo que beneficiará os pode ele, inclusive, deixar a ação ao
seu amigo: em certas ocasiões é mais
seus semelhantes); mas o homem mau
não o é, porque, com o abandono às nobre sermos a causa da ação de um
suas más paixões, ofende tanto a si amigo do que agirmos nós mesmos.
15 mesmo como aos outros. Para o Ye-se, pois, que em todos os atos 35
homem mau, o que ele faz está em con- que atraem louvores aos homens, o
flito com o que deve fazer, enquanto o homem bom reserva para si o maior
homem bom faz o que deve; porque a quinhão do que é nobre. E neste senti-
razão, em cada um dos que a possuem, do, como já dissemos, um homem deve
escolhe o que é melhor para si mesma, ser amigo de si mesmo, porém não no 1169b
9
Também se discute sobre se o primeira pessoa que apareça. Logo, o
homem feliz necessita ou não de ami- homem feliz necessita de amigos.
5 gos, Diz-se que os que são sumamente Que significa, então, a asserção da
felizes e auto-suficientes não precisam primeira escola, e em que sentido
deles, pois tais pessoas possuem tudo corresponde ela à verdade? Dar-se-á o
que é bom e, auto-suficientes como caso de que a maioria dos homens
são, dispensam o resto; enquanto um identifiquem os amigos com as pessoas
amigo, que é um outro "eu", provê o úteis? De tais amigos, é certo que o
que um homem não pode conseguir homem sumamente feliz não tem ne-
pelos seus próprios esforços. Daí as cessidade, visto já possuir todas as coi- 25
palavras: "quando a fortuna nos sorri, sas boas; e tampouco necessitará da-
para que precisamos de amigos? 1 2 9" queles com quem fazemos amizade por
Mas parece estranho, quando se causa do prazer que nos proporcio-
atribui tudo o que é bom ao homem nam, ou só precisará deles em grau
/0 feliz, recusar-lhe amigos, que são con- muito restrito (pois, sendo aprazível a
siderados os maiores exteriores. sua vida, ele dispensa prazeres adventí-
E, se é mais próprio de um amigo fazer cios); e, como não necessita de tais
bem a outrem do que ser beneficiado, e amigos, julga-se que não necessita de
se dispensar beneficios é característico amígos em absoluto.
do homem bom e da virtude, e é mais Mas isto, seguramente, não é verda-
nobre fazer bem a amigos do que a deiro, porquanto no começo 1 3 o disse-
estranhos, o homem bom necessitará mos que a felicidade é uma atividade; e
de pessoas a quem possa fazer bem. E a atividade, evidentemente, é algo que
por esta razão se pergunta se necessi- se faz e que não está presente desde o
tamos mais de amigos na prosperidade princípio, como uma coisa que nos
/5 ou na adversidade, subentendendo que pertencesse. Se (I) a felicidade consiste
não só um homem na adversidade pre- em viver e em ser ativo, e a atividade 30
cisa de quem lhe confira beneficios, do homem bom é virtuosa e aprazível
mas também os prósperos necessitam em si mesma, como dissemos no
ter a quem fazer bem. ço 131, e (2) o fato de uma nos
Não menos estranho seria fazer do pertencer é um dos atributos que a tor-
homem sumamente feliz um solitário, nam aprazível, e (3) podemos contem-
pois ninguém escolheria a posse do plar o nosso próximo melhor do que a
mundo inteiro sob a condição de viver nós mesmos e suas ações melhor do 35
SÓ, já que o homem é um ser político e que as nossas, e se as ações dos ho-
está em sua natureza o viver em socie- mens virtuosos que são seus amigos
dade. Por isso, mesmo o homem bom são aprazíveis aos bons (visto possuí- 11708
viverá em companhia de outros, visto rem ambos os atributos· que são natu-
possuir ele as coisas que são boas por ralmente aprazíveis) - se assim é, o
20 natureza. E, evidentemente, é melhor homem sumamente feliz necessitará de
passar os seus dias com amigos e ho- amigos dessa espécie, já que o seu pro-
mens bons do que com estranhos ou a
130 16, 1098b31 1099a7.(N.doT.)
129 Eurípides, Orestes. 667. (N. do T.) 131 1099 a 14,2I.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 211
10 mesma. Ele necessita, por conseguinte, mesmo para o homem sumamente feliz /5
ter consciência também da existência (visto que é bom e agradável por natu-
de seu amigo, e isso se verificará se reza), e o ser de seu amigo é mais ou
viverem em comum e compartilharem menos idêntico ao seu, um amigo será
suas discussões e pensamentos; pois uma das coisas desejáveis. Ora, o que é
isso é o que o convívio parece signifi- desejável para ele, é necessário que o
car no caso do homem, e não, como possua sob pena de ser deficiente a
para o gado, o pastar juntos no mesmo esse respeito. Para ser feliz o homem
lugar. necessita, portanto, de amigos virtuo-
Se, portanto, o ser é desejável em si sos.
10
como há para o tamanho de uma cida- tas pessoas é coisa que se afigura
de? Não se pode fazer uma cidade com impossível. Por essa mesma razão, não
dez homens, e se estes forem cem mil, podemos amar várias pessoas ao
nem por isso ela será uma cidade. mesmo tempo. O ideal do amor é ser
que um excesso de amizade, e
13 4 Hesíodo, Trabalhos e Dias. 750, Rzach. (N. do
T.) 135 1157b, 1158a3, IO.(N.doT.)
