Um problema central na epistemologia é saber quando estamos justificados em manter que uma proposição é verdadeira. Não é de todo evidente o que é a justificação epistémica, e as explicações clássicas dessa noção revelaram-se muito problemáticas. Descartes pensava que uma pessoa podia justificar a verdade de uma proposição mostrando que ela derivava de primeiros princípios inquestionáveis (= evidentes). SEP, “Coherentist theories of epistemic justification” Problema: muito poucas das nossas crenças satisfazem as condições exigidas pelo fundacionalismo de tipo cartesiano ou empirista. A mera rejeição do fundacionalismo não constitui uma verdadeira alternativa O fundacionalismo do capítulo precedente foi apresentado como resposta a uma regressão ameaçadora da justificação. Esta regressão resulta de uma concepção linear da justificação: a crença A é justificada pela crença B (e pela crença C); a crença B é por sua vez justificada pela crença D, e assim sucessivamente. O problema é que parece haver sempre mais uma pergunta sobre como justificar a última crença da cadeia. Os fundacionalistas resolvem este problema afirmando que um certo conjunto de crenças básicas são não-inferencialmente justificadas. O’Brien, ITC, 154 Os coerentistas, porém, têm uma estratégia diferente: rejeitam a concepção linear da justificação subjacente ao fundacionalismo. Em seu lugar, propõem uma explicação não- linear ou holística. Uma crença particular é justificada se aumentar a coerência do nosso sistema de crenças. (O’Brien, ITC, 154 British Idealists such as F.H. Bradley (1846-1924) and Bernard Bosanquet (1848-1923) championed coherentism. So, too, did the philosophers of science Otto Neurath (1882-1945), Carl Hempel (1905-1997), and W.V. Quine (1908-2000). However, it is a group of contemporary epistemologists that has done the most to develop and defend coherentism: most notably Laurence BonJour in The Structure of Empirical Knowledge (1985) and Keith Lehrer in Knowledge (1974) and Theory of Knowledge (1990), but also Gilbert Harman, William Lycan, Nicholas Rescher, and Wilfrid Sellars. Despite this long list of names, coherentism is a minority position among epistemologists. It is probably only in moral epistemology that coherentism enjoys wide acceptance. Under the influence of a prominent interpretation of John Rawls’s model of wide reflective equilibrium, many moral philosophers have opted for a coherentist view of what justifies moral beliefs. Distinguir: Teoria coerentista da justificação de: Teoria coerentista da verdade (verdade como coerência [definicional, criterioógica]) Holismo conceptual (concept holism) Um sistema de crenças coerente tem de ser logicamente consistente, isto é, não pode conter crenças que sejam contraditórias. Não seria coerente acreditar que está a chover e que não está a chover. (…) Um conjunto de crenças que não estejam relevantemente relacionadas entre si pode ser visto como consistente um vez que um tal sistema de crenças não acolheria inconsistências lógicas ou probabilísticas. Conexão positiva Um sistema de crenças coerente é, portanto, um sistema em que não há contradição lógica, que não é probabilisticamente inconsistente, e em que há relações inferenciais entre as crenças que o constituem.
O’Brien, ITC, 159
Para o fundacionalista moderado, a falta de coerência é epistemicamente relevante: a justificação possuída por uma determinada crença pode ser revogada se essa crença não for coerente com o resto do nosso sistema de crenças. Podemos ter justificação prima facie para acreditar que a Catarina está no parque quando julgamos vê-la ao longe. Todavia, se também acreditarmos que ela foi de férias para fora, então a justificação para a nossa crença perceptual é revogada. De acordo com a perspectiva fundacionalista moderada, a coerência também pode desempenhar uma função justificatória positiva; assim, a justificação para uma crença particular aumentará se encaixar perfeitamente no nosso sistema de crenças, podendo mesmo proporcionar conexões inferenciais entre as nossas crenças que não estariam disponíveis na sua ausência. O’Brien, ITC, 159 notar que, de acordo com o fundacionalismo moderado, a coerência não pode conferir, só por si, justificação às nossas crenças; pode apenas reforçar a justificação já possuída por uma determinada crença em virtude da sua fundamentação na experiência. Além disso, o fundacionalismo moderado continua comprometido com crenças básicas, as quais são não- inferencialmente justificadas. Para o coerentista, porém, não existem crenças desse tipo. O’Brien, ITC, 159 Procuramos ter crenças e conhecimento acerca do mundo. Pode considerar-se, no entanto, que o coerentismo perde contacto com este mundo na medida em que a sua perspectiva da justificação diz respeito apenas às relações válidas entre as nossas crenças, isto é, relações internas dos nossos sistemas de crenças. Para o coerentista, a entrada (input) experiencial a partir do mundo não desempenha uma função justificatória. McDowell (1994) expõe este problema afirmando que o sistema de crenças do coerentista está sempre em perigo de «girar sem atrito no vazio», uma vez que o seu conteúdo não é determinado pelo estado do mundo externo. (O’Brien, ITC,160) Para que a coerência proporcione uma explicação da justificação, temos de ter razões para pensar que os sistemas de crenças coerentes contêm uma boa proporção de crenças verdadeiras. Poderá, no entanto, haver vários sistemas de crenças alternativos que sejam simultaneamente coerentes e consistentes com a nossa experiência. Isto constitui um problema para o coerentista. (O’Brien, ITC,161) As pessoas têm muitas crenças justificadas. Se a coerência for condição necessária para a justificação, como será possível