ÉTICA A NICÔMACO - IX 213
isso só se pode sentir por uma pessoa, ninguém, salvo dentro dos limites
donde se segue que também só pode- apropriados a concidàdãos; e tais pes-
mos sentir uma grande amizade por soas são também chamadas obsequio-
poucas pessoas. sas. Dentro dos limites apropriados a
Isto parece encontrar confirmação concidadãos, em verdade, é possível
na prática, pois são muito raros os- ser amigo de muitos sem contudo ser
casos de um grande número de pessoas obsequioso, mas um homem genuina-
que sejam amigas umas das outras no mente bom. Por outro lado, não se
ts sentido da amizade-camaradagem, e as pode manter com muitas pessoas a
amizades famosas dessa espécie são espécie de amizade que se 'baseia na
sempre entre duas pessoas. Os que têm virtude e no caráter de nossos amigos,
muitos amigos e mantêm intimidade e devemos dar-nos por felizes se encon-
com eles passam por não ser amigos de trarmos uns poucos dessa espécie. 20
11
presença dos amigos, que tem de porque ele próprio não é dado a afli-
aprazível, e o pensamento de eles se gir-se. Mas as mulheres e os homens
condoerem conosco que aligeiram a mulheris gostam de ter pessoas condoí-
nossa dor. Quer os motivos sejam das ao seu redor e amam-nas como
esses, quer algum outro, é uma questão amigos e companheiros de pesar. Con-
que podemos pôr de lado; seja como tudo, é evidente que em todas as coisas
214 ARISTÓTELES
12
Não se segue daí que, assim como que, para eles, dá valor à vida, disso
para os amantes a vista do ser amado é mesmo desejam ocupar-se em compa-
30 a coisa que maior deleite lhes causa, e nhia de seus amigos. Por ISSO alguns
preferem esse sentido aos outros por- bebem juntos, outros jogam dados jun-
que é dele que mais depende tanto a tos, outros associam-se nos exercícios
existência como a origem do amor, atléticos, na caça ou no estudo da filo-
também para os amigos a mais desejá- sofia, cada classe de homens passando 5
vel de todas as coisas é o convívio? os dias entregue, em mútua compa-
Porque a amizade é uma parceria, e tal nhia, às ocupações que mais ama na
é um homem para si mesmo, tal é para vida; porque, visto como desejam viver
o seu amigo; ora, para ele a cons- com seus amigos, fazem e comparti-
ciência do seu ser é desejável, e tam- lham aquelas coisas Que lhes dão o
bém o é, por conseguinte, a cons- sentimento de viverem juntos. E assim
35 ciência do ser de seu amigo; e essa a amizade dos maus mostra ser uma
consciência toma-se ativa quando eles péssima coisa (porque, em razão da 10
1172. convivem. Por isso, é natural que bus- sua instabilidade, coligam-se em ocu-
quem o convívio. pações más, além de piorar cada um
E daquilo que a existência significa pelo fato de se tomar semelhante aos
para cada classe de homens, daquilo outros), enquanto a amizade dos ho-
ÉTICA A NICÕMACO - 215
mens bons é boa porque cresce com o "(aprender) ações nobres de homens
companheirismo. E pensa-se que eles nobrest ?"
se tornam também melhores graças às Basta, pois, quanto à amizade. 15
suas atividades e à boa influência que Nossa próxima tarefa será discutir o
uns têm sobre os outros; pois cada um prazer.
recebe dos demais o modelo das carac-
terísticas que aprova - e daí a frase: 13 7 Te6gnis, 35. (N. do T.)
LIVRO X
219
Depois destes assuntos devemos tal- quanto a maioria das pessoas (pensam
vez passar à discussão do prazer. Com eles) se inclinam para o prazer e são
efeito, julga-se que ele está intima- suas escravas, e por isso deveriam ser
mente relacionado com a nossa natu- conduzidas na direção contrária, a fim
20 reza humana, e por essa razão, ao edu- de alcançarem o estado intermediário.
car os jovens, nós os governamos com Mas isso, seguramente, não é corre-
os lemes do prazer e da dor. E também to. Com efeito, os argumentos em
se pensa que comprazer-se com as coi- torno de sentimentos e ações merecem
sas apropriadas e detestar as que se menos confiança do que os fatos e
deve tem a maior influência possível assim quando entram em conflito com
sobre o caráter virtuoso. Porque essas os fatos da percepção, eles são despre-
coisas nos acompanham durante a zados, ao mesmo tempo que desacre-
vida inteira, com um peso e um poder ditam a própria verdade: se um homem
próprios tanto no que toca à virtude que difama o prazer é surpreendido
25 como à vida feliz, já que os homens uma vez a buscá-lo, isso parece provar
escolhem o que é agradável e evitam o que ele merece ser preferido a todas as
que é doloroso; e são elas, segundo coisas, porque a maioria' das pessoas
parece, as que menos conviria omitir não sabe fazer distinções.
em nossa investigação, especialmente Os argumentos verdadeiros afigu-
por serem objeto de muitas controvêr-' ram-se, pois, extremamente úteis, não
sias. só para a ciência mas para a própria
Alguns, com efeito, dizem que o pra- vida; porque, como se harmonizam
zer é o bem, enquanto outros afirmam, com os fatos, nós lhes damos crédito, e
pelo contrário, que ele é absolutamente destarte estimulam os que os com-
mau - uns, sem dúvida, na convicção preendem a viver de acordo com eles.
de que essa é a verdade, e outros jul- Quanto a essas questões, basta. Pas-
gando que terá melhor efeito em nossa semos agora em revista as opiniões que
vida denunciar o prazer como coisa têm sido expressas a respeito do
30 má, ainda que ele não o seja. Por- prazer.
mesmo objeto indicava que para todas bedoria do que sem ela, e que, se a mis- 30
era esse o maior dos bens (porque cada tura é melhor, o prazer não é o bem;
coisa, argumentava Eudoxo, encontra porque o bem não pode tomar-se mais
o seu bem próprio, da mesma forma desejável pela adição do que quer que
que encontra o seu alimento adequa- seja. Ora, é claro que não só o prazer,
/5 do); e aquilo que é bom para todas as mas nenhuma outra Coisa pode ser o
coisas e a que todas elas visam é o bem bem se a adição de uma das coisas que
por excelência. são boas em si mesmas a toma mais
Seus argumentos foram aceitos não desejável. Que é, então, que satisfaz
tanto por si mesmos como pela exce- este critério, e em que, ao mesmo
lência do seu caráter. Passava por ser tempo, podemos participar? É alguma
um homem de notável autodomínio, e coisa dessa espécie que estamos procu-
por isso se julgava que ele não afir- rando.
masse tais coisas como amigo do pra- Há quem objete a isso dizendo que o 35
zer, mas porque essa era a verdade. fim visado por todas as coisas não é
Acreditava Eudoxo um estudo do necessariamente bom, mas podemos
estar certos de que tais pessoas não
contrário do prazer não conduzia com
fazem mais do que disparatar. Por-
menos evidência à mesma conclusão:
quanto nós dizemos que aquilo que
assim como a dor é em si mesma um
todos pensam a verdade; e o homem 11738
objeto de aversão para todas as coisas,
que atacar essa crença não terá outra
o seu contrário deve ser um objeto de coisa mais digna de crédito para sus-
20 preferência. Ora, o mais genuíno obje- tentar em lugar dela. Se fossem criatu-
to de preferência é aquilo que escolhe- ras irracionais que desejassem as coi-
mos por si mesmo e não por causa de sas de que falamos, talvez houvesse
outra coisa ou com vistas nela; e o pra- alguma verdade no que eles dizem;
zer é reconhecidamente dessa nature- mas, se seres inteligentes também as
za, pois que ninguém indaga com que desejam, que sentido pode ter tal opi-
fim o sente, implicando destarte que nião? Sem embargo, tàlvez mesmo nas
ele é em si mesmo um objeto de esco- criaturas inferiores exista algum bem
lha. Além disso, Eudoxo argumentava natural mais forte do que elas e que as
que o prazer, quando acrescentado a oriente para o bem que lhes é próprio.
um bem qualquer, como, por exemplo, Tampouco parece correto o argu- 5
à ação justa ou temperante, o toma mento sobre o contrário do prazer.
25 mais digno de escolha, e que o bem só Dizem que, se a dor é um mal, não se
pode ser acrescido por si mesmo. segue daí que o prazer seja um bem;
Este argumento parece mostrar que porque um mal se opõe a outro e
ele é um dos bens, mas que não o é ambos ao mesmo tempo se opõem ao
mais do que um outro qualquer; pois estado neutro. Ora, isto é bastante
qualquer bem é mais digno de escolha certo, mas não se aplica às coisas de
quando acompanhado de um outro do que estamos tratando. Porque, se tanto
que quando sozinho. E é mesmo por o prazer como a dor pertencessem à
um argumento desta espécie que Pla- classe dos males, ambos deviam ser /0
tão 1 38 demonstra não ser o bem o pra- objetos de aversão, ao passo que, se
zer. Diz ele que a vida aprazível é mais pertencessem à classe das coisas neu-
desejável quando de sa- tras, nenhum seria objeto de aversão
ou o seriam em igual grau. Mas
138 Filebo. 60. (N. do T.) a verdade evidente é que os homens
ÉTICA A NICÔMACO - X 221
3
E, por outro lado, se o prazer não é movimento e geração. Mas nem
uma qualidade, também não se conclui mesmo isso parece ser verdade. Com
daí que ele não seja um bem; porque efeito, pensa-se que a rapidez e a lenti-
tampouco são qualidades a atividade dão são características de todo e qual-
/5 virtuosa, nem a felicidade. Dizem, no quer movimento, e se um movimento
entanto, que o bem é determinado, como o dos céus não tem rapidez nem
enquanto o prazer é indeterminado, lentidão em si mesmo, tem-nas em rela-
visto admitir graus. Ora, se é pela ção a outra coisa; mas do prazer nada
observação do sentimento de prazer disso é verdadeiro. Porquanto, se é
que pensam assim, o mesmo será ver- certo que podemos comprazer-nos de-
dadeiro da justiça e das outras virtu- pressa assim como podemos encoleri-
des, no tocante às quais dizemos sem zar-nos depressa, não é possível sentir 1173 b
zer quando ele ocorre, assim como sentir o prazer do homem justo sem ser
sentiríamos dor ao ser operados. justo, nem os prazeres do músico sem 30
Esta doutrina parece basear-se nas ser músico, e assim por diante.
dores e prazeres associados à nutrição, E também o fato de um amigo ser
e no fato de que as pessoas que previa- diferente de um adulador parece mos-
mente sofreram míngua de alimentos e trar com toda a evidência que o prazer
15 esta lhes foi dolorosa sentem prazer ao não é um bem ou que os prazeres dife-
ser preenchida a falta. Mas isso não rem em espécie; porque se acredita que
acontece com todos os prazeres: os um busca o nosso convívio com a mira
prazeres do aprender e, entre os que no bem e o outro visando ao nosso
nos proporcionam os sentidos, os do prazer, e um é censurado pela sua con-
olfato, e também muitos sons e sensa- duta, enquanto o outro é louvado,
ções visuais, além das recordações e partindo-se do princípio de que os dois
das esperanças, não pressupõem dor. buscam o nosso convívio com finali-
De onde, pois, se gerariam estes? Não dades diferentes. Além disso, ninguém 1174 a
havia, no seu caso, nenhuma falta a preferiria viver a vida inteira com o
preencher. intelecto de uma criança, por mais pra-
Em resposta aos que argumentam zer que lhe proporcionassem as coisas
com os prazeres vergonhosos, pode- que agradam às crianças, nem compra-
mos dizer que esses não são agradá- zer-se na prática de algum ato profun-
veis. Pelo fato de certas coisas agrada- damente vergonhoso, ainda que jamais
rem a pessoas de constituição viciosa, tivesse de sofrer em conseqüência.
não devemos supor que elas também Por outro lado, há muitas coisas que
sejam agradáveis a outros, assim como devemos desejar com todas as veras, 5
não raciocinamos dessa forma a res- ainda que não nos tragam nenhum pra-
peito das coisas que são saudáveis, zer, como a vista, a memória, a ciên-
doces ou amargas para os doentes, cia, a posse das virtudes. Não faz dife-
nem atribuímos a brancura às que rença que essas coisas sejam
parecem brancas aos que sofrem dos necessariamente acompanhadas de
25 olhos. Ou, então, poder-se-ia responder prazer: deveríamos escolhê-las mesmo
que os prazeres são desejáveis, porém que nenhum prazer resultasse daí.
não os provindos dessas fontes, assim Parece claro, portanto, que nem o
como a riqueza é desejável, porém não prazer é o bem, nem todo prazer é
como recompensa da traição, e como a desejável, e que alguns prazeres são
saúde não o é à custa de comer toda e realmente desejáveis por si mesmos, 10
qualquer coisa. Ou talvez os prazeres diferindo eles dos outros em espécie ou
difiram em espécie, pois os que provêm quanto às suas fontes. Quanto às opi-
de fontes nobres são diferentes daque- niões correntes a respeito do prazer e
les cujas fontes são vis, e não se pode da dor, é suficiente o que dissemos.