verificar essa coerência, mesmo que seja apenas ao nível da consistência lógica. Exemplo: tempo exigido para verificar a coerência de um conjunto de 138 crenças: muitos milhares de anos….??? O coerentismo exigirá isto? O autor de um livro julga que não deve estar correto em tudo o que escreveu . Tal crença é expressa , depois de agradecer a outros autores e/ou colegas, mediante uma proposição do estilo “os erros que foram cometidos neste livro são de minha responsabilidade”. Os problemas da secção precedente têm a ver com um fosso que parece abrir-se entre a justificação coerentista e a verdade. Uma solução possível para estes problemas é colmatar o fosso identificando as crenças verdadeiras com aquelas que fazem parte de um sistema de crenças coerente. Uma tal perspectiva da verdade é proposta por Charles Peirce. Este afirma que o progresso epistémico implica que os nossos sistemas de crenças se vão tornando cada vez mais coerentes com o tempo (Peirce, 1965). “Por outro lado, todos os partidários da ciência são animados pela alegre esperança de que os processos de investigação, desde que levados suficientemente longe, darão uma determinada solução a cada questão que se lhes coloque. (…) A opinião de que todos os que investigam estão destinados a chegar por fim a um consenso, é aquilo que significamos com a verdade, e a realidade é o objecto representado nessa opinião. Esta é a minha maneira de explicar a realidade.” Peirce, “como tornar as nossas ideias claras”, trad. A. Fidalgo, 407.409 Há, no entanto, problemas nas teorias coerenciais da verdade. Primeiro, não é claro como é que o problema relativo aos sistemas alternativos de crenças pode ser evitado. O coerentista (com respeito à verdade) teria de dizer que todos esses sistemas de crenças coerentes são verdadeiros, ainda que possam proporcionar descrições diferentes e mesmo contraditórias do mundo. Isto não é aceitável para o realista, que pensa que a verdade é objetiva e, consequentemente, pensa haver uma única descrição verdadeira da realidade. O’Brien, ITC, 165 Um segundo problema que se coloca à teoria coerencial da verdade tem a ver também com a perspectiva antirealista com que está comprometida. De acordo com esta teoria, a natureza da realidade depende das capacidades epistémicas dos sujeitos e das propriedades dos seus sistemas de crenças. Se tivermos intuições realistas, isto é difícil de aceitar. A natureza do mundo é independente do facto de as nossas crenças serem ou não verdadeiras. O’Brien, ITC, 165 … a posição que mais nos interessa aqui, que é a do coerentista acerca da justificação, não precisa de estar comprometida com a teoria coerencial da verdade. Na próxima secção iremos investigar como uma teoria correspondencial da verdade pode ser conciliada com uma teoria coerencial da justificação. O’Brien, ITC, 166 O problema do isolamento da secção 3.1 prende-se com o facto de a justificação coerentista se fundamentar nas propriedades internas de um sistema de crenças e, em consequência disso, os nossos pensamentos poderem «girar sem atrito no vazio», não- condicionados pelo mundo, mundo esse a que esses pensamentos supostamente se referem. Se isto for assim, então, não é claro como é que as nossas crenças podem ter conteúdo empírico. O coerentista precisa de saber como é que o mundo pode afetar o nosso pensamento, e decerto que a percepção terá aí um papel a desempenhar . O’Brien, ITC, 166 A espontaneidade é uma propriedade das crenças perceptuais, e assim, para que o meu pensamento tenha conteúdo empírico, tem de satisfazer aquilo a que Bonjour chama «o requisito observacional», isto é, que uma proporção significativa de qualquer suposto conjunto de crenças acerca do mundo tem de ser cognitivamente espontânea. A tese de Bonjour não se limita a afirmar que eu posso assumir que as minhas crenças cognitivamente espontâneas são perceptuais e, portanto, são causadas pelo meu envolvimento com um mundo independente; afirma, isso sim, que o seu carácter espontâneo me dá boas razões para rejeitar o problema do isolamento. O’Brien, ITC, 166 Estamos, pois, em presença de uma tentativa de mostrar como o coerentista pode rejeitar o problema do isolamento e como pode trabalhar a partir de uma teoria não coerencial, mas correspondencial da verdade. (Não é claro, no entanto, como é que esta proposta enfrenta o problema relativo aos sistemas alternativos de crenças. Mesmo que a melhor explicação para a coerência continuada das nossas crenças cognitivamente espontâneas seja a de que tais crenças são causadas por um mundo independente, permanece em aberto a possibilidade de que a nossa experiência de um tal mundo possa ser captada por conjuntos de crenças alternativos.) O’Brien, ITC, 166 Para além de o sistema de crenças do sujeito ser, efectivamente, coerente, este tem de estar, ele mesmo, ciente desse facto, para que tal coerência possa desempenhar uma função justificatória. Isso é problemático para o coerentista. Para debater este tema, a noção de «metacrença» revelar-se-á particularmente útil. O’Brien, ITC, 169 Bonjour reconhece estas preocupações e sustenta, ao invés, que devemos aceitar aquilo a que chama «presunção doxástica», ou seja, que é justo pressupor que as nossas metacrenças acerca do estado do nosso sistema de crenças estão corretas, e que toda a gente tem uma ideia mais ou menos precisa do modo como o seu sistema de crenças se consolida . O’Brien, ITC, 169 Isto é problemático para o coerentista, visto que os sujeitos não têm o acesso necessário à coerência dos seus próprios sistemas de crenças. No capítulo que se segue faremos uma análise mais profunda desta importante afirmação: a ideia de que um sujeito tem de ser capaz de refletir sobre o que justifica as suas crenças. O’Brien, ITC, 170