Ver-se-à com mais clareza o que A sensação visual parece ser com- 15
seja o prazer, ou que espécie de coisa pleta em todos os momentos, pois não
seja, se tomarmos a examinar a ques- lhê falta nada que, surgindo posterior-
tão partindo do começo. mente, venha completar-lhe a forma; e
ÉTICA A NICÔMACO X 223
o prazer também parece ser dessa lugar desta é diferente do lugar daque-
natureza. Porque ele é um todo, e ja- la.
mais se encontra um prazer cuja forma Em outra obra 1 41 discutimos o
seja completada pelo seu prolonga- movimento com precisão, mas parece
mento. Pela mesma razão, não é ele que ele não é completo em todo e qual-
um movimento, pois todo movimento quer momento, e os numerosos movi-
(o de construir, por exemplo) requer mentos são incompletos e diferentes
tempo, faz-se com vistas num fim, e em espécie, já que o "donde" e o "para 5
fica completo quando realizou a coisa onde" dão a cada um a sua forma pró-
20 visada. Só fica completo, por conse- pria. Mas quanto ao prazer, sua forma
guinte, quando se encara o tempo na é completa em todo e qualquer mo-
sua totalidade ou no momento final. mento. É evidente, pois, que o prazer e
Em suas partes e durante o tempo que o movimento diferem um do outro, e o
estas ocupam, todos os movimentos prazer deve ser uma das coisas que são
são incompletos e diferem em espécie inteiras e completas. Isso também é
do movimento inteiro e uns dos outros. indicado pelo fato de não ser possível
Com efeito, o ajustamento das pedras mover-se senão dentro do tempo, mas
umas às outras difere da caneladura da sentir prazer, sim; porquanto aquilo
coluna, e ambas as coisas diferem da que ocorre num momento é um todo.
construção do templo. E a construção Estas considerações deixam bem
25 é completa (pois nada lhe falta com claro, pois, que não têm razão os pen-
relação ao fim que se tinha em vista), sadores segundo os quais há um movi-
mento ou uma geração de prazer, pois 10
mas o preparo da base e do tríglifo é
que movimento e geração não podem
incompleto, por ser a produção de uma
ser atribuídos a todas as coisas, mas
parte apenas. Diferem eles, portanto,
apenas às que são divisíveis e não
em espécie, e em nenhum momento
constituem "todos". Não há geração
dado é possível encontrar um movi-
da sensação visual, nem de um ponto,
mento completo quanto à forma, mas
de uma unidade, nem qualquer
só no tempo encarado em sua totali- destas coisas é um movimento ou uma
dade.
geração. Logo, tampouco há movi-
O mesmo se pode dizer no tocante mento ou geração no prazer, visto que
ao andar e a todos os outros movimen- ele é um todo.
tos. Porque, se a locomoção é um Já que cada sentido é ativo em rela- 15
30 movimento de um lugar para outro, ção ao seu objeto, e um sentido em
também nela existem diferenças de condições de higidez age de maneira
espécie voar, caminhar, saltar, etc. perfeita em relação aos mais belos den-
E não é só isso, senão que no próprio tre os seus objetos (pois o ideal da ati-
caminhar existem diferenças de espé- vidade perfeita parece ser desta nature-
cie; porque o "donde" e o "para onde" za, e tanto faz dizer que ela própria é
não são os mesmos na pista de corri- ativa como o órgão em que reside),
das considerada como um todo e em segue-se que, no tocante a cada senti-
cada uma de suas partes, nem nas do, a melhor atividade é a do órgão em
1174 b diversas partes; e tampouco é a mesma melhores condições com relação aos
coisa percorrer esta linha e aquela, mais belos de seus objetos.
pois o que se percorre não é apenas E essa atividade será a mais com- 20
uma linha, mas uma linha que se
encontra em determinado lugar, e o 141 Física. VI-VIII. (N. do T.)
224 ARISTÓTELES
pleta e a mais aprazível, porque, exis- Como explicar, então, que ninguém
tindo embora prazer para cada sentido, esteja sempre contente? Dar-se-à o
e não menos para o pensamento e a caso de que nos enfastiemos? A verda-
contemplação, o mais completo é o de é que todos os seres humanos são
mais aprazível, e o de um órgão em incapazes de uma atividade contínua, e 5
boas condições com relação aos mais essa é a razão de não ser contínuo tam-
nobres de seus objetos é o mais com- bém o prazer, pois ele acompanha a
pleto; e o prazer completa a atividade. atividade. Certas coisas nos deleitam
Entretanto, ele não a completa da quando são novas, porém menos quan-
mesma maneira que a combinação de do deixam de sê-lo, e por esse mesmo
25 .objeto e sentido, ambos bons, assim motivo: a princípio a mente é estimu-
como a saúde e o médico não são na lada e desenvolve intensa atividade em
mesma acepção as causas de um relação a elas, como fazemos com o
homem ser sadio. evidente que o sentido da vista quando olhamos algu-
prazer pode acompanhar qualquer sen- ma coisa com atenção. Mas depois a
tido, pois falamos de espetáculos e de nossa atividade se relaxa, e por isso
sons como sendo agradáveis. Não também o prazer é embotado.
menos evidente é que ele é experimen- Dir-se-ia que todos os homens dese- 10
tado acima de tudo quando o sentido jam o prazer porque todos aspiram à
se encontra nas melhores condições e vida. A vida é uma atividade, e cada
em atividade com referência a um um é ativo em relação às coisas e com
jeto apropriado; quando tanto o perci- as faculdades que mais ama: por exem-
piente como o objeto são os melhores plo, o músico é ativo com o ouvido em
30 possíveis, haverá sempre prazer, por referência às melodias, o estudioso
estarem presentes o agente e o paciente com o intelecto em referência a ques-
requeridos.) O prazer completa a ativi- tões teóricas, e da mesma forma nos
dade, não como o faz o estado perma- outros casos Ora, o prazer completa 15
nente que lhe corresponde, pela ima- as atividades, e portanto a vida que
nência, mas como um fim que eles desejam. É muito justo, pois, que
sobrevém como o viço da juventude aspirem também ao prazer, visto que
para os que se encontram na flor da para cada um este completa a vida que
idade. Na medida, pois, em que tanto o lhe é desejável. Mas quanto a saber se
objeto inteligível ou sensível como a escolhemos a vida com vistas no pra-
faculdade discriminadora ou contem- zer ou o prazer com vistas na vida, é
plativa forem tais como convém, a ati- uma questão que podemos deixar de
vidade será acompanhada de prazer; parte por ora. Com efeito, os pare-
11758 pois quando o fator ativo e o passivo cem estar intimamente ligados entre si
se mantêm inalterados e guardam a e não admitir separação, já que sem 20
mesma relação um para com outro, o atividade não surge o prazer, e cada
mesmo resultado segue-se natural- atividade é completada pelo prazer que
mente. a acompanha.
acompanham as atividades são mais grau, pelo menos no caso dos homens;
próprios destas do que os desejos, pois as mesmas coisas deleitam algumas
os segundos estão separados delas pessoas e causam dor a outras, e são
tanto pelo tempo como pela natureza, penosas e odiosas a estes, mas agradá-
enquanto os primeiros estão intima- veis e estimáveis àqueles. Isso também
mente unidos às atividades e é tão difí- sucede com as coisas doces: as mes-
cil distinguir os primeiros das segun- mas coisas não parecem doces a um
das que se poderia até discutir a febricitante e a um homem com saúde
hipótese de ser a atividade a mesma - nem quentes a um homem fraco e a
coisa que o prazer. (No entanto, o pra- um homem robusto. O mesmo se dá
zer não parece ser o pensamento ou a em outros casos. Mas em todas as coi- is
35 percepção. Isso seria estranho; mas, sas, o que parece a um homem bom é
como nunca andam um sem o outro, considerado como sendo realmente tal.
alguns julgam que sejam a mesma Se isto é correto como se afigura ser, e
coisa.) a virtude e o homem bom como tais
Assim, pois, como diferem entre si são a medida de todas as coisas, serão
as atividades, também diferem os pra- verdadeiros prazeres os que lhe parece-
11768 zeres correspondentes. Ora, a vista é rem tais, e verdadeiramente agradáveis
superior ao tato em pureza, e o ouvido as coisas em que ele se deleitar. Se as
e o olfato ao gosto; portanto, os praze- coisas que ele acha enfadonhas parecem
res correspondentes também são supe- agradáveis a outros, não há nada de
riores, e os do pensamento estão acima surpreendente nisso, pois os homens 20
de todos estes. E dentro de cada uma podem ser pervertidos e estragados de
das duas espécies alguns são superio- muitos modos; e tais coisas não são
res a outros. realmente agradáveis, mas só o são
Pensa-se que cada animal tem um para essas pessoas e outras nas mes-
prazer próprio, assim como tem. uma mas condições. Das que reconhecida-
função própria, a saber, o que corres- mente são vergonhosas, evidentemente
5 ponde à sua atividade. Isto se toma não se deveria dizer que são prazeres,
evidente quando observamos as espé- salvo para um gosto pervertido; mas
cies uma por uma. C ão, e das que são consideradas boas, que
homem têm prazeres diferentes e, espécie de prazer ou que prazer parti-
como diz Heráclito, "os asnos preferi- cular deveríamos dizer que são pro-
riam as varreduras ao ouro' 42"; por- prios do homem? resposta não é 25
que o alimento é mais agradável do clara pela consideração das correspon-
que o ouro para eles. dentes atividades? O prazeres seguem
Destarte, os prazeres dos animais a estas. Quer, pois, o homem perfeito e
diferentes em espécie também diferem supramente feliz tenha uma, quer mais
especificamente, e é de supor que os de atividades, diremos que os prazeres
uma determinada espécie não difiram que completam essas atividades são,
10 entre si. Mas variam em não pequeno strieto sensu, os prazeres próprios do
homem; e o resto só o será de maneira
secundária e parcial, como o são as
9, Diels. (N. do T.) atividades.
ÉTICA A NICÔMACO - X 227
6
Agora que terminamos de falar das materiais. Mas a maioria das pessoas
virtudes, das formas de amizade e das que consideramos felizes buscam refú-
variedades de prazer, resta discutir em gio nesses passatempos, e por isso as
linhas gerais a natureza da felicidade, pessoas hábeis em proporcioná-los são
visto afirmarmos que ela é o fim da altamente estimadas nas cortes dos
natureza humana. Nossa discussão tiranos. Tomam-se agradáveis compa- 15
será mais concisa se começarmos por nheiros nas ocupações favoritas do
sumariar o que dissemos anterior- tirano, e essa é a espécie de homem que
mente. ele precisa ter ao seu lado.
Dissemos 1 43, pois, que ela não é Ora, acredita-se que essas coisas
uma disposição; porque, se o fosse, participem da natureza da felicidade
poderia pertencer a quem passasse a porque os déspotas entretêm com elas
vida inteira dormindo e vivesse como os seus lazeres, mas talvez essa espécie,
um vegetal, ou, também, a quem de gente não prove nada; porque a vir-
1176 b sofresse os maiores infortúnios. Se tude e a razão, das quais decorrem as
estas conseqüências são inaceitáveis e boas atividades, não dependem da
devemos antes classificar a felicidade posição despótica; nem os prazeres do zo
como uma atividade, como dissemos corpo deveriam ser considerados mais
atrás 1 4 4, e se atividades são desejáveis porque neles se refugiam
necessárias e desejáveis com vistas em tais pessoas, que nunca experimen-
outra coisa, enquanto outras o são em taram um prazer puro e generoso; e os
si mesmas, é evidente que a felicidade meninos também julgam que as coisas
deve ser incluída entre as desejáveis em que eles próprios prezam são as melho-
si mesmas, e não entre as o são res. É de crer, pois, que assim como
5 com vistas em algo mais. Porque à feli- diferentes coisas parecem valiosas aos
cidade nada falta: ela é auto-suficiente. meninos e aos homens feitos, também
Ora, são desejáveis em si mesmas se dê o mesmo com os homens maus e
aquelas atividades em que nada mais os bons. Ora, como muitas vezes
se procura além da própria atividade. sustentamos 1 4 5, realmente valiosas e
E pensa-se que as ações virtuosas são aprazíveis são aquelas coisas que são
desta natureza, porquanto praticar tais para o homem bom; e para cada
atos nobres e bons é algo desejável em homem a atividade que concorda com
si mesmo. a sua disposição de caráter é a mais
Também se acredita que as recrea- desejável, de modo que para o homem
10 ções agradáveis sejam dessa natureza. bom são essas as que concordam com
Não as escolhemos tendo em vista a virtude.
outra coisa, uma vez que antes somos A felicidade não reside, por conse-
prejudicados do que beneficiados por guinte, na recreação; e seria mesmo
elas: tais atividades nos levam a negli- estranho que a recreação fosse o fim, e
genciar nossos corpos e nossos bens um homem devesse passar trabalhos e
suportar agruras durante a vida inteira
1 1095 b 31 - 1096 a 2, 1098 b 31 - 1099 a 7.
(N.doT.) '45 1099 a 13, IIl3 a 22-33, 1166 a 12, Il70 a
1098a5-7.(N.doT.) 14-16, Il76 a 15-22.(N. do T.)
228 ARISTÓTELES
à virtude, será razoável que ela esteja essa atividade é a melhor (pois não só
também em concordância com a mais é a razão a melhor coisa que existe em
alta virtude; e essa será a do que existe nós, como os objetos da razão são os
de melhor em nós. Quer seja a razão, melhores dentre os objetos cognoscí-
quer alguma outra coisa esse elemento veis); e, em segundo lugar, é a mais
que julgamos ser o nosso dirigente e contínua, já que a contemplação da
guia natural, tomando a seu cargo as verdade pode ser mais contínua do que
15 coisas nobres e divinas, e quer seja ele qualquer outra atividade. E pensamos
mesmo divino, quer apenas o elemento que a felicidade tem uma mistura de
mais divino que existe em nós, ati- prazer, mas a atividade da sabedoria
vidade conforme à virtude que lhe é filosófica é reconhecidamente a mais
própria será a perfeita felicidade. Que aprazível das atividades virtuosas; 25
essa atividade é contemplativa, já o pelo menos, julga-se que o seu cultivo
dissemos anteriormente 1 4 7. oferece prazeres maravilhosos pela pu-
Ora, isto parece estar de acordo não reza e pela durabilidade, e é de supor
só com o que muitas vezes assevera- que os que sabem passem o seu tempo
mos 1 48, mas também com a própria de maneira mais aprazível do que os
que indagam.
Além disso, a auto-suficiência de
1 47 cr. 1095 b 14 - 1096 a 5, 1141 a 18 - 1141 que falamos deve pertencer principal-
b 3, 1143 b 33 - 1144 a 6, 1145 a 6-11. (N. do T.)
mente à atividade contemplativa. Por-
1097 a 25 - 1097 b 21, 1099 a 7-21, 1173 b
15-19, 1174 b 20-23, 1175 b 36 - 1176 a 3. (N. do que: embora um filósofo, assim como
T.) um homem justo ou o que possui qual-
ÉTICA A NICÔMACO - X 229
quer outra virtude, necessite das coisas um fim diferente e não são desejáveis
30 indispensáveis à vida, quando está por si mesmas, enquanto a atividade
suficientemente provido de coisas da razão, que é contemplativa, tanto 20
dessa espécie o homem justo precisa parece ser superior e mais valiosa pela
ter com quem e para com quem agir sua seriedade como não visar a ne-
justamente, e o temperante, o corajoso nhum fim além de si mesma e possuir o
e cada um dos outros se encontram no seu prazer próprio (o qual, por sua vez,
mesmo caso; mas o filósofo, mesmo intensifica a atividade), e a auto-sufi-
quando sozinho, pode contemplar a ciência, os lazeres, a isenção de fadiga
verdade, e tanto melhor o fará quanto (na medida em que isso é possível ao
1177b mais sábio for. Talvez possa fazê-lo homem), e todas as demais qualidades
melhor se tiver colaboradores, mas que são atribuídas ao homem suma-
ainda assim é ele o mais auto-sufi- mente feliz são, evidentemente, as que
ciente de todos. se relacionam com essa atividade,
E essa atividade parece ser a única segue-se que essa será a felicidade
que é amada por si mesma, pois dela completa do homem, se ele tiver uma 25
nada decorre além da própria contem- existência completa quanto à duração
plação, ao passo que das atividades (pois nenhum dos atributos da felici-
práticas sempre tiramos maior ou dade é incompleto).
menor proveito, à parte da ação. Mas uma tal vida é inacessível ao
Além disso, pensa-se que a felici- homem, pois não será na medida em
5 dade depende dos lazeres; porquanto que é homem que ele viverá assim, mas
trabalhamos para poder ter momentos na medida em que possui em si algo de
de ócio, e fazemos guerra para poder divino; e tanto quanto esse elemento é
viver em paz. Ora, a atividade das vir- superior à nossa natureza composta, o
tudes práticas exerce-se nos assuntos é também a sua atividade ao exercício
políticos ou militares, mas as ações da outra espécie de virtude.
relativas a esses assuntos não parecem
encerrar lazeres. Principalmente as Se, portanto, a razão é divina em 30
ações guerreiras, pois ninguém escolhe comparação com o homem, a vida
fazer guerra, nem tampouco a provoca, conforme à razão é divina em compa-
10 pelo gosto de estar em guerra; e um ração com a vida humana. Mas não
homem teria a têmpera do maior dos devemos seguir os que nos aconselham
assassinos se convertesse os seus ami- a ocupar-nos com coisas humanas,
gos em inimigos a fim de provocar visto que somos homens, e com coisas
batalhas e matanças. Mas a ação do mortais, visto que somos mortais; mas,
estadista também não encerra lazeres, na medida em que isso for possível,
e - além da ação política em si procuremos tomar-nos imortais e envi-
mesma - visa ao poder e às honras dar todos os esforços para viver de
despóticas, ou pelo menos à felicidade acordo com o que há de melhor em
para ele próprio e para os seus conci- nós; porque, ainda que seja pequeno 11788
15 dadãos - uma felicidade diferente da quanto ao lugar que ocupa, supera a
ação política, e evidentemente buscada tudo o mais pelo poder e pelo valor.
como sendo diferente. E dir-se-ia, também, que esse ele-
Portanto, se entre as ações virtuosas mento é o próprio homem, já que é a
as de índole militar ou política se dis- sua parte dominante e a melhor dentre
tinguem pela nobreza e pela grandeza, as que o compõem. Seria estranho,
e estas não encerram lazeres, visam a pois, que não escolhesse a vida do seu
230 ARISTÓTELES
5 próprio ser, mas a de outra coisa. E o aprazível para ela; e assim, para o
que dissemos atrás 1 49 tem aplicação homem a vida conforme à razão é a
aqui: o que é próprio de cada coisa é, melhor e a mais aprazível, já que a
por natureza, o que há de melhor e de razão, mais que qualquer outra coisa, é
o homem. Donde se conclui que essa
, 1169 b 33, 1176 b 26. (N. do T.) vida é a mais feliz.
8
Mas, em grau secundário, a vida de trabalho do estadista se ocupe mais
acordo com a outra espécie de virtude com o corpo e coisas que tais, porque a
é feliz, porque as atividades que con- diferença quanto a isso será pequena;
cordam com esta condizem com a mas naquilo de que precisam para o
lO nossa condição humana. Os atos cora- exercício de suas atividades haverá
josos e justos, bem como outros atos grande diferença. O homem liberal
virtuosos, nós os praticamos em rela- necessita de dinheiro para a prática de
ção uns aos outros, observando nossos seus atos de liberalidade e o homem 30
respectivos deveres no tocante a con- justo para a retribuição de serviços
tratos, serviços e toda sorte de ações, (pois é dificil enxergar claro nos dese-
bem assim como às paixões; e todas jos, e mesmo os que não são justos
essas coisas parecem ser tipicamente aparentam o desejo de agir com justi-
humanas. Dir-se-ia até que algumas ça); e o homem corajoso necessita de
delas provêm do próprio corpo e que o poder para realizar qualquer dos atos
caráter virtuoso se prende por muitos que correspondem à sua virtude, e o
15 laços às paixões. temperante necessita de oportunidade:
A sabedoria prática também está li- pois de que outro modo poderíamos
gada ao caráter virtuoso e este à sabe- reconhecer tanto a ele como a qualquer
doria prática, já que os princípios de dos outros?
tal sabedoria concordam com as virtu- Também se discute sobre se é a von-
des morais e a retidão moral concorda tade ou o ato que é mais essencial à
com ela. virtude, pois supõe-se que esta envolve 35
Ligadas que são também às paixões, tanto uma como outro. E é evidente 1178 b
as virtudes morais devem pertencer à que sua perfeição envolve a ambos,
10 nossa natureza composta. Ora, tais vir- mas os atos exigem muitas coisas, e
tudes são humanas; por conseguinte, tanto mais quanto maiores e mais no-
humanas são também a vida e a felici- bres forem. O homem que contempla a
dade que lhes correspondem. A exce- verdade, porém, não necessita de tais
lência da razão é uma coisa à parte. coisas, ao menos para o exercício de
Dela devemos contentar-nos em dizer sua atividade; e pode-se dizer até que
isto, porquanto descrevê-la com preci- elas lhe servem de obstáculo, quando 5
são é tarefa maior do que exige o nosso mais não seja para a própria contem-
propósito. Sem embargo, ela também plação, Mas, enquanto homem que
15 parece necessitar de bens exteriores, vive no meio de outros homens, ele
porém pouco, ou, em todo caso, menos escolhe a prática de atos virtuosos: por
do que necessitam as virtudes morais. conseguinte, necessita também das coi-
Admitamos que ambas necessitem sas que facilitam a vida humana.
de tais coisas em grau igual, embora o Mas que a felicidade perfeita é uma
ÉTICA A NICÔMACO - X 231
argumentos. Mas, embora essas coisas pelos assuntos humanos como nós
também tenham um certo poder de pensamos, tanto seria natural que se' 25
convencer, a verdade em assuntos prá- deleitassem naquilo que é melhor e
ticos percebe-se melhor pela observa- mais afmidade tem com eles (isto é, a
ção dos fatos da vida, pois estes são o razão), como que recompensassem os
20 fator decisivo. Devemos, portanto, que a amam e honram acima de todas
examinar o que já dissemos à luz des- as coisas, zelando por aquilo que lhes é
ses fatos, e se estiver em harmonia com caro e conduzindo-se com justiça e
eles aceitâ-lo-emos, mas se entrarem nobreza. Ora, é evidente que todos
em conflito admitiremos que não passa esses atributos pertencem mais que a
de simples teoria. ninguém ao filósofo. É ele, por conse- 30
Ora, quem exerce e cultiva a sua guinte, de todos os homens o mais caro
razão parece desfrutar ao mesmo aos deuses. E será, presumivelmente,
tempo a melhor disposição de espírito também o mais feliz. De sorte que tam-
e ser extremamente caro aos deuses. bém neste sentido o filósofo será o
Porque, se os deuses se interessam mais feliz dos homens.
9
Se estes assuntos, assim como a vir- não obedece por natureza ao senti-
tude e também a amizade e o prazer, mento de pudor, mas unicamente ao
foram suficientemente discutidos em li- medo, e não se abstém de praticar más
nhas gerais, devemos dar por termi- açôes porque elas são vis, mas pelo
35 nado o nosso programa? Sem dúvida, temor ao castigo. Vivendo pela paixão,
como se costuma dizer, onde há coisas andam no encalço de seus prazeres e
que realizar não alcançamos o fim de- dos meios de alcançá-los, evitando as
pois- de examinar e reconhecer cada dores que lhes são contrárias, e nem
uma delas, mas é preciso fazê-las. No sequer fazem idéia do que é nobre e
1179 b tocante à virtude, pois, não basta verdadeiramente agradâvel.. visto que
saber, devemos tentar possuí-la e usá- nunca lhe sentiram o gosto. Que argu-
la ou experimentar qualquer outro mento poderia remodelar essa sorte de
meio que se nos antepare de nos tor- gente? É difícil, senão impossível, erra-
narmos bons. dicar pelo raciocínio os traços de carâ-
Ora, se os argumentos bastassem em ter que se inveteraram na sua natureza;
si mesmos para tornar os homens e talvez nos devamos contentar se,
5 bons, eles teriam feito jus a grandes estando presentes todas as influências
recompensas, como diz Teógnis, e as capazes de nos melhorar, adquirimos
recompensas não faltariam. Mas a ver- alguns laivos de virtude.
dade é que, embora pareçam ter o Ora, alguns pensam que nos torna- 20
poder de encorajar e estimular os jo- mos bons por natureza, outros pelo há-
vens de espírito generoso, e preparar bito e outros ainda pelo ensino. A
um caráter bem-nascido e genuina- contribuição da natureza evidente-
mente amigo de tudo o que é nobre mente não depende de nós, mas, em
10 para receber a virtude, eles não conse- resultado de certas causas divinas, está
guem incutir nobreza e bondade na presente naqueles que são verdadeira-
multidão. Porquanto o homem comum mente afortunados. Quanto à argu-
ÉTICA A NICÔMACO - X 233
guém os vê escrever ou falar sobre a feita, como no caso da pintura. Ora, as 1181 b
matéria (conquanto essa fosse, talvez, leis são, por assim dizer, as "obras" da
uma ocupação mais nobre do que pre- arte política: como é possível, então,
parar discursos para os tribunais e a aprender com elas a ser legislador ou
5 Assembléia); e também não consta que julgar quais sejam as melhores? Os
eles costumem fazer estadistas de seus próprios médicos não parecem for-
filhos ou de seus amigos. Mas seria de mar-se pelo estudo dos livros. Não
esperar que o fizessem, se isso lhes obstante, as pessoas procuram indicar
fosse possível, pois não poderiam legar não apenas os tratamentos, mas como
às suas cidades nada de melhor do que podem ser curados e devem ser trata-
uma habilidade dessa sorte, ou trans- dos certos tipos de gente, distinguindo
miti-la aos que lhes são caros se prefe- os vários hábitos do corpo; mas, 5
rissem guardá-la no seu meio. No bora isso pareça ser útil aos experi-
entanto, a contribuição da experiência mentados, para os inexperientes não
10 parece não ser pequena; de outra tem nenhum valor.
forma eles não poderiam tomar-se É certo, pois, que embora as compi-
políticos por participarem da vida polí- lações de leis e constituições possam
tica. Donde se conclui que os que prestar serviços às' pessoas capazes de
ambicionam conhecer a arte da polí- estudá-las, de distinguir o que é bom
necessitam também da experiên- do que é mau e a que circunstâncias
cia. melhor se adapta cada lei, os que per- /O
Mas aqueles sofistas que professam lustram essas compilações sem o so-
a arte parecem estar muito longe de corro da experiência não possuirão o
ensiná-la. Com efeito, para exprimir- reto discernimento (a menos que seja
nos em termos gerais, esses homens por um dom espontâneo da natureza),
nem sequer sabem que espécie de coisa embora talvez possam tomar-se mais
ela é, nem sobre o que versa. De outro inteligentes em tais assuntos.
modo, não a teriam classificado como Ora, os nossos antecessores nos
idêntica à retórica ou mesmo inferior a legaram sem exame este assunto da
15 esta, nem julgariam fácil legislar me- legislação. Por isso, talvez convenha
diante uma compilação das leis mais' estudá-lo nós mesmos, assim como a
bem reputadas. Dizem que é possível questão da constituição em geral, a fim
selecionar as melhores leis, como se de completar da melhor maneira possí-
esse próprio trabalho de seleção não vel a nossa filosofia da natureza huma- 15
requeresse inteligência como se o na. Em primeiro lugar, pois, se alguma
bom discernimento não fosse a mais coisa foi bem exposta em detalhe pelos
importante de todas as coisas, tal qual pensadores que nos antecederam, pas-
sucede na música.
Com efeito, embora as pessoas semo-la em revista; depois, à luz das
20 experimentadas em qualquer campo constituições que nós mesmos coligi-
julguem com acerto das obras que se mos, examinaremos que espécies de
produzem nele e compreendam por que influências preservam e destroem os
meios e de que modo essas obras são Estados, que outras têm os mesmos
realizadas, e que coisas se harmonizam efeitos sobre os tipos particulares de
com outras coisas, os inexperientes constituição, e a que causas se deve o
devem dar-se por muito felizes quando de serem umas bem e outras mal
podem julgar se a obra foi bem ou mal aplicadas. Após estudar essas coisas 20
236 ARISTÓTELES
teremos uma perspectiva mais ampla, como deve ser ordenada cada uma e
dentro da qual talvez possamos distin- que leis e costumes lhe convém utilizar
guir qual é a melhor constituição, a fim de ser a melhor possível.